ANDRÉ HENRIQUE OLIVEIRA LEITE[1]
RESUMO: Dentre os inúmeros temas relacionados à família, encontra-se a multiparentalidade, que é o reconhecimento no campo jurídico a filiação – amor, afeto e atenção - que já existe no campo fático. Nesse aspecto é importante analisar os arranjos familiares e sua consagração jurídica através da filiação socioafetiva. Dessa forma, a presente pesquisa possui a finalidade de discutir sobre a equiparação da relação socioafetiva com a consanguínea. Assim, encontra-se que de um lado existe a verdade biológica, facilmente comprovada com um exame de DNA, que demonstra a ligação biológica entre duas pessoas, e de outro lado, há o estado de filiação, que decorre do convívio diário e do cotidiano vivido entre pais e filhos, que constitui o fundamento essencial da paternidade ou maternidade. A paternidade não é só um ato físico, mas uma opção, adentrando, a área afetiva. Cabendo, assim, ao direito identificar o vínculo de parentesco entre pai e filho e responsabilizar o genitor aos deveres do poder familiar. Assim, esse estudo visa expor através de uma pesquisa indireta, com análise qualitativa de argumento indutivo, sobre as características da filiação socioafetiva e sua influência na multiparentalidade.
Palavras-chave: Paternidade. Socioafetiva. Multiparentalidade. Brasil.
ABSTRACT: Among the countless themes related to the family, there is the multiparenting which is the recognition in the legal field the affiliation - love, affection and attention - that already exists in the factual field. In this regard, it is important to analyze family arrangements and their legal consecration through socio-affective affiliation. In this way, the present research has the purpose of discussing about the equation of the socio-affective relationship with inbreeding. Thus, it is found that on the one hand there is the biological truth, easily proven with a DNA test, which demonstrates the biological connection between two people, and on the other hand, there is the state of affiliation, which arises from the daily and daily coexistence lived between parents and children, which constitutes the essential foundation of paternity or motherhood. Paternity is not just a physical act, but an option, entering the affective area. Thus, it is up to the right to identify the kinship link between father and son and hold the parent responsible for the duties of family power. Thus, this study aims to expose through indirect research, with qualitative analysis of inductive argument, on the characteristics of socio-affective affiliation and its influence on multiparenting.
Keywords: Paternity. Socio-affective. Multiparenting. Brazil.
Sumário: 1. Introdução. 2. Metodologia. 3. Família: reflexos no sistema jurídico. 3.1 O afeto nas relações familiares: consagração. 4. Da filiação socioafetiva. 5. Da discussão da temática proposta. 5.1 Da multiparentalidade. 6. Considerações Finais. 7. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Desde os primórdios, a civilização era formada por um grupo indeterminado de pessoas. Esses grupos, unidos pela afetividade ou consaguinidade, eram o expoente inicial de um novo modelo a surgir: a família. Esse modelo que se iniciou – derivada do latim “famulus” – se tornou a base de uma sociedade que seria formada ao longo da história da humanidade.
Sendo a família caracterizada por uma união de pessoas ligadas por laços sanguíneos e/ou por afinidades, é natural que esse mesmo grupo tenha variadas ramificações. Se antes a família tinha os seus membros baseados em “pai, mãe e filhos” no que tange aos dias atuais, a família se forma em diferentes tipos. Entre esses tipos, tem-se a família paterna socioafetiva.
Essa denominação sofreu profundas transformações ao longo da história. Entretanto, somente nos dias atuais, é que a família socioafetiva paternal obteve um alcance social e jurídico, pois é inevitável a sua inserção na sociedade atualmente. Na última década é notório o crescimento de questões envolvendo esse tipo de relação, abrindo espaço não somente para a união entre pais e filhos, mas também as suas consequências decorrentes dessas relações.
Frente a isso, surge no meio jurídico brasileiro a efetiva conceituação da filiação socioafetiva e a sua real extensão. Ainda que a legislação nacional tenha abrangido inúmeras formações familiares, a família constituída basicamente entre pais e filhos, tem sido motivo de muitas discussões e debates a respeito da sua formação.
As relações socioafetivas trouxeram uma ampliação no conceito de família, uma vez que a família tradicional deixou de ser o único meio de se formar uma família. Essa evolução tem feito a sociedade avançar nas questões envolvendo a família.
A discussão desse tema repassa justamente pela importância que a filiação socioafetiva tem causado na sociedade atual. Dentro desse contexto, encontra-se, por exemplo, a paternidade socioafetiva. A paternidade nem sempre é vista com bons olhos pela grande maioria da sociedade, uma vez que é mais plausível os filhos serem melhores cuidados pelas mães. O preconceito que se teme na relação entre os pais e seus filhos ainda é grande.
Dessa forma, a ideia inicial na busca da análise dessa temática recai, sobretudo, na diminuição do preconceito estabelecido pela sociedade, em relação à naturalidade da família formada e protagonizada pelo pai. O afeto, o amor e a responsabilidade, podem sim ser amplamente praticados pelo pai, principalmente quando não se tem uma relação consanguínea.
É de extrema importância entender sobre esse assunto, pois além de ser atual, mostra que as relações familiares vão muito além do laço de sangue ou de um sobrenome. Na relação de paternidade socioafetiva, busca-se externar o verdadeiro amor de um pai com seu filho, educando-o, criando-o, respeitando-o, independentemente da questão biológica.
Há também que se analisar a questão envolvendo a multiparentalidade. Nesse sentido, objetiva-se neste estudo uma análise a respeito desse instituto e suas reflexões no que tange a equiparação ou prevalência da filiação socioafetiva com relação à biológica.
Frente a isso, cabe implantar os seguintes questionamentos: existe diferença entre filiação socioafetiva e biológica no que tange ao direito de guarda, visitas, alimentos e sucessão? e; A paternidade socioafetiva prevalece sobre a biológica?
Expor essa temática frente a uma sociedade cada vez mais conectada entre si traz inúmeros questionamentos, tais como os apresentados acima, e que são essenciais para entender o seu objetivo e a sua adequação numa realidade atual, tornando assim necessário o seu debate.
2. METODOLOGIA
Na metodologia empregada, a partir da revisão bibliográfica realizada, foram encontrados 15 (quinze) artigos, a grande maioria de revistas jurídicas das áreas de direito constitucional, civil e de leis espaças.
Além disso, foi feita uma pesquisa em bases de dados, tais como: Scielo; Google, dentre outros. Os descritores foram: Paternidade Socioafetiva, Multiparentalidade e legislação brasileira. O período de busca realizou-se nos dias 05 de abril a 05 de maio de 2021.
3. FAMÍLIA: REFLEXOS NO SISTEMA JURÍDICO
A família sempre existiu. Faz parte da história da humanidade, através da formação familiar que se formaria uma sociedade. E também é por meio dela que o ser humano se desenvolve e cresce socialmente, politicamente, culturalmente e intelectualmente. Na família, o indivíduo não apenas aprende a conviver com seus pares, mas aprende a descobrir o mundo em que o rodeia.
Diniz (2017, p. 23) esclarece que “a família é o primeiro agente socializador do ser humano. Somente com a passagem do estado da natureza para o estado da cultura foi possível a estruturação da família”. A sua formação é vital não apenas para seus membros, mas, para o Estado. De maneira histórica, pode-se mencionar que a história da família possui três fases:
No estado selvagem, os homens apropriam-se dos produtos da natureza prontos para serem utilizados. Aparece o arco e a flecha e, consequentemente, a caça. É aí que a linguagem começa a ser articulada. Na barbárie, introduz-se a cerâmica, a domesticação de animais, agricultura e aprende-se a incrementar a produção da natureza por meio do trabalho humano; na civilização o homem continua aprendendo a elaborar os produtos da natureza: é o período da indústria e da arte (PEREIRA, 2018, p. 12).
De acordo com Nogueira (2017, p. 03) “o modelo de família brasileiro encontra sua origem na família romana que, por sua vez, se estruturou e sofreu influência no modelo grego”.
No início a família era comandada pela mulher, mas foi por um período curto, logo sendo substituída pelo homem. Desse modo, o homem era além do provedor o detentor da educação e sustento dos filhos, o denominado pátrio poder.
O pátrio poder era exercido durante muito tempo, quase que exclusivamente pelo chefe de família – o homem. A própria lei concedia ao pai vender ou até mesmo tirar a vida do seu próprio filho, podendo ainda dispor de sua mulher quando se achasse conveniente, afinal, sobre ele detinha o poder de ou de morte (PEREIRA, 2018).
O Pátrio Poder se baseava “no princípio da autoridade, sendo bastante observado na Grécia e em Roma, onde o pai detinha o poder absoluto sobre o filho, devendo este durar para sempre, apenas se extinguindo com a morte do pater” (STACCIARINI, 2016, p. 10).
Com a evolução conceitual de família, o termo já supracitado passou a se chamar de poder familiar, ou seja, estende aos entes familiares a responsabilidade e os deveres, assim como os direitos sobre o menor. Isso se deve também à igualdade constitucional agora assegurada ao homem e à mulher.
Dessa forma, pode-se afirmar que antigamente, o poder familiar era conhecido como Pátrio Poder e trazia em sua definição a figura paterna com exclusividade em se tratando da educação, do dever e da obrigação dos pais com relação aos filhos. Assim, não existia a figura do pai e da mãe, exercendo juntos os poderes e deveres como observado hoje em dia, o pai era o único com poder para controlar e educar os filhos, enquanto a esposa e mãe apenas auxiliava na educação da prole (PEREIRA, 2018).
O Código Civil de 2002 em seu art. 1630 normatiza que “os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores” (BRASIL, 2002). Ainda que essa evolução na formação de novas gerações traga direitos e deveres a todos, onde o poder dos pais não se desvincula. Desse modo, o poder familiar é irrenunciável, pois aos pais se tem o poder-dever, inalienável, seja ele gratuito ou oneroso com raríssimas exceções (DINIZ, 2017).
A exceção da destituição do poder familiar, o poder do pai passou a ser exercido tanto pelo homem como pela mulher (genitores). Em um conceito amplo, o poder familiar pode ser entendido como: “[...] o conjunto de direitos e deveres atribuídos aos pais, em relação à pessoa e aos bens dos filhos não emancipados, tendo em vista a proteção destes” (RODRIGUES, 2015, p.64).
Como já mencionado anteriormente, o poder familiar é exercido em medidas iguais aos pais, enquanto o filho for menor de idade. Ainda que ocorra o divórcio ou a separação dos pais, os filhos menores terão a sua guarda e proteção garantida pelos pais, que ainda mantêm o poder familiar, pois cabe a eles adotarem condições necessárias para o desenvolvimento sadio físico, social e mental.
No desenvolvimento de sua história, a família aos poucos “deixou de conviver em grandes grupos para aos poucos se individualizar, fortalecendo seus laços” (DILL; CALDERAN, 2016, p. 03). Se em alguns períodos, como na Antiguidade, existia a ausência de afeto entre os seus membros, a família, com o desenvolvimento da sociedade foi se tornando mais unida e ganhando mais espaço e importância na vida do indivíduo. O afeto nessa nova visão sobre a família ganhou destaque, conforme se expõe o tópico seguinte.
3.1 O AFETO NAS RELAÇÕES FAMILIARES: CONSAGRAÇÃO
Foi com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que a família de fato se elevou em um novo patamar. Tal Constituição não apenas ampliou o leque de direitos e garantias à família, como concedeu algumas brechas para outras formas de constituir família. No contexto da retro Constituição, o casamento deixa de ser o foco principal a ser tutelado, passando a ser obrigação do Estado a garantia de proteção e zelo à família, independentemente da sua maneira de se constituir.
Em vista disso, o direito de família trouxe mudanças significativas aos modelos impostos de família. Muito dessa mudança, como já mencionado, veio das constantes transformações da sociedade, que se pluralizou e se modernizou. Nesse sentido afirma-se:
O Direito de Família é um ramo do direito privado, com características peculiares, conceituado pelo Direito Civil, onde familia são pessoas unidas pelo vínculo conjugal, de parentesco, de afinidade e também as pessoas vinculadas pela adoção. Depois de constituída a família pela associação das pessoas, esta gera múltiplas relações, direitos e deveres, ou seja, é um círculo dentro do qual se agitam e se movem ações e reações estimuladas por sentimentos e interesses pessoais (BEVILAQUA, 2001, p. 34 apud GONÇALVES, 2012, p. 05).
Ainda no âmbito jurídico, a Constituição Federal de 1988 trouxe em seu texto a formalização da afeição como fator principal para a formação familiar. Com isso, o afeto se tornou o principal elo que liga a família e é também a sua principal característica.
Diniz (2017, p. 30) assevera que o conceito atual de família é centrado no “afeto como elemento agregador, e exige dos pais o dever de criar e educar os filhos, sem lhes omitir o carinho necessário para a formação plena de sua personalidade”.
Além disso, o texto constitucional consagrou novas formas de convívio familiar e ampliou o aspecto da adoção, onde “todos os filhos, sejam adotados, tidos dentro ou fora do casamento, têm os mesmos direitos” (COSTA, 2016, p. 05).
O art. 226 da supra lei afirma:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração.
[...]
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (BRASIL, 2012).
Verifica-se, “Que a carta magna reconheceu explicitamente em seu texto três tipos de família: a formada pelo casamento, a oriunda da união estável entre homem e mulher e a monoparental” (SANTOS, et al., 2017, p. 04). Porém, na doutrina majoritária é pacífico o entendimento que o rol apresentado pelo artigo acima mencionado não é taxativo.
Atualmente, existe uma “maior interpretação aberta de família que é a admissão e o reconhecimento não apenas das famílias instituídas pelo casamento, pela união estável ou pela monoparentalidade, senão também das entidades familiares formadas pela união de parentes, que vivem em interdependência entre si” (MACEDO, 2012, p. 12).
De acordo com Lôbo (2009) a família se estrutura em três elementos: a afetividade, que é o amor, carinho, proteção e vínculo emocional com o próximo; a estabilidade, ou seja, que se perpetua e que mantém vínculos constantes e por fim a ostensibilidade, onde se pressupõe uma unidade familiar que se apresente assim publicamente.
Nos dias atuais, “Não cabe mais considerar a tradicional familia nuclear, constituída pelos cônjuges e sua prole, na condição de modelo único de família” (MACEDO, 2012, p. 13). Existem diferentes formas de se formar uma família a ponto de a interpretação constitucional a respeito da matéria ser aberta.
[...] Não há qualquer referência a determinado tipo de família, como ocorreu com as constituições brasileiras anteriores. Ao suprimir a locução “constituída pelo casamento” (art. 175 da Constituição de 1967-69), sem substituí-la por qualquer outra, pôs sob a tutela constitucional “a família”, ou seja, qualquer família. A cláusula de exclusão desapareceu. [...] Em consequência, o caput do art. 226 é cláusula de inclusão, não sendo admissível excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade (DIAS, 2015, p. 60).
De outras ramificações familiares, encontram-se diversos tipos de família. Há famílias formadas unicamente pelos avós e netos, por somente um dos pais, por outros parentes e filhos, etc. Todas essas formas são consideradas como família, pois possuem o requisito principal para a sua concepção: o afeto.
Das múltiplas famílias existentes, tem-se a família extensa ou ampliada, que conforme leciona o parágrafo único do art. 25 da nova Lei da Adoção (Lei nº 12.010), “entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade” (BRASIL, 2009).
A família mosaica ou combinada ou recombinada:
Configura-se quando, numa nova união conjugal ou convencional, haja descendentes de relações anteriores, de um ou dos dois cônjuges ou companheiros, inclusive sendo possível a adoção do(a) enteado(a) pelo parceiro da mãe ou pela parceira do pai, desde que haja ausência do pai ou da mãe registral (MACEDO, 2012, p. 16).
Na família unitária, “constitui-se por um único membro, independentemente de relação conjugal ou não, porque a tutela da lei ao bem de família é concedida para proteger não a família, como elemento grupal, mas cada um dos seus membros como pessoa individualmente considerada” (MACEDO, 2012, p. 17).
Na família anaparental, tem-se:
Se caracteriza pela convivência entre parentes ou mesmo entre pessoas que não são parentes, que possuem os mesmos propósitos e se unem em razão do afeto que há entre elas. A convivência longa e duradoura sob o mesmo teto entre duas irmãs que formam um acerco patrimonial comum, ou até mesmo duas amigas idosas que resolvem viver juntas, compartilhando suas aposentadorias, são exemplos de família anaparental (ALMEIDA, 2014, p. 272).
Na família eudemonista, o foco principal é a felicidade. É uma família afetiva que se forma dentro do “Entendimento de que a felicidade individual ou coletiva é o fundamento da conduta humana moral. É uma família formada em busca da felicidade. A família eudemonista é um conceito moderno que se refere à família que busca a realização plena de seus membros” (MACEDO, 2012, p. 17-18).
De todas as formações familiares apresentadas até aqui, a que mais se destaca é a família formada por casais homoafetivos. Por serem ainda polêmicas e recentes, as famílias constituídas por casais do mesmo sexo, ainda representam uma maior abertura no conceito de família, tendo diferentes opiniões a seu respeito.
E por fim, cabe citar o tema principal deste estudo, a família socioafetiva, que é quando os vínculos de afeto se superam à verdade biológica, submetendo assim, os pais a uma responsabilidade de fato. Sobre a sua configuração, analisa-se nos tópicos seguintes.
Nessa onda evolutiva do direito familiar brasileiro, percebe-se que o princípio da Dignidade da Pessoa Humana permeia todas as relações oriundas do ambiente familiar. O respeito ao próximo e o cuidado e zelo aos menores são amplamente amparados pelo ordenamento jurídico brasileiro, trazendo assim uma nova realidade às famílias brasileiras, principalmente no que tange ao afeto, que é o principal ponto de formação familiar.
4 DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA
Entendido que a família é essencial para o desenvolvimento humano e que no campo do Direito ela passou por inúmeras transformações, esse instituto ainda é importante nos dias atuais, haja vista que sua temática ainda traz novas roupagens sobre seu conceito e seus efeitos na prática.
No caso em tela, discute-se uma nova forma de constituição familiar: a socioafetiva. Ou melhor, filiação socioafetiva. Essa maneira de se constituir família busca trazer o afeto como principal característica para a sua normatização, deixando de ser unicamente biológica.
Como bem menciona Dias (2015, p. 324) “as transformações mais recentes por que passou a família, deixando de ser unidade de caráter econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, imprimiram considerável reforço ao esvaziamento biológico da paternidade”.
Isso significa que a família nos moldes atuais não se restringe apenas ao fator biológico e genético, mas principalmente pelos aspectos sociais. Isso se dá pelo fato de que se compreender a família como um grupo que acima de tudo se relaciona socialmente e se interage. São as relações humanas cotidianas que representam o sentido de família.
Por conta disso, discute-se muito sobre o quanto é impactante o entendimento de que uma relação familiar seja formalizada apenas pelo afeto.
Conceitualmente, a filiação socioafetiva, pode ser entendida como “aquela que não advém do vínculo biológico, mas sim do vínculo afetivo''. Possuir o estado de filho significa passar a ser tratado como se filho fosse, inclusive perante a sociedade” (SUZIGAN, 2015, p. 02). Decorre do ato de vontade, respeito recíproco e o amor construído ao longo do tempo, dia após dia, com base no afeto, independentemente de vínculo sanguíneo.
A filiação socioafetiva traz em seu bojo o contexto onde o afeto é tão importante quanto os laços consanguíneos. Se objetiva em consagrar na prática o exercício de ser ‘família’, ou seja, não é apenas o sangue ou o aspecto biológico que define uma família, mas sim a sua reciprocidade e sua convivência contínua.
Importante destacar que dentro da seara da filiação, existem algumas espécies. A primeira é a filiação biológica, também conhecida como natural, é “aquela que tem origem na consanguinidade, podendo ser tanto matrimonial quanto extra-matrimonial, estabelecendo-se a filiação pelos laços de sangue entre os pais e filhos” (CARVALHO, 2016, p. 10).
Outra espécie é a filiação registral que “identifica no assento de nascimento, os pais da pessoa, e possui presunção de veracidade e de publicidade para todos os fins legais. Fornece a base documental para toda a vida do ser humano, comprovando juridicamente que existe” (CARVALHO, 2016, p. 10).
Mas, para fins desse estudo, foca-se exclusivamente na filiação socioafetiva, que como bem acentua Andrade (2014, p. 08) é “aquela que envolve os aspectos e os vínculos afetivos e sociais entre os parentes não biológicos”.
A filiação socioafetiva é, portanto, aquela sem origem genética, construída pelo afeto, pela convivência, pelo nascimento emocional e psicológico do filho que enxerga, naqueles com quem vive e recebe afeto, seus verdadeiros pais (ANDRADE, 2014).
Nesse sentido:
A filiação socioafetiva funda-se na clausula geral de tutela da personalidade humana, salvaguardando a filiação como elemento fundamental para a formação da identidade da criança e formação de sua personalidade. A necessidade de manter a estabilidade familiar faz com que se atribua papel secundário a verdade biológica (SUZIGAN, 2015, p. 12).
Como relatado no tópico anterior, o texto constitucional ampliou o leque de espécies de família. Por conta disso, as leis infraconstitucionais também o fizeram. No que tange ao tema em debate, o Código Civil expandiu o conceito de parentesco civil, passando a ser parente todo aquele que integre à família, independente da relação de consanguinidade. Em seu texto, o artigo 1.593 abriu uma brecha para o reconhecimento da filiação socioafetiva quando faz referência ao parentesco de outra origem e o artigo 1.596 aboliu as distinções entre os filhos, igualando-os na sua totalidade a letra do artigo 227 da Constituição Federal; a saber:
Art. 1593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte da consaguinidade ou outra origem.
Art. 1596. Os filhos havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
(BRASIL, 2002)
Em razão disso, é seguro afirmar que a filiação socioafetiva está assentada na norma civilista. Isso é um reflexo claro da nova forma de se olhar uma constituição familiar, fazendo com que as relações amorosas e afetivas sejam tão importantes e necessárias quanto as de vínculo consanguíneo ou civil.
De todo modo, como já mencionado, é necessário destacar novamente que a filiação socioafetiva se revela na convivência, na manifestação inexprimível dos sentimentos de ternura e do querer bem. Segundo explica Suzigan (2015, p. 14) o princípio da afetividade está “relacionado com a convivência familiar e com o princípio da igualdade entre os filhos, constitucionalmente assegurado”.
Nesse sentido, a filiação evolui do determinismo biológico para o afetivo, ao passo que, as inúmeras relações existentes, visam uniformemente o bem-estar pessoal. Embora implícito na Constituição, apresenta-se como dever jurídico, presumido nas relações entre pais e filhos. O afeto, em si, é um sentimento voluntário, desprovido de interesses pessoais e materiais, inerente ao convívio parental, constituindo o vínculo familiar (ANDRADE, 2014).
No entendimento de Pereira (2018, p. 20) “não há como se exercer a paternidade, biológica ou não, sem a presença do afeto, norteando a relação, partindo-se do pressuposto que, a família é um instrumento de realização do ser humano”.
Esclarecido esse entendimento inicial, sobre a filiação socioafetiva, é preciso esclarecer alguns pontos em relação a sua efetivação jurídica e social. Sobre esses aspectos, apresenta-se a seguir as consequências jurídicas e sociais trazidas pela filiação socioafetiva.
5. DA DISCUSSÃO DA TEMÁTICA PROPOSTA
Esclarecido os principais termos desse estudo, neste tópico será discorrido a respeito da consagração da filiação socioafetiva no ordenamento jurídico brasileiro.
Conforme exposto no tópico acima, a filiação socioafetiva encontrou brecha primeiramente na Constituição Federal de 1988, quando se ampliou as ramificações das famílias. Em seguida encontrou lugar no Código civilista atual nos arts. 1.593 e 1.596, sendo assim consagrada juridicamente no regimento brasileiro.
Apesar disso, na prática a filiação socioafetiva ainda causa dúvidas, aos quais nos últimos anos tem sido implantado normativas que busquem adequar essa situação no ordenamento jurídico, sem ferir a dignidade humana e o instituto da família.
A priori, é necessário estabelecer critérios para o reconhecimento da filiação socioafetiva. Nesse sentido, a doutrina atenta a três requisitos: se o filho é tratado como tal, educado, criado e apresentado como filho pelo pai e pela mãe (tractatus), quando usa o nome da família e assim se apresenta (nominatio) e é conhecido perante a sociedade como pertencente a família de seus pais (reputatio).
Explica Souza (2017) que a doutrina na sua grande maioria, dispensa o requisito do nome, de maneira que o fato do nome do filho não conter o correspondente patronímico, em nada altera a caracterização da posse do estado de filho, desde que presentes os demais elementos, quais sejam, tratamento (tractatus) e fama (reputatio).
Em relação a posse do estado de filho, ela corresponde à “relação de afeto, íntimo e duradouro, exteriorizado e com reconhecimento social, entre homem e uma criança, que se comportam e se tratam como pai e filho, exercitando os direitos e assumem as obrigações que essa relação paterno-filial determina” (TARTUCE, 2017, p. 53).
Assim sendo, o oficial de registro deve estar atento à comprovação da posse do estado de filho, mais especificamente, no tocante aos elementos do tratamento e da fama que, aliados aos requisitos da manifestação de vontade, caracterizam a filiação socioafetiva.
Além da norma constitucional e do Código Civil/2002 no ano de 2017, o Conselho Nacional de Justiça publicou o Provimento 63, através do qual, dentre outros temas, disciplinou o procedimento de reconhecimento de filiação socioafetiva, perante os Ofícios do Registro Civil das Pessoas Naturais.
Apesar de alguns estados já estarem realizando o reconhecimento extrajudicial da “paternidade” socioafetiva mediante a edição de normativas próprias, o Provimento 63/2017 do CNJ vem para consolidar a possibilidade de que o reconhecimento da filiação socioafetiva seja efetivado nos cartórios do registro civil de qualquer unidade federativa, uniformizando o seu procedimento (SOUZA, 2017).
Em seu texto, os requisitos para que o reconhecimento da filiação socioafetiva seja deferido extrajudicialmente são os seguintes:
I - Requerimento firmado pelo ascendente socioafetivo (nos termos do Anexo VI), testamento ou codicilo (artigo 11, parágrafos 1º e 8º, do Provimento 63/2017 do CNJ);
II - Documento de identificação com foto do requerente – original e cópia simples ou autenticada (artigo 11 do Provimento 63/2017 do CNJ);
III - Certidão de nascimento atualizada do filho – original e cópia simples ou autenticada (artigo 11 do Provimento 63/2017 do CNJ);
IV – Anuência pessoalmente dos pais biológicos, na hipótese do filho ser menor de 18 anos de idade (artigo 11, parágrafos 3º e 5º, do Provimento 63/2017 do CNJ);
V – Anuência pessoalmente do filho maior de 12 anos de idade (artigo 11, parágrafos 4º e 5º, do Provimento 63/2017 do CNJ);
VI - Não poderão ter a filiação socioafetiva reconhecida os irmãos entre si nem os ascendentes (artigo 10, parágrafo 3º, do Provimento 63/2017 do CNJ);
VII - Entre o requerente e o filho deve haver uma diferença de pelo menos 16 anos de idade (artigo 10, parágrafo 3º, do Provimento 63/2017 do CNJ);
VIII - Comprovação da posse do estado de filho (artigo 12 do Provimento 63/2017 do CNJ).
(BRASIL, 2017)
Em meio a esse provimento, a doutrina jurídica não corrobora com alguns pontos. Temdo como exemplo, o apresentado pelo artigo 11, parágrafo 5º onde estabelece que “a coleta da anuência tanto do pai quanto da mãe e do filho maior de doze anos deverá ser feita pessoalmente perante o oficial de registro civil das pessoas naturais ou escrevente autorizado” (BRASIL, 2017).
Para Souza (2017, p. 04) essa determinação além de desarrazoada, é “inconstitucional, haja vista que estabelece tratamento discriminatório no reconhecimento da filiação a depender de sua origem, se biológica ou socioafetiva”.
Por esse motivo, entende esse autor, é descabido exigir que a aludida anuência seja dada presencialmente, sendo injustificável que ela não possa ser realizada através da apresentação de instrumento público ou particular com firma reconhecida, no qual constem expressamente os termos da anuência, ou, ainda, através de mandatário com poderes específicos (SOUZA, 2017).
A par desse fato, o importante é salientar que a filiação socioafetiva já está mais do que implantada no regimento jurídico pátrio. Não há porque não implantar quando se verificar todos os requisitos e quando o caso concreto aponta para uma família que se une pelo afeto.
A própria jurisprudência brasileira já vem ao longo dos últimos anos acatando o entendimento da possibilidade de existência da filiação socioafetiva; como se pode aferir no presente julgado:
RECURSO ESPECIAL Nº 878.941 - DF (2006/0086284-0) EMENTA: RECONHECIMENTO DE FILIAÇÃO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO SANGUÍNEA ENTRE AS PARTES. IRRELEVÂNCIADIANTE DO VÍNCULO SÓCIOAFETIVO. Merece reforma o acórdão que, ao julgar embargos de declaração, impõe multa com amparo no art. 538, par. único, CPC se o recurso não apresenta caráter modificativo e se foi interposto com expressa finalidade de pré questionar. Inteligência da Súmula 98, STJ.- O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo sócio-afetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento. A relação sócio-afetiva é fato que não pode ser, e não é, desconhecido pelo Direito. Inexistência de nulidade do assento lançado em registro civil.- O STJ vem dando prioridade ao critério biológico para o reconhecimento da filiação naquelas circunstâncias em que há dissenso familiar, onde a relação sócio-afetiva desapareceu ou nunca existiu. Não se pode impor os deveres de cuidado, de carinho e de sustento a alguém que, não sendo o pai biológico, também não deseja ser pai sócio-afetivo. A contrario sensu, se o afeto persiste deforma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio, respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo, para reconhecer a existência de filiação jurídica. Recurso conhecido e provido.[2]
Cabe também mencionar que, no que se refere à paternidade socioafetiva, ela é irrevogável, visto que o “vínculo afetivo é irretratável e irrenunciável, isto é, aquele que reconheceu como se filho fosse, não pode mais romper esse vínculo depois de estabelecida a socioafetividade” (SUZIGAN, 2015, p. 15)
É nesse diapasão, que a jurisprudência está, pouco a pouco, reconhecendo a impossibilidade da desconstituição da paternidade alicerçada na socioafetividade. Para melhor ilustrar esse fato, apresenta-se o seguinte julgado:
APELAÇÃO. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. PAI REGISTRAL QUE REGISTROU MESMO SABENDO NÃO SER PAI BIOLÓGICO. INEXISTÊNCIA DE ERRO. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA PROVADA. Caso de pai registral que efetuou o registrado sabendo não ser o pai biológico, uma vez que quando passou a se relacionar com a genitora ela já estava grávida. Na hipótese, não há falar e nem cogitar em erro ou em algum tipo de vício na manifestação de vontade. Por outro lado, foi realizado laudo de avaliação social que concluiu expressamente pela existência de paternidade socioafetiva entre o apelante e o filho registral que, hoje em dia, já é até maior de idade. NEGARAM PROVIMENTO.[3]
Do mesmo modo, a paternidade socioafetiva não afasta o direito ao reconhecimento do vínculo biológico. Existem cada vez mais decisões e posicionamentos jurídicos recentes, inclusive de tribunais superiores, que vêm mostrando a mitigação do absolutismo da irrevogabilidade do reconhecimento da paternidade socioafetiva, em casos que um filho queira ter o reconhecimento de seu vínculo biológico, registrado legalmente, mesmo que conste um registro de pai socioafetivo, há precedente jurídico que o ampare e, caso a caso, faça não prevalecer a filiação socioafetiva frente à filiação biológica (VELLSO, 2017).
O posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, através de uma de suas Turmas, no que diz respeito ao fato de que a filiação socioafetiva não é impedimento para o reconhecimento do vínculo biológico, vem reafirmar que não pode a lei ou a doutrina obstaculizar a análise e a possibilidade de uma decisão favorável à desconstituição da paternidade socioafetiva quando visar o melhor interesse do filho (VELLSO, 2017).
Nesse sentido:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. INEXISTÊNCIA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. IMPEDIMENTO PARA O RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA. NÃO OCORRÊNCIA. AÇÃO PROPOSTA PELO FILHO. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. Não se constata violação ao art. 535 do CPC quando a col. Corte de origem dirime, fundamentadamente, todas as questões que lhe foram submetidas. Havendo manifestação expressa acerca dos temas necessários à integral solução da lide, ainda que em sentido contrário à pretensão da parte, fica afastada qualquer omissão, contradição ou obscuridade. 2. A existência de relação socioafetiva com o pai registral não impede o reconhecimento dos vínculos biológicos quando a investigação de paternidade é demandada por iniciativa do próprio filho, uma vez que a pretensão deduzida fundamenta-se no direito personalíssimo, indisponível e imprescritível de conhecimento do estado biológico de filiação, consubstanciado no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III). Precedentes. 3. Agravo regimental a que se nega provimento. [4]
No que tange a sucessão, por exemplo, por ausente a expressa previsão legal acerca da sucessão socioafetiva, o tema é abordado pela doutrina e jurisprudência, que reconhece de forma majoritária o direito à sucessão, como herdeiro necessário, eis que descendente, com base no princípio da igualdade entre os filhos, trazido pela Constituição Federal, em seu artigo 227, § 6º, reforçado pelo artigo 1.596 do Código Civil.
Neste sentido, e, ainda de forma bastante cautelosa, vem sendo proferidas recentes decisões sobre o tema, concedendo aos herdeiros socioafetivos, igualdade no direito sucessório. É o que se observa do julgado abaixo citado:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. FILIAÇÃO. IGUALDADE ENTRE FILHOS. ART. 227, § 6º, DA CF/1988. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. VÍNCULO BIOLÓGICO. COEXISTÊNCIA. DESCOBERTA POSTERIOR. EXAME DE DNA. ANCESTRALIDADE. DIREITOS SUCESSÓRIOS. GARANTIA. REPERCUSSÃO GERAL. STF. 1. No que se refere ao Direito de Família, a Carta Constitucional de 1988 inovou ao permitir a igualdade de filiação, afastando a odiosa distinção até então existente entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos (art. 227, § 6º, da Constituição Federal). 2. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 898.060, com repercussão geral reconhecida, admitiu a coexistência entre as paternidades biológica e a socioafetiva, afastando qualquer interpretação apta a ensejar a hierarquização dos vínculos. 3. A existência de vínculo com o pai registral não é obstáculo ao exercício do direito de busca da origem genética ou de reconhecimento de paternidade biológica. Os direitos à ancestralidade, à origem genética e ao afeto são, portanto, compatíveis. 4. O reconhecimento do estado de filiação configura direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado, portanto, sem nenhuma restrição, contra os pais ou seus herdeiros. 5. Diversas responsabilidades, de ordem moral ou patrimonial, são inerentes à paternidade, devendo ser assegurados os direitos hereditários decorrentes da comprovação do estado de filiação. 6. Recurso especial provido.[5]
Portanto, como pode ser verificado acima, tanto a doutrina quanto a jurisprudência já entendem que a filiação socioafetiva não pode ser excluída do rol do Direito de Família, pois representa o que há de mais importante no seio de uma família: o afeto. Ainda dentro desse assunto, encontra-se a multiparentalidade, que será analisada a seguir.
5.1 DA MULTIPARENTALIDADE
Em princípio, o debate que surge, é se a paternidade biológica se sobrepõe ou não a socioafetiva, mas algumas decisões admitem soma de filiação, sem qualquer hierarquia entre o afeto e a biologia, ou seja, a possibilidade de uma pessoa ter mais de um pai e/ou mais de uma mãe com reconhecimento jurídico legal, restando assim configurada a multiparentalidade (SUZIGAN, 2015).
Conceitua Farias; Rosenvald (2016, p. 105) que a multiparentalidade é uma forma de reconhecer no campo jurídico o que ocorre no mundo dos fatos. “Afirma a existência do direito à convivência familiar que a criança e o adolescente exercem por meio da paternidade biológica em conjunto com a paternidade socioafetiva”.
Nas palavras de Shikicima (2015, p. 73) a multiparentalidade é um avanço do Direito de Família, “tendo em vista que efetiva o princípio da dignidade da pessoa humana de todas as pessoas envolvidas, demonstrando que a afetividade é a principal razão do desenvolvimento psicológico, físico e emocional”.
Em decisão inédita no ano de 2012, o Tribunal de Justiça de São Paulo deferiu pedido para acrescentar na certidão de nascimento de um jovem de 19 anos o nome da mãe socioafetiva, sem ser retirado o nome da mãe biológica que morreu três dias após o parto.
MATERNIDADE SOCIOAFETIVA. PRESERVAÇÃO DA MATERNIDADE BIOLÓGICA. Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família. Enteado criado como filho desde dois anos de idade. Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes - A formação da família moderna não-consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. Recurso provido. [6]
Velloso (2017, p. 38) entende que a multiparentalidade “efetiva o princípio da dignidade da pessoa humana e da afetividade, reconhecendo no campo jurídico a filiação – amor, afeto e atenção - que já existe no campo fático”.
Sobre a sua regulamentação jurídica, o Provimento 63/2017 do CNJ trouxe relevante inovação, ao permitir o reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva, sem exclusão biológica. Já em seu preâmbulo, o presente provimento leva em consideração o fato de que a “paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impedindo o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios” (BRASIL, 2017).
Nesse sentido, o artigo 11, parágrafo 3º, do Provimento 63/2017 reza que, “constarão do termo, além dos dados do requerente, os dados do campo filiação e do filho, que constam no registro, devendo o registrador colher a assinatura do pai e da mãe do reconhecido, caso este seja menor” (BRASIL, 2017).
Ao passo que, o artigo 11, parágrafo 5º, da referida norma, prevê que “a coleta da anuência tanto do pai quanto da mãe e do filho maior de 12 anos deverá ser feita pessoalmente perante o oficial de registro civil das pessoas naturais ou escrevente autorizado” (BRASIL, 2017).
Deixando de lado qualquer dúvida sobre a questão, o artigo 14 do Provimento 63/2017 do CNJ, estabelece que “o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais ou de duas mães no campo filiação no assento de nascimento” (BRASIL, 2017).
Desta maneira, após a edição do referido provimento, é possível que a filiação socioafetiva seja reconhecida diretamente no cartório, sem que seja afastada a filiação biológica, desde que haja anuência dos pais biológicos e do filho maior de 12 anos, quando for o caso (SOUZA, 2017).
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como mostrado no decorrer desse estudo, a família representa um importante alicerce para o desenvolvimento do homem. É por meio da família que o indivíduo evolui e se socializa. Por conta disso, o direito enquanto ciência social não poderia se ausentar em regulamentar a sua área.
No que se limita a esse estudo, ficou exposto que dentro de todo o aparato que se tem sobre a família, encontra-se a filiação socioafetiva. Esse modelo de família é resultante da norma constitucional e posteriormente civilista que acompanhado do avanço social, entende que a família é mais que laços consanguíneos, e principalmente formada pelo afeto.
A afetividade gera uma verdade social e a lei precisa garantir o respeito para com as relações estabelecidas livremente pelos indivíduos proporcionando assim, a liberdade de amar, mantendo-se a dignidade humana. Por isso, o afeto que orienta a paternidade e forma a família.
O que se vê atualmente é uma flexibilização do sistema familiar, através do reconhecimento do valor jurídico do afeto, enquanto fator relevante da composição familiar, e fundamento basilar de uma relação de parentesco.
É prescindível que exista a paternidade jurídica ou biológica, para que sobrevenha a paternidade socioafetiva, esta se perfaz com a presença da vontade livre e consciente de querer ser pai, assumindo as suas responsabilidades paternais, diante de seus atos.
Pode-se afirmar em vista do que foi exposto, neste estudo, que independe de vínculo sanguíneo a condição de filiação. Injusto seria o entendimento contrário, diante de todas as formações familiares contemporâneas, onde se tem a função exercida, intrínseca da maternidade/paternidade, qual seja, de cuidado, de formação psicológica, de educação, e mesmo a doação da pessoa à outra, emocionalmente, proporcionar às crianças, muitas vezes rejeitadas por seus pais biológicos, não só uma família estruturada, mas conforto e segurança necessários para seu desenvolvimento.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Guilherme Weber Gomes de. Evolução histórica do direito de família no ordenamento jurídico brasileiro. Conteúdo Jurídico, Brasília: 14 ago. 2014. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.44723&seo=1>. Acesso em: 05 mai. 2021.
ANDRADE, Eliane Cristina de Carvalho. Filiação socioafetiva. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVII, n. 130, nov. 2014. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=15458>. Acesso em: 12 abr. 2021.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.
BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento nº 63, de 14 de novembro de 2017. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=3380>. Acesso em: 02 mai. 2021.
_______. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil Brasileiro. Brasília: Senado, 2002.
CARVALHO, Dimas Messias. Direito de Família: direito civil. 8. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2016.
COSTA, Tereza Maria Machado Lagrota. Adoção por pares Homoafetivos: uma abordagem jurídica e psicológica. Artigo apresentado à Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais Vianna Júnior. Juiz de Fora/MG, 2016. Disponível em: <http://www.viannajr.edu.br/revista/dir/doc/art_10005.pdf>. Acesso em: 27 abr. 2021.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
DILL, Michele Amaral; CALDERAN, Thanabi Bellenzier.Evolução histórica e legislativa da família e da filiação. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 85, fev 2016. Disponível em:<http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9019>. Acesso em: 05 mai. 2021.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol. 5. Direito de Família - 31ª Ed. 2017.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil – Parte Geral e LINDB. 10ª ed., rev., atual. e ampl., Salvador: JusPODIVM, 2016.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito de família. v.6. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
LÔBO, Paulo. Direito Civil – Famílias. São Paulo: ed. Saraiva, 2ª ed., 2009.
MACEDO, Suellen Caroline Alves. Adoção por parceria Homoafetiva e seus Reflexos no Âmbito Jurídico. Monografia apresentada em Bacharelado em Direito pela Universidade da Paraíba. Campina Grande – PB, 2012.
NOGUEIRA, Mariana Brasil. A Família: Conceito E Evolução Histórica E Sua Importância. 2017. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/18496-18497-1-PB.pdf>. Acesso em: 01 mai. 2021.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Famílias Ensambladas e Parentalidade Socioafetiva- a Propósito da Sentença do tribunal Constitucional, de 30.11.2007. Revista Magister de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre, v. 7, p.88-94, dez/jan, 2018.
SHIKICIMA, Nelson Sussumu. Sucessão dos ascendentes na multiparentalidade - Uma lacuna a ser preenchida. Revista ESA. Formatos Familiares Contemporâneos. Ano V nº18. Inverno, 2015.
SOUZA, Carlos Magno Alves de. CNJ cria regras para reconhecimento extrajudicial de filiação socioafetiva. 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-dez-03/carlos-souza-cnj-cria-regras-reconhecer-filiacao-socioafetiva>. Acesso em: 26 abr. 2021.
SUZIGAN, Thábata Fernanda. Filiação socioafetiva e a multiparentalidade. 2015. Disponível em: <https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/9204/Filiacao-socioafetiva-e-a-multiparentalidade>. Acesso em: 04 mai. 2021.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil, v.5: Direito de Família. 12ª ed., rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense, 2017.
VELLSO, Reinaldo. Reconhecimento da Paternidade Socioafetiva. 13 mar. 2017. Disponível em: <http://reinaldovelloso.blog.br/?p=667>. Acesso em: 04 mai. 2021.
[2] STJ – Resp: 878941 DF 2006/0086284-0, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 21/08/2007, T3- TERCEIRA TURMA, Data da Publicação: DJ 17/09/2007. Disponível em: <http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/8880940/recurso-especial-resp-878941-df-2006-0086284-0/inteiro-teor-13987921>. Acesso em 03 mai. 2021.
[3] Apelação Cível Nº 70061285912, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 25/09/2014. Disponível em: <http://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/142651478/apelacao-civel-ac-70061285912-rs/inteiro-teor-142651488>. Acesso em: 05 mai. 2021.
[4] STJ - AgRg no AREsp: 678600 SP 2015/0053479-2, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 26/05/2015, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 24/06/2015. Disponível em: <http://tjrs.vlex.com.br/vid/-208489631>. Acesso em: 05 mai. 2021.
[5] Superior Tribunal de Justiça STJ – Recurso Especial nº 1618230 RS 2016/0204124-4. Órgão Julgador: 3ª Turma. Julgamento: 28/03/2017. Publicação: 10/05/2017. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/465738570/recurso-especial-resp-1618230-rs-2016-0204124-4>. Acesso em: 206 mai. 2021.
[6] Disponível em: <https://esaj.tjsp.jus.br/pastadigital/abrirDocumentoEdt.do?origemDocumento=M&nuProcesso=000642226.2011.8.26.0286&cdProcesso=RI00161X00000&cdForo=990&tpOrigem=2&flOrigem=S&nmAlias=SG5SP&cdServico=190201&ticket=FELbROIkBebHKJw6owxcPDbDmGLf%2FMwTyeWqRiDkbRiCy4IUZbNOKN4F0xYudKlvaL7B5rZdekvSxS3Olvp9KH01dlp92%2BGHI0iHgKWVoS2vkQg%2Fd2Uzp%2BGny%2BKR%2BYOwx5sPNke3nisD%2B0ffAJdvVkIV%2FrScDnfR%2FeJrHVDn9jZNNlJQbYDSZitkvXuz3LerNv8Cl%2BjcQEWgU475ysRrMa%2B5IJsocWnT6HvjWOCEk6c%3D>. Acesso em: 02 mai. 2021.
Bacharelanda do curso de Direito pela Unirg-(universidade de Gurupi), Tocantins.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PASSOS, GABRYELLE MOREIRA. Paternidade socioafetiva: a multiparentalidade e seus efeitos jurídicos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 jun 2021, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56701/paternidade-socioafetiva-a-multiparentalidade-e-seus-efeitos-jurdicos. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: MARIANA BRITO CASTELO BRANCO
Por: Jorge Hilton Vieira Lima
Por: isabella maria rabelo gontijo
Por: Sandra Karla Silva de Castro
Por: MARIA CLARA MADUREIRO QUEIROZ NETO
Precisa estar logado para fazer comentários.