RESUMO: o entendimento sobre o trabalho escravo assumiu diversas formas ao longo da história, de modo que, hoje, o estudo de novos paradigmas é essencial para a compreensão das exclusões em sociedade, em especial, a do trabalhador imigrante.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Trabalho escravo tradicional e trabalho escravo contemporâneo – 3. Histórico normativo internacional - 4. O trabalho escravo no Brasil: ação e regulamentação – 4.1. Herança colonizadora - 4.2. Disposições sobre o trabalho escravo no ordenamento jurídico brasileiro - 5. A relação do trabalho compulsório com a migração – 6. Conclusão – 7. Referências bibliográficas
1. Introdução
Busca-se, a partir deste texto, abordar, em linhas gerais, os conceitos sobre o trabalho escravo, a fim de estimular possibilidades de compreensões iniciais sobre o tema. A perspectiva adotada será a jurídica, estudando-se contornos normativos postos, assim como os entendimentos mais encontrados em leituras de textos e em estudos sobre a disciplina. O intuito da análise, portanto, é a indicação de ferramentas básicas para um posterior e eventual aprofundamento que o leitor se sinta inclinado a realizar.
Inicialmente, pode-se dizer que o uso do trabalho escravo não é prática recente considerando a história que se tem acesso. Desde a antiguidade, constituiu base de diversas sociedades, seja pela justificativa da conquista territorial, seja pela imposição de uma ideia pré estabelecida de relações sociais e de grupos “exploráveis”.
Esta forma de utilização do trabalho, então, continuou sendo promovida ao longo dos anos, com diferentes concepções e, até hoje, é persistente essa forma de exploração do ser humano. Na modernidade, ao contrário, é permeada por novos contornos, novas justificações e delimitações, atingindo sempre a população mais vulnerável, sendo por meio desta perspectiva que o estudo será conduzido.
2. Trabalho escravo tradicional e trabalho escravo contemporâneo
No primeiro momento de reflexão, será realizada breve exposição sobre o que se compreende por trabalho escravo tradicional, em contraposição ao contemporâneo. De início, deve-se admitir que não há como utilizar conceitos construídos durante a vigência de outras estruturas sociais diversas da atual, que é caracterizada pelo modo de produção capitalista. Isto porque, são realidades distintas que, muitas vezes, sequer permitem a criação de paralelos entre institutos.
De foda forma, o “trabalho escravo”, da maneira que a palavra soa tradicionalmente, pode ser compreendido como modalidade de exploração na qual o ser humano foi considerado objeto e teve sua dignidade totalmente reduzida. O trabalho escravo contemporâneo, por sua vez, funda-se em uma profunda mudança de paradigmas em relação ao tradicional, razão também pela qual parcela da doutrina não o denomina de trabalho escravo, mas sim de trabalho análogo à escravidão ou nomenclaturas similares.
No sistema de produção capitalista, a forma jurídica garante ao sujeito de direito a sua liberdade e igualdade para, como iguais, poder realizar trocas em sociedade, como formas de mercadoria. Tudo se transforma em mercadoria, a ponto de o ser humano vender partes de seu ser por valores monetários, os quais, por sua vez, nem sempre são expressão da quantidade de trabalho empenhado. Ao vender a força de trabalho, a ideia do consentimento individual é alterada e, portanto, a noção do trabalho compulsório também deve ser alterada para se adequar a realidade da troca de mercadorias, nas quais inclui-se o ser humano e sua força de trabalho.
Considerando esses aspectos, tenta-se traçar um paralelo (nem sempre possível e simétrico, como supramencionado) entre características do trabalho escravo tradicional e do contemporâneo.
Preliminarmente, aponta-se a questão da privação da liberdade. Na escravidão tradicional, o ser humano era efetivamente considerado propriedade e assim estabelecido pelos próprios meios normativos. Não se tinha uma ideia de igualdade (ao menos formal – aquela estabelecida de acordo com uma norma) entre os indivíduos e, assim, sobre eles eram exercidos todos os atributos relacionados ao direito de propriedade (usar, gozar, dispor de um objeto). Assim a inexistência de liberdade configurava parte central para a caracterização do trabalho compulsório.
Na escravidão tradicional, também se pode mencionar que o custo de compra de um indivíduo era alto. Apenas aqueles que possuíam dinheiro o suficiente e, normalmente, a propriedade da terra para exploração, eram quem conseguiam comprar escravos para impulsionar seus processos produtivos. O valor da mão de obra pode ser relacionado com a escassez dessa forma de trabalho e, no Brasil, por exemplo, se deu sobretudo com a proibição do tráfico negreiro em 1850 com a Lei Eusébio de Queirós, como se aprofundará a seguir.
Ademais, considerando toda a perspectiva de apoderamento de um indivíduo como propriedade alheia, a manutenção da ordem no modelo tradicional era realizada com ameaças, castigos, vigilância ostensiva etc.
Nos novos delineamentos sobre o trabalho escravo contemporâneo, existem alterações significativas sobre que se considera o “trabalho escravo”. Como ponto principal da discussão pode-se mencionar a ilegalidade do entendimento de um ser humano poder ser considerado propriedade de outrem. Não mais existe a estrutura normativa que possibilita a exploração e, portanto, deve-se considerar a mudança do eixo da liberdade para o da dignidade da pessoa humana quando da análise da configuração ou não de uma situação de trabalho escravo.
Enquanto antes o foco seria a liberdade de ir e vir das pessoas, hoje, a questão do consentimento é relativizada. O modo de produção capitalista concede a todos a ideia de igualdade e de possibilidade de venda de mercadorias – a força de trabalho dentro dessa ideia – entre iguais. No entanto, as próprias desigualdades produzidas por esse sistema que as perpetua são suficientes para levar indivíduos a venderem sua força de trabalho, em teoria, voluntariamente, por valores que sequer são capazes de garantir a dignidade da pessoa humana.
Ainda, não são raras as vezes em que, além de valores irrisórios pela venda da força de trabalho, indivíduos são mantidos em situações de trabalho sem condições adequadas de meio ambiente de laboral. Assim, ao contrário do modo tradicional, a exploração do trabalho compulsório hoje ocorre com a violação da dignidade dos indivíduos (submetidos a jornadas de trabalho exaustivas, em meio ambientes de trabalho irregulares) e com a descartabilidade dessas pessoas (custos muito baixos por seus serviços).
Atualmente, inclusive, pode-se dizer que as nuances do trabalho escravo podem ser muito difíceis de se examinar, sobretudo pelo fato da dificuldade da sua delimitação e conceituação na sociedade regida pela mercadoria. Sobre o tema, menciona-se excerto de tese que aproxima o trabalho livre do escravo:
Minha hipótese é que os elementos presentes no trabalho escravo contemporâneo e no trabalho livre contemporâneo não se opõem. A fundamental especificidade do trabalho escravo pós-abolição oficial consistira justamente nisto: com a separação entre o trabalhador e sua força de trabalho e a construção e universalização da liberdade formal capitalista, o trabalhador de hoje é simultaneamente objeto e sujeito. Ele é a força de trabalho (objeto/mercadoria) e também a parte contratual (sujeito de direito) que a vende[1].
Nota-se, então, que a realidade atual é até mesmo mais perigosa. Isto porque, com a ideia de igualdade entre os sujeitos e de proibição formal do trabalho escravo, alguns indivíduos que se submetem a tais situações sequer possuem consciência da realidade em que estão inseridos. Os próprios intérpretes do ordenamento jurídico podem se questionar se determinada situação pode ou não ser considerada de trabalho escravo, por conta das diversas armadilhas do sistema.
Por fim, indica-se como fonte de informação ilustrativa sobre a diferença entre o trabalho escravo tradicional e o contemporâneo a cartilha[2] elaborada pelo Ministério Público do Trabalho, no âmbito da Coordenadoria Nacional de Erradicação ao Trabalho Escravo (CONAETE).
3. Histórico normativo internacional
Desde o início da fase de positivação mais intensa dos direitos humanos, buscou-se tutelar os direitos dos trabalhadores. Dentro desse contexto se inicia a regulamentação da temática do trabalho escravo, apesar de persistir essa realidade em diversos países, de forma legal, até muito recentemente[3].
A Organização Internacional do Trabalho (OIT), criada em 1919 com o Tratado de Versalhes, após a primeira guerra mundial, foi idealizada a fim de garantir a existência de um órgão internacional que protegesse os direitos dos trabalhadores de todo o mundo e demonstra preocupação com a proteção dos direitos laborais em âmbito internacional.
Quando se estuda a internacionalização dos direitos humanos, de uma maneira positivada, remonta-se ao período posterior à segunda guerra mundial, com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), pela Carta de São Francisco, em 1945. Mas mesmo antes da criação da ONU, pode-se mencionar a Convenção número 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1930, a qual já previa normativas sobre o trabalho forçado ou obrigatório.
Em relação à Convenção n. 29 da OIT, contudo, deve-se apontar que, algumas de suas disposições ainda permitiam o trabalho forçado. Nota-se que no período de sua edição, essa realidade ainda era muito presente em diversos países, razão pela qual a referida convenção, apesar de prever a progressiva abolição do uso do trabalho escravo, ainda assim acabou por regulamentá-lo em determinadas situações[4].
Após a segunda guerra mundial, então, há a criação da ONU e o incremento das discussões sobre proteção aos indivíduos, à humanidade e às garantias internacionais. No campo do chamado “sistema global de proteção aos direitos humanos”, houve a edição da Declaração Universal de Direitos Humanos em 1948. Esta declaração elenca alguns direitos que deveriam ser garantidos a todos os seres humanos apenas pelo fato de serem seres humanos. Dentre os 30 artigos enumerados, a declaração é expressa em vedar o trabalho escravo em uma cláusula geral contra a escravidão. Tratava-se de preocupação essencial por ser uma prática ainda muito recorrente no período.
Apenas em 1957, a OIT edita a Convenção n. 105 sobre a abolição do trabalho escravo. É somente nessa ocasião que, enfim, se dispõe sobre a extinção dessa forma de exploração do ser humano, sem qualquer possibilidade de flexibilização como se percebia na Convenção número 29.
Posteriormente, a Declaração da OIT sobre os princípios e direitos fundamentais do trabalho de 1998 estabelece um importante marco por prever como um dos princípios fundamentais (core obligations) o combate ao trabalho escravo e a previsão de que o trabalho humano não é mercadoria. Menciona-se a importância dessa classificação, visto que a OIT elencou quatro principais ramos de proteção[5], dos quais um deles especificamente é a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório.
Ainda como instrumentos de proteção internacional, elenca-se diplomas mais recentes, como o Protocolo à Convenção sobre o trabalho forçado, de 2014, o qual requer que os países desenvolvam medidas efetivas para prevenir e eliminar o trabalho forçado e também para proteger e prover o acesso das vítimas à justiça. Percebe-se um foco de impedir que as vítimas retornem à condição de trabalho compulsório. E, por fim, a recomendação n. 203, sobre trabalho forçado também prevê o fortalecimento de órgãos de proteção do trabalho.
4. O trabalho escravo no Brasil: ação e regulamentação
4.1. Herança colonizadora
A sociedade imposta no Brasil pela a colonização de exploração instalada por Portugal deixou marcas que se reproduzem até hoje[6], sendo este um dos principais pontos de partida para investigações sobre a formação da sociedade brasileira e o estudo do trabalho escravo contemporâneo no país.
Durante a colonização, houve o uso em larga escala do trabalho escravo africano. Quanto aos questionamentos da não utilização da mão de obra indígena no Brasil, parte da doutrina[7] aponta que a preferência pela escravidão africana não se justifica pela escassez do trabalho indígena. Esta escolha se deu, sobretudo pelo formato da necessidade de acumulação e, então, o comércio de africanos também se encontrava como um negócio lucrativo para a metrópole, razão pela qual foi muito utilizada. Além de garantir a superexploração do trabalho e o uso da mão de obra até sua exaustão, o próprio comércio dessa “mercadoria” era positivo economicamente.
Percebe-se que a escravidão tradicional e de forma legalizada no Brasil durou muito tempo, de 1550 a 1888. Nota-se, inclusive, que a história do país se baseia, em muito mais tempo, no trabalho forçado do que no trabalho livre, visto que foram 338 anos de trabalho escravo tradicional, comparados aos 130 anos de trabalho livre.
Se tinha, nesse período, a existência do instituto da propriedade sobre outro ser humano e a objetificação de pessoas amparada pela norma.
Após a independência do Brasil e a dinamização, ainda que lenta, da economia interna, há também um movimento de transição para a mão de obra livre. Ao longo do século XIX são adotadas medidas que culminam com o fim do uso da mão de obra escrava. Em 1850, com a Lei Eusébio de Queiros, há a proibição do tráfico de escravos internacional. Em 1871, há a edição da Lei do Ventre Livre e, em 1885, a Lei dos Sexagenários. Em 1888, finamente, quando também o sistema de trabalho escravo no país já não poderia se sustentar, há a abolição do uso desse tipo de mão de obra.
Em linhas gerais, a transição para o “trabalho livre” se deu baseada no apoio do direito que sustenta o capitalismo que ia se consolidando no Brasil (e também nas mudanças socioeconômicas). Além das normativas mencionadas sobre o fim da escravidão, em si, se transforma o ordenamento no sentido de promover a igualdade entre os seres humanos e, então, a possibilidade de troca entre iguais como já mencionado.
Percebe-se a clara técnica do direito de, ao transformar todos em iguais, garantir a tudo a assunção da forma mercadoria para a troca entre indivíduos inclusive da força de trabalho. Nesse sentido, com o fim da escravidão no Brasil, teoricamente, apenas se tem o trabalho livre e qualquer forma de exploração do ser humano nos moldes escravocratas deve ser repudiado. Passa-se ao modelo atual da mão de obra “livre”.
4.2. Disposições sobre o trabalho escravo no ordenamento jurídico brasileiro
Considerando o ordenamento jurídico brasileiro, a tutela dos trabalhadores contra o trabalho compulsório é realizada com base, sobretudo, nas disposições acerca da dignidade da pessoa humana e da valorização do trabalho. Ambos são valores assegurados constitucionalmente nos artigos: 1º, III e IV; 170 caput da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88).
Nota-se, no entanto, que em âmbito constitucional, ao menos em sua redação original (em 1988) não se mencionou em qualquer lugar a vedação ao trabalho escravo propriamente dito. A única previsão que poderia se aproximar de uma regulamentação seria a impossibilidade de existência de penas de trabalhos forçados no artigo 5º, LVII. No entanto, no tema da regulamentação do trabalho em si (e não apenas de uma penalidade), não houve previsão sobre.
Infraconstitucionalmente, por sua vez, o artigo 149 do Código Penal previa, de maneira genérica, o tipo penal de Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, no entanto, sem estabelecer qualquer descrição sobre o que seria esse tipo de trabalho ou alguma hipótese específica de incidência. Isto, na prática, dificultava os operadores do direito a identificar e até mesmo punir os casos de trabalhos forçados.
Como a abstração e a generalidade da norma gerava pouca efetividade, os principais instrumentos normativos utilizados para o combate ao trabalho escravo eram, essencialmente, a normativa internacional supramencionada.
Ocorre que, em 2003, a legislação interna brasileira passou por grande mudança. Isto ocorreu em decorrência de um caso levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos: Caso José Pereira. Trata-se de caso ocorrido no final dos anos 80, que obteve solução amistosa na Comissão no final de 2003.
José pereira nasceu em São Miguel do Araguaia, foi para o Pará aos 8 anos na companhia do pai que trabalhava em fazendas. Chegou nessa fazenda, onde trabalhou em condições análogas a escravo. Em tentativa de fuga, levou um tiro, se fingiu de morto e foi jogado em uma fazenda vizinha junto com seu companheiro de fuga que morreu. Caminhou então até a sede da propriedade e pediu socorro e depois, em Belém, denunciou a situação que vivera à Polícia Federal, sem receber qualquer resposta, no entanto.
Pela inércia da justiça brasileira, o caso foi levado à Comissão Internacional de Direitos Humanos e hoje possui grande importância, visto que, o Brasil, pela primeira vez, reconheceu sua responsabilidade pela existência de trabalho escravo no país e se comprometeu a tomar atitudes ativas para melhorar.
No âmbito interno brasileiro, a CONATRAE foi criada depois do caso, em agosto de 2003, José Pereira foi indenizado no valor de 52 mil reais, o Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade internacional e estabeleceu uma série de compromissos relacionados com o julgamento e punição dos responsáveis, medidas pecuniárias de reparação, medidas de prevenção, modificações legislativas, medidas de fiscalização e punição ao trabalho escravo, e medidas de conscientização contra o trabalho escravo.
Em 2003, então, houve alteração no referido artigo 149 do Código penal que passa a dispor de maneira muito mais detalhada o que seria o crime de redução à condição análoga à escravidão:
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I - contra criança ou adolescente;
II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
Por fim, menciona-se que o ajuizamento de ações pode levar à responsabilização de quem explora o trabalho escravo. Esta pode ocorrer na seara criminal, condenando os infratores às penas da legislação penal brasileira, e também na civil, relacionado ao pagamento de indenizações. As indenizações podem ser de duas ordens. A primeira, é a destinada diretamente aos trabalhadores (dano moral individual) e a segunda pode ser destinada à coletividade (dano moral coletivo). A empresa ou o empregador infrator também podem ser elencados na chamada “lista suja”, documento criado que reúne informações, a fim de expor a violência, de todos os exploradores do trabalho nessas condições.
5. A relação do trabalho compulsório com a migração
Aquele que migra enfrenta uma série de barreiras como a não compreensão das instituições do novo país e dos meios de acesso à justiça. Desconhecedor deste novo país, de seu funcionamento básico e, sobretudo, dos direitos, o imigrante sofre ainda mais barreiras na vivência em uma nova localidade.
Quando se vislumbra o direito do trabalho, a situação torna-se ainda mais complexa, pois a primeira conduta de um indivíduo que se estabelece no Brasil e, principalmente, aqueles advindos da migração forçada, é a busca de um trabalho.
Aponta-se algumas questões centrais na análise, como a da ideia do reconhecimento pelo indivíduo em sociedade de um direito exigível[8]. Sem conhecer o direito brasileiro, acabam, muitas vezes, sendo submetidos a condições degradantes de trabalho e sequer reconhecem que têm seus direitos violados. A situação ocorre tanto por eventual diferença nos sistemas jurídicos de proteção laboral entre os países, quanto pela má fé e aproveitamento de alguns empregadores.
Na perspectiva da necessidade da venda da força de trabalho por um salário para o sustento, combinado ao desconhecimento da legislação brasileira e de toda a proteção no âmbito laboral, os imigrantes são recorrentemente explorados na condição de trabalho análogo à escravidão, nos termos mencionados nos itens anteriores deste estudo.
A fim de ilustrar a realidade mencionada, utiliza-se o levantamento “Trabalho escravo e gênero: quem são as trabalhadoras escravizadas no Brasil?”[9], que é baseado em artigo científico com apoio da OIT (Organização Internacional para o Trabalho). Neste trabalho, há a informação de que, no município de São Paulo, de acordo com dados da Subsecretaria da Inspeção do Trabalho do Ministério da Economia sistematizados pela Repórter Brasil (janeiro de 2003 a junho de 2018), do total de 430 trabalhadores resgatados, 30,4% são mulheres e destas, 93,1% são imigrantes.
Trata-se de uma realidade específica, urbana e em determinada região do país. No entanto, é suficiente para quantificar a vulnerabilidade dos trabalhadores imigrantes, conforme explicitado acima.
Enfim, aponta-se que como consequências para os trabalhadores que são resgatados dessa condição, o principal foco deve ser a instrução e o acolhimento para que não se retorne à condição de exploração vivenciada (o que é muito comum também). Dentro do campo normativo trabalhista, ainda pode ser possível a configuração da chamada rescisão indireta do “contrato de trabalho” (considerando a projeção de um contrato), sendo a vítima dessa forma de exploração detentora de todas as verbas decorrentes da “prestação dos serviços”. Também, o trabalhador imigrante, independentemente de sua situação migratória, quando resgatado do trabalho em situações análogas à escravidão tem o direito de receber parcelas de seguro desemprego, conforme dispõe as normas brasileiras[10].
6. Conclusão
Por meio deste estudo, pode-se elencar as principais noções sobre o trabalho escravo tradicional, a sua relação com o trabalho escravo contemporâneo. Um repasse sobre os principais institutos no campo normativo internacional, assim como a evolução considerando a história brasileira e as normas nacionais.
Trata-se de tema importante quando do tratamento trabalhador imigrante, visto que, inevitavelmente, a participação em uma relação laboral será parte da vida dos indivíduos. Analisar, então, o campo normativo a fim de se garantir a subsunção à norma de forma sempre a buscar a maior garantia de direitos e inibir violações a direitos humanos deve ser o cerne de qualquer atuação, e, neste caso, a fim de se promover entendimentos sobre o trabalho escravo contemporâneo ao qual muitos ainda são submetidos.
7. Referências bibliográficas
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH Bryant. Acesso à justiça. Tradução Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Servio Antonio Fabris Editor, 1988. Pg. 21
Cartilha O trabalho escravo está mais próximo do que você imagina. Ministério Público do Trabalho, Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo. <https://mpt.mp.br/pgt/publicacoes/cartilhas/cartilha-do-trabalho-escravo/@@display-file/arquivo_pdf> Acesso em: 30/07/2020
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16ª ed. São Paulo: LTr, 2017.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Pp. 73
KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem. A origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Editora Paz e Terra S.A. 2ª ed. 1994
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013
Trabalho escravo e gênero: Quem são as trabalhadoras escravizadas no Brasil? Disponível em: https://escravonempensar.org.br/wp-content/uploads/2020/09/GENERO_EscravoNemPensar_WEB.pdf (acesso em 03/2021)
VIANNA, Giselle Sakamoto Souza. Ser e não ser livre: a morfologia do trabalho escravo contemporâneo.
[1] VIANNA, Giselle Sakamoto Souza. Ser e não ser livre: a morfologia do trabalho escravo contemporâneo. Pg. 2
[2] Cartilha O trabalho escravo está mais próximo do que você imagina. Ministério Público do Trabalho, Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo. <https://mpt.mp.br/pgt/publicacoes/cartilhas/cartilha-do-trabalho-escravo/@@display-file/arquivo_pdf> Acesso em: 30/07/2020
[4] A Convenção n. 29 da OIT, apesar de já versar sobre o importante tema, previa, na prática, uma regulamentação de como poderia ser explorado o trabalho compulsório. Exemplo de dispositivos que demonstram a situação:
Art. 11 — 1. Somente os adultos válidos do sexo masculino, cuja idade presumível não seja inferior a 18 anos nem superior a 45, poderão estar sujeitos a trabalhos forçados ou obrigatórios. Salvo para as categorias de trabalho estabelecidas no art. 10 da presente convenção, os limites e condições seguintes deverão ser observados (...)
Art. 12 — 1. O período máximo durante o qual um indivíduo qualquer poderá ser submetido a trabalho forçado ou obrigatório, sob suas diversas formas, não deverá ultrapassar sessenta dias por período de doze meses, compreendidos nesse período os dias de viagem necessários para ir ao lugar de trabalho e voltar.
Dentre outros dispositivos.
[5] Os demais ramos de proteção da OIT são: (i) a liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; (ii) abolição efetiva do trabalho infantil; (iii) eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação.
[6] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Pp. 73
[7] KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem. A origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Editora Paz e Terra S.A. 2ª ed. 1994
[8] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH Bryant. Acesso à justiça. Tradução Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Servio Antonio Fabris Editor, 1988. Pg. 21
[9] Trabalho escravo e gênero: Quem são as trabalhadoras escravizadas no Brasil? Disponível em: https://escravonempensar.org.br/wp-content/uploads/2020/09/GENERO_EscravoNemPensar_WEB.pdf (acesso em 03/2021)
Mestranda em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela USP e Graduada em Direito pela USP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NAKANO, Juliana Mary Yamanaka. Trabalho escravo contemporâneo e a relação com o trabalho do migrante Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 maio 2021, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56472/trabalho-escravo-contemporneo-e-a-relao-com-o-trabalho-do-migrante. Acesso em: 23 dez 2024.
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