ANDRÉ DE PAULA VIANA
(orientador)
RESUMO: O presente trabalho tem por finalidade discorrer sobre a judicialização da saúde, consistente no acionamento do Judiciário para a resolução de questões envolvendo a tutela da saúde, especialmente no que se refere ao fornecimento de medicamentos. O Brasil reconhece o acesso a medicamentos como parte do direito à saúde e adota políticas públicas para propiciar sua garantia, porém estas são insuficientes. Dentro desse contexto, surge o conflito entre o Mínimo Existencial, visto como os indivíduos em busca da concretização de direitos fundamentais à sobrevivência, como o direito à vida e à dignidade da pessoa humana e também o direito à saúde, e de outro lado a Reserva do Possível, tendo em vista que os recursos à disposição do Estado são limitados. A fim de viabilizar a tutela à saúde, a solução recai sobre o magistrado, que ao analisar o caso concreto, diante da omissão estatal, deve fazer prevalecer a proteção do núcleo essencial do direito fundamental à saúde, não sendo cabível o argumento estatal de insuficiência de recursos dos cofres públicos, uma vez que o mínimo existencial é incompatível com qualquer limitação. Diante dessa problemática, ao Judiciário cabe a utilização de critérios para que seja adotada a melhor solução de forma a harmonizar o Mínimo Existencial e a Reserva do Possível, como o uso da regra da proporcionalidade.
Palavras-chave: Judicialização da saúde. Mínimo Existencial. Reserva do Possível.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1. DIREITO À SAÚDE; 2. MÍNIMO EXISTENCIAL; 3. TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL; 4. JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE; 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
INTRODUÇÃO
Este trabalho dedica-se à análise da judicialização da saúde, especificamente na questão do fornecimento de medicamentos, podendo este fenômeno ser entendido como à busca do Judiciário como a última alternativa para alcançar demandas de assistência em saúde.
Sob a perspectiva do neoconstitucionalismo, a Constituição Federal de 1988 possibilitou uma completa transformação social, política e jurídica, em que se busca a eficácia da Constituição, servindo como ferramenta para a implementação de um Estado Democrático de Direito.
Por conseguinte, a CF/88, ao preconizar a saúde como direito social, estabelece o compromisso de garantir esse direito por meio das políticas públicas sociais e econômicas. Nesse contexto, o Estado fica incumbido, através de prestações materiais positivas, de garantir o Mínimo Existencial aos indivíduos, ou seja as condições mínimas de existência humana digna.
Apesar do texto constitucional ter consagrado o acesso universal à saúde, é notória atualmente a intensificação desse impasse suportado pela população, em especial no que se refere aos medicamentos necessários à assistência integral à saúde. Dessa forma, a sociedade cada vez mais lança mão das demandas judiciais, acionando o Poder Judiciário, visando a reivindicação de um direito que não está sendo disponibilizado.
Em verdade, o excesso de judicialização da saúde tem afetado a concretização de políticas públicas, visto que, à luz da Teoria da Reserva do Possível, o Estado se vê limitado quanto à recursos suficientes para a concretização dos direitos sociais, e também restrito no sentido da razoabilidade da pretensão deduzida.
A importância do presente trabalho fundamenta-se pelo fato de que, em demandas prestacionais relacionadas à medicamentos, as decisões judiciais são favoráveis a poucas pessoas, e por mais significativos que sejam seus problemas, embaraçam o orçamento total reservado a milhões de pessoas que necessitam do Sistema Único de Saúde (SUS).
A metodologia utilizada neste artigo foi fundamentada em pesquisa bibliográfica, mormente na análise jurisprudencial. Além disso, este trabalho alicerçou-se em textos de doutrina especializada, em especial, livros e artigos científicos, e textos normativos legais e constitucionais.
De início, o trabalho preocupa-se em discorrer sobre o direito à saúde, como uma norma-regra garantida por meio da supremacia da Constituição dentre os demais direitos sociais.
Posteriormente, no segundo capítulo, depreende-se a magnitude do Mínimo Existencial, porquanto relacionado diretamente à dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, assentado no art. artigo 1º, III, da CF/88. Também é dado enfoque às políticas públicas, apresentadas como ações governamentais na tentativa de efetivação e implementação do direito fundamental à saúde.
No terceiro capítulo, a pesquisa é feita relativamente a Teoria da Reserva do Possível, tendo em vista que, não obstante as prestações do Poder Público possuírem o condão de diminuir as desigualdades sociais, dependem de uma situação econômica que possibilite a sua efetivação.
Ao final, a pesquisa explica o fenômeno da Judicialização da saúde, suas implicações a sua relevância na tutela do direito à saúde, tendo em vista que este se depara, de um lado, com o Mínimo Existencial, e de outro, com a Reserva do Possível, por meio pela disponibilidade de recursos existentes, e até mesmo pela própria estrutura organizacional da Administração Pública.
1. DIREITO À SAÚDE
O art. 6° da Constituição da República de 1988 elenca, dentre os direitos sociais, a saúde. Trata-se de direito de todos e dever do Estado, assegurada mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação (art. 196, CF/88).
Conforme preconizado na Constituição Federal de 1988, especificamente no art. 197, as ações e serviços de saúde são institutos de grande relevância pública, cabendo ao Poder Púbico dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Os direitos sociais, nestes incluso o direito à saúde, são direitos de segunda dimensão, ou seja, apresentam-se como prestações positivas a serem implementadas pelo Estado (Social de Direito) e tendem a concretizar a perspectiva de uma isonomia substancial e social na busca de melhores e adequadas condições de vida.
Relevante lição acerca dos direitos de segunda dimensão:
Caracterizam-se por outorgar ao indivíduo Direito a prestações sociais por parte do Estado revelando importante mudança no que diz com eficácia das liberdades constitucionais, que agora deixam o plano formal abstrato e passam para o material concreto. Os Direitos de segunda geração abrangem os Direitos à Assistência Social, à Educação, à Saúde, à Segurança, ao Trabalho dentre outros. Além desses Direitos de cunho positivo, também são contempladas as denominadas ‘liberdades sociais’, de que são exemplos as liberdades de sindicalização e o Direito de Greve (SARLET, 2002, p. 48).
José Afonso da Silva (2012, p.183) afirma que “os direitos sociais disciplinam situações subjetivas pessoais ou grupais de caráter concreto”. Por possuir caráter de direito fundamental, o direito à saúde tem aplicação imediata.
Tal como direito social, a doutrina nacional entende que possui duas vertentes, a primeira de natureza negativa, em que o Estado ou o particular devem abster-se de praticar os atos que prejudiquem terceiros, e a outra vertente se traduz no fomento ao Estado prestacionista para implementar o direito social em questão.
No Brasil, a Lei Federal 8.080/1990 estabeleceu em toda extensão do território nacional as ações e serviços de saúde, preconiza que a saúde é um direito fundamental do ser humano e devendo ao Estado, prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. Instituiu assim, o Sistema único de Saúde (SUS), incluindo no campo de atuação a assistência farmacêutica do usuário.
O acesso universal e igualitário aos serviços de saúde está exposto na legislação pátria como política pública fundamental, porém por vezes há ineficiência ou ausência de políticas públicas que atendam às demandas do setor. Sendo assim, faz-se necessário a implementação de políticas públicas eficientes, com adoção de metas e planos para efetivar o bem-estar da população.
2. MÍNIMO EXISTENCIAL
É possível definir Mínimo Existencial como as “condições materiais essenciais e elementares cuja presença é pressuposto da dignidade para qualquer pessoa. Se alguém viver abaixo daquele patamar, o mandamento constitucional estará sendo desrespeitado” (BARROSO, 2015, p. 214).
TORRES (2009) esclarece que tal instituto fundamenta-se na abstração de liberdade, nos princípios constitucionais da igualdade, do devido processo legal, da livre iniciativa e da dignidade do homem, inclusive na Declaração dos Direitos dos Humanos e nas imunidades e privilégios do cidadão, não possuindo dicção constitucional própria, consoante art. 25 da Declaração de 1948:
Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários [...] (ONU, 1948).
É notório o fato de que carências humanas são imensuráveis e os recursos financeiros para atendê-las são deficientes e escassos.
Dentro dos parâmetros consubstanciados pelo Mínimo Existencial, nem a questão financeira, nem tampouco a orçamentária devem ser óbices intransponíveis ao efetivo cumprimento dos deveres constitucionais, em especial aqueles referentes à igualdade de condições.
É através do núcleo intangível dos direitos fundamentais, qual seja, o princípio da dignidade da pessoa humana, que se busca a concretização do mínimo existencial. À vista disso, o mínimo existencial também é Direito Fundamental, submetido aos preceitos constitucionais, sendo irrelevante a existência de lei para sua obtenção.
Sobre a dignidade da pessoa humana, mister se faz asseverar:
É a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável (SARLET, 2002, p. 60).
Logo, o princípio da dignidade da pessoa humana está diretamente ligado ao mínimo existencial. Além da conexão com a dignidade humana, há no Mínimo Existencial uma conexão com o próprio Estado Democrático de Direito, na responsabilidade que este deve ter pela efetivação do conceito de justiça social (HÄBERLE, 2003).
Diante da interpretação social dos direitos fundamentais, há um horizonte de desemprenho progressivo, que indica não apenas a ideia de mínimo de bem estar social, mas de máximo. Apesar disso, “trata-se de um máximo possível, à luz das riquezas do país em questão e do comprometimento do governo/sociedade em realizá-lo” (CLÈVE, 2006, p. 239-252).
Todos, indistintamente, fazem jus à esse direito:
Sem o mínimo necessário a existência cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais da liberdade. A dignidade e as condições materiais da existência não podem retroceder aquém de um mínimo do qual nem os prisioneiros, os doentes mentais e os indigentes podem ser privados (TORRES, 2009, p. 35).
À vista disso, surge a ideia de garantir a todo indivíduo uma “segurança básica, por meio da tutela de sua integridade física e psíquica em todas as suas dimensões, oferecendo-lhe assistência social”, e com isso, possibilitando que cada ser humano possa viver sua vida de forma digna, autodeterminada e livre (GOSEPATH, 2013, p. 79-80).
Em verdade, como já asseverado, a saúde, bem como outros direitos sociais, necessitam de ações positivas do Estado, visto que se apresentam em constante crescimento de demanda. Para a efetivação do direito à saúde, é essencial que haja previsão orçamentária e disponibilidade financeira para consumação de políticas públicas.
A título de esclarecimento, políticas públicas são “providências para que os direitos se realizem, para que as satisfações sejam atendidas, para que as determinações constitucionais e legais saiam do papel e se transformem em utilidades aos governados” (OLIVEIRA, 2006, p; 251).
Em relação à realização das políticas públicas, primeiramente é atribuído ao Poder Legislativo a criação das leis, balizando as ações e as metas a serem alcançadas, também aprovando o orçamento disponível para cada esfera de governo. Em seguida, após possuir aparato legislativo, é função do Poder Executivo complementar as ações definidas em lei, procurando instrumentos para a concretização das políticas públicas, dentre eles o orçamento público.
Não há como refutar que a efetivação dos direitos sociais acarretam um custo para Estado. Mas isto não significa que este pode se escusar do dever de possibilitar ao cidadão ter acesso a saúde.
Não obstante todo respaldo jurídico, ainda é manifesto o desrespeito à concretização do direito à saúde. De fato, é necessário que haja uma solidariedade e colaboração entre todos os entes e todos os poderes para que realmente se implemente essas políticas públicas.
No que se refere ao direito de fornecimento de medicamentos, é entendimento consolidado da corte suprema nacional:
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que, apesar do caráter meramente pragmático atribuído ao art. 196 da CF, o Estado não pode se eximir do dever de propiciar os meios necessários ao gozo do direito à saúde dos cidadãos. O fornecimento gratuito de tratamentos e medicamentos necessários a saúde de pessoas hipossuficientes é obrigação solidária de todos os entes federativos, podendo ser pleiteado de qualquer deles, União, Estados, DF e Municípios (Tema 793). (STF – ARE 1268310 SP 1000938-55.2019.8.26.0246, Relator ROSA WEBER, Data de Julgamento 16/06/2020, Data de Publicação 24/06/2020).
A limitação financeira do Estado é uma obstrução instransponível que impede a concretização das normas programáticas elencadas na Constituição.
Dessa forma, partindo do pressuposto de que as demandas sociais são infinitas e os recursos finitos, se não houver planejamento e comprometimento dos gestores públicos, não será alcançado solução que garanta o mínimo existencial aos cidadãos.
Esclarece o Ministro Celso de Mello no informativo 582, do STF:
A omissão do Estado qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição (RTJ 185/794-796, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno).
Em um Estado Democrático de Direito, veda-se a relativização do mínimo existencial. À luz do princípio da eficiência e proibição do retrocesso social, os recursos são de todos e devem ser distribuídos de maneira a garantir uma equidade na realização dos objetivos estabelecidos constitucionalmente (BATISTA JUNIOR, 2012).
3. TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL
Relaciona-se com a menor quantidade de recursos do que com as demandas, ou seja, a falta de recurso econômico que inviabiliza a efetivação de determinada coisa. Simboliza justamente as restrições orçamentárias do Estado que prejudicam ou impedem a aplicação dos direitos sociais:
O conceito de “reserva do possível” também é proveniente do direito alemão, impondo que direitos subjetivos a prestações materiais pelo Estado estão sujeitos à disponibilidade dos seus recursos. Daí a tendência de negar ao Poder Judiciário a análise de direitos fundamentais sociais, uma vez que a efetivação de tais direitos depende sempre da disponibilidade orçamentária (REISSINGER, 2008, p. 62).
Conforme o parâmetro da Reserva do Possível, os direitos sociais, bem como todos os outros direitos fundamentais, não podem ser entendidos como se tivessem conteúdo absoluto e aplicável a todos os casos de um modo definitivo, mas devem ser delimitados pela colisão de interesses verificados no caso concreto (ALEXY, 2001).
Deveras, na realidade trata-se de excepcional escudo estatal contra a efetividade dos direitos fundamentais à prestação positiva, pois nada poderia ser feito, “ainda que houvesse vontade política, face à escassez de recursos” (OLSEN, 2006, p. 222).
“Nem a Reserva do Possível, nem a reserva de competência orçamentária do legislador podem ser invocados como óbices, no direito brasileiro, ao reconhecimento e à efetivação de direitos sociais originários a prestações” (CUNHA JUNIOR, 2011, p. 540). Caso contrário, a Reserva do Possível representaria um limitador à efetividade dos direitos fundamentais e sociais.
No que tange ao direito à saúde, não é legitima a invocação da reserva do financeiramente possível para explicar desnecessária mora relativamente à implementação de políticas públicas constitucionalmente definidas.
À vista disso, o Estado não pode eximir-se da efetivação de suas obrigações constitucionais, conforme entendimento do STJ no julgado a seguir:
2. Não podem os direitos sociais ficar condicionados à boa vontade do Administrador, sendo de suma importância que o Judiciário atue como órgão controlador da atividade administrativa.
3. Tratando-se de direito essencial, incluso no conceito de mínimo existencial, inexistirá empecilho jurídico para que o Judiciário estabeleça a inclusão de determinada política pública nos planos orçamentários do ente público, mormente quando não houver comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal (STJ – AgRg no REsp: 1136549 RS 2009/0076691-2, Relator: Ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Julgamento: 08/06/2010, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação DJe 21/06/2010).
De acordo com o Supremo Tribunal Federal, não deve ser acolhida a alegação genérica e abstrata da Reserva do Possível como matéria de defesa, quando o ente público não produz provas que demonstrem especificamente a inexistência de recursos para concretizar a política pública de prestação adequada.
É entendimento do STJ que a consumação dos Direitos Fundamentais não é eleição do governante, não pode ser vista como questão que depende unicamente de vontade política. Os direitos que estão intimamente ligados à dignidade humana não podem ser limitados em razão da escassez quando esta é fruto das escolhas do administrador (REsp 1185474/SC, Rel. Ministro Humberto Martins, 2ª Turma, julgado em 20/04/2010, DJE 29/04/2010).
Em suma, a Reserva do Possível não pode ser arguida diante da concretização do Mínimo Existencial, em face da preponderância dos valores e direitos que nele encontram seu fundamento legitimador.
As prestações do Estado a atender os direitos sociais devem estar afinadas com a capacidade orçamentária do mesmo, ou seja, com os recursos de que dispõe para as prestações positivas a fim de promover o bem estar social, tudo dentro de uma proporcional discricionariedade da Administração Pública. Caso não alcançado o bem estar social, faz-se necessário que o Judiciário desempenhe papel de órgão controlador da atividade administrativa.
4. JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE
Notório é o fato que não se compreende, ordinariamente, nas atribuições institucionais do Poder Judiciário, a aptidão de concretizar p políticas públicas. Esse encargo, entretanto, é outorgado ao Poder Judiciário, no momento em que o Legislativo e Executivo, por violarem os deveres político-jurídicos que sobre eles recaem, acabarem por prejudicar, com tal conduta, “a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático” (STF, ADPF 45, DJU 04.05.2004, Relator Min. Relator Celso de Mello, julgada em 29.04.2004).
A judicialização possui motivos múltiplos. Ocorre que, com a redemocratização do Brasil, o sentimento de cidadania engrandeceu-se, proporcionando elevado nível de informação e de consciência de direitos de diversas parcelas da população, que perseguiram a tutela de seus interesses perante juízes e tribunais (BARROSO, 2009).
A título de esclarecimento, frisa-se:
A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. Em todos os casos referidos acima, o Judiciário decidiu porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa. Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. (BARROSO, 2009, p. 389).
Trata-se de entendimento consolidado do STF que é possível, em casos emergenciais, a execução de políticas públicas pelo Poder Judiciário, em consequência da inação ou morosidade da Administração, de forma a garantir os direitos fundamentais. Não se trata de ingerência na competência do Poder Executivo quanto à conveniência e oportunidade para efetivação de políticas públicas e a consequente alocação de recursos para tal fim, mas de endossar a defesa do direito fundamental à saúde (STF – ARE: 1244106 SE – SERGIPE 0001359-63.2015.8.25.0009, Relator Min ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento 25/11/2019, Data de Publicação DJe-261 29/11/2019).
Nessa ótica, o STF entende que apesar de possuir, primariamente, os Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de elaborar e concretizar políticas públicas , trata-se possível, contudo, ao Poder Judiciário determinar, mesmo que à título de exceção, notadamente nos casos de políticas públicas estipuladas pela própria CF/88, sejam essas fixadas pelos órgãos estatais inertes, cuja omissão – por importarem em descumprimento dos encargos políticos-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se suficiente a afetar a validade e a integridade de direitos sociais embutido de estatura constitucional (RE 595595AgR/SC – Rel. Min. Eros Grau).
Nota-se que não configura violação ao princípio da separação dos poderes a determinação de implementação de políticas públicas em defesa de direitos fundamentais. Isso porque certos direitos sociais básicos podem ser concebidos como pressupostos da democracia. Quando isso ocorre, depara-se com a impossibilidade de recorrer-se ao mandamento democrático para resguardar a incapacidade de decisões judiciais que concedam prestações não contempladas no orçamento.
Ressalta-se que o funcionamento do SUS é de responsabilidade solidária da União, Estados-membros e Municípios, tendo em vista que qualquer desses entes possuem legitimidade para figurar no polo passivo da lide que busca a garantia do acesso à medicação para pessoas desprovidas de recursos financeiros.
Destaca-se que a jurisprudência do STJ admite o bloqueio de verbas públicas e a fixação de multa diária para o descumprimento de determinação judicial, especialmente nas hipóteses de fornecimento de medicamentos ou tratamento de saúde (STJ, AgRg no RMS 43.068/GO, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 07/03/2014).
A Administração Pública, diante da escassez de recursos, se responsabiliza pela efetivação e manutenção dos direitos fundamentais, considerando-se os custos que esses direitos representam para toda a coletividade. Nesse contexto, o Estado é forçado a fazer escolhas em que proverá determinada política em detrimento de outra:
Quando prevalece a vontade do Estado, o conflito de primazia entre a comunidade e o indivíduo não se resolve completamente. O Estado precisa fazer uma série de escolhas quanto aos fins em prol dos quais exercerá sua vontade, escolhas que renovam o mesmo conflito. Assim, por exemplo, o conflito entre a comunidade e o indivíduo muitas vezes ressurge como um conflito entre a política de eficiência social e a política de justiça para os indivíduos envolvidos numa transação (VANDEVELDE, 2004, p 194)
Perante incalculáveis demandas e finitos recursos, a doutrina denomina como “teoria das escolhas trágicas” o ato da Administração Pública concretizar um direito fundamental em detrimento de outro, visto que deixará de contemplar alguma necessidade também premente, mas que foi considerada por quem de direito menos urgente que outra. Trata-se da escolha dos destinatários de políticas públicas, que alcançarão apenas uma parcela ou grupo e não a todos os titulares daquele direito. Nesse sentido:
A escassez obriga o Estado em muitos casos a confrontar-se com verdadeiras ‘escolhas trágicas’, pois, diante da limitação de recursos, vê-se forçado a eleger prioridades dentre várias demandas igualmente legítimas (SARMENTO, 2009, p. 371).
“Não há que se falar em justiça quando apenas uma pessoa ou algumas pessoas conseguem determinada tutela judicial, ainda que esse seja um direito fundamental constitucionalmente previsto” (AMARAL, 2001, p. 208). Nessa linha de raciocínio:
Ao mesmo tempo em que tais prestações são concedidas a autores isolados de ações judiciais, centenas de pessoas morrem sem atendimento adequado na rede pública de saúde por falta de prestações que, por certo, estariam compreendidas no conceito de mínimo existencial. Talvez a omissão na oferta de tais prestações seja imputável a outras razões – que podem ir desde prioridades inconstitucionais na alocação de recursos, má gestão e até a pratica de crimes [...] (BARCELLOS, 2008, p. 343).
O controle feito pelo Judiciário de políticas públicas com base em direito individual subjetivo ocasiona inúmeras consequências, pois confere a concretização de um direito ao indivíduo que buscou tutela do Judiciário, sendo que deveria ser concretizado a todos os indivíduos na mesma situação. Dessa maneira, verifica-se uma distribuição pouco democrática de bens e serviços públicos, que se sujeita à judicialização para obtenção de uma decisão favorável.
A Carga Magna proíbe o início de programas ou projetos não compreendidos na lei orçamentária anual (art. 167, inc. I), a realização de despesas que ultrapassem os créditos orçamentários (art. 167, inc. II), bem como a transposição, o remanejamento ou a transferência de recursos de uma categoria de programação para outra ou de um órgão para outro, sem prévia autorização por meio de lei (art. 167, inc. VI).
Frisa-se que a incumbência de instaurar políticas públicas e proporcionar recursos orçamentários não é, em regra, dada pelo Poder Judiciário, que não possui legitimidade e estrutura adequada para estas atividades.
A falta de recursos deve ser dirimida pelo Poder Judiciário, que se baseará no postulado da proporcionalidade para estabelecer critérios na resolução do conflito existente entre os princípios que norteiam a reserva do possível e a efetivação dos direitos sociais. Destaca-se o posicionamento do STF a esse respeito:
(...) entre tutelar a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição Federal, ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo - uma vez configurado esse dilema - que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humana (STF – ARE: 1246256 PE – PERNAMBUCO 0002104-15.2015.8.17.0640, Relator Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento 29/11/2019, DJe-264 04/12/2019).
Os direitos sociais devem ser realizados coletivamente, a fim de que haja acesso igualitário e universal dos indivíduos aos benefícios oferecidos pelas políticas públicas.
Em função da Reserva do Possível, o magistrado não pode ficar indiferente em relação à viabilidade material de sua decisão, mormente quando o objeto é a saúde humana. Faz-se necessário indagar até que ponto sua decisão será suscetível de cumprimento sem colocar em risco o equilíbrio financeiro do Sistema Único de Saúde, especialmente em momentos de crises econômicas.
A propósito, é possível o Judiciário conceder o fornecimento de medicamento que não consta na lista padronizada elaborada pelo SUS, contanto que reste certificado que não haja nela alternativa de tratamento competente para a patologia, consoante entendimento do STF.
A falta ou deficiência dos serviços de saúde prestados pelo Estado – introduzido nessa prestação o fornecimento de medicamentos, inquestionavelmente ameaça o direito à vida e, em muitos casos, é capaz de acarretar lesão irreparável a esse direito.
Existem vários mecanismos de caráter processual que podem ser propostos pelo indivíduo que pleiteia a assistência farmacêutica perante o Poder Judiciário, tais como ação civil pública (Lei n. 7347/85); mandado de segurança e ações condenatórias de obrigação de fazer ou de obrigação de dar.
Nota-se que o Judiciário está cada vez mais receptivo a chamar para si a responsabilidade, ainda que subsidiária, de concretizar a vontade constitucional, haja vista que deve definir que seja assegurado o mínimo existencial, também observando os aspectos de ordem orçamentaria e política. Isso porque “as decisões judicias ao não observarem as regras orçamentárias colocam em risco todo o planejamento já definido para a realização das políticas de saúde, e inviabilizam a realização destas” (MAZZA, 2013, p. 136). Logo, é necessário encontrar critérios e fundamentos para controlar, de forma justa e eficiente, a judicialização da saúde no Brasil.
O Ministro do STF Edson Fachin firmou posicionamento de que em casos excepcionais, o Estado deve fornecer medicamento de alto custo, levando-se em conta alguns critérios, como a prévia existência de requerimento administrativo, o qual pode ser substituído por oitiva de ofício do agente público; que o fármaco seja receitado por médico da rede pública; a indicação do medicamento por denominação comum, brasileira ou estrangeira; motivo de inexistência ou ineficácia de medicamento ou tratamento na rede pública; laudo, formulário ou documento prescrito pelo médico que acompanha o paciente onde indique a necessidade do tratamento, seus efeitos e os estudos da medicina baseados em evidência, bem como os benefícios para o paciente, comparando, se houver, com eventuais fármacos ou tratamentos fornecidos pelo SUS para a mesma moléstia (RE 657.718 – STF).
A falta de regulamentação própria que normalize a problemática da distribuição estatal de medicamentos de alto custo não constitui óbice ao exercício do direito fundamental à saúde. O papel do judiciário é interpretar extensivamente os direitos fundamentais previamente previstos no plano constituinte, assegurando a dignidade humana dos cidadãos. O juiz, em qualquer instância do Judiciário, tem que resolver e julgar a questão a ele submetida, interpretando-a sob a ótica do princípio da supremacia da constituição, adotando critérios que balizem sua decisão e se baseando em princípios como a proporcionalidade.
Argumentos econômicos, orçamentários e metajurídicos não podem ser utilizados como referenciais para o Judiciário justificar a não implementação e concretude do direito fundamental à saúde, considerando-se que se trata de direito corolário dos demais direitos fundamentais previstos no plano constituinte.
Em suma, a desconformidade do Poder Público na concretização do direito à saúde ocasiona violação desse direito, que como direito fundamental, possui zelo constitucional de efetividade. O Estado, em qualquer uma de suas esferas organizacionais, não pode se desviar de sua função, nem pode se desatentar ao problema da saúde da população.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os direitos sociais são reservas substanciais de garantias da condição humana, sendo o direito público subjetivo à saúde uma prerrogativa jurídica indisponível garantida a todos pela própria Carta Magna. Representa um bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve resguardar, de maneira consciente, o Poder Público, que tem a incumbência de criar e pôr em prática políticas sociais e econômicas idôneas que tenham por finalidade a garantia, pelos cidadãos, do pleno gozo desse direito.
Não se admite que o Poder Público fique indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.
Diante do aumento do número de decisões judiciais obrigando o poder público a fornecer medicamentos, nota-se a negligência estatal nas políticas públicas, em que a destinação de verbas públicas são extremamente ínfimas. Trata-se, em verdade, de incapacidade administrativa do Estado brasileiro de garantir prerrogativas consideradas como primordiais do ser humano, como o direito à vida e à saúde.
A sociedade sofre com a falta do cumprimento estatal à garantia constitucional da saúde. Quando a inércia legislativa e administrativa impede o gozo dos direitos sociais, acarreta consequentemente uma desestabilização política e descrença na nos preceitos constitucionais. Vislumbra-se uma grave ofensa política-jurídica aos direitos fundamentais, já que mesmo dotados de eficácia, não se concretizam na realidade.
Não deve o Estado eximir-se de assegurar o Mínimo Existencial necessário, isto é, o mínimo para uma vivência digna.
A Reserva do Possível não se traduz como um empecilho à efetivação dos mandamentos constitucionais na efetivação dos direitos sociais. Não obstante, a Reserva do Possível não impede o poder Judiciário de zelar pela concretização dos direitos sociais, mas deve fazê-lo com cautela e responsabilidade, consciente do problema da escassez de recursos, com base em critérios e à luz da proporcionalidade.
A realidade atesta que os direitos sociais estão distantes de uma efetiva concretização.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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bacharelando em Direito pela Universidade Brasil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CÁSSIO JOSÉ CONSTÂNCIO DE ARAÚJO, . O mínimo existencial e a reserva do possível na judicialização da saúde Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jun 2021, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56776/o-mnimo-existencial-e-a-reserva-do-possvel-na-judicializao-da-sade. Acesso em: 23 dez 2024.
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