ANNE SHIRLEY DE OLIVEIRA REZENDE MARTINS[1]
(orientadora)
Resumo: O presente artigo busca entender a importância da Bioética e do Biodireito para os direitos do nascituro, evidenciando que o Direito deverá intervir no campo das técnicas biomédicas, quer seja para legitimá-las, regulamentá-las ou proibi-las. À vista disso, o escopo principal é o da tutela aos direitos do nascituro, a fim de compreender que é por conta da Bioética e do desenvolvimento tecnológico que o ser humano se tornou o ponto de partida da reflexão da esfera jurídica e, que o Biodireito, é o eixo de conexão para a preservação da vida. Em conformidade com o objetivo central, há os seguintes objetivos específicos: (a) identificar a Bioética e o Biodireito frente aos valores e princípios morais da conduta humana no campo científico; (b) averiguar os institutos que versam a respeito dos direitos do nascituro; (c) analisar de que forma a Bioética e o Biodireito cooperam para garantir o direito à vida, a futura personalidade jurídica e os direitos da personalidade. Dessarte, a referida discussão proporciona fundamentos teóricos e normativos – constitucionais e infraconstitucionais – com a finalidade de preservar os direitos fundamentais e civis do nascituro.
Palavras-chave: Bioética. Biodireito. Personalidade. Direitos da Personalidade. Nascituro. Garantias constitucionais. Garantias infraconstitucionais. Código Civil.
Abstract: This article seeks to understand the importance of Bioethics and Biolaw for the rights of the unborn child, showing that mandatory Law intervenes in the field of biomedical techniques, whether to legitimize, regulate or prohibit them. In view of this, the main scope is the protection of the rights of the unborn child, in order to understand that it is because of Bioethics and technological development that the human being has become the starting point of reflection in the legal sphere and that the Biolaw is the connection axis for the preservation of life. In compliance with the central objective, the following are the specific objectives: (a) to identify Bioethics and Biolaw in light of the values and moral principles of human conduct in the scientific field; (b) investigate the institutes that deal with the rights of the unborn child; (c) analysis of how Bioethics and Biolaw cooperate to guarantee the right to life, a future legal personality and the rights of personality. Thus, the discussion offers theoretical and normative foundations - constitutional and infra-constitutional - with the persistence of fundamental and civil rights of the unborn child.
Keywords: Bioethics. Biolaw. Personality. Personality Rights. Unborn Child. Constitutional guarantees. Infra-constitutional guarantees. Civil Code.
O homem tornou-se objeto de estudo em várias disciplinas, como a Biologia, Ciência, Filosofia, Direito, dentre outros, sendo prudente afirmar que a Filosofia é precursora de inúmeras discussões no que diz respeito a posição do homem dentro da Pólis e, atualmente, dentro de uma dada sociedade. Conclui-se para tanto, que a distinção entre o homem, como animal, quanto aos demais animais, pauta-se na racionalidade. Dessa forma, o homem como ser racional tem uma aptidão que os demais seres não tem, a de pensar, fazendo com que consiga desenvolver grandes projeto em qualquer área de estudo, uma vez que se adapta ao ambiente em que se encontra inserido. Inexoravelmente, verificou-se que o século XX teve uma grande relevância para o ser humano, tendo em vista que a referida época tornou-se marcante por conta dos avanços tecnológicos, das conquistas das civilizações e das reviravoltas em relação ao poder.
Destaca-se, portanto, que por conta dos avanços tecnológicos e da grande disputa pelo poder, principalmente nas grandes guerras que ocorreram por volta de 1914 à 1945, o ser humano foi afetado em dois campos distintos: o subjetivo e o objetivo. No que tange ao aspecto subjetivo, houve inúmeras transgressões quanto a autonomia do indivíduo, dado que o desenvolvimento tecnológico atrelado a um país poderoso e influente, incorre em uma grande responsabilidade nas mãos de quem o detém (na época os cientistas), sendo utilizado para experimentações que não levavam em conta a vontade ou a necessidade do ser, mas sim uma “vaga promessa” de que as pesquisas iriam curar e salvar todos os que se encontravam em tal situação, frustando então os que tinham esperanças de que a ciência estava sendo utilizada para o bem comum e não para o próprio desenvolvimento.
Já o aspecto objetivo versa diretamente sobre as normas que ditavam a época, tendo em conta que não conseguiam proteger os seres no âmago pessoal (pessoalidade), visto que neste momento havia apenas o direito formal, mas não o material; e ainda assim, no que tange ao direito formal, o indivíduo não era completamente amparado pelo ordenamento jurídico, pois, o que realmente importava dentro da sociedade era o poderio econômico e a posição ocupada dentro da pirâmide social.
Diante disso, atribuiu-se ao instituto da Bioética o estudo acerca da conduta humana no campo da vida e da saúde, possibilitando a criação de um novo discurso sobre a vida, estabelecendo uma nova ética em resposta as pesquisas biomédicas e tecno científicas que não tinham limites. Ademais, o Biodireito foi instituído para tratar das relações jurídicas referentes as trangressões sofridas pelos seres humanos como: eutanásia, aborto, transplante de órgãos e tecidos entre seres vivos ou mortos, buscando efetivar a dignidade da pessoa humana nesses contextos.
O presente artigo respalda-se em analisar a contribuição da Bioética e do Biodireito a fim de garantir os direitos do nascituro, haja vista que este será compreendido dentro de uma perspectiva humanista, por conta dos direitos fundamentais e da inviolabilidade do direito à vida, conforme estabelece o artigo 5º da Constituição Federal. Não obstante, designa-se com fulcro no artigo 2º do Código Civil o começo da personalidade civil, que é assegurada desde a concepção, formulando-se então, na esfera jurídica, a figura do nascituro.
A referida temática justifica-se pela necessidade do ser humano ter se tornado o ponto de partida da reflexão da esfera jurídica, tendo em vista que através desta, abrange-se os princípios de valorização da preservação da vida humana tanto na forma intrauterina quanto na extrauterina. Consequentemente, fica à cargo do Direito intervir no campo das técnicas biomédicas, quer seja para legitimá-las, quer seja para regulamentá-las ou para proibí-las.
Para compreender o problema proposto, a metodologia empregada será o de revisão bibliográfica, buscando estabelecer uma visão interdisciplinar no que concerne ao Direito Constitucional, Direito Civil, além da utilização do informativo 606 do STJ – de forma geral – que é pautado por um viés jurídico. Evidenciar-se-á de que maneira essas diversas áreas “conversam” e se complementam, demonstrando para tanto, que cada uma cumpre um papel diferenciado dentro da esfera médica e jurídica, refletindo diretamente nos institutos da Bioética e do Biodireito. Visa-se assegurar que todas as pessoas – as nascidas ou as já concebidas– sejam detentoras do direito à vida, que é uma das diretrizes fundamentais da Constituição Cidadã, demonstrando, portanto, que não existe uma “mera expectativa de direitos” ante ao nascimento, mas sim a consolidação desse direito que não é passível de transgressão.
O artigo está divido em três partes, além desta introdução e das considerações finais. O segundo capítulo explana os pilares e o contexto histórico no qual o instituto da Bioética e do Biodireito foram originados em consonância com a sociedade da época. Levou-se em consideração dois grandes marcos históricos: a utilização da tecnologia de forma arbitrária e a necessidade de delimitar as experiências cientificas em prol do indivíduo. Cumpre observar que por conta das particularidades e do iter percorrido por cada um dos referidos institutos, tornou-os complementares e não concorrentes entre si, proporcionando uma visão mais humanitária e expansiva frente a “imodéstia” da medicina na referida época.
O terceiro capítulo traz à baila os direitos da personalidade. Frisou-se a conexão entre os referidos direitos e a dignidade humana, tendo em conta que a dignidade é o valor supremo designado pela Constituição da República promulgada ano de 1988. Logo, para que haja a devida compreensão quanto ao nascituro, realizou-se uma breve exposição a respeito da Teoria Geral do Direito, para mostrar de que forma o ordenamento jurídico realizou o percurso até chegar no que se considera pessoa e, quais são os direitos – direitos da personalidade e personalidade jurídica – que são concedidos para este ser, haja vista que em breve haverá o prolongamento de uma vida, que por enquanto, encontra-se no útero. Ademais, explanou-se a respeito da personalidade jurídica do nascituro como centro de imputação normativa.
Por fim, o último capítulo em prima face teve como escopo demonstrar a correlação entre a Bioética, o Biodireito e a Constituição Federal. Salientou-se que tanto os direitos fundamentais quanto o direito à saúde foram sistematizados pelo ordenamento jurídico e pelo Código de Ética Médica, levando em consideração que elegeu-se preâmbulos para os mesmos. Já a segunda questão – a mais importante –, trata da tentativa de resposta à problemática apresentada na monografia que virou artigo: qual a importância da bioética e do biodireito frente aos direitos do nascituro. Dividiu-se em duas vertentes: a subjetiva e a objetiva; evidenciando a ligação umbilical entre as duas linhas traçadas.
Por conta do progresso científico e tecnológico no século XX, a Bioética surge como resposta aos abusos que os seres humanos sofriam em decorrência dos experimentos científicos (PEREIRA, 2009). De acordo com Maria de Fátima de Sá e Bruno Torquato de Oliveira Naves (2018) lastreados em Diego Garcia, a Bioética surgiu por absoluta necessidade, a partir de 1950, sendo consequência da revolução científica e técnica ocorrida nas ciências biológicas e médicas (SÁ; NAVES, 2018, p. 4). Ademais, destaca-se que durante os anos de 1950 e 1960 houve o descobrimento da biologia, e em 1960 o descobrimento do código genético molecular (SÁ; NAVES, 2018, p. 4). Salienta-se que nesse período, o cientista se tornou detentor tanto do saber científico e técnico, mas também do saber moral, sendo considerado como “o novo sacerdote da religião”, justamente por ditar o que era verdadeiro ou falso.
Desenvolveu-se então o paternalismo médico respaldado em uma ótica egocêntrica, que permitia que os médicos fossem considerados como “salvadores”, exatamente por descobrirem doenças e serem detentores da cura. Contudo, o advento da 2ª Guerra Mundial, que ocorreu entre 1939 à 1945, trouxe alguns questionamentos quanto as situações polêmicas que pairavam o cotidiano da prática médica, principalmente quanto às decisões de cunho moral e ético ao longo da jornada profissional, como por exemplo: clonagem humana, biotecnologia, organismos geneticamente modificados (transgênicos), transplantes de órgãos e tecidos humanos, transfusão sanguínea não permitida pelo paciente, reprodução assistida, “barriga de aluguel”, uso de células-tronco embrionárias, aborto, eutanásia, distanásia, ortotanásia, relacionamento entre médicos e graduandos (SOARES; SOARES; MARQUES, 2010). Outrossim, por conta da utilização bélica de energia atômica e a experimentação médica nos campos de concentração, tornou-se notório que a ética médica precisava de limites (SÁ; NAVES, 2018, p. 5).
No século XX, várias foram as situações que exigiram avaliações da Ética perante experimentos e tratamentos médicos (SÁ; NAVES, 2009, p. 5). Citando Fernando Lolas, Maria de Fátima Freire de Sá e Bruno Torquato de Oliveira Naves (2018, p. 5), mencionam quatro fatores que impulsionaram o desenvolvimento da Bioética:
1) A invenção do aparelho capaz de realizar a função do rim [...]Diante do sucesso do tratamento, a demanda superou as possibilidades de antendimento. Foi necessário, então, decidir quem receberia tratamento e quem morreria.
2) Em 1966, Henry Beecher, professor anestesista de Harvard, publicou um artigo demonstrando estatisticamente que 12% dos artigos médicos publicados em uma importante revista científica eram resultados de pesquisas que utilizavam métodos contrários à Ética.
3) O primeiro transplante de coração, realizado pelo cirugião sul-africano Christian Barnard [..] Para proceder ao transplante foi necessário remover o coração ainda em funcionamento de um indivíduo com morte encefálica. Deparamos, assim, com questões como: Quando alguém pode ser considerado morto? Quem determina esse momento, a Ciência ou o Direito? A vida consciente é a única forma de vida? Morto o encéfalo, morre também a pessoa?
4) Caso Tuskegge [...] Realizou-se uma pesquisa sobre evolução natural da sífilis, sem qualquer tratamento. Os “voluntários”, todos negros, foram levados a acreditar, erroneamente, que estavam recebendo tratamento [...] 600 negros com idade igual ou superior a 25 anos foram pesquisados, sendo 399 portadores da doença e 201 homens saudáveis, para comparação. Estima-se que, ao fim do estudo, em 1972, dentre os infectados, apenas 74 estavam vivos; 25 tinham morrido diretamente da sífilis; 100 morreram de complicações relacionadas com a doença; 40 esposas dos pacientes tinham sido infectadas e 19 filhos tinha nascido com sífilis congênita (SÁ; NAVES, 2018, p. 5-6, grifo nosso)
O termo Bioética, teve expansão com a obra “Bioethic: Bridge to the Future”, do oncologista estadunidense Van Rennssealer Potter, no ano de 1971 (SÁ; NAVES, 2018). Potter (citado por Sá e Naves, 2018), propõe uma Bioética global, por conta da ética biomédica com a ecologia, trazendo à discussão questões de saúde pública a nível mundial e os problemas ambientais (NUNES; NUNES, 2014). A partir disso, o termo Bioética se tornou conhecido, acarretando a criação dos “Comitês de Ética em Pesquisa” (SÁ; NAVES, 2018).
A criação da Comissão Nacional para a Proteção dos Interesses Humanos de Pesquisa Comportamental e Biomédica, em 1974, foi um marco para a Bioética, haja vista que apresentou o Relatório de Belmont, contendo os princípios éticos básicos: o respeito pelas pessoas (autonomia), beneficência e justiça (SÁ; NAVES, 2018).
Consonante aos princípios, faz-se um questionamento a respeito da obsolecência do Juramento de Hipócrates, considerando que no discorrer do voto, todos os princípios supracitados se encontram presentes, exceto o da autonomia do paciente. Cumpre observar que hodiernamente, quando se fala da relação médico-paciente, não é mais utilizado o termo “médico da família”, pelo fato dos cidadãos se encontrarem mais cientes dos direitos que lhe são atribuídos, tornando-os mais exigentes quanto aos resultados. A par disso, “a autonomia privada marca o poder da vontade no direito de um modo objetivo, concreto e real” (SÁ; NAVES, 2009, p. 83).
Logo, quando Maria de Fátima Freire de Sá e Bruno Torquato de Oliveira Naves (2018) definem a bioética como “a disciplina que estuda os aspectos éticos das práticas dos profissionais da saúde e da Biologia, avaliando as implicações na sociedade e relações entre os homens e entre outros seres vivos” (SÁ; NAVES, 2018, p. 9), demonstram a grande parcela de responsabilidade do médico para com o paciente. Atualmente, a profissão médica é denominada como “Ciência Humanitária”, visto que leva em consideração a autonomia privada do paciente, porque o profissional da medicina também é um ser humano que goza de sentimentos.
À vista disso, é por conta da Bioética que o ser humano se torna o ponto de partida da reflexão da esfera jurídica, aspirando solidificar os princípios de valorização e preservação da vida humana. Essa conscientização delineia os limites morais sobre as investigações biocientíficas, desaguando em questões jurídicas e, fazem com que o Direito venha a intervir no campo das técnicas biomédicas, para legitimá-las, para regulamentá-las ou proibi-las. Contudo, os termos “bioética e biodireito” são sinônimos, ou há uma distinção entre eles?
Segundo Soares, Soares e Marques (2010), o “Biodireito é o ramo do Direito que trata da teoria, da legislação e da jurisprudência relativas às normas reguladoras da conduta humana em face dos avanços da Medicina e da Biotecnologia.” Já a Bioética advém da Ética geral, e utiliza-se de ramos como: deontologia, filosofia, biotecnologia, biologia, matemática e outras ciências para o estudo em cada caso concreto (MAIA; MUNHOZ, 2016). Trata-se, na verdade, de duas ordens normativas diferentes – Direito e Moral – (SÁ; NAVES, 2009).
Dessa forma, qual seria então o vínculo entre Bioética e Biodireito?
Diante de toda mudança que ocorreu no ordenamento jurídico, é notório que a Zetética, representada pelo instituto da Bioética, é uma forma de conhecimento amplo e possui premissas flexíveis que partem dos valores éticos e da finalidade social, sendo um dos pilares para a elaboração do Biodireito, dado que este, apesar de se alicerçar em uma metodologia dogmática, visa solucionar problemas sociais que partem da análise do caso concreto, porém em forma de norma (dogmas).
Através disso, a Bioética tem reflexo juridicizado, pois haverá uma sanção estatal prevista caso haja o descumprimento dos princípios, e caberá ao Direito como ciência dogmática, o “dever-ser”, porque utiliza-se da teoria da imputação. Não obstante, o Biodireito também incorporou os princípios que foram designados para a Bioética, que servem de fonte orientadora para a criação de outros princípios.
Após verificar o liame que une o instituto da Bioética e do Biodireito, far-se-á necessário perguntar: o Código de Ética Médica (2018) seria uma norma prioritariamente ética ou jurídica? Segundo Maria de Fátima Freire de Sá e Bruno Torquato de Oliveira Naves (2009), seria uma expressão juridicializada dos princípios bioéticos, considerando que o descumprimento da obrigação é jurídica. “Portanto, é uma norma jurídica, ainda que tenhamos consciência que essa contém valores éticos e sociais” (SÁ; NAVES, 2009, p. 13).
Empós ao exposto acerca dos institutos, tornar-se-á imprescindível trazer à baila como o indivíduo é resguardado dentro do ordenamento jurídico brasileiro, haja vista que esses institutos foram criados para proteger as pessoas da ocorrência de possíveis aviltamentos novamente. Para isso, explicitar-se-á como os direitos fundamentais são de suma importância para que haja a compreensão da autodeterminação de cada ser dentro da sociedade. Assim, a construção do ser humano oscila entre a singularidade da pessoa e a universalidade da espécie. Logo, o próximo capítulo estará apto a destacar o “ser” e como este “ser” ganhou espaço ao longo da história. No mais, denotar-se-á de que maneira os direitos da personalidade e o princípio da dignidade humana tornam a vida do indivíduo mais digna. Por último, mas não menos importante, o próximo tópico demonstrará qual o iter percorrido para que o “ser” seja considerado como pessoa para o Direito, qual o marco inicial da personalidade jurídica, e como o nascituro é recepcionado tanto pelo ordenamento jurídico, quanto pela doutrina e jurisprudência no que tange a personalidade e os direitos da personalidade.
Com fulcro nos direitos fundamentais, a ideia de personalidade jurídica vem com uma nova roupagem, sendo então um “atributo reconhecido a uma pessoa (natural ou jurídica) para que se possa atuar no plano jurídico (titularizando às mais diversas relações) e reclamar uma proteção jurídica mínima, básica, reconhecida pelos direitos da personalidade” (FARIA; ROSENVALD, 2017, p. 179, grifo do autor).
O Código Civil (BRASIL, 2002), no Livro I da Parte Geral, versa sobre as PESSOAS. Conforme aludido por Carlos Roberto Gonçalves, a palavra pessoa advém do latim persona, que na antiguidade romana, primitivamente, era utilizado no sentido de máscara. Todavia, com o passar do tempo:
O vocábulo passou a significar o papel que cada ator representava e, mais tarde, passou a expressar o próprio indivíduo que representava esses papéis. No direito moderno, pessoa é sinônimo de sujeito de direito ou sujeito de relação jurídica (GONÇALVES, 2017, p. 99).
Dessa forma, o Livro I do Código Civil (BRASIL, 2002) divide-se em três títulos: das pessoas naturais, das pessoas jurídicas e do domicílio (BRASIL, 2002). O artigo 1º do Código Civil (BRASIL, 2002) traz à baila que: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil” (BRASIL, 2002). A capacidade de que trata o presente artigo é a de aquisição de direitos, sendo a que todos adquirem ao nascer com vida, sendo reconhecida a todo ser humano, sem qualquer distinção, estendendo-se inclusive “aos privados de discernimento e aos infantes em geral, independentemente de seu grau de desenvolvimento mental” (GONÇALVES, 2017, p. 96). Já no que tange a capacidade de fato, esta não é adquirida por todos, pois nessa modalidade há a “capacidade de exercício ou de ação, que é a aptidão para exercer, por si só, os atos da vida civil” (GONÇALVES, 2017, p. 97). Portanto, quem possui as duas modalidades (capacidade de direito e capacidade de fato) tem a capacidade plena.
Em uma visão subjetiva, a personalidade é um conjunto de atributos referentes à pessoa considerada em si mesma, tratando-se de “atributos próprios do ser humano, que lhe dão identidade e permitem que, juridicamente, se constitua ser individualizado” (SÁ; NAVES, 2017, p. 18). Refere-se então a uma aptidão genericamente reconhecida, por meio da qual toda pessoa é dotada de personalidade e tem a chance “de ser titular de relações jurídicas e de reclamar o exercício da cidadania, garantida constitucionalmente, que será implementada através dos direitos da personalidade”. (FARIA; ROSENVALD, 2017, p. 180). Diante disso, a personalidade reveste a pessoa, e os direitos da personalidade centralizam-se na parte objetiva, analisando aspectos como por exemplo: imagem, privacidade, intimidade, nome, integridade física, manifestações por meio de palavra ou representações artísticas, etc (SÁ; NAVES, 2017, grifo nosso). “Os direitos da personalidade voltam-se para os aspectos extrapatrimoniais da pessoa; aqueles que definem e garantem sua dignidade” (SÁ; NAVES, 2017, p. 18).
O artigo 2º do Código Civil (BRASIL, 2002) trata do começo da personalidade civil: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” (BRASIL, 2002). A primeira parte do presente artigo diz que o começo da personalidade civil se dá com o nascimento com vida, neste caso existe alguns requisitos para se tornar pessoa: 1. Ocorre o nascimento quando a criança é separada do ventre materno, não importando a forma do parto; 2. É necessário que a criança tenha sido retirada com vida e que tenha respirado. (GAGLIANO, 2017).
A segunda parte do artigo versa a respeito dos direitos do nascituro, resguardados desde a concepção, sendo esse o momento que começa a formação do novo ser. Entretanto, de que forma o nascituro é visto dentro do ordenamento jurídico? Quais são as teorias que lhe foram atribuídas? Este “ser” tem direito a personalidade, haja vista que esta está ligada à capacidade?
Antes de adentrar no tema do nascituro, tornou-se necessário realizar uma breve exposição sobre a Teoria Geral do Direito para visualizar como ordenamento jurídico faz o iter até chegar no que se considera pessoa. Faz-se notório que o nascituro não percorre o caminho que é designado pelo artigo 1º e a primeira parte do artigo 2º do Código Civil (BRASIL, 2002), sendo até mesmo um ponto “fora da curva”, posto que, apesar de encontrar respaldo na segunda parte do artigo 2º, ainda há muitas divergências quanto a situação jurídica. Ressalta-se que três teorias procuraram explicar e justificar a situação jurídica do nascituro, sendo estas:
a) Teoria natalista: “afirma que a personalidade civil somente se inicia com o nascimento com vida” ( FARIA; ROSENVALD, 2017, p. 102).
b) Teoria da personalidade condicional: “sustenta que o nascituro é pessoa condicional, pois a aquisição da personalidade acha-se sob a depedência de condição suspensiva, o nascimento com vida” ( FARIA; ROSENVALD, 2017, p. 102).
c) Teoria concepcionalista: “admite que se adquire a personalidade antes do nascimento, ou seja, desde a concepção, ressalvados apenas os direitos patrimoniais, decorrentes de herança, legado e doação, que ficam condicionados ao nascimento com vida” (FARIA; ROSENVALD, 2017, p. 102).
O autor Pablo Stolze Gagliano (2017) adverte que os doutrinadores tradicionais, como: “Silvio Rodrigues, Caio Mário da Silva Pereira, Sílvio Venosa e San Tiago Dantas” (CAMARGO, 2016); adotam a teoria natalista, fazendo com que o nascituro possua mera expectativa de direito.
Embora essa teoria tenha sido a escolhida pela doutrina clássica, há uma grande indagação se tal teoria realmente seria a que melhor atenderia aos anseios quanto à personalidade do nascituro. Logo, que o Supremo Tribunal Federal ainda não tem um entendimento pacificado, seguindo ora a teoria natalista, ora a concepcionalista.
Por vez, a teoria concepcionalista tem sido adotada por doutrinadores contemporâneos como: “Pablo Stolze, Rodolfo Pamplona, Cristiano Chaves, Flávio Tartuce, Maria Berenice Dias, Pontes de Mirada, Rubens Limongi França, Maria Helena Dinizi, Teixeira de Freitas, Silmara Chinellato, além de outros” (CARMARGO, 2016). Consonante a tal entendimento, o Supremo Tribunal de Justiça, tem apoiado a teoria concepcionalista, como demonstra o informativo 574/2014.
O grande questionamento em volta dessas teorias é quanto ao direito da personalidade do nascituro.
As teorias que foram supracitadas vieram com o intuito de “apaziguar” o entendimento quanto ao começo dos direitos da personalidade do nascituro. Nota-se que a teoria concepcionalista, em conformidade com o contexto social, tornou-se o “o entendimento doutrinário majoritário, em relação à doutrina contemporânea” (CAMARGO, 2016), não significando que a teoria adotada pelo modelo clássico foi descartada, haja vista que o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, até o presente momento, não se posicionou quanto a teoria que deverá ser utilizada para todos os casos referentes a essa matéria (GONÇALVES, 2017).
Dessarte, pode-se afirmar que os direitos da personalidade são direitos pessoais de caráter existencial e que contém algumas características, sendo estas (SÁ; NAVES, 2017):
a) Absolutos: há o dever de abstenção de atos lesivos ao direito da personalidade;
b) Necessários: são essenciais à dignidade e à integridade humana, pois resultam na proteção dos bens mais expressivos, porquanto definidores da própria existência;
c) Vitalícios: acompanha a vida humana;
d) Indisponíveis: o titular o tem independentemente da vontade;
e) Extrapatrimoniais: não são suscetíveis de avaliação econômica;
f) Intransmissíveis: é personalíssimo, ou seja, só aquela pessoa é detentora de tal direito, não sendo passível de substituição;
g) Imprescritíveis: os direitos da personalidade não se extinguem pela inércia do titular;
h) Impenhoráveis: não podem ser executados e penhorados judicialmente.
Logo, se a personalidade é uma aptidão genérica para o sujeito, o que poderá existir como condição para essa titularidade são os critérios implementados frente ao concreto, como por exemplo: estabelecer uma idade mínima, tempo de contribuição, etc. O nascituro, portanto, “poderá titularizar direitos, patrimoniais ou existenciais, compatíveis com a sua condição.” (SÁ; NAVES, 2017, p. 43). Maria de Fátima Freire de Sá e Bruno Torquato de Oliveira Naves (2017) informam que isso será aplicado inclusive no que tange aos direitos da personalidade, como por exemplo: o direito à vida, à imagem, à integridade física.
Nota-se que a norma jurídica por diversas vezes outorga direitos e determina obrigações a depender da situação em que o nascituro se figura como titular no caso concreto. Pablo Stolze Gagliano (2017) traz um quadro esquemático a respeito do nascituro e a proteção legal dos direitos que lhe foram concedidos desde a concepção:
a) o nascituro é titular de direitos personalíssimos (como o direito à vida, o direito à proteção, pré-natal, etc.);
b) pode receber doação, sem prejuízo do recolhimento do imposto de tramissão inter vivos;
c) pode ser beneficiado por legado e herança;
d) o Código Penal tipifica o crime de aborto;
e) como decorrência da proteção conferida pelos direitos da personalidade, o nascituro tem direito à realização do exame de DNA, para efeito de aferição de paternidade (GAGLIANO, 2017, p. 172)
O referido autor aborda ainda que no âmbito do Direito do Trabalho, destaca-se a estabilidade da gestante, “contado do início da gravidez, mesmo que seja do desconhecimento do empregado e empregador” (GAGLIANO, 2017, p. 173). Além disso, o nascituro tem direito aos alimentos gravídicos, conforme expresso na Lei n.11.804, de novembro de 2008, e de acordo com o informativo 606 do Supremo Tribunal de Justiça, em Agosto de 2017, estabeleceu-se que caso haja o nascimento da criança, os alimentos serão convertidos em provisórios ou definitivos, somente podendo ser revistos por ação própria.
O nascituro possui ainda a legitmidade para promover as ações de tutela dos direitos da personalidade. “A doutrina e jurisprudência, independentemente da corrente a que se filiam, têm sustentado que o nascituro já é o titular de direitos da personalidade” (SÁ; NAVES, 2017, p. 54), ou seja, apesar da genitora formalizar a ação, o direito que estará sendo questionado será de titularidade do nascituro e não da genitora.
Em remate, evidenciou-se no pensamento de Maria de Fátima e Bruno Torquato Naves (2017) que o nascituro é detentor dos direitos da personalidade e da personalidade jurídica, que são genericamente atribuídos a todos. Todavia, Carlos Roberto Gonçalves (2017) demonstra que a teoria natalista e a concepcionalista deverão ser utilizadas em momento distintos. O referido autor, sustenta que a teoria concepcionalista deverá ser aplicada quanto aos direitos da personalidade, posto que a Constituição Federal, no artigo 5º (BRASIL, [2018]), traz à vida humana como um bem supremo, devendo esta ser entendida “como o direito ao respeito à vida do próprio titular e de todos” (GONÇALVES, 2017, p. 210). Já a teoria natalista incidirá quanto as questões de cunho patrimonial, ou seja, “o nascimento com vida não é uma condição para a aquisição da personalidade, porém alguns direitos só podem ser exercidos por aqueles que já existem fisicamente na ordem civil” (SILVA; MIRANDA, 2011 apud GONÇALVES, 2007).
Nota-se, que não há uma resolução ainda para a situação jurídica do nascituro, uma vez que ao se adotar a teoria natalista, ignora-se a segunda parte do artigo 2º do Código Civil (BRASIL, 2002) e, ao concordar com a teoria concepcionalista, desconsidera-se a primeira parte do referido artigo. Todavia, torna-se necessário fazer um breve adentro quanto a personalidade do nascituro como centro de imputação normativa, a fim de compreender que a concepção tradicionalista se tornou ultrapassada, principalmente quanto ao conceito de relação jurídica dentro do próprio ordenamento jurídico.
3.4 A personalidade do nascituro como Centro de Imputação Normativa
Em consonância ao que foi explicitado ao longo deste capítulo, faz-se necessário demonstrar a personalidade do nascituro como Centro de Imputação Normativa. Nessa perspectiva, ao trabalhar com a Teoria Geral do Direito como alicerce para se compreender como é determinado o início da personalidade civil, demonstrou-se que o direito à personalidade é aquilo que torna um ser individualizado e faz com que este consiga estabelecer relações jurídicas dentro do ordenamento jurídico.
Maria de Fátima Freire de Sá e Bruno Torquato de Oliveira Naves (p.74, 2018), trazem à baila que a doutrina tradicional define a relação jurídica como “o vínculo entre dois ou mais sujeitos, estabelecido em virtude de um objeto”, e que essa “relação jurídica” está correlacionada diretamente a um direito subjetivo. Assim:
Para essa concepção personalista ou intersubjetiva, são sujeitos da relação jurídica aqueles entes dotados de personalidade jurídica, que estabelecem entre si um vínculo reconhecido pelo ordenamento como vicssitude ou efeito jurídico (SÁ; NAVES, p.74, 2018, grifo nosso).
Logo, os sujeitos dentro do ordenamento jurídico são titulares de direitos e deveres “concedidos” por lei, fazendo com que duas figuras coexistam: o sujeito ativo – que é aquele que detém o poder de exigir um determinado comportamento –, e sujeito passivo – que é aquele que não só tem o dever de prestar a obrigação, mas como também possui o direito de prestar a obrigação –.
Todavia, Sá e Naves (p.74, 2018) cita Orlando Gomes (2000) a respeito de uma crítica feita pelo autor, em que afirma ser “desnecessária a noção ontologizante e subjetivizante da relação jurídica” (GOMES, 2000 apud SÁ; NAVES, 2018). Gomes (2000) demonstra que dentro dessa “idealização” conceitual a respeito do que seria personalidade dentro do ordenamento jurídico, existe situações que estariam fora dos contornos delimitados pela lei e que dispensariam a intersubjetividade, adentrando, portanto, nas situações subjetivas. Tais situações se estabeleceriam no “direito potestativo, o ônus, o interesse legítimo, o poder, a faculdade, a sujeição, além do direito subjetivo e do dever jurídico” (SÁ; NAVES, p.74, 2018).
Não obstante, Sá e Naves (2018) abordam uma visão mais contemporânea do autor Pietro Perlingieri (1999), em que este faz um confronto entre a teoria da situação jurídica subjetiva vs. conceito de relação jurídica. Segundo Perlingieri (1999) a situação jurídica subjetiva é caracterizada como:
[...] categoria geral de avaliação do agir humano; é um centro de interesses tutelados pelo ordenamento jurídico. Sempre há, na situação jurídica, um interesse que se manifesta em comportamento. Esse é o elemento essencial da situação. O sujeito é elemento acidental, pois há interesses tutelados pelo Direito que ainda não possuem titular (PERLINGIERI, 1999, p.107 apud SÁ; NAVES, 2018, p.75).
Para Perlingieri (1999), existem direitos que precisam ser salvaguardados pelo ordenamento jurídico mesmo que não possua um titular já nascido (o nascituro). Tendo em conta essa situação, denota-se que próprio código civil (BRASIL, 2002) estabelece que o nascituro pode ser detentor de alguns direitos, como por exemplo: doação, herança, pensão alimentícia, entre outros (PERLINGIERI, 1999 apud SÁ; NAVES, 2018). Diante disso, “há, no caso, um interesse tutelado, mas seu titular ainda não existe, pois só se constitui ‘sujeito’, a partir do nascimento com vida” (PERLINGIERI, 1999, p.107 apud SÁ; NAVES, 2018, p.75).
Já a relação jurídica é a “relação entre situações subjetivas”, independe de ter dois sujeitos dentro da relação, sendo que o diferencial dentro da relação deverá ser “centro de interesses” (PERLINGIERI, 1999 apud SÁ; NAVES, 2018). “ O sujeito é somente um elemento externo à relação porque externo à situação é; é somente o titular, às vezes ocasional, de uma ou de ambas as situações que compõe a relação jurídica” (PERLINGIERI, 1999, p.115 apud SÁ; NAVES, 2018, p.76).
Uma relação jurídica poderia ser a relação entre a situação jurídica de direito subjetivo e a situação jurídica de dever jurídico. Assim, a relação jurídica, segundo esse autor, é a normativa harmonizadora das situações jurídicas, ou seja, a ligação entre duas situações jurídicas (SÁ; NAVES, 2018, p.76).
Diante do exposto, Sá e Naves (2018) com fulcro nos ensinamentos de Perlingieri (1999), entendem que a situação jurídica não pode ser estabelecida apenas entre os entes nascidos, ou seja, o direito não pode ficar preso a uma perspectiva tradicionalista, principalmente pelo fato do artigo 2º do Código Civil ([2019]) trazer como ditame que o começo da personalidade civil se dá com o nascimento com vida, sendo que a lei protege os direitos do nascituro, desde a concepção. Nesse diapasão, a partir do momento em que se cria um rol de categorias que inclui determinados detentores de direitos subjetivos, estabelece-se um “rol paralelo de entes que abstratamente foram excluídos de participar do fênomeno jurídico, sem que isso seja necessariamente verdade” (SÁ; NAVES, 2018, p.76).
Uma vez mais, afirmamos: o nasccituro pode receber doação; ser legatário; ver-se representado por um curador ao ventre em caso de conflito de interesses com a mãe ou mesmo em caso de incapacidade dessa; possuir capacidade de ser parte em ação judicial – sendo autor em ação de alimentos e ação de investigação e reconhecimento de paternidade, e réu em ação anulatória de testamento ou de contrato de doação que o contemple. Portanto, não há como lhe negar personalidade (SÁ; NAVES, 2018, p.76, grifo nosso).
Conclui-se, para tanto, que dentro dessa perspectiva, houve uma superação quanto a concepção tradicionalista, fazendo com que a personalidade possa ser vista como um centro de imputação de liberdades e não liberdades, não estando ancorado apenas na delimitação conceitual de “direitos e deveres correlatos”, mas trabalhando dentro de um contexto aberto, abrangente (SÁ; NAVES, 2018, p.76). Sem sombra de dúvidas, independentemente de qual teoria seja adotada pelo ordenamento jurídico e pela doutrina, o nascituro como centro de imputação normativa não precisa estar vinculado a nenhuma teoria para que lhe seja atribuída personalidade (SÁ; NAVES, 2018, p.78). Ressalta-se que “não é possível afirmar que o nascituro é pessoa em relação aos direitos da personalidade [...] a não ser em outras situações, como em direitos patrimoniais; ou se é pessoa ou não se é pessoa” (SÁ; NAVES, 2018, p.78). Ademais, Sá e Naves (2018) refutam os críticos que dizem que o nascituro é apenas detentor de capacidade processual, pois “se há possibilidade judiciária de se discutir situações jurídicas, ao nascituro não cabe apenas capacidade processual, mas personalidade civil” (SÁ; NAVES, 2018, p.78).
Por derradeiro, diante de tudo o que já foi exposto nesses dois capítulos, é necessário correlacionar de que forma a Bioética e do Biodireito conduziram o nascituro a ter relevância na seara jurisdicional. Afinal, qual a importância da Bioética e do Biodireito para os direitos do nascituro?
O artigo 5º da Constituição Federal (BRASIL, 1988), versa sobre “Direitos e Garantias Fundamentais. O caput aduz que:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade[...] (BRASIL, 1988, grifo nosso).
O inciso III aborda que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (BRASIL, 1988). Já o inciso X traz que “são invioláveis à intimidade, à vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (BRASIL, 1988).
Cumpre observar que os direitos fundamentais e da saúde não foram sistematizados somente no direito, mas também o Código de Ética Médica (que é uma resolução). O primeiro Código de Ética Médica foi publicado em 1867 e desde então, têm como escopo sustentar, promover e preservar “o prestígio profissional, proteger a união da categoria, garantir à sociedade padrões de prática, estabelecer valores, deveres e virtudes profissionais.” (SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA, 2018). Todavia, em 2018, publicou-se um Código de Ética Médica revisado, que atualizou as práticas relacionadas aos profissionais de saúde frente as inovações tecnológicas, comunicacionais e sociais, reforçando o compromisso dos médicos com o respeito à vida, aos pacientes, assim como o exercício profissional amplo, “sem discriminação de nenhuma natureza” (SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA, 2018).
Nesse sentido deve-se dizer que o indivíduo é responsável pela eclosão de tais regras normativas, tendo em vista que sem este, não faria sentido estipular princípios substanciais que não podem ser infringidos. A dignidade humana teve tamanha magnitude que fez com que a Bioética e o Biodireito se tornassem mais humanistas, estabelecendo uma conexão com a justiça, dado que os direitos humanos emanam da condição humana e das necessidades fundamentais de todos os seres, visando à preservação da integridade e da dignidade dos seres humanos e a plena realização da personalidade.
Salienta José Afonso da Silva (2007) que a dignidade da pessoa humana “é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida” (SILVA, 2007, p. 105).
Pelo exposto, torna-se notório que para responder à pergunta do presente tópico é imprescindível a análise ser separada em duas vertentes, subjetiva e objetiva:
1. Subjetiva: Essa vertente é pautada no indivíduo como detentor de direitos e deveres perante a sociedade e ao ordenamento jurídico. Analisa-se não apenas a garantia dos Direitos Fundamentais, conforme institui a Constituição Federal da República (BRASIL, 1988), mas também a autonomia do paciente quanto a conduta ética do profissional da medicina. No mais, evidencia-se como a biotecnologia é capaz de intervir na vida do ser humano, acarretando tanto benefícios, quanto malefícios.
Dessa forma, o nascituro visto sob o prisma subjetivo, traz à tona a questão do direito à vida. Em que pese, este é o escopo primordial tanto da ética médica quanto do âmbito jurídico, tendo em vista que o ser que vive de forma intra-uterina, em breve se tornará o ser humano que irá compor uma dada sociedade. Logo, independentemente do reconhecimento da personalidade ou dos direitos da personalidade – mesmo que estes estejam expressamente legislados no Código Civil ([2019]) e sejam reconhecidos pelos legisladores – o que deve ser visualizado essencialmente são as garantias fundamentais que todos os seres tem.
2. Objetivo: É a exteriorização realizada por intermédio da Bioética e do Biodireito. Os referidos institutos se complementam na medida que sem os pressupostos finitos da Bioética – zetética –, o Biodireito não teria a possibilidade de estabelecer os preceitos fechados – dogmática –. Contudo, não são externados apenas dessa forma, haja vista que os princípios vieram como mandados de otimização para os chamados hard cases, na tentativa de acompanhar simultaneamente o desenvolvimento social, seja através de novos métodos tecnológicos, ou por mudança de um determinado comportamento social que antigamente era aceito e hoje não mais, até mesmo para tratar com dignidade todos os seres humanos já nascidos e aqueles que ainda irão nascer, concedendo-lhe direitos e legitimação para determinados atos na vida civil.
Acorda-se portanto, que essas duas linhas traçadas se encontram interligadas umbilicalmente, uma vez que sem o despontamento do âmbito subjetivo, não será possível que haja uma tutela através do âmbito objetivo. Dessarte, o Biodireito vem para tutelar as questões Bioéticas e biotecnológicas, sendo que estas se pautam no indivíduo, como ser juridicamente protegido no ordenamento jurídico. Em função disso, a importância desses dois institutos para os direitos do nascituro é de garantir que não sejam cometidos atos desumanos, possibilitando a dignidade desde a vida intra-uterina, demonstrando que independentemente do nascimento haverá um respaldo jurídico, científico e tecnológico que viabilizará a existência deste ser dentro de uma determinada sociedade.
Comparativamente à um jogo de xadrez, o nascituro tornou-se uma das peças que ainda não alcançaram o xeque-mate, haja vista que os institutos ainda não foram capazes de sanar as divergências quanto a situação jurídica deste e explanar plenamente a importância que esse ser tem para a medicina e para o direito. Como pode ser percebido, realiza-se indagações até os dias de hoje a respeito da biotecnologia frente às limitações do ordenamento jurídico, porque este se amolda compativelmente ao desenvolvimento social.
Ao longo do artigo e dos pontos elucidados, torna-se factível assentar que o nascituro não foi o ponto de partida da Bioética e do Biodireito. Evidenciou-se na verdade, que a linha tênue entre a ética médica e a autonomia do paciente havia sido transgredida inúmeras vezes, tendo em conta que os cientistas, por conduzirem o uso da tecnologia como fonte de pesquisa e, de aperfeiçoamento para a cura de determinadas doenças que irradiavam numa dada época, corroboravam com uma visão de endeusamento.
Em virtude de tais considerações, o designo do presente artigo baseia-se no aperfeiçoamento temático de institutos que não são tão conhecidos (pelos graduandos), mas que revelam manifesta importância dada a complexidade do tema. O crescimento exponencial da tecnologia rompe com os preceitos conservadoristas do Direito, deslocando o enfoque dogmático a fim de tracejar novos prismas que são de extrema relevância para o desenvolvimento geral.
O trabalho pode ser dividido em dois marcos: as grandes guerras e o advento da Constituição de 1988. Nesse sentido, deve-se dizer que se uma gama de acontecimentos negativos não tivesse acontecido, provavelmente uma constituição que tem como intento de proteger os direitos humanos não teria sido elaborada. Dessa forma, a Bioética e o Biodireito são fomentadores para a perspectiva humanista que até os dias atuais encontra-se presente no ordenamento jurídico. Todavia essa perspectiva ocasionou uma instabilidade dentro do modelo intrasistêmico que transmutou-se para diretrizes mais abertas, com auxílio dos princípios.
Dessarte, médicos que fazem uso das tecnologias com o objetivo de preservar a vida humana ou de gerar uma vida humana, provoca grandes polêmicas no sistema jurisdicional, tendo em consideração que se a personalidade e os direitos da personalidade se tornam motivadoras de ilimitadas discussões, como por exemplo: se o reconhecimento de tais direitos se dá com o nascimento ou com a concepção – aspecto temporal; imagine a repercussão de uma produção independente? O Direito estaria então caminhando pari passu com a tecnologia? Esgota-se a compreensão do direito à vida e dos direitos do nascituro somente por estarem garantidas constitucionalmente e infraconstitucionalmente?
Portanto, pelo exposto, é notório que a Bioética e o Biodireito se integram e se completam, apesar de cada instituto contemplar peculiaridades únicas. Já o nascituro, sendo importante tanto no aspecto subjetivo quanto no objetivo, encontra-se salvaguardado especialmente pela Constituição Federal da República de 1988 e pelo Código Civil de 2002, sendo ”posto” como o inicío e o prolongamento da vida.
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[1] Coordenadora e Chefe de Departamento da Faculdade Mineira de Direito – Unidade Coração Eucarístico. Doutora em Direito Privado pela Universidad de Deusto. Professora titular da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Advogada. Belo Horizonte. E-mail: [email protected]
Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito Médico e Bioética pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestranda em Direito Privado na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pesquisadora do Cebidjusbiomed. Assessora Jurídica do Núcleo Acadêmico de Pesquisa.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Mariana Cardoso Penido dos. A importância da bioética e do biodireito para os direitos do nascituro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 jun 2021, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56897/a-importncia-da-biotica-e-do-biodireito-para-os-direitos-do-nascituro. Acesso em: 23 dez 2024.
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