MURILO SUDRÉ MIRANDA[1]
(orientador)
RESUMO: A Suspensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) do devedor em execuções pecuniárias tem sido uma medida coercitiva atípica empregada após a reforma do Código de Processo Civil de 2015, com a inserção do artigo 139, inciso IV, inaugurando debates jurídicos, principalmente em relação aos direitos constitucionais. De que forma esta medida coercitiva no processo de execução por quantia certa pode resultar na entrega de uma prestação jurisdicional proporcional e adequada é o problema. Os objetivos são demonstrar os impactos jurídicos da aplicação desta medida pelo Poder Judiciário, mapear os conflitos existentes, comparar entendimentos, cotejar os pontos negativos e positivos, bem como elencar requisitos para a obtenção de uma prestação jurisdicional proporcional-adequada. Os métodos adotados foram o descritivo e comparativo, numa abordagem qualitativa, com dados coletados em doutrinas, artigos especializados e jurisprudências. Concluiu-se que a aplicação desta medida executiva depende das especificidades do caso concreto, devendo ser determinada após a adoção das medidas típicas, posterior constatação que o executado possui padrão de vida incompatível com a alegada ausência de patrimônio, cumulado com indícios de que o devedor estaria a ocultá-lo, a adequação da medida atípica à finalidade pretendida com a consequente efetividade e o uso necessário do princípio da proporcionalidade.
Palavras-chave: Carteira Nacional de Habilitação. Impactos Jurídicos. Inadimplemento. Obrigação de pagar. Medida Coercitiva Atípica.
ABSTRACT: The suspension of the debtor's National Driver's License (CNH) in pecuniary foreclosures has been an atypical coercive measure used after the reform of the Civil Procedure Code of 2015, with the insertion of article 139, item IV, inaugurating legal debates, mainly in relation to constitutional rights. How this coercive measure in the enforcement process for a certain amount can result in the delivery of a proportional and adequate judicial provision is the problem. The objectives are to demonstrate the legal impacts of the application of this measure by the Judiciary, to map the existing conflicts, to compare understandings, to compare the negative and positive points, as well as to list requirements for obtaining a proportional-adequate judicial provision. The methods adopted were descriptive and comparative, in a qualitative approach, with data collected in doctrines, specialized articles and jurisprudence. It was concluded that the application of this executive measure depends on the specifics of the specific case, and must be determined after the adoption of typical measures, later finding that the executed has a standard of living incompatible with the alleged lack of equity, combined with evidence that the debtor it would be hiding it, the adequacy of the atypical measure to the intended purpose with the consequent effectiveness and the necessary use of the principle of proportionality.
Keywords: National driving license. Legal Impacts. Default. Obligation to pay. Atypical Coercive Measure.
Sumário: Introdução. 1. Do Procedimento Executivo Civil e suas técnicas de efetivação. 2. Do surgimento da Medida Coercitiva Atípica e seus desdobramentos na execução pecuniária. 3. Direito Fundamental à uma prestação jurisdicional proporcional e adequada. 4. Análise de Impactos Sociais e Jurídicos originados pela aplicação da medida coercitiva atípica de Suspensão da CNH do devedor. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
A prestação jurisdicional, é, sem dúvidas, a maior e mais importante resposta do Poder Judiciário, que possui o ônus de entregar ao jurisdicionado decisões justas, proporcionais e adequadas ao caso concreto, cumprindo o Estado-juiz com seu dever intrínseco quando entrega à parte vitoriosa o objeto do litígio, que deve ser devidamente efetivado.
Como forma de garantir a concretização da tutela garantida pelo Estado, o processo de execução possui papel primordial, pois é onde se busca a tão sonhada efetividade de um direito outrora reconhecido, sendo que é na fase executiva que o Magistrado pode se utilizar de medidas que sejam aptas a produzir o resultado pretendido.
Após a descoberta de que as medidas executivas previstas na lei processuais não são eficazes o bastante para a satisfação do crédito do credor, os poderes executórios e coercitivos dos Magistrados foram ampliados após do Código Processual Civil e a inserção do artigo 139, inciso IV, no referido diploma processual.
Com essa garantia ampliada, o juiz pode fazer uso de medidas não previstas em lei a depender do caso concreto. Ressalta-se que o artigo supracitado consiste em cláusula geral processual executiva, sendo um termo genérico, permitindo a sua aplicação conforme interpretação do magistrado à luz do caso concreto. Entretanto, a ausência de tipos balizadores para a sua aplicação pode abrir espaço para arbitrariedades.
Em razão disso, viu-se a necessidade de estudar a aplicação da medida coercitiva atípica denominada Suspensão da Carteira Nacional o Devedor em execuções pecuniárias, que tanto tem sido utilizada pelos tribunais superiores como forma de pressionar o devedor a satisfazer o crédito e trazer maior efetividade ao direito adquirido.
Nessa perspectiva, indaga-se: De que forma a medida coercitiva de suspensão da carteira nacional de habilitação do devedor no processo de execução por quantia certa pode resultar na entrega de uma prestação jurisdicional proporcional e adequada?
Dessa forma, o objetivo geral da presente pesquisa é demonstrar os impactos jurídicos da aplicação da medida coercitiva de Suspensão da Carteira Nacional de Habilitação do devedor pelo Poder Judiciário em caso de inadimplemento de obrigação de pagar.
Para tanto, especificar os fundamentos utilizados pelo Poder Judiciário, mapear os conflitos existentes, comparar os entendimentos jurisprudenciais adotados, classificar os pontos negativos e positivos, bem como elencar requisitos para a obtenção de uma prestação jurisdicional proporcional e adequada foram objetivos perseguidos.
Como estratégia de alcance da meta estipulada, a pesquisa foi realizada de acordo com os métodos descritivo e comparativo, que auxiliaram na tarefa de buscar e compreender as divergências de entendimentos de forma minuciosa, com uma abordagem qualitativa, através da revisão da literatura específica com utilização de material doutrinário, artigos científicos, livros, dissertações, teses e jurisprudências.
No primeiro item, este trabalho trará, de maneira objetiva, o funcionamento do procedimento executivo civil e suas técnicas de efetivação. Logo após, no segundo item, trata de discorrer acerca do surgimento da medida coercitiva atípica e seus desdobramento na execução pecuniária, demonstrando como a Suspensão da CNH do devedor veio sendo aplicada desde o princípio até os dias atuais. Em terceiro ponto, é sustentado o direito à uma prestação jurisdicional proporcional e adequada, e, por último, partindo dos estudos realizados, será feita uma análise dos impactos jurídicos que a adoção da Suspensão da CNH do devedor no processo de execução causam.
1. DO PROCEDIMENTO EXECUTIVO CIVIL E SUAS TÉCNICAS DE EFETIVAÇÃO
O Processo de Execução no Direito Processual Civil Brasileiro, começa a ser disciplinado no artigo 771 do Novo Código de Processo Civil de 2015, e é essencialmente composto de atos processuais e materiais, denominados de executivos, voltados à satisfação do direito daquele que se diz credor e detém um título executivo que estampa uma obrigação certa, líquida e exigível.
É uma espécie de processo, portanto, em que se cobra uma maior atividade do juiz para que a prestação jurisdicional seja mais rápida e eficaz. “A execução civil possui objetivos diferentes daqueles previstos para o processo de conhecimento, pois nasce com a missão de produzir resultados práticos na vida das pessoas e não de dizer quem tem razão em determinado litígio.” (BONÍCIO, 2020, p. 230)
No que se refere ao procedimento, este pode variar a depender da espécie de obrigação e da natureza do título executivo que ela se deriva. Em que pese as obrigações executáveis possam ser de pagar, fazer ou entregar coisa diferente de dinheiro, o objetivo deste artigo é relacionado à execução de uma obrigação de pagar.
Via de regra, a execução é real, ou seja, é patrimonial. Assim, o devedor responde com seus bens perante suas obrigações, sendo estes bens presentes e futuros. O rito processual é diferente para os títulos executivos judiciais e extrajudiciais. Entretanto, em ambos os casos, os instrumentos de sanção executiva se darão da mesma forma.
Estas formas de sanções executivas, tipificadas em lei ou na jurisprudência visam promover a efetivação do processo e se dá por meio da sub-rogação (execução direta) ou por intermédio da coerção (execução indireta).
As medidas sub-rogatórias são aquelas que substituem a vontade do devedor pela vontade do Direito, gerando a satisfação do direito independentemente da colaboração do devedor. São exemplos a busca e a apreensão e a penhora/expropriação. As medidas coercitivas (execução indireta) são aquelas que pressionam psicologicamente o devedor para que ele cumpra a obrigação, ou seja, que ele, sendo pressionado, adeque sua vontade à vontade do Direito. (NEVES, 2020, p. 265)
Tais instrumentos são materializados em atos executivos, que são estratégias utilizadas no processo de execução civil a fim de satisfazer o direito exequendo, possuindo força e império sobre o executado, e podem ser praticados de diferentes maneiras, sendo por isso possível, a depender do critério adotado, distinguir as diferentes modalidades de execução. Conforme Neves (2020), os meios executórios são medidas que a lei permite aos órgãos jurisdicionais pôr em prática para o fim de obter que o credor logre praticamente o bem que tem direito.
Quanto à finalidade, os atos executivos podem ser classificados como atos de constrição, disposição, satisfação e coerção.
Através dos atos de constrição, o titular da coisa perde a faculdade de dispor livremente dela e se torna impedido de aliená-la ou onerá-la, bons exemplos são a penhora, arresto e sequestro; os de disposição, refletem os atos que objetivam a resolução do conflito, seja pelo reconhecimento do pedido, renúncia, transação; e os de satisfação são atos que alcançam de forma direta a tutela pretendida, que se dá pela entrega do dinheiro ou por intermédio e expropriação judicial (transferência de valores ou patrimônio) e a adjudicação.
Já os atos de coerção (medidas coercitivas) visam constranger o devedor a satisfazer a obrigação, com o condão de pressioná-lo psicologicamente a cumprir a ordem judicial, por conter em si um caráter repressivo, se destinando a modificar o mundo de fato por meio da atuação do próprio executado, que pratica uma conduta no sentido de adimplir a prestação objeto.
Embora o Código atual não tenha inserido o art. 139, IV, na parte geral do processo de execução e nem tenha um capítulo próprio para tratar das medidas coercitivas “específicas ou nominadas”, o fato é que existem inúmeras medidas coercitivas previstas em nosso diploma processual (v.g. art. 517; art. 523, § 1º; art. 528, §§ 1º e 3º; art. 536, § 1º; art. 537; art. 782, § 3º) e uma regra geral (art. 139, IV) que permite a aplicação de outras medidas coercitivas, não expressamente previstas pela lei, mas que se demonstram necessárias à obtenção da satisfação no caso concreto. (OLIVEIRA NETO, 2019, p. RB-4.4).
O procedimento executivo civil também é regido pelos princípios gerais do processo civil, tais como: o devido processo legal, a isonomia, a proporcionalidade, o contraditório, a eficiência, a inafastabilidade do controle jurisdicional, a imparcialidade, publicidade dos atos processuais, e duração razoável do processo. Nesse sentido, dispõe o artigo 8º do Código de Processo Civil: “Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.” (BRASIL, 2015, p.373)
Além disso, é conduzido por princípios específicos ao processo de execução, que são, dentre eles, o da menor onerosidade, nulla executio sine título, desfecho único, disponibilidade, patrimonialidade, utilidade, lealdade, boa-fé processual, e principalmente os princípios da tipicidade e atipicidade dos atos executivos.
Tais princípios servem tanto de instrumentos limitadores da adoção de medidas executivas, para que estas não sejam fonte de abuso, como instrumento de consagração da medida capaz de atingir a efetividade da tutela executiva.
Para fins deste artigo, importante realçar o raciocínio de Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2016), o qual sustenta que o princípio da tipicidade dos atos executivos é uma forma de controlar o poder e a atuação do órgão julgador na condução da execução civil, de modo a “proteger a esfera jurídica de liberdade do cidadão contra a possibilidade de arbítrio do Estado e, por consequência, contra o uso indevido do poder jurisdicional”, possibilitando ao executado uma certa previsibilidade das formas de execução permitidas pelo ordenamento jurídico.
Entretanto, com o surgimento de novos casos e a grande necessidade de se conferir uma efetividade real à tutela jurisdicional, a tipicidade desses atos perdeu a exclusividade, trazendo um grande espaço ao seu extremo oposto, o princípio da atipicidade das medidas executivas, que permite ao julgador que avalie o caso concreto e adote as medidas que entenda aptas à satisfação da pretensão executiva.
Ao mesmo tempo que diversos dispositivos do Código de Processo Civil continuam, ainda, a autorizar apenas e tão somente, a prática de atos jurisdicionais típicos, é inegável, à luz do modelo constitucional do direito processual civil, que o exame de cada caso concreto pode impor ao Estado-juiz a necessidade da implementação de técnicas ou de métodos executivos não previstos expressamente na lei e que, não obstante – e diferentemente do que a percepção tradicional daquele princípio revelava -, não destoam dos valores ínsitos à atuação do Estado Democrático de Direito, redutíveis à compreensão do devido processo legal. (BUENO, 2016, p. 116)
Diante das modificações legislativas trazidas pelo CPC/2015 e da interpretação jurisprudencial, o atual sistema processual jurídico optou por indicar alguns meios aptos a forçar o executado a cumprir sua prestação e a permitir que o magistrado determine outros, não expressamente previstos pela lei, mas que sejam suficientes a forçar a prestação do executado, podendo ser classificadas como medidas coercitivas “típicas” e “atípicas”.
As medidas coercitivas típicas estão positivadas no Código Processual e incluem, por exemplo, a penhora online, expropriação, imposição de multa, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, arresto executivo, desfazimento de obras, fechamento de estabelecimentos comerciais, inclusão do nome do executado em cadastro de inadimplentes, e protesto de título judicial.
Já como exemplos de medidas coercitivas atípicas, não previstas em lei e extraídas de entendimentos jurisprudenciais, cita-se a suspensão do direito do devedor de conduzir veículo automotor, inclusive com a apreensão física da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), retenção do passaporte, proibição de utilização de cartão de crédito, dentre outras.
No que se refere à medida coercitiva atípica propriamente dita, é imprescindível discorrer acerca de seu surgimento dentro do processo de execução civil, com o intuito de demonstrar a situação inicial em que foi implantada, bem como os raciocínios adotado para sua aplicação, relatando como foi tratada desde o início de sua aplicação os dias de hoje, baseada nos entendimentos jurisprudenciais formados ao longo do tempo.
2. DO SURGIMENTO DA MEDIDA COERCITIVA ATÍPICA E SEUS DESDOBRAMENTOS NA EXECUÇÃO PECUNIÁRIA
A medida coercitiva atípica, como já mencionado, é um dos mecanismos utilizados pelo Magistrado com o fim de forçar o devedor a cumprir a obrigação que não adimpliu de forma imediata, sofrendo implicações que funcionam como elementos estimuladores à conduta última de pagar, se tratando de uma grande evolução processualista que superou de vez o princípio da tipicidade dos meios executivos.
Surgiu, ainda na vigência do CPC/1973, com a ruptura do Estado Liberal para o Estado Democrático de Direito, fazendo com que o principal direito tutelado fosse a entrega da tutela jurisdicional de forma que fosse efetiva ao credor.
O §5º do artigo 461, CPC/1973, também consagrou outra novidade na época, a permissão de aplicação de astreíntes, que são medidas coercitivas aplicadas para o cumprimento de obrigações de fazer, não fazer, e entrega de coisa.
No entanto, na vigência do CPC/1973, as únicas medidas permitidas para obrigações pecuniárias eram as sub-rogatórias. A aplicabilidade das medidas atípicas era restrita para as obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa, não possuindo o juiz permissão para aplicar medidas coercitivas para cumprimento de obrigações pecuniárias, o que agravou o quadro de ineficácia das medidas executivas para o cumprimento de obrigação pecuniária.
O sistema executivo foi modificado com a promulgação da Lei 8.592/1994, que introduziu o artigo 461, no CPC/1973, implementado um sistema executivo misto, que permitia a adoção de meios típicos e meios atípicos para entrega da tutela jurisdicional ao credor de obrigação de fazer e não fazer, acabando com o engessamento do juiz, que antes estava limitado a aplicar medidas tipificadas.
Pela nova sistemática, uma vez ocorrido o inadimplemento, o Poder Judiciário é incumbido de processar o feito em que se presta a tutela executiva, fixando as medidas que se apresentam necessárias e suficientes a forçar o executado a satisfazer a obrigação diante do caso concreto.
Segundo Oliveira Neto (2019), diante desse panorama é possível concluir que a tutela coercitiva, enquanto uma das modalidades de tutela executiva especialmente destinada a forçar o devedor a cumprir com uma prestação, sempre teve aplicação nos sistemas processuais antigos que mais influenciaram o nosso direito, sendo mais ou menos utilizada em razão dos valores que permeavam as diversas sociedades.
Com a aplicação apenas de medidas tipificadas em lei dentro desse tipo de execução, os Poderes Legislativo e Judiciário, perceberam que elas se tornavam, na maioria dos casos, ineficazes, sendo preciso que houvessem outros mecanismos para conseguir atingir o propósito do processo de execução.
Em 14 de Outubro de 2016, fora publicada matéria no site do Conselho Nacional de Justiça trazendo a informação de que a principal fonte de morosidade do Poder Judiciário brasileiro se encontrava na fase de execução processual, etapa que representa a concretização do direito reconhecido, demonstrando, ainda, que o tempo de duração é, em medida, de 4 (quatro) anos.
Por estas razões, o Código Processual Civil de 2015, ao elaborar sua exposição de motivos, preocupou-se ainda mais com a efetivação da tutela jurisdicional, estabelecendo como meta principal a efetividade dos provimentos:
Um sistema processual civil que não proporcione à sociedade o reconhecimento e a realização dos direitos, ameaçados ou violados, que têm cada um dos jurisdicionados, não se harmoniza com as garantias constitucionais de um Estado Democrático de Direito. Sendo ineficiente o sistema processual, todo o ordenamento jurídico passa a carecer de real efetividade. De fato, as normas de direito material se transformam em pura ilusão, sem a garantia de sua correlata realização, no mundo empírico, por meio do processo. (BRASIL, 2015, p.367)
Diante dessa problemática, surgiu a modificação legislativa prevista no artigo 139, inciso IV, do Novo CPC, que elenca os poderes do juiz na direção do processo, o que era antes feito pelo art. 125 do CPC/1973, com o objetivo de garantir a efetividade do processo e o cumprimento do título executivo como formas de flexibilidade procedimental, moldadas ao caso sub judice.
Note o teor do aludido dispositivo legal, em seu artigo 139: “O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: IV - Determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária.” (BRASIL, 2015, p. 382)
Com essa modificação, sobrevieram algumas medidas coercitivas atípicas um tanto “polêmicas”, que adquiriram um enfoque especial por terem inaugurado importantes debates jurisprudenciais, como apreensão do passaporte, suspensão de Carteira Nacional de Habilitação do executado, proibição de viajar, proibição de participar de concurso público ou de licitações públicas, bloqueio de cartão de crédito, entre outras.
A ausência de um rol normativo que preveja expressamente a possibilidade de aplicação de medidas que irão coagir o devedor ao adimplemento da dívida gera uma grande instabilidade dentro da execução civil, pois o sujeito passivo da lide pode ser surpreendido a qualquer momento, como é o caso da suspensão da CNH do devedor.
O fato é que a questão chegou aos Tribunais.
Um dos primeiros entendimentos acerca da medida atípica em questão foi inaugurado, pela Juíza Andrea Ferraz Musa, da 2ª Vara Cível da Comarca de São Paulo/SP, em 25 de agosto de 2016, nos autos do processo nº 4001386-13.2013.8.26.0011, onde determinou a Suspensão da Carteira Nacional de Habilitação do executado, bem como a apreensão de seu passaporte e cancelamento dos cartões de crédito até o pagamento da dívida, gerando na comunidade jurídica uma grande leva de pedidos semelhantes perante o Poder Judiciário.
Contra a decisão da Magistrada, foi impetrado Habeas Corpus, distribuído à 30ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Nele, a defesa do paciente alegou que a decisão tratava-se de coação ilegal e tolhia o direito constitucional de ir e vir. Em sede liminar, concedida no dia 9 de setembro de 2016, o relator do processo, Desembargador Marcos Ramos, cassou a decisão de primeira instância, o que se manteve quando do julgamento do mérito, conforme ementa abaixo:
Habeas corpus' – Ação de execução por quantia certa - Decisão que determinou a apreensão do passaporte e a suspensão da CNH do executado, até que efetue o pagamento do débito exequendo, fundamento no art. 139, IV, do NCPC - Remédio constitucional conhecido e liminar concedida – Medidas impostas que restringem a liberdade pessoal e o direito de locomoção do paciente – Inteligência do art. 5º, XV, da CF - Limites da responsabilidade patrimonial do devedor que se mantêm circunscritos ao comando do art. 789, do NCPC – Impossibilidade de se impor medidas que extrapolem os limites da razoabilidade e da proporcionalidade. Ação procedente para conceder a ordem. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Habeas Corpus: 21837138520168260000. Relator: Marcos Ramos. Data de Julgamento: 29/03/2017. 30ª Câmara de Direito Privado. Data de Publicação: 12/04/2017)
O raciocínio inicial da jurisprudência acerca da Suspensão da CNH foi no sentido de que esta restringia direitos fundamentais do devedor, como a restrição à liberdade pessoal e direito de locomoção consagrados pela Carta Magna, violação à princípios da patrimonialidade, proporcionalidade e razoabilidade.
Seguindo na mesma linha, em 2018, a 19.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em julgamento unânime entendeu que “a medida de suspensão da CNH em nada ofende o princípio da dignidade humana, posto que se demonstra consentânea com o hodierno entendimento das Cortes Superiores, revelando-se adequada à situação econômico-financeira que os executados exibem ao longo do processo, inserindo-se no âmbito das medidas atípicas que podem, eventualmente, compelir os devedores ao adimplemento do valor devido.” (BRASIL, 2018, p.45)
Em consonância com estes entendimentos, o Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins ao enfrentar o tema acerca da suspensão da CNH, lecionou no sentido de não ser uma medida útil à satisfação do crédito, mas apenas um meio de restringir o direito individual do devedor, trazendo o entendimento de que esta medida se presta mais como forma de punição do devedor do que à indução do comportamento devido. Veja-se julgados exemplificativos:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA, MEDIDAS CONSTRITIVAS. SUSPENSÃO CNH. INVIABILIDADE. RECURSO PROVIDO. 1. A restrição da CNH da agravante extrapola os limites das providências cabíveis em sede de cumprimento de sentença, na medida em que não será útil para a satisfação do crédito, consubstanciando-se apenas em um meio de restringir seus direitos individuais. Não há relação direta entre o cumprimento da obrigação de pagar e suspensão da CNH, razão pela qual é ineficaz. 2. Agravo de Instrumento conhecido e provido. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins. Agravo de Instrumento: 0002614-87.2019.827.0000, Relatora: Jocy Gomes de Almeida. Data de Julgamento: 27/04/2020. 2ª Turma Cível. Data de Publicação: 23/06/2020)
AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. SUSPENSÃO E BLOQUEIO DE CARTEIRA NACIONAL DE HABILITAÇÃO - CNH. MEDIDA CONSTRITIVA ATÍPICA. INADMISSIBILIDADE. ONEROSIDADE EXCESSIVA PARA A PARTE DEVEDORA. RECURSO PROVIDO. 1. Um dos princípios que regem a Execução é o da dignidade humana, que veda o tratamento do processo como instrumento para expor o devedor e levá-lo a condições vexatórias, de maneira que as medidas coercitivas ou indutivas utilizadas pelos julgadores não podem ser excessivas a ponto de violar sua integridade. 2. A restrição/suspensão/bloqueio de CNH para compelir pagamento de dívida extrapola os limites das providências cabíveis, na medida em que não será útil para a satisfação do crédito, consubstanciando-se apenas em um meio de restringir o direito individual de cada devedor, até porque não há qualquer relação direta entre o cumprimento da obrigação de pagar e a suspensão/bloqueio de CNH. 3. Vige em nosso ordenamento jurídico o princípio da responsabilidade patrimonial, segundo o qual as dívidas devem ser adimplidas com o patrimônio do devedor, e não com sua liberdade ou com a restrição de direitos. 4. Agravo conhecido e provido, para reformar a decisão de 1º grau, e afastar a determinação de suspensão/bloqueio da CNH da ora agravante. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins. Agravo de Instrumento: 0002265-98.2020.827.2700, Relatora: Angela Maria Ribeiro Prudente. Data de Julgamento: 14/05/2020. 3ª Turma Cível. Data de Publicação: 10/12/2020)
O entendimento do Tribunal Tocantinense é consonante com o de outros tribunais, à exemplo a Corte do Distrito Federal. Neste sentido, a jurisprudência:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL. PRELIMINAR DE NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO SUSCITADA EM CONTRAMINUTA. REJEIÇÃO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. REQUERIMENTO DE MEDIDAS COERCITIVAS ATÍPICAS. SUSPENSÃO DA CNH. APREENSÃO DO PASSAPORTE. BLOQUEIO DE CARTÃO DE CRÉDITO E DE SERVIÇOS DE TELEFONIA. INVIABILIDADE. MEDIDAS DESPROPORCIONAIS. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. 1. Nos moldes do art. 1.015, parágrafo único, do CPC, é cabível recurso de agravo de instrumento contra decisões interlocutórias proferidas no âmbito do cumprimento de sentença. Preliminar de não conhecimento do recurso, suscitada em contraminuta, rejeitada. 2. O art. 139, IV, do CPC estabeleceu a possibilidade de o magistrado determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias a assegurar o cumprimento de ordem judicial. Essas medidas possuem a aptidão de fazer cessar a resistência ilícita do executada e devem ser balizadas pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, previstos no art. 8º do CPC. 3. A par disso, verifica-se que a suspensão da CNH, a apreensão do passaporte dos devedores e o bloqueio de seus cartões de crédito e serviços de telefonia não guardam relação com a dívida submetida à execução, afigurando-se, pois, medidas desproporcionais, além de impertinentes e dissociadas da finalidade última do procedimento executivo, qual seja, a satisfação do crédito exequendo. 4. Recurso conhecido e desprovido. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Agravo de Instrumento: 07482687720208070000, Relatora: Sandra Reves. Data de Julgamento: 10/03/2021. 2ª Turma Cível. Data de Publicação: 30/03/2021)
Todavia, em posição antagônica, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás manifestou entendimento pela possibilidade da suspensão de CNH de devedor/obrigado como medida atípica a ser adotada com amparo no art. 139, inciso IV, do CPC vigente. Confira-se, por oportuno, a ementa do aresto:
Agravo de Instrumento. Ação de execução. Adoção de medidas executivas atípicas para o pagamento do débito exequendo. Possibilidade. Suspensão da Carteira Nacional de Habilitação. Adequação. I. O artigo 139, inciso IV, do Código de Processo Civil/2015, prevê a adoção, de forma subsidiária às medidas tipificadas, medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias como forma de viabilizar a satisfação da obrigação exequenda. II. A suspensão da Carteira Nacional de Habilitação da parte executada/agravada é medida apropriada à hipótese, pois é possível que, lhe sendo retirada a comodidade de se locomover através da própria condução de veículo automotor, a parte devedora se sinta coagida a solver o débito exequendo. Agravo de instrumento conhecido e provido. Decisão reformada. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Agravo de Instrumento: 05510280920188090000. Relator: Carlos Alberto França. Data de Julgamento: 07/02/2019. 2ª Câmara Cível. Data de Publicação: 07/02/2019)
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais também decidiu, ainda em 2019, que se insuficientes os indícios de que o devedor está tentando ocultar o patrimônio ou frustrar a satisfação da obrigação, a medida é inadequada à finalidade de incentivar o adimplemento da prestação pecuniária, conforme julgado abaixo:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA. MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS. NECESSIDADE DE ADEQUAÇÃO, UTILIDADE E PROPORCIONALIDADE. CONTRADITÓRIO. BLOQUEIO DE CARTÃO DE CRÉDITO E SUSPENSÃO DE CARTEIRA NACIONAL DE HABILITAÇÃO (CNH). INADEQUAÇÃO DAS MEDIDAS. - O art. 139, IV, do CPC, possibilita ao juiz a imposição de medidas atípicas, indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias para que a ordem judicial seja cumprida, inclusive em sede de cumprimento de sentença cujo objeto seja prestação pecuniária. - A imposição de medida executiva atípica condiciona-se ao dever de fundamentação (art. 93, IX, Constituição), que se apresentará tão mais intenso quanto mais grave a medida determinada. O dever de fundamentação abrange a justificativa da medida à luz do princípio da proporcionalidade e de seus consectários: utilidade, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. - O contraditório prévio franqueia a efetiva participação das partes e tem função legitimadora da determinação estranha ao processo executivo tradicional. Ademais, possibilita às partes inaugurar discussão sobre outras medidas não cogitadas pelo Juízo, mas igualmente efetivas. Excepcionalmente, é cabível a adoção de medida atípica com a oitiva diferida da parte interessada, na hipótese de o devedor se ocultar ou de a intimação prejudicar a eficácia da medida. - À míngua de indícios de que o devedor oculte patrimônio e se sirva de garantias processuais para frustrar a satisfação da obrigação, o bloqueio de cartão de crédito e a suspensão de CNH são medidas inadequadas à finalidade de incentivar o adimplemento de prestação pecuniária. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Agravo de Instrumento: 1.0148.16.006682-2/001. Relator: José Marcos Vieira. Data de Julgamento: 20/03/2017. 16ª Câmara Cível. Data de Publicação: 29/03/2019)
Como fator determinante para a mudança de raciocínio da jurisprudência, os julgadores passaram a entender que se o devedor não é um motorista profissional e não consegue adimplir o débito por ausência de patrimônio, obviamente, não possui condições financeiras de adquirir um veículo.
Ainda, com a atenção jurisprudencial totalmente focada para os acontecimentos atuais, também foram notados casos recorrentes em que o devedor ocultava seu patrimônio em nome de terceiros, justamente para burlar a localização de bens/penhora em determinadas situações, onde o veículo, muitas vezes de alto padrão, é usado pelo devedor por um longo tempo, mas se encontra em nome de outra pessoa física.
Diante disso, entendeu-se que muitos devedores continuavam ostentando padrão de vida elevado sem colocar nada em seu nome mesmo tendo patrimônio, estando este em nome de terceiros, e obviamente alcançando a frustração da execução.
A matéria chegou ao Superior Tribunal de Justiça e, posteriormente, no Supremo Tribunal Federal, onde entendimentos jurisprudenciais foram construídos. Quando o tema chegou no STJ, este tratou a suspensão da CNH cabível após a constatação que o executado possui alto padrão de vida, incompatível com a alegada ausência de patrimônio, consoante deliberação a seguir:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL. DÉBITOS LOCATÍCIOS. MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS. ART. 139, IV, DO CPC/15. CABIMENTO. DELINEAMENTO DE DIRETRIZES A SEREM OBSERVADAS PARA A SUA APLICAÇÃO. 1. Ação de execução de título executivo extrajudicial, tendo em vista o inadimplemento de débitos locatícios. 2. Ação ajuizada em 12/05/1999. Recurso especial concluso ao gabinete em 04/09/2020. Julgamento: CPC/2015. 3. O propósito recursal é definir se a suspensão da carteira nacional de habilitação e a retenção do passaporte do devedor de obrigação de pagar quantia são medidas viáveis de serem adotadas pelo juiz condutor do processo executivo. 4. O Código de Processo Civil de 2015, a fim de garantir maior celeridade e efetividade ao processo, positivou regra segundo a qual incumbe ao juiz determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária (art. 139, IV). 5. A interpretação sistemática do ordenamento jurídico revela, todavia, que tal previsão legal não autoriza a adoção indiscriminada de qualquer medida executiva, independentemente de balizas ou meios de controle efetivos. 6. De acordo com o entendimento do STJ, as modernas regras de processo, ainda respaldadas pela busca da efetividade jurisdicional, em nenhuma circunstância poderão se distanciar dos ditames constitucionais, apenas sendo possível a implementação de comandos não discricionários ou que restrinjam direitos individuais de forma razoável. Precedente específico. 7. A adoção de meios executivos atípicos é cabível desde que, verificando-se a existência de indícios de que o devedor possua patrimônio expropriável, tais medidas sejam adotadas de modo subsidiário, por meio de decisão que contenha fundamentação adequada às especificidades da hipótese concreta, com observância do contraditório substancial e do postulado da proporcionalidade. 8. Situação concreta em que o Tribunal a quo demonstra que há sinais de que o devedor esteja ocultando patrimônio. 9. Dada as peculiaridades do caso concreto, e tendo em vista que i) há a existência de indícios de que o recorrente possua patrimônio apto a cumprir com a obrigação a ele imposta; ii) a decisão foi devidamente fundamentada com base nas especificidades constatadas; iii) a medida atípica está sendo utilizada de forma subsidiária, dada a menção de que foram promovidas diligências à exaustão para a satisfação do crédito; e iv) observou-se o contraditório e o postulado da proporcionalidade; o acórdão recorrido não merece reforma. 10. Recurso especial conhecido e não provido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial: 1894170/RS, Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Data de Julgamento: 29/03/2017. 3ª Turma. Data de Publicação: 12/11/2020)
O entendimento acima encontra precedente em julgado da 3ª Turma do STJ, que em 2019, ao julgar o Recuso Especial n.º 1.788.950-MT, sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, fixou, por unanimidade de votos, a orientação de que “a adoção de meios executivos atípicos é cabível desde que, verificando-se a existência de indícios de que o devedor possua patrimônio expropriável, tais medidas sejam adotadas de modo subsidiário, por meio de decisão que contenha fundamentação adequada às especificidades da hipótese concreta, com observância do contraditório substancial e do postulado da proporcionalidade.”
Outrossim, alguns entendimentos do Superior Tribunal Justiça sustentam que a aplicação da suspensão da CNH não é uma medida desproporcional pelo fato de não ferir o direito de ir e vir, já que o devedor possui outras formas de se locomover do que dirigindo:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. MEDIDAS EXECUTIVAS TÍPICAS. NÃO LOCALIZAÇÃO DE BENS. INCISO IV DO ART. 139 DO CPC. SUSPENSÃO DE CNH. JURISPRUDÊNCIA DO STJ. REQUISITOS CONFIGURADOS. DEFERIMENTO DA MEDIDA. DECISÃO PARCIALMENTE REFORMADA. 1 - Por expressa previsão legal constante do inciso IV do art. 139 do CPC, a ordem judicial de pagamento exarada em Feitos de natureza executiva pode ter o seu cumprimento assegurado por meio da imposição de medidas atípicas, ou seja, diversas daquelas enumeradas nos outros artigos do Código. 2 - O colendo STJ, restringindo em certa medida o entendimento até então exarado sobre a matéria, no julgamento do REsp n. 1.788.950/MT (Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/04/2019, DJe 26/04/2019), proclamou que as medidas atípicas de coerção autorizadas no art. 139, IV, do CPC devem ser utilizadas com ressalvas, mediante a presença cumulativa dos seguintes requisitos: a) que o devedor tenha sido intimado para efetivar o cumprimento da obrigação, respeitando-se o contraditório; b) esgotamento dos meios típicos destinados à satisfação do crédito, c) indícios mínimos de que o Executado possui patrimônio expropriável, frustrando-se ao cumprimento da obrigação; d) decisão devidamente fundamentada. 3 - Adotadas as medidas executivas típicas na tentativa de localizar a Devedora e bens passíveis de penhora, havendo indícios de que a Executada possui bens penhoráveis e está se esquivando da quitação do débito, mostra-se possível a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação, como determinação tendente a compelir a parte Devedora a pagar o débito, por aplicação do art. 139, IV, do Código de Processo Civil e da jurisprudência incidente. 4 - Cumpridos os devidos requisitos, a adoção da medida de suspensão da CNH não é capaz de ofender o direito constitucional de ir e vir previsto no art. 5º, inciso XV, da Constituição Federal, pois a locomoção da Devedora pode se dar por todos os meios que não a direção pessoal de veículo automotor, não havendo elementos indicativos de que a Executada exerça profissão que exija a carteira de habilitação. 5 - Determinada a suspensão da CNH, a restrição poderá ser reavaliada, caso venha a ser demonstrado que a Devedora depende da carteira de habilitação para exercer seu ofício ou outro direito de mesmo porte. Ademais, a suspensão decorrente da aplicação da medida coercitiva deve perdurar tão somente enquanto for possível a cobrança judicial, devendo ser suplantada caso ocorra qualquer dos fenômenos que ensejam a extinção do Feito. Agravo de Instrumento provido. Maioria." (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão: 1239672 Agravo de Instrumento: 07135075420198070000. Relator: Robson Barbosa de Azevedo. Relator Designado: Angelo Passareli. Data de julgamento: 25/3/2020. 5ª Turma Cível. Data de Publicação: 4/5/2020)
AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. MEDIDAS ATÍPICAS DE CUMPRIMENTO DE ORDENS JUDICIAIS. CARÁTER SUBSIDIÁRIO. SUSPENSÃO DA CARTEIRA NACIONAL DE HABILITAÇÃO E DO PASSAPORTE. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. 1. O Código de Processo Civil, no artigo 139, inciso IV inseriu no capítulo que trata dos poderes, deveres e responsabilidades do juiz, o dever de efetivação. Dispõe que o juiz, na qualidade de presidente do processo, determine todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária. 2. A finalidade da medida consiste em satisfazer o crédito, atentando-se, no entanto, para a proporcionalidade e razoabilidade. Repelem-se, portanto, os excessos e a adoção indiscriminada dessa nova possibilidade. A fundamentação de aplicação das medidas atípicas (artigo 139, inciso IV, CPC) deve ser consistente, coerente com o caso concreto, proporcional e adequada. 3. A suspensão da CNH não afronta o direito constitucional de ir e vir (artigo 5º, XV, CF/88), pois a locomoção do executado pode ocorrer de outras formas que não a direção pessoal de automóvel. 4. No que concerne ao direito de viajar para o exterior, com a retenção do passaporte, tal medida, entretanto, não se mostra razoável tampouco proporcional. O passaporte é documento essencial e imprescindível para o direito de ir e vir do território nacional. Restringir tal direito como medida de coerção para adimplemento de débito é excessivo, violando o artigo 5º, XV da Constituição Federal. 5. Agravo de instrumento conhecido e parcialmente provido." (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão: 1241602. Agravo de Instrumento: 0700771672020807000. Relatora: Ana Cantarino. Relator Designado: Maria Ivatônia. Data de julgamento: 01/04/2020. 5ª Turma Cível. Data de Publicação: 04/05/2020)
Importante salientar que encontra-se em tramitação, perante o Supremo Tribunal Federal, desde Maio de 2018, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.941 MC/DF, proposta pelo Partido dos Trabalhadores (PT), cujo pedido é declarar inconstitucionais possíveis medidas coercitivas, indutivas ou sub-rogatórias oriundas da aplicação daquele dispositivo, que importe na apreensão de carteira nacional de habilitação e/ou suspensão do direito de dirigir, a apreensão de passaporte, a proibição de participação em concurso público e a proibição de participação em licitação pública.
Na referida ação, a Procuradoria Geral da República encaminhou parecer favorável à sua procedência, argumentando que tais medidas representam restrição a liberdades individuais em razão de dívida civil e, por isso, violam a Constituição Federal. A matéria ainda pende de julgamento pela Suprema Corte.
3. DIREITO FUNDAMENTAL À UMA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL PROPORCIONAL E ADEQUADA
A tutela jurisdicional é um direito constitucional fundamental que garante resposta ao jurisdicionado. É dar, a quem tem razão, o bem da vida que motiva o ingresso no Poder Judiciário, possuindo a incumbência de reestabelecer o equilíbrio jurídico, de maneira que alcance um resultado prático e útil.
De acordo com Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2016), o cidadão possui direito fundamental à prestação da tutela efetiva e adequada, em interpretação extraída do art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, considerando que o direito constitucional de acesso à justiça pressupõe não somente a prestação da tutela jurisdicional, mas que esta seja realmente apropriada, proporcional e efetiva, a fim de que os excessos sejam coibidos por meio da aferição de compatibilidade entre os meios e os fins.
Além disso, precisa ser tempestiva, ou seja, deve ser entregue ao jurisdicionado em tempo razoável, conforme garante o inciso LXXVIII, da Constituição Federal, sendo garantidos meios que garantem a celeridade da tramitação, consagrando o princípio da razoável duração do processo.
Funcionalmente, a máxima da proporcionalidade desenvolve-se a partir da aplicação de três máximas parciais, nomeadas adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A adequação e a necessidade se referem, respectivamente, à aptidão e à gravidade dos meios empregados para o alcance dos fins almejados, ao passo em que a última é o sopesamento do princípio que fundamenta a medida e o direito fundamental atingido, versa sobre o equilíbrio entre a intervenção e o objetivo do legislador.
Segundo Aurelli (2020, p. 5), “a proporcionalidade averigua se os meios aplicados são necessários, adequados e proporcionais aos respectivos fins escolhido, utilizando-se o magistrado de um juízo de ponderação, fundamentado a escolha, nos termos do art. 489, §2º, do CPC.”
Uma interpretação conforme o art. 5º, XXXV, da Constituição Federativa da República do Brasil, impõe a conclusão de que o sistema executivo brasileiro somente atenderá à garantia do acesso à verdadeira Justiça se permitir a utilização, por parte do magistrado, de meios aptos à obtenção da satisfação de uma prestação não cumprida.
Oliveira Neto (2019), preceitua que um sistema executivo tende à completude quando existem várias possibilidades de remédios processuais aptos a tutelar as modalidades de prestação não adimplidas, quando esses instrumentos podem ser utilizados por quem detenha interesse jurídico em fazê-lo e, quando a tutela confere total e exata satisfação do que não foi adimplido, num prazo pertinente ao caso concreto e com um volume reduzido de atos processuais.
A adequação da medida ao escopo pretendido permite a flexibilização de normas procedimentais para a prestação de uma tutela jurisdicional mais eficiente, sendo que as medidas requeridas pelo credor devem ser cabíveis ao caso concreto e, principalmente, o comportamento do devedor na vida material deve ser levado em conta para o requerimento de aplicação da medida atípica.
Dessa forma, para a análise da adequação da aplicação das chamadas medidas executivas atípicas, não podemos perder de vista o modelo constitucional do processo que estabelece a compreensão das normas processuais sob a ótica do Estado Democrático de Direito. Assim, os juristas devem procurar raciocinar o sistema processual, principalmente no que tange à execução de decisões judiciais, sob a 13 ótica dos ideais e atributos desse modelo democrático imposto pela Carta Magna (AURELLI, 2020, p.2).
A determinação de qualquer medida que não se molde ao caso concreto pode gerar, conforme a situação, um efeito colateral altamente danoso ao direito daquele que ingressa em juízo com o fim de buscar a proteção da jurisdição, pois permite ao destinatário da medida optar por arcar com as consequências impostas ao invés de desde logo cumpri-la, potencializando o dano marginal incidente sobre o direito do exequente.
Por isso, se o juiz se convencer de que o devedor não possui patrimônio ou não possui condições de adimplir a obrigação, a medida coercitiva não deve ser adotada, já que esta não possui o objetivo de punir o devedor inadimplente e sim “pressionar psicologicamente o devedor ao pagamento”.
Piorar a situação do executado sem a contrapartida da satisfação do direito exequendo transforma a medida executiva em sanção processual, o que não se coaduna com a natureza da execução indireta e viola de forma incontornável o princípio da menor onerosidade, nos fazendo retornar a tempos sombrios da execução, como a possibilidade de morte e esquartejamento do devedor permitidos na Lei das XII Tábuas. (NEVES, 2020, p.13)
A fundamentação do pedido de aplicação de medida atípica deve comprovar que a medida aplicada será eficaz, sendo esta uma maneira do credor cooperar com o processo para o alcance de uma resposta justa e efetiva, e não uma medida coercitiva atípica disfarçada de medida punitiva. No mais, aplicar medidas executivas atípicas em face do devedor que não possui condições de cumprir a prestação é tornar a obrigação impossível e sancionatória.
O simples requerimento feito pelo credor e a negativa do devedor não são suficientes para autorizar a adoção de qualquer medida, nem mesmo se aplicada de ofício, já que devem ser devidamente comprovados os indícios justificadores para aplicação da medida.
Concedida a medida, deve o juiz intimar o devedor para manifestar quanto à concessão desta, devendo o contraditório nesses casos ser postergado para manifestação posterior do devedor, podendo alegar quais princípios tal imposição viola, ou ainda, que sua adoção é muito onerosa, possuindo o ônus de comprovar as alegações, pormenorizando os motivos pelos quais não deve ser aplicada, e quando alegar seu excesso, indicar outra medida efetiva.
No momento de sentenciar, deve o juiz buscar a melhor solução possível para um determinado litígio, e os princípios que orientam o sistema jurídico indicarão o caminho que deve ser seguido por esse juiz, como é o caso do princípio da proporcionalidade, que indicará o caminho para uma solução oportuna ao conflito, evitando, por exemplo, decisões que onerem demasiadamente as partes. (BONÍCIO, 2016, p. 22-23)
Isto posto, cabe ao magistrado ponderar as vantagens práticas da adoção da medida atípica e as desvantagens da sua adoção. Neves (2020) garante que a aplicação dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade ao caso concreto poderão limitar a abrangência do termo “todas” utilizado no art. 139, IV, do Novo CPC, para designar quais medidas incumbe ao juiz determinar para a efetivação da tutela executiva, cabendo ao juiz atuar conforme o artigo 8º do NCPC.
Definir os limites entre uma atuação arbitrária ou legítima não é simples, sendo que a forma de aplicação da suspensão da CNH do devedor em execuções pecuniárias precisa ser consolidada, a fim de superar a generalidade legislativa e conferir uma maior segurança jurídica e social à essa prática judicial, já que a medida tem sido aplicada com grande disparidade de entendimento e antes mesmo de decisão oficial do STF.
Dessa forma, cada caso concreto deve ser analisado minuciosamente, a fim de que seja possível verificar os motivos justificadores do requerimento de aplicação da medida atípica, se a medida atípica foi adotada de forma subsidiária com o esgotamento e a ineficácia das medidas típicas, assim como a correlação entre a medida adotada e a possibilidade de compelir o devedor a realizar o pagamento.
4. ANÁLISE DE IMPACTOS SOCIAIS E JURÍDICOS ORIGINADOS PELA APLICAÇÃO DA MEDIDA COERCITIVA ATÍPICA DE SUSPENSÃO DA CNH DO DEVEDOR
A suspensão da CNH é a perda temporária do direito de dirigir. Na prática, o condutor penalizado com essa medida permanece sem poder conduzir veículo por um determinado período e para alcançar o direito de volta, deve cumprir o prazo de suspensão, passar por um curso teórico de 30 horas/aula de reciclagem, e é submetido a uma nova avaliação teórica de múltipla escolha, devendo ser aprovado, conforme Resolução CONTRAN Nº 723 DE 06/02/2018.
Nota-se que a sua aplicação acarreta não somente impactos jurídicos na esfera processual e no que diz respeito à efetividade do direito adquirido, mas também sociais na vida do devedor, sendo, portanto, uma grande restrição que traz, inevitavelmente, uma grande discussão acerca dos direitos fundamentais atingidos.
O uso desta medida demonstra uma colisão entre o direito à efetividade da tutela executiva, princípios processuais constitucionais e princípios próprios da execução, sendo que todos estes carecem de proteção, sendo impossível escolher entre um e outro.
De acordo com Horita (2019), se pode observar um conflito imediato entre a efetividade do processo e os princípios advindos do liberalismo político, prevalecendo, por muitas vezes, o direito de crédito (liberalismo econômico) sobre as garantias fundamentais, demonstrando que o atual sistema processual encontra dificuldades na efetivação da tutela jurisdicional e que os Poderes Legislativo e Judiciário são pressionados a encontrar formas de garantir uma maior eficiência ao processo, ocasião em que ambos acabam sacrificando valores, direitos e princípios basilares da Carta Magna.
Como cediço, a aplicação das medidas executivas do artigo 139, IV, do CPC, já mencionadas, só pode ser realizada se ficar demonstrado que, caso sejam adotadas, serão capazes de prestar pressão psicológica suficiente para que o devedor cumpra com a sua obrigação. Do contrário, caso demonstrado que o devedor não possui condições de realizar o pagamento pela ausência de condições, o direito à tutela executiva do credor vai continuar frustrada.
Conforme Oliveira Neto (2019), são dois os requisitos necessários à concessão de uma medida coercitiva, quais sejam: necessidade e pertinência. Segundo afirma, o primeiro requisito, é se, diante do caso concreto, a não aplicação da medida torne impossível, improvável ou ao menos mais difícil a efetivação do resultado que se pretende alcançar com a atividade executiva, devendo ser objetivamente demonstrada a necessidade, sendo um grande exemplo a ocultação de patrimônio.
O segundo, é a pertinência da medida, que deve ser inteiramente adequada à situação de fato que autoriza a sua imposição, devendo ser uma “justa medida” ou uma “exata” medida diante do caso concreto, guardando estreita dependência com o princípio informativo da tutela executiva da utilidade, sendo o qual não se admite atividade executiva que sirva apenas para “prejudicar” o responsável executivo, sem que haja real benefício no mundo empírico para o exequente.
É possível afirmar que ainda não existem pontos significativos de consenso sobre os limites de incidência do poder coercitivo sobre a execução por quantia certa. O que se pretende demonstrar é que tais os impactos que a adoção da medida causam são nocivos à atual estrutura normativa e jurisdicional, já que a semântica “determinar todas” não é permitida, por uma hermenêutica jurídico-constitucional satisfatória, pois isso violaria o mais fundamental Direito, sendo uma abertura a um agir discricionário.
Em suma: o justo processo não pode ser formalizado pelo legislador ordinário, nem aplicado pelos órgãos jurisdicionais, sem amoldar-se ao modelo constitucional. Pode, entretanto, enriquecer a precisão das garantias demandas pelas Constituição, criando garantia e mecanismos novos que não tenham sido previstos na Lei Maior, mas que se afinem com os seus propósitos e aprimorem o próprio modelo constitucional. Nessa ótica o processo modelado pela Constituição retrata um mínimo do qual o legislador ordinário e os juízes não podem se furtar. Nada impede, todavia, que se criem novas e melhores garantias por engenho da lei processual comum, diante principalmente das exigências da vida em suas feições práticas e concretas. (THEODORO JÚNIOR, 2016, p. 4-5)
A instabilidade social e jurídica causada pela aplicação da suspensão da CNH em casos de inadimplemento de obrigação de pagar é notória, pois não há convicção plena de que esta medida é realmente efetiva, tendo em vista que os entendimentos estão sempre variando ao longo do tempo e ainda não foi adotado um entendimento uníssono que se encaixe em todos os requisitos impostos.
Nesta senda, a realidade é que os impactos causados pela suspensão da CNH são reflexos da crise em que o atual sistema processual civil, bem como os nobres julgadores ainda se encontram no que se refere à aplicação dessa medida, pois o alcance de um “justo processo” necessita de um ponto comum que gere equilíbrio entre os direitos do credor x devedor, e não somente a busca pela efetividade do direito material à todo custo.
Sob esse prisma, Robert Alexy (2008), chega à conclusão de que não há como prosseguir nesta discussão sem fazer uma ponderação de princípios, e certo de que, com frequência, irão entrar em colisão, onde deverá ser feita uma ponderação, que nada mais é que a busca de equilíbrio quando ocorre a incidência de interesses opostos, que pode acontecer entre regras, princípios, ou regras e princípios, e caso haja conflito com outro direito, deve-se observar o artigo 489, §2º do CPC (colisão entre normas), buscando resolver o conflito à luz de uma perspectiva constitucional.
Como ponto positivo da adoção da Suspensão da CNH, pode-se elencar a busca e preocupação do Poder Judiciário pela satisfação do direito do credor, que muitas vezes possui o título executivo mas não consegue êxito em seu cumprimento e para isso é necessário uma maior pressão ao executado. Por outro lado, o principal ponto negativo é a possibilidade de decisões injustas e ineficazes, que na maioria das vezes servem mais como punição ao devedor e não cumprem seu papel fundamental que é o adimplemento da dívida.
Por fim, a medida coercitiva de suspensão da carteira nacional de habilitação do devedor no processo de execução por quantia certa somente poderá resultar na entrega de uma prestação jurisdicional proporcional e adequada se realizado um justo juízo de equilíbrio entre todo o arsenal que compõe o processo executivo, começando pela análise robusta de meios que podem ser considerados aptos a trazer efetividade para o título judicial ou extrajudicial, fazendo a ponderação de princípios e normas, de forma que toda a composição alcance um resultado que satisfaça ambas as partes do litígio.
CONCLUSÃO
No início deste estudo, constatou-se que havia a necessidade de demonstrar a relevância da prática dos Magistrados em suspender a Carteira Nacional de Habilitação como forma de impor aos devedores o cumprimento das suas dívidas, bem como compreender de que maneira essa medida é aplicada.
Como visto no decorrer desse artigo, a inovação legislativa que consagrou as medidas executivas no ordenamento jurídico através do artigo 139, inciso IV, do CPC/15, e, em especial, a Suspensão da CNH do devedor foi aplicada de diversas formas, trazendo diversas indagações jurídicas a respeito do tema.
Diante disso, a pesquisa teve como objetivo geral demonstrar os impactos jurídicos da aplicação da medida coercitiva de Suspensão da Carteira Nacional de Habilitação do devedor pelo Poder Judiciário em caso de inadimplemento de obrigação de pagar. Verifica-se que o objetivo geral foi atendido, pois efetivamente o trabalho conseguiu demonstrar que constantemente direitos fundamentais e princípios entram em colisão no momento da aplicação da medida.
O estudo desenvolvido foi dividido em quatro partes, nas quais possuíam objetivos específicos de explicar o procedimento executivo civil, relatar o surgimento da medida coercitiva atípica e toda a sua evolução no processo de execução, clarear de forma precisa o direito de uma prestação jurisdicional proporcional/adequada, e, por fim, analisar os impactos jurídicos originados pela adoção da Suspensão da CNH do devedor.
Após o desenvolvimento da pesquisa, observou-se que a medida coercitiva atípica começou a ser adotada com uma linha de entendimento, que em suma, a Suspensão da CNH restringia direitos fundamentais do devedor, como a restrição à liberdade pessoal e direito de locomoção consagrados pela Carta Magna, violação à princípios da patrimonialidade, proporcionalidade e razoabilidade.
Com o passar do tempo, o raciocínio jurisprudencial mudou, no sentido de ser completamente cabível a Suspensão da CNH após a constatação que o executado possui alto padrão de vida, incompatível com a alegada insuficiência de patrimônio, e com a conclusão de ocultação do mesmo, já que foram analisados diversos casos em que isso de fato acontecia. Todavia, ainda assim diversos entendimentos tem sido formados ao longo do tempo, sem que haja uma estabilidade concernente ao tema.
Logo em seguida, foi realizado estudo acerca da prestação jurisdicional proporcional adequada, que, em tese, pode ser alcançada se observados alguns requisitos como o respeito aos princípios processuais e constitucionais, em especial o contraditório e a dignidade da pessoa humana; o esgotamento das medidas típicas existentes quando não atingirem seu fim; a proporcionalidade das medidas aplicadas; e o grau de má-fé imposto pelo executado no processo de execução.
Quando da análise dos impactos causados pela adoção da medida, chegou-se à conclusão de que enquanto a corte suprema não se posicionar, o controle de constitucionalidade difuso continuará sendo exercido por cada Juízo, de modo que não há entendimento doutrinário e/ou jurisprudencial pacificado quanto à constitucionalidade das medidas aplicadas, pois o tema aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal.
Quanto à maneira que a medida coercitiva de suspensão da carteira nacional de habilitação do devedor no processo de execução por quantia certa pode resultar na entrega de uma prestação jurisdicional proporcional e adequada, que é o problema desta pesquisa, compreendeu-se que além da submissão aos princípios do ordenamento jurídico, elas devem ser aplicadas quando demonstrado o preenchimento de dois requisitos: o esgotamento das medidas típicas, a demonstração da adequação da medida atípica à finalidade pretendida de forma fundamentada e sua consequente efetividade, levando-se em consideração as peculiaridades do caso concreto, utilizando necessariamente a máxima da proporcionalidade.
Ainda, consegue-se concluir que a aplicação das medidas atípicas sem observância da condição do devedor adimplir a obrigação pode constituir sanção processual, e que o dispositivo que consagrou as medidas executivas atípicas não deve sofrer restrições de aplicabilidade em razão de uma superproteção do devedor, mas feito um equilíbrio entre os direitos das partes litigantes, de forma que a adoção seja feita de forma harmoniosa e eficiente.
REFERÊNCIAS
AURELLI, Inês Arlete. Medidas executivas atípicas no código de processo civil brasileiro. In: Revista dos Tribunais Online (REPRO), v. 307, p.1-19, set. 2020.
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. Disponível em: < http://noosfero.ucsal.br/articles/0010/3657/alexy-robert-teoria-dos-direitos- fundamentais.pdf> Acesso em: 20 Abr. 2021.
BONÍCIO, Marcelo José Magalhães. Princípios do Processo no Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016. Disponível em: <https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788502636071/cfi/6!/4/[email protected]:0. 00>. Acesso em: 10 Fev. 2021.
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NOTAS:
[1] Acadêmica do Curso de Direito do Centro Universitário Católica do Tocantins.
[2] Orientador, Pós Graduado em Processo Civil, Advogado, e Professor da Disciplina de Processo Civil no Curso de Direito do Centro Universitário Católica do Tocantins – UniCatólica.
[1] Orientador, Pós Graduado em Processo Civil, Advogado, e Professor da Disciplina de Processo Civil no Curso de Direito do Centro Universitário Católica do Tocantins – UniCatólica.
Bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário Católica do Tocantins.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Gabryelly Bucar. Impactos jurídicos da suspensão da carteira nacional de habilitação do devedor como medida coercitiva atípica em execuções pecuniárias Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 jun 2021, 04:26. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56620/impactos-jurdicos-da-suspenso-da-carteira-nacional-de-habilitao-do-devedor-como-medida-coercitiva-atpica-em-execues-pecunirias. Acesso em: 23 dez 2024.
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