RESUMO: A pesquisa cinge-se a examinar, não exaustivamente, a introdução do acordo de não-persecução penal, que é previsto na resolução número 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público. A problemática do artigo científico reside em analisar a constitucionalidade do referido acordo, bem como os princípios constitucionais envolvidos na questão, principalmente a eventual mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal. A pesquisa pretende evidenciar que o acordo de não-persecução penal é constitucional e que sua introdução no ordenamento jurídico veio em momento oportuno, uma vez que o sistema penal brasileiro enfrenta uma crise sem precedentes. A metodologia utilizada é descritivo-analítica, desenvolvida por meio de pesquisa bibliográfica, documental, pura, qualitativa e exploratória, através de informações e documentos sobre o tema. Destarte, conclui-se que o acordo de não-persecução penal é uma manifestação legítima de política criminal, uma vez que é voltado para crimes de médio potencial ofensivo, abrindo assim, espaço para que crimes mais graves, como por exemplo, os que envolvem violência, tenham uma maior atenção do Estado, que é o detentor da atividade jurisdicional.
PALAVRAS-CHAVE: Acordo de não-persecução penal. Constitucionalidade. Política Criminal. Resolução nº 181/2-17 CNMP. Obrigatoriedade da Ação Penal Pública.
ABSTRACT: The research is limited to examining, not exhaustively, the introduction of the non-prosecution agreement, which is provided by Resolution number 181/2017 of the National Council of the Public Ministry. The problem of the scientific article lies in analyzing the constitutionality of the agreement, as well as the constitutional principles involved in the issue, especially the possible mitigation of the principle of mandatory prosecution. The research aims to highlight that the non-prosecution agreement is constitutional and that its introduction in the legal system came at an opportune moment, since the Brazilian criminal system faces an unprecedented crisis. The methodology used is descriptive-analytical, developed through bibliographical, documentary, pure, qualitative and exploratory research, through information and documents on the subject. Thus, it is concluded that the non-prosecution agreement is a legitimate manifestation of criminal policy, since it is aimed at crimes of medium potential offensive, thus opening room for more serious crimes, such as those involving violence, have greater attention from the State, which is the holder of the jurisdictional activity.
Keywords: Non-Prosecution Agreement. Constitutionality. Criminal Policy. Mandatory Public Criminal Action.
SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO – 2. AS SEMELHANÇAS ENTRE O ACORDO FRANCÊS E O ACORDO DE NÃO-PERSECUÇÃO PENAL BRASILEIRO. 3 CONCEITO E HIPÓTESES DE CABIMENTO DO ACORDO DE NÃO-PERSECUÇÃO PENAL. 4 A CONSTITUCIONALIDADE DO ACORDO DE NÃO-PERSECUÇÃO PENAL. 5 O PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE DA AÇÃO PENAL PÚBLICA E O ACORDO DE NÃO-PERSECUÇÃO PENAL. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS. 7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
1 INTRODUÇÃO
Atualmente, o sistema penal brasileiro encontra-se em um cenário de crise, e entre as possíveis causas geradoras deste problema estão o encarceramento em massa, tratamento inadequado dos presos, superpopulação nas prisões, seletividade penal do público-alvo das ações policiais, processos criminais lentos e falta de confiança na justiça criminal (SOUSA, 2019).
A consistência no número de pessoas privadas de liberdade sem sentença penal transitada em julgado implica dizer que há certamente algo errado com os processos criminais no território nacional. É nítido que os processos não estão tramitando rápido o suficiente ou que a prisão preventiva tem sido usada erroneamente (SOUSA, 2019).
É fato que a morosidade da Justiça brasileira tem gerado excesso de prisões preventivas, excesso de processos prescritos e uma inevitável sensação de impunidade perante aos olhos da sociedade.
Para amenizar a situação exposta, tem-se tentado a ampliação do modelo de Justiça Consensual com o advento da Resolução nº 181 (posteriormente modificada pela resolução nº 183) do Conselho Nacional do Ministério Público que prevê o instituto do acordo de não-persecução penal – que é uma espécie de transação firmada entre o Ministério Público com o autor de crime para que seja ofertado ao sujeito que cometeu o delito o não oferecimento da acusação que daria início à persecução penal, desde que ele cumpra os requisitos presentes no art.18 (que serão expostos posteriormente) da referida resolução.
Ressalta-se que para que o acordo seja oferecido, é necessário que o crime não possa ser objeto de transação penal, que o dano causado não seja superior a vinte salários-mínimos, que o investigado não incorra em alguma das hipóteses previstas no art.76 § 2º, da Lei n. 9.099/95 e que não haja aguardo de cumprimento do acordo para que possa acarretar a prescrição da pretensão punitiva do Estado.
Diante desta conjectura, expõe-se a seguinte questão: O acordo de não persecução penal, previsto em resolução do Conselho Nacional do Ministério Público é Constitucional?
Ante ao exposto, a pesquisa objetiva analisar a introdução do acordo de não-persecução penal no ordenamento jurídico por meio de uma resolução do Conselho Nacional do Ministério Público, bem como analisar a compatibilidade do instituto com o ordenamento jurídico brasileiro.
Cabe ressaltar que é de suma importância o estudo do presente tema, sendo necessário avaliar a validade dos acordos de não-persecução penal, visto que o instituto versa sobre uma possível mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, bem como envolve princípios constitucionais como o da celeridade, dentre outros.
Ademais, quanto à metodologia, trata-se de uma pesquisa bibliográfica, descritivo-analítica, qualitativa e exploratória sobre o acordo de não-persecução penal, realizada no ordenamento jurídico pátrio, livros, artigos científicos, sites, entre outros.
Os dados serão apresentados em 4 tópicos, a saber: O segundo será abordado as semelhanças entre o acordo francês e o acordo de não-persecução penal brasileiro, no terceiro o conceito e requisitos para a realização do acordo de não-persecução penal, em seguida o constitucionalidade do acordo de não-persecução penal, e por último será contemplado princípio da obrigatoriedade da ação penal e o acordo de não-persecução penal.
2 AS SEMELHANÇAS ENTRE O ACORDO FRANCÊS E O ACORDO DE NÃO-PERSECUÇÃO PENAL BRASILEIRO
Assim como no Brasil, a França também instituiu mecanismos alternativos para a resolução de casos criminais.
As primeiras tentativas no território francês de lidar com a grande quantidade de casos criminais se deram através da atuação de juízes e de promotores de Justiça, que mesmo sem previsão legal, começaram a aplicar acordos em infrações penais de pequena gravidade (CABRAL et. al, 2019).
Desta feita, o surgimento dos acordos penais em território francês:
(…) é resultado de um processo ideológico protagonizado, por um lado, pela contestação em relação às instituições repressivas, consideradas estigmatizantes, ineficazes e lentas, que passam a ser dinamizadas pela busca de soluções de “diversificação”, e, por outro lado, do enaltecimento da figura da vítima, não apenas no âmbito penal, como também no âmbito social em geral. (…). Nesse contexto, surgem as primeiras experiências de mediação penal, que não tinham fundamento normativo, com exceção do princípio da oportunidade, previsto no CPP. Não é de estranhar, pois, que essas primeiras manifestações de regulação de conflitos, de forma extrajudicial, tenham surgido de modo desordenado e sem grande uniformidade. (GURIDI, 2009, p.181).
Em virtude dos acordos na França terem se iniciado sem previsão legal, houve uma proliferação destes negócios jurídicos, o que dificilmente ocorrerá em território brasileiro, uma vez que o instituto em estudo traz requisitos objetivos para a realização da negociação criminal, evitando-se, assim, a violação ao princípio da igualdade. (CABRAL,2019).
Os acordos penais na França só foram regulamentados com a aprovação da lei 92-2, de 04 de janeiro de 1993, que promoveu uma reforma no sistema penal francês e instituiu a mediação penal no ordenamento jurídico.
Ressalta-se que existem semelhanças entre o acordo penal francês e o instituído pelo art.18 da resolução nº 181 do CNMP (posteriormente alterado pela resolução nº 183 do CNMP), uma vez que em território francês:
O Promotor pode oferecer ao defensor a opção diversionista para o seu caso, evitando o julgamento criminal padrão, em troca da admissão da culpa e do preenchimento de condições, como o pagamento de multa, a entrega dos objetos utilizados no delito (ou objetos obtidos em virtude dele), a perda da carteira de motorista ou da autorização de caça durante determinado período de tempo, a prestação de serviços à comunidade e/ou a reparação do dano causado à vítima. (GURIDI, 2009, p.181).
Fica clara a semelhança entre o acordo francês e o brasileiro, visto que o acordo de não-persecução penal do Brasil é oferecido pela figura do Ministério Público e também traz como requisitos, dentre outros, a confissão de culpa e quando possível, a reparação do dano causado ao terceiro.
3 CONCEITO E HIPÓTESES DE CABIMENTO DO ACORDO DE NÃO-PERSECUÇÃO PENAL
O acordo de não-persecução penal é um instituto extrajudicial que consiste numa transação firmada entre o Ministério Público e o autor confesso de crime devidamente acompanhado por advogado ou defensor público – na qual é ofertado ao investigado o não oferecimento da acusação que daria início à persecução penal, desde que ele cumpra certos requisitos não privativos de liberdade. (LIMA, 2019).
Sendo assim, conforme o art.18 da resolução 181 do CNMP (posteriormente alterado pela resolução nº 183) o acordo de não-persecução penal pode ser proposto quando:
Não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor ao investigado acordo de não persecução penal quando, cominada pena mínima inferior a 4 (quatro) anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça a pessoa, o investigado tiver confessado formal e circunstanciadamente a sua prática, mediante as seguintes condições, ajustadas cumulativa ou alternativamente:
I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, salvo impossibilidade de fazê-lo;
II – renunciar voluntariamente a bens e direitos, indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;
III – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo Ministério Público;
IV – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal, a entidade pública ou de interesse social a ser indicada pelo Ministério Público, devendo a prestação ser destinada preferencialmente àquelas entidades que tenham como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito;
V – cumprir outra condição estipulada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal aparentemente praticada. (Resolução 181 CNMP, 2017).
Ora, do caput do art.18 da resolução do Conselho Nacional do Ministério Público pode-se notar que existem requisitos imprescindíveis para a realização do acordo, que são: a confissão do formal do investigado, que o crime tenha pena inferior a quatro anos e que não tenha sido cometido com violência ou grave ameaça.
Salienta-se que o requisito imprescindível da confissão formal do investigado feita no acordo de não-persecução penal é retratável, não ocasionando culpa do investigado, semelhante ao que ocorre no inquérito policial. A confissão busca:
[…] assegurar unicamente uma depuração nos elementos de convicção colhidos na fase inquisitiva, de modo a evitar precoce celebração de acordos desprovidos de provas que indicassem a participação do confidente na infração penal, além de reforçar a confiança de que será efetivamente cumprido (SOUZA, 2017, p.1).
Demais, de acordo com o §2º do artigo estudado, as tentativas de realização do acordo, bem como a confissão detalhada devem ser feitas mediante gravação de vídeo, a fim de se obter uma maior segurança nas informações. Desta forma têm-se:
[…] uma tendência do ordenamento jurídico brasileiro, no sentido de modernizar os procedimentos. A gravação em meio audiovisual, além de captar com mais veracidade o contexto em que se deram os acontecimentos, permite ao órgão julgador rememorar as circunstâncias do momento de tomada dessas informações (BARROS E ROMANIUC, 2018, p.53).
Além disso, quanto ao requisito quantitativo da pena, para se verificar se o crime tem pena inferior a 4 (quatro) anos é necessário a checagem preliminar das causas de aumento e de diminuição de pena, conforme o §13 do referido artigo. Ademais, o requisito da violência é considerado em sentido amplo, isto é, não envolve apenas violência física.
Quanto aos incisos I ao V do art. 18 são condições que podem estar presentes no acordo ou não, ou seja, cada acordo será adequado a um caso específico.
Apesar dos incisos citados trazerem sanções ao investigado, estas não podem ser consideradas penas, uma vez que os requisitos são trazidos antes do início da persecução penal, sendo que as condições que mais se assemelham às penas trazidas pela legislação penal são a prestação de serviços comunitários e a condenação em pagamento de prestação pecuniária, que sequer importam em pena de privação de liberdade. (GARCIA, 2018).
Importante trazer a lume que o acordo de não-persecução penal, de acordo com o §1º do art.18, não poderá ser efetivado nas seguintes hipóteses:
I – For cabível a transação penal, nos termos da lei;
II – O dano causado for superior a vinte salários mínimos ou a parâmetro econômico diverso definido pelo respectivo órgão de revisão, nos termos da regulamentação local;
III – o investigado incorra em alguma das hipóteses previstas no art. 76, § 2º, da Lei nº 9.099/95;
IV – O aguardo para o cumprimento do acordo possa acarretar a prescrição da pretensão punitiva estatal;
V – O delito for hediondo ou equiparado e nos casos de incidência da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006;
VI – A celebração do acordo não atender ao que seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.
Cabe informar também que o acordo de não-persecução penal após ser firmado pelo Ministério Público e pelo investigado será submetido ao juiz, que fará o juízo de admissibilidade do acordo, caso este seja admissível, será devolvido ao Ministério Público para que seja implementado. É o que diz o §5º do art. 18 da resolução nº 181/2017: ‘’Se o juiz considerar o acordo cabível e as condições adequadas e suficientes, devolverá os autos ao Ministério Público para sua implementação’’ (BRASIL, 2017, p. 18).
Considerando-se o atual panorama da Justiça penal brasileira, pode-se inferir que o acordo de não-persecução penal, que como exposto acima só pode ser proposto para crimes com pena inferior a 4 (quatro) anos, é essencial para melhor tramitação dos processos criminais, uma vez que cairá a quantidade de causas nas varas criminais, ensejando, de certa forma, a concretização do direito fundamental previsto no art.5º, LXXVIII da Constituição Federal: ‘’a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação’’ (BRASIL, 1988).
Nesse sentido, o autor Cabral (2019, p.40), assevera que:
Referido acordo pretende dar maior racionalidade ao nosso sistema penal. Ele permite que o Ministério Público e Poder Judiciário possam dispensar maior atenção e celeridade aos crimes mais graves. Por outro lado, possibilita uma resposta muito mais rápida aos crimes de pouca gravidade, o que pode ocorrer, inclusive, poucos dias após o crime. Tal proposta segue o exemplo de países como os Estados Unidos e Alemanha, em que a maioria esmagadora dos casos penais são resolvidos por meio de acordo.
Finalmente, cabe indicar que o próprio Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP, 2017, p.2) no relatório que antecede o texto da resolução, reconheceu os problemas enfrentados pela justiça brasileira:
(...)Considerando, por fim, a exigência de soluções alternativas no Processo Penal que proporcionem celeridade na resolução dos casos menos graves, priorização dos recursos financeiros e humanos do Ministério Público e do Poder Judiciário para processamento e julgamento dos casos mais graves e minoração dos efeitos deletérios de uma sentença penal condenatória aos acusados em geral, que teriam mais uma chance de evitar uma condenação judicial, reduzindo os efeitos sociais prejudiciais da pena e desafogando os estabelecimentos prisionais(…).
Destarte, a lógica do instituto é que se dê uma maior celeridade aos casos criminais de menor gravidade, dando-se uma resposta imediata, porém, menos intensa que uma ação penal.
Desta feita, expõe o doutrinador Silva (2016, p.41):
(...) relembre-se que os processos penais são orientados, dentro da democracia dos Estados, como uma forma de obtenção tanto de segurança como de confiabilidade das estruturas jurídicas, o que deve ser conseguido com a maior eficácia e efetividade possível – até mesmo para consecução de uma pena mais justa.
Ademais, o objetivo é que haja uma menor quantidade de pessoas cumprindo pena privativa de liberdade, que se dê prioridade ao julgamento de crimes mais gravosos, e que quando for possível, haver reparação imediata do dano causado à vítima.
4 A CONSTITUCIONALIDADE DO ACORDO DE NÃO-PERSECUÇÃO PENAL
No Brasil, existem dois modelos de Justiça Penal consensual, o modelo para delitos de pequena gravidade, que está presente na lei 9.099/1995 e o modelo para crimes mais graves, que envolvem organizações criminosas, através da colaboração premiada, prevista na lei 12.850/2013.
Havia, portanto, uma lacuna para os crimes de médio potencial ofensivo, que foi preenchida pelo acordo de não-persecução penal.
É imensa a discussão sobre a constitucionalidade do acordo de não-persecução penal, uma vez que o instituto, diferentemente dos outros modelos de Justiça Penal consensual, foi introduzido por ato normativo do Conselho Nacional do Ministério Público, mediante competência estabelecida pelo art. 130-A, §2º, I da Constituição Federal de 1988.
A existência da discussão é comprovada mediante duas ações diretas de inconstitucionalidade que existem perante o Supremo Tribunal Federal, tendo uma sido proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a outra pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).
Para a OAB, conforme ADI nº 5793, o novel instituto se encontra eivado de inconstitucionalidade, uma vez que usurpa competência privativa da União. Além disso, ofende vários princípios constitucionais, a saber, princípio da reserva legal, segurança jurídica, imparcialidade, contraditório, devido processo legal e a ampla defesa. Na ADI, a OAB indicou ainda que as resoluções do CNMP não podem se confundir com leis em sentido formal, uma vez que não podem modificar o ordenamento jurídico.
Já a AMB, conforme ADI nº 5790, argumentou que se fora necessária elaboração de lei pelo Congresso Nacional para que o Poder Judiciário pudesse realizar ‘’conciliação’’ para hipóteses da lei 9.099/95, bem como a concessão de perdão judicial ou redução de pena para investigados que realizassem a colaboração premiada (conforme lei nº 12.850/2013), também seria necessária a intervenção do Congresso Nacional para a implementação do acordo de não-persecução penal.
Os argumentos elencados nas respectivas ações diretas de inconstitucionalidade não devem prosperar. A Carta Magna, no art.130-A, §2º, inciso I, atribui ao Conselho Nacional do Ministério Público a alçada de ‘’ zelar pela autonomia funcional e administrativa do Ministério Público, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências’’. (BRASIL, 1988, art. 130. §2º, I).
Não obstante, o entendimento do Supremo Tribunal Federal é de que as resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), portanto, também do CNMP, assumem caráter normativo primário, conforme o seguinte julgado:
Os condicionamentos impostos pela Resolução nº 07/05, do CNJ, não atentam contra a liberdade de prover e desprover cargos em comissão e funções de confiança. As restrições constantes do ato resolutivo são, no rigor dos termos, as mesmas já impostas pela Constituição de 1988, dedutíveis dos republicanos princípios da impessoalidade, da eficiência, da igualdade e da moralidade. 2. Improcedência das alegações de desrespeito ao princípio da separação dos Poderes e ao princípio federativo. O CNJ não é órgão estranho ao Poder Judiciário (art. 92, CF) e não está a submeter esse Poder à autoridade de nenhum dos outros dois. O Poder Judiciário tem uma singular compostura de âmbito nacional, perfeitamente compatibilizada com o caráter estadualizado de uma parte dele. Ademais, o art. 125 da Lei Magna defere aos Estados a competência de organizar a sua própria Justiça, mas não é menos certo que esse mesmo art. 125, caput, junge essa organização aos princípios "estabelecidos" por ela, Carta Maior, neles incluídos os constantes do art. 37, cabeça. 3. Ação julgada procedente para: a) emprestar interpretação conforme à Constituição para deduzir a função de chefia do substantivo "direção" nos incisos II, III, IV, V do artigo 2° do ato normativo em foco;
b) declarar a constitucionalidade da Resolução nº 07/2005, do Conselho Nacional de Justiça. (ADC 12, Relator (a): Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 20/08/2008, DJe-237 DIVULG 17-12-2009 PUBLIC 18-12-2009 EMENT VOL-02387-01 PP-00001 RTJ VOL-00215-01 PP-00011 RT v. 99, n. 893, 2010, p. 133-149)
Desta maneira, a jurisprudência da Suprema Corte brasileira é estável no sentido de que o CNMP pode expedir regulamentos autônomos, desde que estes sejam direcionados a regularizar de maneira direta a aplicação de princípios constitucionais (CABRAL, 2018).
Exemplo parecido de aplicação destes regulamentos e que atualmente se encontra vigente é o instituto da audiência de custódia, que foi instituída por resolução do CNJ.
Cabe ressaltar que o acordo de não-persecução penal está de acordo com a resolução da Organização das Nações Unidas conhecida como Regras de Tóquio – oficialmente denominada de ‘’Regras mínimas das Nações Unidas para a elaboração de medidas não privativas de liberdade’’– cujo objetivo final é incentivar uma série de medidas que visam o estímulo à aplicação, quando possível, de medidas não privativas de liberdade. (CNJ, 2016).
No ordenamento jurídico brasileiro, a única forma para que a resolução do Conselho Nacional do Ministério Público seja atendida, seria a admissão de critérios de oportunidade pelo Ministério Público, em que o referido órgão abriria a possibilidade de não oferecer a ação penal, mediante cumprimento de prestação alternativa que não ensejasse pena privativa de liberdade, igualmente nos termos trazidos pelo CNMP (CABRAL, 2019).
Para se rebater a afirmação de que o acordo tem natureza penal, é necessário entender o conceito de pena, por isso, de acordo com o ilustríssimo professor Masson (2012, p.540):
Pena é espécie de sanção penal consistente na privação ou na restrição de determinados bens jurídicos do condenado, aplicada pelo Estado em decorrência do cometimento de uma infração penal, com as finalidades de castigar seu responsável, readaptá-lo ao convívio em comunidade e, mediante a intimidação endereçada a sociedade, evitar a prática de novos crimes ou contravenções penais.
Já de acordo com Nucci (2017, p.308), pena: ‘’é a sanção imposta pelo Estado, através da ação penal, ao criminoso, cuja finalidade é a retribuição ao delito perpetrado e a prevenção a novos crimes’’.
Portanto, ao contrário do que é afirmado pelos críticos da resolução, o acordo de não-persecução penal não tem natureza penal, uma vez que não existe a aplicação de uma pena. O que existe é a possibilidade de um acerto entre o investigado e o Ministério Público anterior ao início da persecução, que ensejará apenas sanções. Caso o investigado não tenha interesse no acordo, o caminho a ser tomado pelo Ministério Público é o de oferecer a denúncia.
A resolução de que trata o acordo de não-persecução penal também não pode ser considerada norma de natureza processual penal, visto que não há a existência de processo judicial. O que se tem é um acordo de natureza extrajudicial, realizado antes mesmo da existência de um processo judicial.
Nesse sentido, a posição do Supremo Tribunal Federal quanto a normas de direito processual é a seguinte:
São normas de direito processual as relativas às garantias do contraditório, do devido processo legal, dos poderes, direitos e ônus que constituem a relação processual, como também as normas que regulem os atos destinados a realizar a causa finalis da jurisdição (ADI 2.970, rel. min. Ellen Gracie, j. 20-4-2006, P, DJ de 12-5-2006).
Desta forma, é patente a constitucionalidade do acordo de não-persecução penal, vez que o instituto não tem natureza penal e nem processual penal e apesar de não ter sido instituído por lei, foi instituído por uma resolução que tem força de ato normativo primário e versa sobre política criminal.
Portanto, o acordo tem natureza procedimental, tratando-se, conforme Cabral (2018, p.36) de: ’’um negócio jurídico de natureza extrajudicial, que consubstancia a política criminal do titular da ação penal pública, do Ministério Público’’.
Sendo assim, não há como se falar em inconstitucionalidade, visto que não há usurpação de competência privativa da União (prevista no artigo 22, incisos I e II da Constituição Federal de 1988).
5 O PRINCÍPIO DA OBRIGATORIEDADE DA AÇÃO PENAL PÚBLICA E O ACORDO DE NÃO-PERSECUÇÃO PENAL
A ação penal pública incondicionada é a que tem como titular o Ministério Público que independe de manifestação de vontade da vítima ou de terceiros para ser exercida. No ordenamento jurídico brasileiro a ação pública incondicional é a regra, e será cabível em todos os casos em que a lei for silente sobre o tipo de ação penal a ser utilizada (TÁVORA, ALENCAR, 2019).
Conforme o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, também denominado de legalidade processual, o Ministério Público, tendo elementos de prova suficientes de que aconteceu um fato típico, antijurídico e culpável, deverá fazer o oferecimento da denúncia.
Nesse sentido, Nucci (2017, p. 1059) afirma que o princípio da obrigatoriedade: ‘’estipula que é indispensável a propositura da ação, quando há provas suficientes a tanto e inexistindo obstáculos para atuação do órgão acusatório’’.
É o mesmo entendimento de Lima (2016, p.229):
De acordo com o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, também denominada de legalidade processual, aos órgãos persecutórios criminais não se reserva qualquer critério político ou de utilidade social para decidir se atuarão ou não. Assim é que, diante da notícia de uma infração penal, da mesma forma que as autoridades policiais têm a obrigação de proceder à apuração do fato delituoso, ao órgão do Ministério Público se impõe o dever de oferecer denúncia caso visualize elementos de informação quanto à existência de fato típico, ilícito e culpável, além da presença das condições da ação penal e de justa causa para a deflagração do processo criminal.
A pesar de parcela relevante de a doutrina defender a aplicação do princípio da obrigatoriedade da ação penal, este não está previsto expressamente no ordenamento jurídico brasileiro. O que está previsto é que é função do Ministério Público, conforme art. 129, I, da Constituição Federal de 1988, promover, privativamente, a ação penal pública.
Neste mesmo sentido, dispõe o art.24 do Código Penal brasileiro: “nos crimes de ação penal pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público, mas dependerá, quando a lei o exigir, de requisição do Ministro da Justiça, ou de representação do ofendido ou de quem tiver a qualidade para representá-lo”.
Fica nítido que os dispositivos supracitados apenas atribuem à competência de promover a ação penal ao Ministério Público, não que este seja obrigado a oferecê-la. Portanto, ao contrário do que é afirmado, quando o MP deixa de promover o oferecimento da denúncia para oferecer ao investigado o acordo de não-persecução penal, o referido órgão não está descumprindo o que está exposto na Constituição Federal de 1988.
Evidente que o oferecimento da denúncia não pode ser considerado o único caminho a ser trilhado pelo Ministério Público, até porque, o princípio da obrigatoriedade não é absoluto. Prova disso é a existência da lei nº 9.099/95, que previu os institutos da transação penal (art.76) e da suspensão condicional do processo (art.89).
Neste diapasão, diz Silva:
Com a publicação da Lei 9.099/1995 o princípio da obrigatoriedade foi mitigado. Passou a ser possível transação penal nos crimes de pequeno potencial ofensivo e a proposta de suspensão condicional do processo (artigos 76 e 89). A oferta da transação penal e a proposta da suspensão condicional do processo não são facultativas. O membro do Ministério Público não tem total discricionariedade de optar, ou não, pela aplicação dos benefícios. Há discricionariedade regrada em que é realizada análise da sua conveniência e oportunidade à luz do caso concreto. De forma fundamentada, pode o órgão ministerial deixar de oferecer os benefícios, mas de acordo com critérios legais. (2016, p. 1).
Corroborando esse entendimento, o respeitado autor Lopes Júnior (2018, p.168) entende a transação penal como: ‘’relativização do princípio da obrigatoriedade, ou, ainda, de uma nova concepção a ser incorporada no sistema processual penal brasileiro: discricionariedade regrada’’.
Além disso, ainda existe a lei da colaboração premiada (nº 12.850/2013) que prevê no seu art. 4º, §4º, que o MP poderá deixar de oferecer a denúncia, desde que o indivíduo não seja o líder da organização criminosa, bem como seja o primeiro a prestar colaboração efetiva.
Portanto, é inequívoca a mitigação do princípio da obrigatoriedade no ordenamento Jurídico pátrio, vigorando assim, como disseram os autores citados, a discricionariedade regrada.
O Conselho Nacional do Ministério Público ao introduzir o acordo de não-persecução penal no Brasil pautou-se no princípio da oportunidade, bem como nos problemas enfrentados pelo sistema penal brasileiro, como por exemplo, a superpopulação nas prisões, a desconfiança da sociedade no sistema criminal, a morosidade da justiça, dentre outros.
Segundo o processualista Lima (2016, p.334), o princípio da oportunidade:
Consiste, pois, na faculdade que é outorgada ao titular da ação penal para dispor, sob determinadas condições, de seu exercício, com independência de que se tenha provado a existência de um fato punível contra um autor determinado.
Conforme supracitado, o acordo de não-persecução penal tem suas bases no princípio da oportunidade, no qual o titular da ação penal, que no caso, é o Ministério Público, tem a opção, e não a obrigatoriedade, de propor a ação penal quando tiver notícia de que tenha sido cometido um fato delituoso. A opção exercida será feita mediante interesse público.
É nítido que o instituto em estudo favorece a sociedade. Desta forma, defende Cabral (2017, p. 363) que:
Num modelo sem acordo, a demora na tramitação processual, o excesso de serviço e a pressa para fazer frente a essa carga de trabalho, gera seríssimos efeitos colaterais. É dizer, num modelo tradicional, sem acordo, paga-se um alto preço com a proliferação de injustiças. Essas injustiças são de duas ordens. De um lado, o Estado descumpre o seu dever de tutela jurídica, de outro, por mais surpreendente que possa parecer, se enfraquece substancialmente a capacidade do processo penal de ser um processo materialmente justo.
Finalmente, cabe aqui dizer que os efeitos gerados pelo acordo de não-persecução penal, em geral, são positivos, ressaltando-se que as expectativas da das vítimas, em se obter justiça podem ser saciadas rapidamente, o que não aconteceria mediante todo o trâmite de um processo judicial, visto que de acordo com o relatório Justiça em Números 2017 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a duração média de um processo criminal para que seja proferida uma decisão na fase de conhecimento é de 3 (três) anos e 1 (um) mês.
Já para a fase da execução da pena, os processos que envolvem pena de prisão duram cerca de 3 (três) anos e 9 (nove) meses e os que não envolvem penas de prisão, tem duração de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses. (CNJ, 2017).
Até pessoas que possuem posicionamento contrário ao acordo, reconhecem que é impossível de se levar todos os casos criminais ao completo julgamento, como é o caso do Professor alemão Schüneman (2009, p.423), que disse:
O ideário do século XIX, de submeter cada caso concreto a um juízo oral completo (audiência de instrução e julgamento), reconhecendo os princípios da publicidade, oralidade e imediação somente é realizável em uma sociedade sumamente integrada, burguesa, na qual o comportamento desviado cumpre quantitativamente somente um papel secundário. Nas sociedades pós-modernas desintegradas, fragmentadas, multiculturais, com sua propagação quantitativamente enorme de comportamentos desviados, não resta outra alternativa que a de chegar-se a uma condenação sem um juízo oral detalhado, nos casos em que o suposto fato se apresente como tão profundamente esclarecido já na etapa da investigação, que nem sequer ao imputado interessa uma repetição da produção da prova em audiência de instrução e julgamento.
De tal maneira, é necessário que se dê uma chance à nova resolução do CNMP, para que futuramente não se tenha que se decretar a falência do sistema penal brasileiro. (CABRAL, 2017).
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo analisou o acordo de não-persecução penal, instituído pelo art. 18 da resolução nº 181/2017, posteriormente alterada pela resolução nº 183/2018, do CNMP, que visa promover uma negociação entre o órgão acusador e o investigado, para que haja o não oferecimento da denúncia pelo Ministério Público, desde que o investigado cumpra determinados requisitos.
Por ter sido instituído por uma resolução do CNMP, o instituto em estudo é visto por alguns doutrinadores como não constitucional. É cristalino que o melhor caminho seria que o acordo fosse efetivado por meio de lei, desta forma, cessariam as críticas de que o CNMP usurpou competência privativa da União.
Inclusive, existe uma tentativa de se regularizar o acordo de não-persecução penal por meio de lei, vez que o instituto está presente no pacote anticrime apresentado pelo Ministério da Justiça no ano de 2019.
Entretanto, o fato de não ter sido instituído por lei não quer dizer que o acordo seja inconstitucional, até porque, a resolução não trata de matéria penal ou processual penal, mas sim de política criminal a ser efetivada pelo Ministério Público, concretizando, assim, a independência funcional de seus membros e a sua função constitucional. Não há como se falar em violação da competência privativa da União estabelecida pela Constituição Federal de 1988.
Analisando-se a atual situação do sistema criminal brasileiro, em que se observa o uso demasiado de prisões preventivas, o excesso de processos prescritos e a demora para se julgar casos criminais, cabe dizer que a resolução do Ministério Público veio em momento oportuno.
Além disso, o acordo de não-persecução penal é um instituto que gera rápido impacto no ordenamento, uma vez que a confissão faz com o que o investigado defina sua situação desde logo, iniciando assim o cumprimento da sanção diferente da prisão. Há também, diminuição no número de ações criminais propostas e uma resposta imediata à vítima.
Desta forma, vislumbra-se que o acordo de não-persecução penal além de constitucional, é também estritamente necessário no sistema penal brasileiro, que está em evidente crise.
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