RESUMO: A presente pesquisa tem como objetivo o estudo da garantia constitucional de vedação da tortura, prevista no inciso III, do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, conhecida, entre nós, como a Constituição “Cidadã”. Como metodologia, utilizou-se a pesquisa bibliográfica, sendo possível reunir autores com suas respetivas obras para discutir sobre a temática. consideramos o tema profundamente atual e palpitante. Esperamos contribuir para uma melhor compreensão da garantia constitucional de vedação absoluta da tortura, ainda que modestamente, pois envidaremos todos os esforços na construção do conhecimento. Dividiu-se a pesquisa em 04 itens, quais sejam, a tortura no Brasil; os instrumentos universais de vedação a tortura; a vedação da tortura na Constituição Federal e por fim; sobre a criminalização da tortura no Brasil.
Palavras-chave: Tortura; Vedação; Constitucional.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO - 2 A TORTURA NO BRASIL - 3 INSTRUMENTOS UNIVERSAIS DE VEDAÇÃO A TORTURA - 4 VEDAÇÃO DA TORTURA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - 5 CRIMINALIZAÇÃO DA TORTURA NO BRASIL - 6 CONCLUSÃO - 7 REFERÊNCIAS
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo o estudo da garantia constitucional de vedação da tortura, prevista no inciso III, do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, conhecida, entre nós, como a Constituição “Cidadã”.
O objeto de estudo representa um campo vasto, propiciando diversas indagações e reflexões, tendo aplicação direta no cotidiano social, motivo que torna o tema mais apaixonante e, paradoxalmente, entristecedor, posto que a tortura se faz presente, ao longo da história da humanidade, acompanhando o homem, através dos tempos.
Buscaremos levantar na doutrina e na legislação concernente ao tema, os diversos enfoques, oportunizando análise e, especialmente, discussão sobre os diferentes pontos de vista, sem, entretanto, termos a pretensão de esgotar tão rico e vasto campo de estudo.
Nosso enfoque estará centrado nos direitos humanos fundamentais, pois entendemos que a garantia constitucional de vedação da tortura esta diretamente estribada na dignidade da pessoa humana, fundamento expresso da Constituição brasileira, e bem jurídico tutelado, na Lei 9.455/97.
Notadamente, trata-se de um tema de extrema relevância entre os direitos do homem, reconhecido mundialmente em Diplomas Internacionais e diferentes Constituições, representando um direito natural, inerente a todos os indivíduos.
As garantias constitucionais se inserem no mecanismo de freios e contrapesos dos Poderes do Estado, objetivando assegurar o respeito à pessoa em todas as suas dimensões, bem como formalmente, assegurar a inviolabilidade dos direitos fundamentais, limitando a atividade do Estado e dos particulares. Necessitamos, cada vez mais, buscar uma maior efetividade dos direitos individuais, entre os quais, a garantia da vedação da tortura, bem como incentivar o cidadão para que seja um intransigente defensor de seus próprios direitos.
Assim, consideramos o tema profundamente atual e palpitante. Esperamos contribuir para uma melhor compreensão da garantia constitucional de vedação absoluta da tortura, ainda que modestamente, pois envidaremos todos os esforços na construção do conhecimento
2 A TORTURA NO BRASIL
Inicialmente, cumpre destacar que a legislação portuguesa foi a matriz jurídica do direito brasileiro. Tivemos as Ordenações Afonsinas (1446-1521), as Ordenações Manoelinas (1521- 1603) e as Ordenações Filipinas (1603-1822) (GOULART, 2012) .
Desde logo, podemos afirmar que o Brasil Colônia, sob administração portuguesa, através das Ordenações Filipinas, foi palco das práticas aviltantes de inflição de tormentos aos acusados. Especialmente os escravos negros, considerados coisas, foram tratados com grande desumanidade e extrema crueldade, visto que eram despossuídos de quaisquer direitos ou garantias. De outra parte, em face de proteção relativa da igreja, os índios sofreram em menor grau os abusos dos colonizadores (COIMBRA, 2010)
Vale dizer que os negros, embora não gozassem de direitos à cidadania, eram considerados imputáveis, respondendo penalmente, com a intenção de mantê-los temerosos e submissos ao poder de seus ‘donos’, sendo que, de quaisquer deslizes, decorriam penas corporais atrozes, cunhadas de crueldade e abusos, tais como açoites, marcação com ferro e, muitas vezes, a morte.
Notadamente, no Brasil Império, com o advento da Constituição de 1824, foram vedadas as formas de tratamento desumanos e cruéis, dentre os quais a tortura. Todavia, o preceito Constitucional continuou sendo violado e prosseguiram as violências contra os escravos negros (COIMBRA, 2010) .
Por sua vez, o Código Criminal de 1830, considerado um avanço na época, autorizava o uso de açoites aos escravos que fossem acusados de crimes não punidos com morte ou galés. A polícia devia açoitar, no ato da prisão, escravos que fossem flagrados praticando capoeira, bem como os mantinham sumariamente detidos nas prisões, vulgarmente chamadas de “calabouços”. Podemos observar que a violência policial brasileira possui berço já no Império, notadamente institucionalizada pelas autoridades da época.
Com o advento da Lei Áurea, em 1888, os negros foram considerados libertos. No ano seguinte (1889), tivemos a Proclamação da República, representando inegáveis avanços nas legislações posteriores. A tortura não mais autorizada legalmente será utilizada na forma velada e clandestina, tendo como principais vítimas os presos políticos e presos comuns, cujo objetivo principal foi a extorsão de confissões ou informações.
Além disso, não devemos esquecer que, no período da “ditadura Vargas” ou Estado Novo (1937-1945), quando garantias individuais foram suprimidas, a imprensa sofreu forte censura e a repressão policial foi mais rigorosa, pois muitos presos políticos foram vítimas de torturas (JURICIC, 2003).
Neste mesmo contexto, tivemos a Revolução de 1964, quando a tortura institucional retorna com força e vigor, sendo as principais vítimas opositores políticos acusados de militância com a ideologia comunista. Portanto, segundo a visão de Segurança Nacional, inimigos perigosos deveriam ser perseguidos e presos. Desde logo, registramos que as Forças Armadas e Polícias atuavam de forma integrada, com técnicas de obtenção de confissões e informações baseadas na inflição “quando necessário” de tortura.. Figuram, neste cenário, o Centro de Informações da Marinha (CENIMAR), o Departamento de Operações de Informações (DOI), o Centro de Operações de Defesa Interna (CODI) e a Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS), entre outros órgãos de repressão governamental (JURICIC, 2003).
Ainda no Regime Militar, iniciado em 1964, vemos a danosidade que a tortura causou aos nossos irmãos brasileiros, durante a ditadura militar. O império do silêncio demonstra que tais métodos velados e clandestinos tinham a conivência dos diversos escalões do Estado. No livro “Ditadura Escancarada”, Elio Gaspari destaca que:
Inicialmente o regime militar negava a prática de tortura. Posteriormente, numa linha auxiliar à pura e simples negativa da tortura, o regime construiu o raciocínio através do qual tornava sua admissão um fator que lhe reduzia a relevância. O primeiro a expô-lo em público foi o Ministro da Educação, Jarbas Passarinho: ‘Dizer que não existe tortura seria faltar à verdade. Agora, dizer que existe tortura sistemática de governo, não é só faltar à verdade. É uma ignomínia’ (GASPARI, 2015)
Com o advento do Ato Institucional Nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968, o Governo Militar passou a atuar com maior rigor, suspendendo diversas garantias insculpidas na Constituição Federal de 1967.
Ao final deste triste e obscuro período, tivemos pessoas desaparecidas e exiladas, sequelas físicas e psicológicas das vítimas das torturas. Hoje, temos acesso a inúmeros relatos de estudiosos e vítimas das violências perpetradas, que certamente envergonham as instituições envolvidas e representam uma chaga não totalmente cicatrizada na sociedade brasileira. Para exemplificar, cabe citar obras como Brasil Nunca Mais e Batismo de Sangue, que traduzem com detalhes práticas de torturas, descrevendo métodos e relato de pessoas envolvidas.
Hodiernamente, com o advento da Constituição Federal de 1988, temos a cidadania e a dignidade da pessoa humana expressas como fundamentos da República Federativa do Brasil.
O direito de silêncio é uma garantia individual do cidadão, aplicável tanto na fase extrajudicial, como na fase judicial. Consagrado no art. 5º, LXIII da Constituição Federal, representa uma garantia contra a autoacusação. Assim, Guilherme de Souza Nucci adverte que: “A origem desse princípio está na Inglaterra do final do século XVI, em protesto contra métodos inquisitoriais dos tribunais eclesiásticos” (NUCCI, 2018). Nesse sentido, Marco Antônio de Barros, ao referir-se ao princípio nemo tenetur se detegere afirma que: “{...} ninguém é obrigado a se auto acusar, facultando ao preso o direito de permanecer calado, em juízo ou fora dele” (BARROS, 2013) . Igualmente, Guilherme de Souza Nucci, durante abordagem sobre “Confissão, interrogatório e direito ao silêncio” destaca o RHC n. 71421-8/RS de maio de 1994, cujo relator foi o Ministro Celso de Mello:
Esta Suprema Corte, fiel aos postulados constitucionais que delimitam, nitidamente, o círculo de atuação das instituições estatais, salientou que qualquer indivíduo que figure como objeto de procedimentos investigatórios, verbis: ‘...tem, dentro de várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer calado. Nemo tenetur se detegere. Ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal. O direito de permanecer em silêncio, inserese no alcance concreto da cláusula constitucional do devido processo legal. E nesse direito ao silêncio inclui-se, até mesmo por implicitude, a prerrogativa processual de o acusado negar, ainda que falsamente perante a autoridade policial ou judiciária, a prática da infração penal ’ (RTJ 141/512) (NUCCI, 2018) .
Logo, a tortura contraria a natureza humana ao compelir um homem a autoincriminação. Destacamos que todo o indivíduo deve ser respeitado em sua liberdade de declaração. Assim, ao analisar o direito de silêncio, Theodomiro Dias Neto afirma que “É direito de todo o indivíduo em não ser convertido em meio de prova contra si próprio” (NETO, 2016)
Hoje, inegavelmente, o Brasil apresenta índices elevados de criminalidade, sendo a sociedade vitimada diariamente. Convivemos com a banalização da violência. O cidadão exige políticas públicas que garantam uma maior segurança. A imprensa nestes ares, em geral, é extremamente sensacionalista. Convivendo diariamente com as diferentes mazelas sociais, o policial muitas vezes busca dar uma resposta, utilizando métodos sumários de resolução de conflitos. Desorientados e à margem da lei, submetem suspeitos, acusados e presos a castigos físicos, ameaças e à morte.
3 INSTRUMENTOS UNIVERSAIS DE VEDAÇÃO A TORTURA
Inicialmente, torna-se imperioso destacar que, embora, especialmente, após o Séc. XVIII tenhamos manifestações contrárias à tortura, bem como sensibilização das autoridades e, por consequência, abolição no ordenamento jurídico de vários países, tais métodos continuam sobrevivendo à margem da lei no cotidiano da sociedade mundial. Merece destaque, a anteriormente referida Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, datada de 1789, servindo de balizamento às diversas legislações posteriores que trataram de garantias individuais e dignidade da pessoa humana.
Neste mesmo contexto, a Convenção de Genebra de 1864 buscou proteger Soldados feridos e doentes, bem como a população civil, em decorrência dos conflitos bélicos da Europa, irradiando princípios protetivos de direito humanitário para a Convenção de Genebra de 1929, a qual trata de prisioneiros de guerra: “Art. 2º. Devem ser tratados humanamente e protegidos contra atos de violência, insultos e a curiosidade pública”. e “Art. 3º. Os prisioneiros de guerra têm direito a ser respeitados em sua pessoa e em sua honra” (COIMBRA, 2010).
Somente no Séc. XX, tivemos duas grandes guerras mundiais, onde a tortura foi praticada contra prisioneiros de guerras e nos campos de concentração, bem como várias guerras civis tiveram palco neste mesmo século, onde a tortura foi utilizada contra militares e civis como método de punição, obtenção de confissões, busca de informações e até mesmo por sadismo (GOULART, 2012) .
De outra forma, foi também no Séc. XX que surgiram diplomas internacionais, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, vedando, de forma expressa a tortura e criminalizando os autores de tais tormentos. Um marco indiscutível foi a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 26 de julho de 1945, que buscou sedimentar a proteção aos direitos humanos e a dignidade da pessoa humana (KIST, 2008). Notadamente, surgiu como reação às barbáries cometidas na Segunda Guerra Mundial, quando milhões de pessoas foram mortas, torturadas, enfim, submetidas a toda espécie de sofrimentos até então inimagináveis.
Assim, em 10 de dezembro de 1948, tivemos a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que no artigo V, sobre a tortura, expressa: “Ninguém será submetido à tortura, nem tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante” (grifo nosso). Previa, ainda, no artigo XI que “todo homem acusado de um ato delituoso tem direito de ser presumido inocente até que sua culpa tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas as garantias necessárias à sua defesa”.
Portanto, criou-se o mecanismo necessário para coibir o emprego de tortura no âmbito do processo penal, ao se prever o direito de uma produção de provas, de acordo com a lei, a um julgamento público.
Posteriormente, vários diplomas internacionais surgiram, objetivando criminalizar a tortura, senão vejamos:
Destaca-se o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) no seu preâmbulo, podemos destacar o reconhecimento da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da liberdade, da justiça e da paz no mundo. No art 7º, temos: “Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes” (grifo nosso). No art 10 do referido Pacto temos que: “Toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana”.
Finalmente no art. 14, nº 2, temos: “Toda a pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”. No nº 3 do mesmo artigo, ao tratar das garantias mínimas de toda a pessoa acusada de um delito, chamamos a atenção para alínea “g”, que expressa o direito desta “a não ser obrigada a depor contra si mesma, nem se confessar culpada”.
Destaca-se Convenção americana de direitos humanos - São José da Costa Rica (1969) também denominada de Pacto de San José da Costa Rica, cumpre destacar que esta Convenção segue igual teor do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, acima referidos. Reafirma o propósito de consolidar, no Continente americano, um regime de liberdade pessoal e de justiça social, fundado nos direitos humanos essenciais. Assim, à luz do art 5º, item 2, temos que: “Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano”(grifo nosso).
Portanto, é um diploma de grande destaque, conforme verificamos já no seu preâmbulo, ao reconhecer que “os direitos essenciais da pessoa humana não derivam do fato de ser ela nacional de determinado Estado, mas, sim, do fato de ter com o fundamento os atributos de pessoa humana” Finalmente, vemos que este importante diploma ratifica postulados de direitos humanos dos Diplomas Internacionais anteriormente referidos, sedimentando a preocupação a respeito dos direitos humanos, entre os quais a vedação da tortura, conforme transcrito acima.
4 VEDAÇÃO DA TORTURA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Com a entrada em vigor, em 05 de outubro de 1988, da Constituição Federal vigente, conhecida como “Constituição Cidadã”, merece destaque, inicialmente, o art. 1º, inciso III, que trata sobre um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana.
Em seguida, no art. 4º, temos estabelecido que as relações internacionais do Brasil terão como um dos princípios, a prevalência dos direitos humanos.
Já o Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, temos no art 5º, inciso III, a vedação absoluta da tortura, com a seguinte redação: “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (grifo nosso). Destacamos que “a prática da tortura implica inequivocamente à coisificação e à degradação da pessoa, transformando-a em mero objeto da ação arbitrária de terceiros, parece-nos questão que dispensa qualquer comentário adicional ” (SARLET, 2012).
Portanto, a Constituição, de forma expressa e absoluta, vedou a prática de tortura no Brasil. O bem jurídico protegido é a dignidade da pessoa humana. Sabemos que a tortura é uma prática abominável, pois degrada a pessoa humana, tratando-a como objeto, atingindo algo que lhe é inerente, sua dignidade. Embora positivada a vedação da tortura, na maioria das Constituições das diferentes Nações, assistimos a violações sistemáticas e, certamente, várias outras ocorrem na clandestinidade e permanecem na “Cifra Oculta”.
Ainda no art. 5º da Carta Magna, temos no inciso XLIII que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, {...}, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.
Finalmente o art. 5º, §2º, dispõe que: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais que a República Federativa do Brasil seja parte”.
A Constituição Federal, desta forma, impôs ao legislador infraconstitucional a obrigação de incriminar a prática de tortura, sendo que, em 07 de abril de 1997, foi sancionada a Lei 9.455, que define os crimes de tortura e dá outras providências. Destaca-se que, até então, não tínhamos, no Brasil, um tipo penal autônomo.
Mesmo com a vedação absoluta da tortura, o grande desafio é como proteger este direito. Nesse sentido, merece destaque a lição de Norberto Bobbio, quando afirma que: “O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los” (BOBBIO, 2010).
Inicialmente, cumpre destacar que a Constituição Federal, em seu art 1º, preceitua que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: “I- a soberania; II- a cidadania; III- a dignidade da pessoa humana; IV- os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V- o pluralismo político”(grifo nosso).
Princípio constitucional explícito, a dignidade da pessoa humana é um valor inerente à pessoa. Traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas. Quando excepcionalmente tivermos limitações dos direitos fundamentais, mesmo assim não poderá ocorrer menosprezo à necessária estima que merecem todos os indivíduos, enquanto seres humanos.
A dignidade da pessoa humana é uma qualidade comum a todos os homens. Valor supremo que nasce com o indivíduo, acompanhando-o por toda a existência. Desconsiderar uma pessoa é desconsiderar a si próprio. A razão do direito é pacificar e harmonizar as relações, sendo que tais regramentos são instituídos pelos próprios homens. A dignidade preexiste à Constituição Federal, tendo nesta o seu reconhecimento. O Estado deve propiciar condições para que as pessoas tenham efetivamente respeitada a sua dignidade. Não existe parcela de dignidade. Sem o pleno exercício de seus direitos, não há como ter dignidade.
Valor supremo, engloba o conteúdo de todos os direitos fundamentais da pessoa humana. É um dos atributos mais essenciais do ser humano, representando um dos valores fundamentais do nosso ordenamento.
Assim, à luz da declaração Universal dos Direitos do Homem temos, expressamente, que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz do mundo”. A Assembleia Geral proclama no art 1º que: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com o espírito de fraternidade”.
Com efeito, podemos destacar que a vinculação entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais constitui em um dos postulados, nos quais se assenta o direito constitucional contemporâneo (SARLET, 2012).
5 CRIMINALIZAÇÃO DA TORTURA NO BRASIL
Inicialmente, não podemos esquecer que a legislação penal brasileira já contemplava a tortura como circunstância agravante genérica (art. 61, II, ‘d’ do Código Penal) e qualificadora do crime de homicídio (art. 121, § 2º, III do Código Penal).
Com o advento da Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), tivemos, pela primeira vez, a tortura prevista como tipo penal na legislação brasileira, conforme redação abaixo:
Art. 233. Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância à tortura: Pena – reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos. § 1º . Se resultar lesão corporal grave: Pena- reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos. § 2º . Se resultar lesão corporal gravíssima: Pena – reclusão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos. § 3º . Se resultar morte: Pena – reclusão de 15 (quinze) a 30 (trinta) anos.
Mesmo diante deste avanço, em termos de repressão à pratica de tortura, o tipo penal previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não definiu o que denotava tal comportamento delituoso, neste caso, ofendendo o princípio da reserva legal insculpido nos artigos 5º, XXXIX da Constituição Federal e 1º do Código Penal.
Posteriormente, tivemos a Lei 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos), destacando-se a redação do art. 2º: “Os crimes hediondos, a prática de tortura, o tráfico ilícito de substâncias entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: Ianistia, graça e indulto; II- fiança e liberdade provisória” (grifo nosso). Determina ainda, que a pena será cumprida integralmente no regime fechado (§ 1º), bem como caberá ao juiz decidir de forma fundamentada se o réu poderá apelar em liberdade, em caso de sentença condenatória (§ 2º). Quanto à prisão temporária, terá o prazo de trinta dias, prorrogáveis por igual período, em caso de extrema e comprovada necessidade (§ 3º).
Assim, à luz do art. 5º, inciso XLIII da CF, temos a equiparação da tortura aos crimes hediondos. Portanto, com a Lei 8.072/90, a prática de tortura não foi considerada um crime hediondo, mas equiparada a estes para fins processuais e de execução.
A Lei 9.455/97 tem como bem jurídico protegido a dignidade da pessoa humana, pois a prática de tortura nega à vítima a sua condição de pessoa, degradando-a. A sujeição do torturado ao seu algoz, coloca aquele em completa submissão e inferioridade, que aviltam o simples fato de ser pessoa.
A norma penal incriminadora visa proteger a dignidade humana, um dos pilares mestres na promoção dos direitos humanos, abarcando valores como incolumidade, liberdade e, até mesmo, a vida. Destacamos a lição de que: “{...} a norma penal incriminadora é o veículo do bem jurídico tutelado pelo legislador e, pela indispensabilidade deste valor, se legitima a injunção criminalizante relativamente às condutas tendentes a colocá-lo em grave perigo ou mesmo ofendê-lo” (KIST, 2008)
Muitos legisladores criticam a Lei 9.455/97 ao considerar o crime de tortura como de natureza comum. Sustentam que a lei não está em harmonia com as Convenções de 1984 e 1985, que consideram o crime de tortura como especial, portanto, podendo ser praticado somente por funcionário público ou pessoa no exercício de função pública. Neste caso, o particular somente seria alcançado na hipótese do concurso de agentes (COIMBRA, 2012)
A Lei 9.455/97 incriminou as seguintes modalidades de tortura:
Art 1º, inciso I, alínea ‘a’: “Constranger alguém com o emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa”
Art 1º, inciso I, alínea ‘b’: “Constranger alguém com o emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental para provocar ação ou omissão de natureza criminosa”.
Art 1º, inciso I, alínea ‘c’: “Constranger alguém com o emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental em razão de discriminação racial ou religiosa”.
Nas modalidades acima elencadas no art 1º, inciso I, alíenas ‘a’, ‘b’ e ‘c’, o núcleo do tipo está representado pelo verbo “constranger”, significando ação, violentar, obrigar, coagir. Busca-se reduzir ou aniquilar a vontade da vítima, sujeitando-a à vontade do agente. O constrangimento é direcionado para que esta realize o ato pretendido pelo agente, no caso, obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; provocar ação ou omissão de natureza criminosa e causar sofrimento físico ou mental, em razão de discriminação racial ou religiosa.
6 CONCLUSÃO
O objetivo principal deste trabalho foi realizar um estudo da garantia da vedação da tortura, cláusula pétrea, prevista na Constituição Federal da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988.
Trata-se de um tema que diz respeito a todos os indivíduos indistintamente, previsto em Diplomas Internacionais, reconhecido pelos países signatários e positivado nas Constituições de diversos povos, especialmente, após a Segunda Guerra Mundial.
As práticas de torturas remontam a antigas civilizações. Sua contestação teve, como marco principal, o Iluminismo, no final do Século XVIII, que buscou a humanização das penas e abolição da tortura, até então admitida legalmente como meio de prova, visando obter a confissão do torturado. O indivíduo, até então visto como um objeto, passa a ser um sujeito de direitos.
Embora a Constituição Federal tenha expressado a vedação absoluta da tortura, somente em 07 de abril de 1997 tivemos a criminalização da tortura como tipo penal autônomo, através da Lei 9.455, a qual não define o que seja tortura, limitando-se a relacionar as hipóteses em que ela ocorre. Todavia, representa um grande avanço na área dos direitos humanos fundamentais e, certamente, um fator inibitório, que esperamos que venha a ser mais efetivo na penalização de autores desta abominável prática.
Torna-se oportuno destacar que, devido à falta de testemunhas, clandestinidade dos tormentos, silêncio das vítimas, poucas denúncias e condenações houve poucas condenações. Sabemos que as vítimas de torturas, muitas vezes, são suspeitas ou autoras de crimes, causando descrédito ao denunciar os tormentos, especialmente, quando a acusação for contra a agentes públicos, neste caso, na maioria das vezes, policiais.
Entendemos que a Lei 9.455/97 não foi menos restritiva do que os documentos internacionais, quanto ao sujeito ativo. Pelo contrário, foi mais abrangente, admitindo não somente agentes públicos, como autores. Sabemos que as hipóteses mais comuns de tortura são as praticadas por autoridades públicas e as cometidas no seio familiar, neste último caso, em regra, as vítimas são mulheres, crianças e adolescentes.
O combate da tortura perpetrada por agentes públicos exige que o Estado busque medidas efetivas de prevenção e repressão. Assim, urge que tenhamos mecanismos de acompanhamento dos serviços públicos, em especial, nas atividades policiais e penitenciárias, banindo a cultura da impunidade. Toda a denúncia deve ser investigada com seriedade e acompanhada por integrantes do Ministério Público.
7 REFERÊNCIAS
BARROS, Marco Antonio de. A busca da verdade no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 167.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 17. Tiragem. Rio de Janeiro: Campus, 2010, p. 24.
COIMBRA, Mário. Tratamento do injusto penal da tortura. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 149-150.
GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Intriseca, 2015, p. 313.
GOULART, Valéria Diez Scarance Fernandes. Tortura e prova no processo penal. São Paulo: Atlas, 2012, p. 38.
JURICIC, Paulo. Crime de Tortura. 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 58.
NETO, Theodomiro Dias. O direito ao silêncio: Tratamento nos direitos Alemão e Norte-Americano. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 5. n. 19, p. 185, jul./set. 2016.
NUCCI, Guilherme de Souza. O valor da confissão como meio de prova no Processo Penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 167.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 129.
Graduando em Direito pelo Centro Universitário Luterano de Manaus - CEULM/ULBRA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CHAVES, EVELINE PEREIRA CAVALCANTE. A garantia constitucional de vedação da tortura: alguns reflexos penais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 maio 2021, 04:21. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56567/a-garantia-constitucional-de-vedao-da-tortura-alguns-reflexos-penais. Acesso em: 23 dez 2024.
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