RESUMO: Este trabalho visa demonstrar que o conceito da dignidade da pessoa humana deve ser visto como valor supremo que induz o conteúdo de todos os direitos fundamentais inerentes ao homem. As crises de segurança, econômicas, sociais e “morais” são usualmente invocadas como argumentos de legitimação da inversão da ideia de dignidade como plataforma de fundamentação de direitos, já que unidos pela razão, os homens seriam legisladores universais de si mesmos e esse liame de racionalidade é que permite se reconheça a existência, propriamente, de uma humanidade, cujo valor fundamental é o da liberdade (liberdade pelo uso incondicional da razão pura), que obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional, não podendo se reduzir o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir “teoria do núcleo da personalidade” individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana.
Palavras-chave: Dignidade. Direito da Pessoa Humana. Relação Homoafetiva. Reconhecimento.
ABSTRACT: This work seeks to demonstrate that the concept of the dignity of the human person must be seen as a supreme value that induces the content of all fundamental rights inherent to man. The security, economic, social and “moral” crises are usually invoked as arguments to legitimize the inversion of the idea of dignity as a platform for the foundation of rights, since united by reason, men would be universal legislators of themselves and this link of rationality is what allows the existence of a humanity, whose fundamental value is that of freedom (freedom through the unconditional use of pure reason), which requires a not being able to reduce the sense of human dignity to the defense of traditional personal rights, forgetting it in cases of social rights, or invoking it to build individual “core personality theory”, ignoring it when it comes to guaranteeing the bases of human existence.
Keywords: Dignity. Human Rights. Homo-affective relationship. Recognition.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Início da dignidade – 3. Conceito de dignidade de pessoa humana – 4. Dignidade da pessoa humana nos relacionamentos homoafetivos – 5. Conclusão – 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Com o desenvolvimento do direito, principalmente no pós-guerra, a pessoa (ser humano) passou a integrar o centro de toda e qualquer atividade desenvolvida pelo Estado. Hoje, o principal núcleo de proteção da ordem jurídica é a pessoa humana e, pelo fato desse ser humano ser revestido de personalidade própria, quando se tutela a pessoa, não se pode retirar do âmbito de proteção a personalidade, estando ambas diretamente relacionadas. Daí nasce a ideia de dignidade da pessoa humana como princípio norteador da proteção pelo Estado.
Não se pode garantir uma dignidade à pessoa humana se não lhe é facultado o desenvolvimento de sua personalidade de forma livre e autônoma. Não pode haver um molde de personalidade, onde um terceiro (Estado ou particular) venha impor à pessoa um modelo de como deverá conduzir sua vida, criando, assim, uma pessoa modelo, ou até artificial, posto não ser fruto de seu desenvolvimento, mas da criação de outrem.
Assim começou a salvaguarda do desenvolvimento da personalidade, já que para garantir o princípio da dignidade da pessoa humana, é necessário que se permita que a pessoa se desenvolva com base em critérios subjetivos, e não em critérios objetivos impostos forçosamente por outro. Para garantir um efetivo direito ao livre desenvolvimento da personalidade, é necessário entender a noção de personalidade e o que representa para o Direito.
Muito embora a matéria em debate não seja inédita, já havendo artigos e mesmo obras jurídicas que abordam o assunto, pretende-se trazer à baila não só a revisão do que já foi escrito a respeito, como também apresentar novos enfoques à luz dos últimos acontecimentos jurídicos com relação à dignidade da pessoa humana nos relacionamentos homoafetivos no Brasil. E é, justamente, dentro dessa temática, que este trabalho tem como foco central, qual seja, descer o véu do silêncio que ainda insiste em envolver o tema das uniões homossexuais, no intuito de demonstrar que também sob o enfoque jurídico as uniões homoafetivas são verdadeiras entidades familiares e que, por isso, não há nenhuma razão plausível para tratá-las de forma diferente, sendo que qualquer argumento fora disso é oriundo do mais puro preconceito.
Desde o início da civilização greco-latina que nos vemos como seres racionais, implicando essa concessão que as nossas ações seriam lógicas, refletidas e que tudo poderia ser compreendido. Todavia, cada um é como é, “somos seres humanos radicalmente singulares, diferentes uns dos outros”. A dignidade da espécie humana repousa, pois, sobre a nossa singularidade entre todas as outras espécies e sobre a nossa singularidade de uns em relação aos outros. A razão para a libertação parcial da espécie humana em relação à natureza é a aptidão humana única para usar a linguagem em moldes muito evoluídos, o que caracteriza e distingue a espécie humana das outras espécies animais.
A linguagem é a chave para a exclusividade humana no grande ambiente que é o universo, porque ela permite uma criação e recriação permanentes do artifício humano total. Por outras palavras, a linguagem permite a criação de um segundo mundo para além do mundo natural. A linguagem abre a possibilidade da liberdade humana; os seres humanos são criativos nos múltiplos significados que atribuem às palavras, assim como são adaptáveis e, daí, continuamente imprevisíveis, ao contrário de todas as outras espécies.
Eis a razão pela qual os animais podem ser classificados como egoístas, mas apenas o homem pode ser classificado como calculista. Neste sentido, acompanhamos o pensamento de Schopenhauer, que sustenta que a estima entre os homens não é uma característica inata. Pelo contrário: “A motivação principal e fundamental, tanto no homem, como no animal, é o egoísmo, quer dizer, o ímpeto para a existência e o bem-estar.” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 120-121, 123).
3. CONCEITO DE DIGNIDADE DE PESSOA HUMANA
Cronologicamente, não podemos situar, com precisão, o aparecimento dos direitos do homem (avant la lettre), já que muitos Estados soberanos incluíram, nas suas leis, ao longo dos séculos, muitos direitos e garantias tendo como destinatários grupos variados de indivíduos. No entanto, é na Idade Média que se encontram os seus precedentes mais chegados. Sem prejuízo deste facto, foi já na fase avançada da modernidade e, posteriormente, na época contemporânea, que surgiram os marcos mais relevantes visando a proteção dos direitos humanos, ao que se seguiu a própria teorização dos direitos humanos. Entre outros documentos relevantes para a história dos direitos humanos, destaca-se a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada pela Assembleia Constituinte Francesa de 1789, e a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, que foi ratificada por muitos países.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu art.1º, põe em destaque os dois pilares da dignidade humana: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e percepção e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.” (REALE, 1983, p. 277). Constata-se, cronologicamente, a presença de, basicamente, três entendimentos da dignidade da pessoa humana: individualismo, trans personalismo e personalismo.
Para o individualismo, o homem, ao zelar pelas suas conveniências e pelo seu benefício, zelará, automaticamente, pelas conveniências e benefício coletivo. É concretizando o que para si é conveniente que cada homem realiza o que é conveniente para a coletividade política. Nas palavras de Miguel Reale, “Cada homem, realizando o seu bem, realizaria, mediante espontâneo equilíbrio de egoísmos, o bem social ou o bem comum”. (REALE, 1983, p. 278).
O individualismo significa o predomínio do egoísmo sobre o coletivo e não tanto do egoísmo sobre o altruísmo. Envolve declarar que o Estado tem o papel fundamental de garantir as liberdades individuais, com todas as consequências em matéria de organização social A felicidade comum será uma “inevitável” consequência (há aqui um certo teleologismo, ou até fatalismo, a-histórico) da particular realização da felicidade por cada indivíduo. As liberdades individuais, antes de tudo, são direitos inatos e anteriores ao Estado, impostos como limites à atividade estatal, que, tanto quanto possível, deve coibir-se de intervir na esfera social.
O trans personalismo é o entendimento oposto. Para tal entendimento, não há hipótese de uma concordância imediata entre o benefício individual e o coletivo. O benefício coletivo seria o atributo imprescindível para se alcançar a felicidade pessoal. Prevalecem, portanto, os valores coletivos em prejuízo dos valores individuais. A essência humana só obtém totalidade e legitimidade quando tem por objetivo o bem social. Em antítese ao individualismo, o exemplo do trans personalismo é assim explicado por Miguel Reale:
Se, ao contrário, predominar numa sociedade a concepção coletivista, que der ao todo absoluta primazia sobre as partes, a tendência na interpretação das normas jurídicas será sempre no sentido da limitação da liberdade em favor da igualdade. Não se põe, com efeito, o problema da composição entre o indivíduo e a sociedade, sem que concomitantemente não surja o problema das relações entre liberdade e a igualdade. (REALE, 1983, p. 278).
O terceiro entendimento, o personalismo promove, através do Direito e da democracia, a dignidade da pessoa humana como trave-mestra da organização da sociedade. Tal entendimento, ultrapassando os restantes, procura atestar que entre as expressões indivíduo e sociedade não existe nem a congruência simples que a inicial fantasia, nem a inescapável sujeição que a segunda nos oferece.
Suplantando e conciliando as criações anteriores, o personalismo assevera não haver possibilidade de integrar harmonicamente os egoísmos individuais como instrui o individualismo e, da mesma forma, refutando o trans personalismo, assevera que nem sempre a concretização daquilo que é considerado o bem da coletividade significa a satisfação de cada indivíduo, que possui algo de inflexível em relação ao bem social.
A dignidade da pessoa humana passa a ser um alicerce que afasta a ideia de predomínio das conceções trans personalistas de Estado e Nação em detrimento da liberdade pessoal. Da mesma forma, entendendo todo e qualquer ser humano como um indivíduo inserido num contexto social e não individualista, os valores particulares deixam de ter preeminência soberana na colisão com os interesses coletivos. Para tal teoria, há uma tensão constante entre os valores do indivíduo e os valores da sociedade, donde a exigência permanente de composição entre esses grupos de fatores, de maneira que venha a ser reconhecido o que toca ao todo e o que cabe ao indivíduo numa ordenação progressivamente capaz de harmonizar as duas forças.
Nesse passo, para encontrar o que é justo, o intérprete terá que elaborar um juízo de valor muito mais completo do que simplesmente dar prevalência incondicional a um ou outro valor, seja ele pessoal ou coletivo. dignidade da pessoa humana é o valor supremo da ordem jurídica. As limitações feitas aos direitos fundamentais, nos termos constitucionais, não põem em risco a dignidade da pessoa humana, pois são limites necessários para a conservação da ordem jurídica democrática, como, por exemplo, o encarceramento do condenado por crime decisivamente sentenciado.
Conforme adverte Ingo Sarlet (2001, p. 50) “a dignidade evidentemente não existe apenas onde é reconhecida pelo Direito e na dimensão em que este a reconhece, já que constitui dado prévio, não esquecendo, todavia, que o Direito poderá exercer papel crucial na sua proteção e promoção”. Nesta asserção, Sarlet (1988, p. 56) faz alusão ao dúplice papel do princípio da dignidade humana: defensivo e prestacional. Dentro do seu papel defensivo, o princípio “encerra normas que outorgam direitos subjetivos de cunho negativo (não violação da dignidade)”; já no seu papel prestacional, o princípio “impõe condutas positivas no significado de proteger e promover a dignidade”.
Se o princípio da dignidade da pessoa humana está consagrado legal e constitucionalmente, então, naturalmente, isso implica aceitar que ele é apto a produzir efeitos jurídicos, que tanto podem ser positivos como negativos. Além disso, segundo vários autores, o princípio proíbe o retrocesso. Dentro da eficácia positiva do princípio, temos que o Estado está obrigado a proteger a dignidade humana através da adoção de normas e políticas públicas que garantam um mínimo de existência indispensável para assegurar uma vivência digna (queremos mesmo dizer “vivência” e não mera “sobrevivência”).
Para evitar uma interpretação do Direito por parte do Estado que se desvie, de forma significativa, da opinião das pessoas, estas têm o direito de refutar a validade de todas as normas que firam o núcleo essencial de uma existência digna, ferindo assim o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Isto constitui a eficácia negativa do princípio.
4. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NOS RELACIONAMENTOS HOMOAFETIVOS
A Carta Magna veda a discriminação e confere amparo aos segmentos marginalizados, como é o caso dos relacionamentos homoafetivos. De ordem espiritual e material dos valores, o princípio da dignidade da pessoa humana confirma que cada pessoa pode exercer livremente sua personalidade, conforme seus desejos mais íntimos, devendo-se reconhecer que dignidade está presente na união homoafetiva, pois, perante a falta de regulamentação legal explícita, referida decisão veio para confirmar que a união entre pessoas do mesmo sexo forma um núcleo familiar digno de tutela, bem como deflagrando os seus efeitos decorrentes da união estável. Sobre o tema, a preciosa lição de Rodrigo da Cunha Pereira e Maria Berenice Dias:
As transformações da sociedade estão associadas a um novo discurso sobre a sexualidade, cuja base foi assentada pela Psicanálise, ensejando constar que a sexualidade se insere antes na ordem do desejo, que na genitalidade, como sempre fora tratada pelo Direito. Ante essa mudança, o pensamento contemporâneo ampliou seu horizonte sobre as diversas formas de manifestação da afetividade, compreendendo as várias possibilidades de constituir uma família. Principia, aí, a liberdade de afeto. Ou seja, a possibilidade de não se sujeitar aos modelos herdados e ainda postos como lei. Ganho curso histórico a libertação dos sujeitos.
(...) A legislação vigente regula a família do início do século passado, constituída unicamente pelo casamento, verdadeira instituição, matrimonializada, patrimonializada, patriarcal, hierarquizada e heterossexual, ao passo que o moderno enfoque dado à família se volta muito mais à identificação dos vínculos afetivos, que - enlaçando os que a integram - consolidam a sua formação (Direito de Família e o Novo Código Civil - Ed. Del Rey: 2002 - p. VII apud ARPEN.SP, 2017).
Da mesma forma que dantes, o princípio da isonomia ou da igualdade trazido por Aristóteles e, posteriormente, por Rui Barbosa preceitua que se devem tratar os iguais como iguais e os desiguais como desiguais na medida de suas desigualdades. Não obstante, também está de forma expressa na Carta Magna. Portanto, não há que se distinguir um ou outro apenas pela opção sexual. Tampouco se devem restringir os direitos da personalidade de homossexuais, tendo em vista que são personalíssimos, irrenunciáveis, inalienáveis e intransmissíveis. A igualdade entre as pessoas, no mais das vezes, confundir-se-á com o pálio da justiça.
Não há que se olvidar a máxima “faça-se justiça ainda que o mundo pereça”. Para tanto, há que ser reconhecido de forma categórica o direito à união homoafetiva como corolário do que aqui exposto. A Constituição Federal, ao outorgar a proteção do estado à família, reconhecendo como união estável somente o laço entre um homem e uma mulher, ignorando as entidades familiares homoafetivas, infringe a norma que veda qualquer tipo de discriminação, bem como afronta o fundamental princípio constitucional da igualdade, consagrado em regra pétrea. (DIAS, 2001, p. 172).
Ao excluir do alcance das entidades familiares protegidas pelo ordenamento jurídico constitucional pátrio, as famílias formadas através da União Homoafetiva violam frontalmente o texto da Constituição Federal, notadamente o art. 3º, IV, art. 5º, I e o art. 226, §3º.
Ora, não há ramo do Direito Privado em que a dignidade da pessoa humana tenha mais ingerência ou atuação do que o Direito de Família. De qualquer modo, por certo é difícil a denominação do que seja o princípio da dignidade da pessoa humana. Reconhecendo a submissão de outros preceitos constitucionais à dignidade humana, Ingo Wolfgang Sarlet conceitua o princípio em questão como “o reduto intangível de cada indivíduo e, neste sentido, a última fronteira contra quaisquer ingerências externas”. Tal não significa, contudo, a impossibilidade de que se estabeleçam restrições aos direitos e garantias fundamentais, mas que as restrições efetivadas não ultrapassem o limite intangível imposto pela dignidade da pessoa humana (TARTUCE, 2006).
O princípio da dignidade da pessoa humana conjuga-se perfeitamente com o princípio da isonomia. Com efeito, a Constituição Federal erigiu os princípios da igualdade e isonomia como direitos fundamentais da pessoa humana, sem que se admita distinção de sexo e de orientação social (art. 5º, caput e I, CF). É também objetivo fundamental da República Federativa do Brasil "a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (art. 3º, IV, CF).
Ora, diferentemente do que apregoa a sociedade conservadora, o conceito de entidade familiar ampliou-se consideravelmente ao longo dos tempos, para incluir, inclusive, relacionamentos não advindos do casamento legal, como a união estável. A discriminação entre filhos legítimos e ilegítimos restou afastada pelo legislador. A paternidade socioafetiva é tema relevante nas ações de investigação de paternidade do vínculo biológico, chegando ao ponto de superá-la, por vezes (CC/02, art.1.597, V) (ANDRADE, 2004).
Enfim, o delineamento da família contemporânea tem no afeto sua mola propulsora. O afeto hodiernamente é elemento essencial das relações interpessoais e a união homoafetiva, como entidade familiar, é uma realidade social. A convivência com base no afeto não é um privilégio dos heterossexuais. Nos relacionamentos homossexuais, o amor, o afeto, o desejo, o erotismo e as relações sexuais estão tão fortemente presentes que saltam as barreiras do estigma social. Esse complexo de fatores, da ordem do não-racional e até do subconsciente, manifesta-se independentemente da orientação sexual e representa uma das melhores maneiras de se realizar como ser humano. (ADI-LGBT, 2019).
A inclinação sexual não pode ser fator de exclusão do indivíduo, nem tampouco retirar-lhe a garantia de viver com dignidade. Maria Berenice Dias falou sobre o tema:
Faz-se necessário ter uma visão pluralista da família, abrigando os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar a identificação do elemento que permita enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade, independentemente de sua conformação. O desafio dos dias de hoje é achar o toque identificador das estruturas interpessoais que permita nominá-las como família. Esse referencial só pode ser identificado na afetividade (Manual de Direito das Famílias. 4ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 41).
Importante também a lição do doutrinador Sérgio Gischkow Pereira:
Uma família que experimente a convivência do afeto, da liberdade, da veracidade, da responsabilidade mútua, haverá de gerar um grupo familiar não fechado egoisticamente em si mesmo, mas sim voltado para as angústias e problemas de toda a coletividade, passo relevante à correção das injustiças sociais. A renovação saudável dos vínculos familiares, estruturados na afeição concreta e na comunicação não opressiva, produzirá número muito menor de situações psicopatológicas, originadas de ligações inadequadas, quer pela dominação preponderante, quer pela permissividade irresponsável. (Tendências modernas do direito de família. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 648, fev, 1988, p. 19).
O homossexual não é cidadão de segunda categoria. A orientação ou condição sexual não diminui direitos e, muito menos, a dignidade da pessoa humana. As uniões homoafetivas, não se pode negar, fazem parte da realidade social e, por isso, devem receber a mesma proteção garantida às uniões heteroafetivas. É por isso que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento paradigmático da Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI 4277 e na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 132, ambas de relatoria do Ministro Ayres Britto, reconheceu como entidade familiar a união entre pessoas do mesmo sexo, além de haver proclamado que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis heteroafetivas estendem-se aos companheiros nas uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo.
O reconhecimento da união homoafetiva pelo STF veio para reforçar os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais da admissibilidade da união homoafetiva com entidade familiar e sua conversão em casamento, tendo como base as várias decisões favoráveis advindas do judiciário brasileiro nos últimos tempos, porém a legalização é o próximo avanço jurídico importante para extrair essas pessoas da marginalização imposta pelo costume tradicionalista que defende a diversidade de sexo para constituição da família e, consequentemente, para a realização do casamento.
Em decorrência da decisão do STF, pode-se dizer que é admissível a conversão da união estável em casamento, observados os requisitos legais, com base no artigo 1726, que dispõe: “A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil.” Tanto é admissível o casamento homoafetivo que em 10 de outubro de 2012, foi publicado no Diário Oficial da Justiça o Provimento Conjunto Nº CGJ/CCI 12/2012, que permite aos cartórios de registro civil de pessoas naturais do Estado da Bahia receberem habilitação para o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ficando, portanto, os órgãos obrigados a acolher a solicitação. Essa autorização reforçou o que diversos juízes do Estado da Bahia já vinham fazendo com base na supracitada decisão do STF.
No Brasil o procedimento a se realizar é o mesmo dos casais héteros: levar a documentação necessária e se casar com juiz de paz. No caso de pessoas que já vivem com o parceiro(a), podem ir ao cartório e transformar a união estável em casamento. Caso haja recusa do cartório em realizar o casamento, o casal pode e deve entrar com recurso ao juiz da comarca ou no Conselho Nacional de Justiça (que criou a Resolução 175), com a alegação de violação da resolução nº 175 e violação dos direitos humanos. Vale recordar também que o casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma questão com base nos Direitos Humanos Universais, e que está amparada pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, que reconhece que o casamento é um direito que assiste a todas as pessoas, independentemente da sua orientação sexual (NASCIMENTO, 2020).
Apesar do avanço, o casamento homoafetivo no Brasil ainda não é lei. Em 2017 o CCJ aprovou no Senado um projeto de lei que passa a reconhecer o casamento homoafetivo no código civil brasileiro, substitutivo do senador Roberto Requião (MDB-PR) ao projeto que permite o reconhecimento legal da união estável entre pessoas do mesmo sexo (PLS 612/2011), de autoria da senadora Marta Suplicy (MDB-SP). A matéria, terminativa na comissão, poderia seguir para a Câmara dos Deputados. Porém, Magno Malta apresentou recurso para manter o instituto do casamento, no Código Civil, apenas como ato entre um homem e uma mulher. Desse modo, a proposta ainda não foi a plenário para votação.
A garantia do casamento homoafetivo no Brasil pela justiça sem a proteção de um projeto de lei abre brecha para proibições e decretos que possam ser efetivadas pelo presidente e sobrepor às decisões do STF, por isso a importância da aprovação do projeto de lei que protegerá os casais homoafetivos, uma pauta importante da comunidade LGBT. Vale frisar, que não existe nenhum tipo de vedação no ordenamento jurídico brasileiro sobre o casamento homoafetivo, inclusive a Carta Magna brasileira veda qualquer tipo de preconceito e/ou discriminação; contudo, percebe-se que o ordenamento jurídico brasileiro precisa passar por uma atualização normativa. Primeiro, em sede constitucional, a fim de garantir expressamente proteção às entidades familiares compostas por pessoas do mesmo sexo. Em segundo momento, faz-se necessário alterar o art. 1.723, do Código Civil, com o mesmo objetivo.
5. CONCLUSÃO
É, pois, patente que o Estado e os órgãos públicos em geral estão vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana imputando-lhes o Direito (ou, num registo mais positivista, a ordem jurídica como um todo) um dever de respeito e proteção das pessoas reconhecível quer na proibição de o Estado se intrometer, para além de um certo limite, na vida privada das pessoas, quer na obrigação do Estado de proteger essa mesma esfera privada contra agressões por parte de terceiros, sejam eles quem forem e vierem de onde vierem.
Quanto à proibição do retrocesso, refere-se à ideia de que a evolução para um novo patamar de proteção dos direitos fundamentais da pessoa não pode ser revogada posteriormente pela eliminação das normas jurídicas que as estabeleciam, podendo os cidadãos, nessa altura, por via judicial impedir essa revogação sempre que não haja a precaução normativa do desenvolvimento de uma política pública equivalente, tanto do ponto de vista quantitativo, quanto qualitativo.
De acordo com Canotilho (2011), deve-se considerar inconstitucional qualquer medida governamental ou de qualquer outro poder público que, sem contemplar a criação de alternativas ou, de alguma forma, sem compensar a perda do núcleo essencial de direitos sociais constitucionalmente garantidos e legislados, se traduza, na prática, numa anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade dos poderes executivo e legislativo está, portanto, limitada ao núcleo essencial já concretizado, sendo esse o limite da sua ação.
A Carta de 1988 apregoa, a partir do seu “Preâmbulo” e com continuidade no exposto nos demais títulos e capítulos que a compõem, mensagens imperativas contendo propósitos de homenagem à instituição de um Estado democrático, com finalidade primordial voltada para a proteção dos direitos sociais e individuais, tendo como centro maior a valorização da liberdade, da segurança, do bem-estar, do desenvolvimento, da igualdade, da justiça, tudo endereçado a que seja alcançado um estágio representativo de absoluta eficácia e efetividade da dignidade humana. (FAHD AWAD, 2012)
A pretensão é de ser construída uma democracia para o tempo presente e futuro com preceitos que, ao serem aplicados, abram espaços para a execução de medidas concretas, que resultem em oferecer ao cidadão qualquer que seja a escala a que ele pertença na grade social, segurança pública e jurídica, assistência à saúde, atendimento escolar, moralidade, liberdade, amplo emprego, respeito aos seus direitos fundamentais e outros valores que estão inseridos no contexto representativo da dignidade humana.
O mundo deu muitas voltas. Caíram barreiras, referências, mitos e muros. A história não coube em teorias. As teorias negaram suas promessas. O capitalismo continuou produzindo miséria, mas o socialismo avançou sem conseguir eliminá-la. Depois de 100 anos de socialismo e capitalismo, a miséria no mundo aumentou, e a economia transformou-se num código de brancos e numa fábrica de exclusão racionalizada. A modernidade produziu um mundo menor do que a humanidade. Sobram bilhões de pessoas. Não se previu espaço para elas nos vários projetos internacionais e nacionais. No Brasil, essa exclusão tem raízes seculares. De um lado, senhores, proprietários, doutores. Do outro, índios, escravos, trabalhadores, pobres, homossexuais etc.
Toda forma de preconceito é indigna e a sua manifestação é antijurídica. Lesa-se por ela o princípio enfatizado neste estudo. A exclusão social é fator de indignidade e de indignação que põe o homem à margem de sua própria sociedade, carente de seu respeito próprio e de sua honorabilidade social, porque se põe como alguém que não é útil e, note-se aqui, no sentido utilitário, de não dar lucro, de não ser fonte de utilidade segundo os paradigmas de uma economia que rejeita o homem. Contra todas as formas de desumano tratamento, em detrimento do princípio da dignidade da pessoa humana, pela inclusão no direito e pelo direito de todos os homens, é que as próximas décadas que se aproximam apontam para o humanismo ético voltado à realização do ser humano integral, aquele que integra o homem ao todo e propõe a crença no homem, certo de que o homem se supera sempre e em todos os sentidos.
A atual sociedade brasileira é considerada uma das mais homofóbicas, sendo assim o casamento homoafetivo não representará apenas a conquista da igualdade jurídica e social por gays e lésbicas, mas sim será um instrumento normativo que irá regular as relações amorosas homoafetivas, garantindo assim todos os direitos decorrentes do matrimônio. “A dignidade da pessoa humana põe-se na lágrima vertida sem pressa, sem prece e, principalmente, sem busca de troca. [...] a dignidade não provoca, não intimida, não se amedronta. Tem ela a calma da Justiça e o destemor da verdade [...]” (ROCHA, 2004, p. 27). O direito não deve ser apenas um mero instrumento de estabilização, mas sim um meio de transformar a sociedade em um meio menos preconceituoso com a edição de novas leis.
A sexualidade individual (inerente a cada pessoa e oriunda de diversos fatores, como o genético, psicológico, sócio cultural, pois não há consenso na ciência) não pode ser também motivo que erga segregações jurídicas entre seres humanos, uma vez entendidos sob uma ótica igualitária. A dignidade da pessoa humana é a prova de que o homem é um ser de razão compelido ao outro pelo sentimento, e entender que o casamento não é uma dádiva divinal e nem destinado somente a uniões entre homens e mulheres; é um direito dos homossexuais o reconhecimento do casamento deles frente ao ordenamento jurídico brasileiro. O preconceito não pode ser usado como um argumento jurídico para coibir tal tipo de relacionamento, já que a prática dele é vedada por lei.
Apenas o fato, da lei dizer o “homem e a mulher” não constitui razão lógica para a discriminação e não reconhecimento pela lei das uniões homoafetivas, pois, é trabalho dos operadores do direito interpretar a lei de forma extensiva, permitindo o total desenvolvimento da dignidade da pessoa humana em escolher sua própria opção sexual, por exemplo. Da mesma forma que não constitui indignidade o fato de se optar em construir uma família com alguém do mesmo sexo que o seu, tampouco, inconstitucionalidade, pois, a lei em momento algum proibiu expressamente a união entre pessoas do mesmo.
6. REFERÊNCIAS
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Graduado em Direito pelo ILES/ULBRA Itumbiara-GO. Ex-estagiário concursado pelo Ministério Público do Estado de Goiás entre 03/2019 e 12/2020. Aprovado no IV Processo Seletivo de estudantes para estágio na área de Direito - Justiça Federal em Goiás/Subseção Judiciária de Itumbiara, no ano de 2019. Aprovado no processo de seleção pública de estagiários do Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região-Itumbiara/Goiás, no ano de 2019. Aprovado no VII Concurso Público – TRF 1ª Região, no ano de 2017, para provimento de cargos e formação de cadastro de reserva para o cargo de técnico judiciário-área administrativa do quadro de pessoal da Justiça Federal de 1º e 2º graus. Premiado com Certificado de Reconhecimento ao Mérito em 2020, pelo Comitê Científico do XXI Simpósio de Pesquisa, tecnologia e Inovação realizado pelo ILES/ULBRA. E-MAIL: [email protected]. ORCID ID: https://orcid.org/0000-0001-8054-761X. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/5389487250090217
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Márcio Barsanulfo da. A dignidade da pessoa humana nos relacionamentos homoafetivos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 jun 2021, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56757/a-dignidade-da-pessoa-humana-nos-relacionamentos-homoafetivos. Acesso em: 23 dez 2024.
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