MARCOS HENRIQUE CALDARELI TAVARES[1]
(coautor)
BÁRBARA HELEN ABREU VALADARES[2]
(orientador)
Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar a aplicabilidade da prova ilícita no processo penal como mecanismo de se alcançar a verdade real. A metodologia utilizada foi o estudo bibliográfico, com o levantamento e utilização de obras jurídicas que pudessem fornecer elementos a fim de sanar dúvidas e subsidiar a consecução do trabalho. Para tanto, buscou-se compreender a maior quantidade de informações possíveis no que concerne aos elementos que envolvem a problemática da prova no processo penal para que, desta forma, fosse possível verificar se a prova obtida de forma ilícita poderia utilizada como fundamento para uma decisão. Parte-se do pressuposto teórico de que a prova pode ser produzida de diversas formas e é preciso considerar que, algumas dessas formas de obtenção da prova a tornam ilícita. Também foi pressuposto teórico para a elaboração desse trabalho a concepção de que, apesar de ser um ideário, a verdade real é um marco teleológico do Direito Processual Penal, porquanto não pode ser ignorada. Concluiu-se que para se alcançar a verdade real, a prova ilícita poderá ser utilizada como meio probatório.
Palavras-chave: Direito Processual Penal. Prova Ilícita. Persecução Penal. Verdade Real.
Abstract: This article aims to analyze the applicability of illicit evidence in criminal proceedings as a mechanism to reach the real truth. The methodology used was the bibliographic study, with the survey and use of legal works that could provide elements in order to answer doubts and subsidize the accomplishment of the work. To this end, we sought to understand the largest amount of information possible with regard to the elements that involve the problem of evidence in criminal proceedings so that, in this way, it was possible to verify whether the evidence obtained in an unlawful manner could be applied in criminal proceedings. It starts with the theoretical assumption that evidence can be produced in different ways and, it is necessary to consider that, some of these ways of obtaining evidence make it illegal. The theoretical assumption for the elaboration of this work was also the conception that, despite being an ideal, the real truth is a teleological framework of Criminal Procedural Law, as it cannot be ignored. It was concluded that in order to reach the real truth, illicit evidence can be used as a means of evidence.
Keywords: Criminal Procedural Law. Unlawful proof. Criminal Persecution. Real truth.
Sumário: Introdução. 1. Sobre o mito e o dogma da verdade real. 2. Os meios de prova no Direito Processual Penal. 3. Limites a produção das provas no processo penal. 3.1. Definição de Prova Ilícita e esta por derivação. 3.2. A Teoria dos Frutos da Árvore envenenada. 3.3. O Aproveitamento da prova com exclusão de ilicitude. 3.4. A aplicação do princípio da proporcionalidade no aproveitamento da prova ilícita. 4. A garantia da liberdade como limite ao Jus Puniendi. Conclusão. Referências.
Introdução
Quando um trabalho se refere a provas no processo penal, o olhar já se torna mais rigoroso haja vista a importância desse tema para a persecução penal. Como sabido, não há condenação sem provas, já que no ordenamento jurídico brasileiro não se presume a culpa, mas sim a inocência. Por essa razão, estudar as nuanças envolvendo esse tema se mostra algo absolutamente imprescindível.
A verdade real apresenta-se como um ideário buscado no processo penal tal como a felicidade é buscada na vida. É sabido que talvez seja algo impossível de se alcançar, mas é importante persegui-la. Isso não quer dizer, contudo, que todo esforço e todo mecanismo disponível seja legítimo para se alcançar (ou se buscar) essa verdade real. Isso porque o processo penal brasileiro guarda subserviência à Constituição Federal de 1988, que impõe normas rigorosas no que concerne à atividade investigativa e probante no âmbito do processo penal.
A aplicabilidade da prova ilícita como mecanismo para se tentar alcançar a verdade real é, portanto, situação controversa porque coloca em zona de conflito dois valores distintos e aparentemente opostos: o desejo do deslinde verdadeiro da contenda penal e o dever de preservação da garantia do acusado a uma persecução penal submissa à lei.
No ordenamento jurídico brasileiro a prova ilícita é vedada e deve ser desentranhada do processo caso exista, mas, será que isso é algo absoluto? Não haveria uma hipótese sequer em que seria possível tolerar a ilicitude da prova para se alcançar um bem de igual ou maior valor? Mas como se definir qual é o valor/importância de um princípio/bem jurídico?
Por essas razões é necessário conhecer as nuanças desse tema. A aplicabilidade da prova ilícita como meio de se alcançar a verdade real é possível? Para se chegar a uma resposta necessário compreender o que seria verdade real, prova ilícita e outros conceitos indispensáveis à discussão que se pretende propor. Por essa razão, nas linhas abaixo serão tratadas as discussões que envolvem a prova, a verdade real, a ponderação de princípios e, por fim, se a prova ilícita pode ser utilizada sem representar ruptura ao garantismo e a limitação do jus puniendi estatal.
Todos os métodos de prova relativos ao processo penal estão sob o crivo do modelo processual adotado. O modelo vigente se firmou a contar da vigência da ordem constitucional em 1988, pronunciando-se como um sistema de formato acusatório, mas com resquícios de prevalência inquisitorial.
De acordo com Norberto Avena (2017, p.42) "a doutrina e a jurisprudência majoritária apontam o sistema acusatório. Entretanto, há orientação em sentido oposto, compreendendo no direito brasileiro o sistema misto ou inquisitivo garantista".
O modelo acusatório apresenta como principais características a separação das funções de acusar, julgar e defender, a publicidade dos atos processuais, a observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa, o entendimento de que o réu é sujeito detentor de direitos e a iniciativa probatória exclusiva das partes. Além disso, existe a possibilidade de impugnar decisões à luz do princípio do duplo grau de jurisdição e o sistema de provas adotado é o do livre convencimento motivado.
Dessa maneira, no sistema acusatório, o juiz deixa de exercer as três funções, e só deve se manifestar quando for provocado pela parte ou pelo Ministério Público, garantindo desse modo a imparcialidade do juiz, razão do modelo em destaque. (LIMA, 2017, p. 39)
Há longas datas tem-se fixado o equivocado entendimento acerca do princípio denominado verdade real, sobre a possibilidade do magistrado, com base apenas nas provas que lhe são exibidas, vislumbrar completamente tudo o que ocorreu na prática de um fato criminoso e comprovar essa verdade em sentença.
Antes de apontar as críticas pertinentes ao referido princípio, explana-se sobre as espécies existentes de verdade para confronto posterior, quais sejam: verdade formal, verdade real e verdade judicial. Definida como verdade formal a responsável pela intenção de estabelecer os limites da prova utilizável pelo julgador para proferir sua decisão, sendo então, a prova constante dos autos e produzida pelas partes.
Sobre a verdade formal Norberto Avena (2017, p. 45) destaca que o juiz deve “contentar-se com o resultado das manifestações formuladas pelas partes e limitar sua análise aos fatos por elas debatidos”.
O princípio da verdade real, apesar da denominação, não tem a conectividade com a verdade, aquela denominada fática, objetiva, que realmente ocorreu. De acordo com Norberto Avena (2017, p. 41) a partir desse princípio, o magistrado não precisa necessariamente se valer apenas das provas acostadas ao processo ou tampouco aquelas produzidas pelas partes, podendo, então, assumir postura ativa na sua produção das mesmas.
Detém liberdade para determinar a juntada aos autos de documentos de cuja existência tenha conhecimento, de ouvir testemunha que não tenha sido sequer apontada pelas partes, de determinar a realização de perícias não requisitadas, dentre outros, desde que sejam pertinentes ao fato narrado na ação penal.
Os princípios mencionados acima atuam em campos distintos, porém não se tratam de dois opostos. A verdade formal delimita a prova que será utilizada na racionalização da futura decisão e a verdade real concede a possibilidade de trazer aos autos provas independentemente da vontade ou iniciativa das partes.
Por tal razão afirma-se que não há verdade nos autos que não seja a verdade processual ou judicial pois esta será submetida à prova com várias peculiaridades e limitações, e com a qual o juiz decide, tomando-a como verdade real. Efetivamente, a função desempenhada pelo referido princípio no direito processual diverge bastante do proposto, pois não há como obter essa verdade, o uso indiscriminado do princípio mascara o caráter inquisitivo do Código de Processo Penal.
Pode-se afirmar que a verdade real é inconcebível, incabível e inacessível ao ser humano para se chegar à realidade do fato, e a todo tempo é invocada como fundamento para deferir pedidos formulados pelo Ministério Público ou para que o juiz determine a produção de provas de ofício, quando o limite deveria residir no fato de que o julgador não pode completar a atividade das partes concernente as provas até então produzidas. Uma verdade que não consta no processo, mas uma busca que extrapola os limites processuais, o que se torna um grande problema em todas as instâncias.
Acredita-se equivocadamente em duas premissas, primeiro a de que o juiz deve buscar a verdade real e a segunda que é possível alcançar a realidade dos fatos maneira objetiva, analisando-o com uma visão do sujeito/objeto, e não por meio da linguagem e/ou interpretação que inevitavelmente acaba contaminando a conclusão com conceitos prévios por qualquer indivíduo estar imerso em uma tradição. Contudo, não é possível ao juiz acessar diretamente os fatos, pois tudo que chega até ele será uma interpretação dos fatos, uma hermenêutica acerca deles. Pelos elementos probatórios produzidos pelas testemunhas e até mesmo sua própria interpretação, porquanto ainda que presenciasse uma conduta criminosa o diálogo com sua própria linguagem e a partir de suas próprias interpretações chegaria a uma conclusão, são de fato os preconceitos que direcionam esse resultado.
A interpretação é inseparável da aplicação. Destarte, o juiz não chega à verdade real, sendo também impossível a qualquer ser humano essa objetividade das coisas, dificilmente pode-se acessar a coisa em si. O magistrado sempre interpreta os fatos que, por sua vez, foram interpretados pelas testemunhas ouvidas nos autos do processo.
Tanto as testemunhas quanto o juiz não são capazes de se afastar de seus juízos prévios para contemplar o objeto a ser interpretado, o fazendo a partir do mundo no qual estão imersos em virtude de sua formação cultural, religiosa, política e etc.
No caso da testemunha, mesmo que esta presencie o fato, irá interpretá-lo e levar sua conclusão ao juiz, afastando-se cada vez mais da verdade objetiva, sendo que, não raramente, sequer presenciou a integralidade dos fatos. Não houve, na maioria das vezes, uma contemplação total acerca do ocorrido. Trata-se, em sua maioria, de instantes do fato, relacionados ao início da conduta ou ao momento anterior ao início da conduta, inviabilizando a verdade do fato que deveria ser entregue ao juiz.
Mesmo a objetividade figurando como uma de suas características, a prova testemunhal carrega consigo uma convicção pessoal sobre os fatos, devendo o juiz afastar essa subjetividade, o que se revela impossível por se tratar de um relato humano. Ademais, o próprio julgador, ao receber da testemunha uma interpretação do fato, faz dele novo juízo sob o seu entendimento. São percepções que são juntadas para no final se construir a verdade, como peças de um quebra-cabeça.
A título de reflexão: o que seria a verdade real? Considerando sua complexidade é inteligível afirmar que nem mesmo a pessoa que porventura presencie o fato criminoso pode ser considerada capaz de exprimir de forma fidedigna o citado crime, pois a circunstância de apenas o presenciar a capacita a discorrer somente com relação a um só momento dentro de um enredo que materializa o evento criminoso. Nem mesmo o autor da ação tem controle de tudo que se passa na execução.
Embora utilizando critérios distintos para a autenticação dos fatos alegados em juízo, a verdade manifestada em vias judiciais será sempre uma verdade restabelecida, correspondente à contribuição das partes e, eventualmente do juiz, quanto à indicação do seu convencimento. Sendo assim é incontestável que não se deve atribuir verdade real a nenhum julgado criminal.
2 Os meios de prova no Direito Processual Penal
Conforme bem salientam Nestor Távora e Rosmar Rodrigues (2017), os meios de prova são os mecanismos que viabilizam a percepção da realidade. Nesse sentido, portanto, importante é esclarecer que a prova se configura, na verdade, como uma valoração de um meio de prova. Assim sendo, um testemunho, por exemplo, é um meio de prova, e não a prova em si, pois a partir dele é possível extrair-se uma determinada percepção da realidade e é essa percepção, bem como sua relação para com o objeto analisado, que constrói a prova.
Quanto aos meios de prova importante destacar que não são eles restritivos. A busca pela recomposição mais precisa dos fatos (no já supracitado mítico dogma da verdade real) enseja uma abertura quanto os meios de prova que se possa utilizar no processo penal. Daí, portanto, Nestor Távora e Rosmar Rodrigues (2017) afirmam ser uma vertente libertária na produção probatória.
Segundo Távora e Rodrigues (2017), essa não taxatividade pode ser extraída do art. 155, parágrafo único, do Código de Processo Penal, quando este afirma que: “somente quanto ao estado das pessoas, serão observadas as restrições estabelecidas na lei civil”. (BRASIL, 1941) Portanto a liberdade na utilização dos meios de prova é a regra, sendo exceção as restrições. Dito isso, cumpre discorrer ainda que brevemente sobre os aspectos gerais dos meios de prova em espécie ou, mais precisamente, os mais comuns, já que não taxativos.
Primeiramente temos o interrogatório do acusado. Sabendo que, ao ser interrogado, o acusado goza da prerrogativa de manter-se em silêncio (haja vista não ter obrigação de produzir provas contra si), assim como que o ônus probatório é da acusação (tendo em vista a presunção de inocência do acusado), o interrogatório tem sido visto primordialmente como meio de defesa.
Contudo, apesar de ser meio de defesa, configura-se como recurso apto a ajudar no convencimento do juiz, dando a ele uma percepção da realidade, configurando-se assim, como meio de prova.
Sobre o interrogatório Renato de Lima Brasileiro, explica que:
“Interrogatório judicial é o ato processual por meio do qual o juiz ouve o acusado sobre sua pessoa e sobre a imputação que lhe é feita. É a oportunidade que o acusado tem de se dirigir diretamente ao magistrado, quer para apresentar a versão da defesa acerca da imputação que recai sobre a sua pessoa, podendo, inclusive, indicar meios de prova, quer para confessar, ou até mesmo para permanecer em silêncio, fornecendo apenas elementos relativos a sua qualificação.
[...]
[...] é meio de prova e de defesa. Na verdade, o interrogatório é essencialmente meio de autodefesa, porque eventualmente também pode funcionar como meio de prova, caso e quando o interrogando decida responder às perguntas formuladas. Na medida em que o magistrado pode se servir de elementos constantes do interrogatório para formar seu convencimento, também se trata de meio de prova”. (LIMA, 2017, p. 669-670)
O interrogatório do acusado, nas lições de Eugênio Pacelli (2017) se realiza em sede de audiência de instrução e julgamento nos procedimentos comum e sumário, devendo ser o último ato de audiência, preservando-se a possibilidade do acusado conhecer mais precisamente a matéria acusatória.
Ainda discorrendo sobre o interrogatório do acusado, Pacelli (2017) observa que a característica do interrogatório como meio de defesa implica a nulidade da audiência de instrução caso não haja a possibilidade por parte do réu de ver-se interrogado. Isso em virtude da violação frontal do princípio da ampla defesa.
De acordo com o art. 197, do Código de Processo Penal, “o valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância.”
Desse modo, a confissão, como se dessume da redação do art.197, do Código de Processo Penal constitui um elemento de prova assim como os demais, não gozando de primazia e necessitando de outros elementos que demonstrem a sua veracidade. Mais precisamente, o meio de prova seria aquilo que se confessa, ou seja, o conteúdo da confissão.
De acordo com Reis e Gonçalves (REIS; GONÇALVES, 2019, p. 389) a confissão é considerada divisível e retratável:
“Sua divisibilidade (ou cindibilidade) decorre da possibilidade de o juiz tomar como sincera apenas uma parte da confissão, desconsiderando outra parte por reputá-la insincera.
A retratabilidade consiste na faculdade de o acusado desdizer-se, ou seja, de apresentar nova versão negando a imputação, depois de haver confessado. A retratação, todavia, não vincula o magistrado, que, fundado no exame das provas em conjunto, poderá decidir pela veracidade da confissão que, posteriormente, foi objeto de retratação”. (REIS; GONÇALVES, 2019, p. 389)
Temos ainda o depoimento da testemunha, objeto do que se denomina prova testemunhal. É a partir desse relato, ou melhor dizendo, com base nele que surge a percepção sobre os fatos. Assim, de acordo com Lima (2017, p. 694) é a narrativa testemunhal (testemunho) o meio de prova da prova testemunhal.
O exame pericial é um meio de prova também imprescindível no processo penal. Isso porque nos crimes que deixam vestígios, ou seja, aqueles que são passíveis de diagnóstico em virtude dos sinais e/ou alterações materiais que causam, o Código de Processo Penal exige o exame de corpo de delito.
Conforme Aury Lopes Jr (2014), a perícia é um meio de prova que tem o fim de elucidar questões que estão além do que é cognoscível ao saber ordinário. Ou seja, é um meio de prova que, para ser produzido, pressupõe a expertise técnica, já que, através dos trabalhos dos peritos, são extraídas informações técnicas sobre as nuanças da ocorrência que dá ensejo à persecução penal.
Citando os demais, tais como a inspeção judicial, os indícios, etc. Paulo Rangel (2015) conclui asseverando que tudo aquilo que possa ser utilizado pelo juiz para se esclarecer os fatos e, assim, chegar a um fim justo na persecução penal, poderá ser considerado como um meio de prova.
Todos os meios de prova são importantes, isso porque a prova tem uma função no processo penal. Não se trata de um apêndice procedimental do processo; um mero capricho do legislador ordinário. Ela é elemento que viabiliza a condenação vez que, em obediência à presunção de inocência e às demais garantias constitucionais que a guarnecem (ampla defesa, contraditório, etc.), não pode haver condenação sem provas.
Nesse sentido, discorrendo acerca do conceito propriamente dito e sobre a função da prova, Aury Lopes Junior afirma que:
“O processo penal, inserido na complexidade do ritual judiciário, busca fazer uma reconstrução (aproximativa) de um fato passado. Através essencialmente- das provas, o processo pretende criar condições para que o juiz exerça sua atividade recognitiva, a partir da qual se produzirá o convencimento externado na sentença. É a prova que permite a atividade recognoscitiva do juiz em relação ao fato histórico (story of the case) narrado na peça acusatória. O processo penal e a prova nela admitida integram o que se poderia chamar de modos de construção do convencimento do julgador, que formará sua convicção e legitimará o poder contido na sentença”. (LOPES JÚNIOR, 2014, p. 390)
Sendo assim o juiz conhece o fato e através das provas terá a oportunidade de analisá-lo. As provas são elementos que representam algum significado e sentido, seja através da linguagem verbal ou não verbal, configuradas de diversas maneiras propiciando essa futura análise aproximada do fato. Pode-se afirmar que os processos estabelecem o ocorrido, a possível parte autora, incumbe as partes apresentar conjecturas, e ao juiz recepcionar a mais plausível, com precisa obediência às normas.
O princípio da liberdade probatória, conforme dito acima, pode ser inferido do artigo 155, parágrafo único, do Código de Processual Penal, quando este aduz que, somente quanto ao estado das pessoas, serão observadas as restrições estabelecidas na lei civil. Portanto, a diversidade dos meios de prova é a regra, sendo exceção as restrições. Assim, está-se determinado, portanto, o direito das partes de provarem fatos relevantes ao processo, valendo-se de qualquer meio de prova. Tal liberdade se restringe, contudo, aos termos previstos pelo Código Processual Penal Brasileiro e às diretrizes impostas pela Constituição Federal.
Obviamente, não seria crível uma liberdade probatória absoluta, mesmo porque há outros direitos individuais que devem ser respeitados (dignidade, ampla defesa, contraditório) e que não permitem uma tutela processual penal que busque a comprovação de fatos a qualquer custo. Nesse sentido é a compreensão de Nestor Távora e Rosmar Rodrigues (2017, p.628) quando aduzem que “seria impensável uma persecução criminal ilimitada, sem parâmetros, onde os fins justificassem os meios, inclusive na admissão de provas ilícitas”.
Ainda conforme Nestor Távora e Rosmar Rodrigues (2017, p.628), ao citarem Paulo Rangel, a vedação probatória é inerente ao Estado democrático de Direito, já que este não admite a prova do fato e, consequentemente, punição do indivíduo a qualquer preço, custe o que custar.
Por isso, conforme destacam Nestor Távora e Rosmar Rodrigues (2017), o princípio da liberdade probatória não é absoluto. Encontra vedações, dentre elas a inadmissão, no processo, “das provas obtidas por meios ilícitos”, consoante o disposto no art. 5º inciso LVI, da Constituição Federal.
Por essa razão, se mostra necessário entender o que seja prova ilícita, desmembrando esse entendimento e compreendendo sua amplitude. O conceito de prova ilícita, bem como os seus desdobramentos (prova ilegítima e prova ilícita por derivação) se ampara em teorias que surgiram ao longo da história do processo penal. Nos tópicos que se seguem, serão trazidos os conceitos e exposições acerca dessas teorias.
Primeiramente importante destacar que prova ilícita é espécie do gênero prova vedada ou proibida. Assim temos as provas ilícitas, mas também as provas ilegítimas. Resumidamente, as provas ilícitas violam disposições de direito material e/ou normas constitucionais, enquanto que as provas ilegítimas violam normas processuais ou princípios constitucionais processuais.
As provas ilícitas são aquelas alcançadas de forma ilegal, contrariando e desconsiderando os preceitos constitucionais ou de direito material, isto é, uma prova obtida com violação de uma norma de natureza material penal ou da norma constitucional.
Essas provas, à luz do que determina o artigo 157 do Código de Processo Penal, são inadmissíveis, “devendo ser desentranhadas do processo” (BRASIL, 1940)
Como se nota do dispositivo, o efeito da ilicitude é o desentranhamento da prova do processo e a sua completa inutilização. Aqui, importante esclarecer que tanto a Constituição Federal como o Código de Processo Penal, não fazem uma diferenciação entre provas ilícitas ou ilegítimas, de forma que, em ambos os casos, após ouvir as partes, o magistrado determinará seu desentranhamento dos autos.
Além das provas ilícitas diretamente, há aquelas que são ilícitas por derivação, porque decorrer de uma prova ilícita e o vício a elas se estende. Sobre a definição do que seria prova ilícita por derivação, temos a lição de Fernando Capez que, com propriedade, disserta sobre o tema:
“A doutrina e a jurisprudência, em regra, tendem também a repelir as chamadas provas ilícitas por derivação, que são aquelas em si mesmas lícitas, mas produzidas a partir de outra ilegalmente obtida. É o caso da confissão extorquida mediante tortura, que venha a fornecer informações corretas a respeito do lugar onde se encontra o produto do crime, propiciando a sua regular apreensão. Esta última prova, a despeito de ser regular, estaria contaminada pelo vício na origem. Outro exemplo seria o da interceptação telefônica clandestina – crime punido com pena de reclusão de dois a quatro anos, além de multa (art. 10 da Lei n. 9.296/96) – por intermédio da qual o órgão policial descobre uma testemunha do fato que, em depoimento regularmente prestado, incrimina o acusado”. (CAPEZ, 2020, p. 602-603).
Conforme explicou Fernando Capez (2020, p. 602-603), as provas ilícitas por derivação são costumeiramente inutilizáveis no processo penal, vez que decorrem de um meio de prova inidôneo, sendo, dessa forma, igualmente imprestáveis para a comprovação de um fato nos auto de um processo.
Sobre as provas ilícitas, Eugênio Pacelli (2017) traz importante lição sobre as funções das normas do art. 157 e do art. 5º inciso LVI da Constituição Federal. Segundo o autor, trata-se de algo mais que uma preocupação ética no trato das questões do Direito, sendo, na verdade, um verdadeiro controle da regularidade estatal persecutória. Isso porque, segundo o processualista, as normas referidas inibem práticas probatórias ilegais por quem é o maior responsável por produzir provas.
No âmbito da problemática acerca da prova ilícita, bem como da prova ilícita por derivação, surgiram teorias que são importantes e devem ser trabalhadas aqui, conforme foi dito em tópico anterior. A mais importante delas é a teoria dos frutos da árvore envenenada, que explica a lógica pela qual se considera ilícita a prova oriunda de outra que também o seja.
A teoria dos frutos da árvore envenenada surgiu com o intuito de demonstrar o raciocínio pelo qual uma prova derivada de uma prova ilícita também seria ilícita. Segundo Pacelli (2017), trata-se de teoria que se atribui à jurisprudência norte americana.
Para o processualista mineiro, a teoria surgiu como solução para impedir que oportunistas se valessem de uma prova aparentemente lícita, mas que só se pôde obter através de uma outra que é ilícita. Nas palavras do autor, “se os agentes produtores da prova ilícita pudessem dela se valer para a obtenção de novas provas, a cuja existência somente se teria chegado a partir daquela (ilícita), a ilicitude da conduta seria facilmente contornável”. (PACELLI, 2017. p.191)
Nestor Távora e Rosmar Rodrigues (2017), dissertando sobre o tema, aduzem que essa teoria é, de fato, de origem norte-americana e representa uma metáfora na qual o fruto é a prova derivada e a árvore é a prova originária, utilizando a lógica de origem (fruto originado pela árvore). Assim, a árvore envenenada (prova ilícita) só pode originar frutos igualmente envenenados (prova ilícita por derivação), pois estes herdam, em virtude de sua origem, o vício congênito.
Grosso modo, temos que todas as provas que forem produzidas a partir de um prova ilícita, também serão consideradas ilícitas. Realmente, conforme bem esclarecem Nestor Távora e Rosmar Rodrigues (2017), não tem como uma prova ilícita ser capaz de produzir provas que também não sejam ilícitas.
Aury Lopes Júnior (2014), ao dissertar sobre o tema, explica que a expressão “fruits of the poisonous tree” foi cunhada por um juiz da corte suprema dos Estados Unidos para expressar o que denomina de princípio da contaminação. O autor traz à baila o que se asseverou na decisão norte americana, quando o juiz afirmou que proibir o uso de certos métodos, mas não por limites ao seu pleno uso indireto em nada seria eficaz para impedir que, no fundo, a decisão se pautasse na mesma violação, todavia de maneira indireta e mais disfarçada.
O Código de Processo Penal admite de maneira expressa tal teoria, à luz do que determina o §1º do seu art. 157. Nas palavras de Távora e Rodrigues essa disposição surgiu com o advento da Lei nº 11.690/2008 e, inclusive, fez com que outros doutrinadores, como Paulo Rangel, que não acreditavam que nosso sistema processual teria adotado a teoria dos frutos da árvore envenenada, mudassem de posição para reconhecer a expressa adoção da mencionada teoria.
Superada a discussão acerca da adoção ou não da supramencionada teoria pelo direito brasileiro, é imperioso refletir, contudo, sobre ponto crucial no estudo da prova ilícita por derivação. O que configuraria derivação? Que a prova derivada da ilícita também se macula pelo vício da primeira está claro, mas o que determina o vínculo de uma segunda prova para com a primeira? Noutras palavras, quando uma prova pode ser considerada derivada de outra?
É a partir dessa indagação que Eugênio Pacelli (2017, p.191) adverte que a palavra derivação não pode ser aclarada no presente caso somente a partir de seu significado lexical/literal, no que ele denomina de busca pelo significado do nexo de causalidade da prova.
Eugenio Pacelli, demonstrando a dificuldade sobre a questão, exemplifica da seguinte maneira:
“Em primeiro lugar, pode ocorrer que a prova posteriormente obtida já estivesse, desde o início, ao alcance das diligências mais frequentemente realizadas pelos agentes da persecução penal. Pode ocorrer, de fato, que seja possível concluir que o conhecimento da existência de tais provas se daria sem o auxílio da informação ilicitamente obtida. Aí, ao que se vê, a hipótese seria da aplicação da “fonte independente”, isto é, de meio de prova sem qualquer relação fática com aquela ilicitamente obtida”. (PACELLI, 2017, p.191)
Como se vê, o professor mineiro esclarece o que seria derivação a partir de um critério excludente. Assim se a prova pôde ser obtida por uma ferramenta/mecanismo totalmente independente, que não tenha qualquer relação fática com aquela ilicitamente obtida, então não se trata de elemento de convicção derivado de prova ilícita.
Esse conceito de fonte totalmente independente consta, conforme lições de Távora e Rosmar Rodrigues, no §2º do art. 157 do Código de Processo Penal, o que, para alguns autores também é denominado de teoria da fonte independente.
Essa teoria determina que, se uma determinada prova tiver uma fonte totalmente independente daquela outra prova que foi considerada ilícita, não há, portanto, derivação, de forma que não será considerada ilícita como a primeira (já que são independentes).
Por oportuno, também convém trazer à baila a teoria a respeito do encontro fortuito da prova (Teoria do encontro fortuito da prova). Sobre o encontro fortuito de provas, Renato Brasileiro de Lima explica que tal teoria:
“[...] é utilizada nos casos em que, no cumprimento de uma diligência relativa a um delito, a autoridade policial casualmente encontra provas pertinentes à outra infração penal, que não estavam na linha de desdobramento normal da investigação. Fala-se em encontro fortuito de provas, portanto, quando a prova de determinada infração penal é obtida a partir de diligência regularmente autorizada para a investigação de outro crime. Nesses casos, a validade da prova inesperadamente obtida está condicionada à forma como foi realizada a diligência”. (LIMA, 2017, p. 731-732)
Segundo o Pacelli (2017), essa teoria esclarece que o encontro fortuito da prova ocorre quando a prova de uma determinada infração penal é obtida a partir da busca regularmente autorizada para a investigação de outra infração. Contudo, o autor esclarece que, para que esse encontro fortuito não seja considerado ilegal, ele deve guardar relação com o objeto da investigação.
Não obstante, o tema é controverso, pois, segundo o próprio Pacelli (2017), não há consenso jurisprudencial, pelo que a aplicação dessa teoria demanda prudência para que ela não se torne um pretexto para atividades criminosas em bojo de investigações.
Ainda discorrendo sobre a inutilização da prova obtida por meio ilícitos, surge a necessidade de esclarecer que, se não houver ilicitude na conduta, a prova que surge por desdobramento dela também não pode ser considerada ilícita, diante do contrassenso que isso representaria.
Nesse diapasão, Eugênio Pacelli (2017) disserta sobre o aproveitamento da prova obtida com exclusão de ilicitude, ou melhor, dizendo, a partir de uma conduta que fora levada a efeito amparada por uma causa excludente de ilicitude. Isso porque, segundo o autor, a ilicitude da prova se localiza na violação de direitos ao se obtê-la, de forma que, havendo uma excludente de ilicitude, não há, doravante, violação a direito.
Desta forma, o primeiro leque de excludentes de ilicitude que podem ser citados são os tradicionais versados no art. 23 do Código Penal: “a legítima defesa, o estado de necessidade, o estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular de direito”. (BRASIL, 1948)
Nesse passo, se uma prova é obtida em estado de necessidade, quando o agente se vale de uma gravação irregular para se ver salvo de uma acusação que, posteriormente, verifica-se ter sido totalmente insubsistente e ameaçadora da sua liberdade, verifica-se que ele agiu em estado de necessidade e, por essa razão, a prova obtida nesta circunstância não pode ser considerada ilícita, já que amparada por causa excludente de ilicitude (art. 24 do CP).
Outra hipótese é a de um flagrante delito que, como sabido, é uma exceção à inviolabilidade de domicílio. Desse modo, se uma prova é encontrada em um domicílio que é invadido em virtude da flagrância de um delito, tal prova não foi obtida ilicitamente, haja vista a excludente de ilicitude prevista na norma constitucional.
Em ambas as situações acima, seja no caso das excludentes de ilicitude previstas no Código Penal, seja na excludente prevista para o caso da inviolabilidade do domicílio (permissão para o ingresso sem autorização em caso de flagrante), a conduta levada a efeito está de acordo com as determinações postas pelo Direito, de forma que a prova obtida com base nela é igualmente lícita.
Nesse ponto, Eugênio Pacelli (2017) cita valioso exemplo para aclarar a explicação sobre a teoria. Segundo o autor, ninguém poderia argumentar, por exemplo, que, no interior de sua residência, tem o direito de estuprar ou matar a pessoa de sua preferência por estar protegido pela inviolabilidade do domicílio. Daí, portanto, se alguém está autorizado a violar o domicílio para impedir a pratica de um crime como esse, também as provas que dessa invasão advierem estão amparadas pelo permissivo constitucional.
Por essa razão a prova obtida com exclusão de ilicitude se mostra perfeitamente lícita porque não se contrapõe aquilo que impõe o Direito, de forma que pode ser utilizada no bojo de qualquer persecução penal onde se vislumbre tal possibilidade, sem comprometimento das restrições do art. 157, do Código de Processo Penal.
A prova ilícita não pode ser utilizada no âmbito do processo penal por expressa previsão do art.157 do CPP e art.5º, inciso LVI da Constituição Federal. Tal garantia constitucional expressa o desejo do constituinte de tutelar a liberdade e impedir condutas arbitrárias por parte do Estado no que se refere a persecução penal. Todavia, há outros direitos individuais que também são tutelados pelo ordenamento jurídico brasileiro através da Constituição. Daí, portanto, surge a seguinte indagação, será que a prova ilícita deve ser rejeitada em absolutamente qualquer situação? Seria possível vislumbrar exceções a essa proibição em virtude da necessária proteção de direitos com igual valor? Como isso seria possível?
A partir dessas indagações é que se cogita a aplicação do princípio da proporcionalidade ou o possível aproveitamento da prova ilícita no âmbito penal. Na verdade, não se trata da aplicação da proporcionalidade em relação ao aproveitamento da prova, mas sim em relação à proteção do direito insculpido no art. 5º, LVI que, em determinadas situações, poderia entrar em zona de tensão com outros direitos de igual valor, demandando uma técnica de hermenêutica constitucional para que o problema seja solucionado.
Sobre a proporcionalidade Reis e Gonçalves explicam que:
“A vedação à utilização da prova ilícita não tem caráter absoluto, motivo pelo qual a proibição pode ser mitigada quando se mostrar em aparente confronto com outra norma ou princípio de estatura constitucional. A aplicação desse critério decorre da teoria da concordância prática (ou da harmonização) das regras constitucionais, que preconiza a coexistência harmônica das normas dessa natureza”. (REIS; GONÇALVES, p. 358-359)
Segundo Eugênio Pacelli (2017), a técnica hermenêutica mais utilizada para solucionar questões como a posta acima é a ponderação de bens e/ou de interesses, técnica que se atribui à concepção de proporcionalidade cunhada por Robert Alexy em sua teorização sobre direitos fundamentais. Segundo a técnica hermenêutica, que se baseia na ideia de princípio como sendo mandado de otimização, os princípios não são aplicados com a lógica do tudo ou nada. Desta forma, em caso de um suposto conflito, a aplicação de um princípio não implica o afastamento do outro. Ao contrário, ambos devem ser aplicados ao máximo possível à luz do que determine o caso concreto.
Com efeito, no caso da prova ilícita, a aplicação do princípio da proporcionalidade ensejaria a concepção de que em algumas situações ela poderia ser aproveitada, já que, assim como o direito do réu de se ver acusado somente com base em provas lícitas, há outros direitos de igual valor. Um deles seria o do próprio réu utilizar-se de provas ilícitas para salvaguardar seu direito de liberdade. Assim sendo, apesar da necessidade da vedação de provas ilícitas no processo, isso poderia se tornar obstáculo ao próprio direito de defesa, pelo que não se justifica a aplicação absoluta da restrição.
Nesse sentido, Nestor Távora e Rosmar Rodrigues (2017) asseveram que, no caso de um suposto conflito entre o jus puniendi e a legalidade no momento da produção da prova e, de outro lado, o direito de liberdade do réu, à luz de um critério de ponderação, este último deve prevalecer, sendo a prova ilícita utilizada em seu favor.
No mesmo sentido é o entendimento de Bonfim, que pondera que:
“Como o processo penal constantemente necessita contrabalançar valores e princípios que rotineiramente se opõem (ex.: o direito à liberdade do indivíduo e o dever do Estado de punir o culpado), o princípio da proporcionalidade tem grande e variada aplicação no processo penal, ainda que parte da doutrina e da jurisprudência resistam em aceitá-lo”. (BONFIM, 2019, p. 121-122)
Sobre essa perspectiva, Eugênio Pacelli (2017) argumenta que, no caso da utilização da prova ilícita como forma de defesa, não há razão para controvérsias pois, ainda que a prova de inocência seja extraída de forma ilícita, ela deverá ser aproveitada. A controvérsia cinge-se, conforme discorre o autor, sobre a possibilidade da prova ilícita ser aproveitada em favor da acusação.
Pacelli (2017) ingressa nessa discussão advertindo, como dito acima, que não há, segundo a doutrina hermenêutica-constitucional princípios absolutos ou que devam preponderar sobre os demais. Assim, reflete que, se por um lado há o interesse do acusado em provar sua inocência, há também o poder-dever do Estado de punir o acusado, sendo interesse da sociedade autores de fatos delituosos sejam de fato punidos e direito da vítima de ver seu algoz responsabilizado pela conduta contra ela praticada.
Para Pacelli (2017), obviamente essa utilização da prova ilícita se daria em situações muito singulares. Sustenta que ela só poderia ocorrer mediante um juízo de ponderação concreto (proporcionalidade), onde se verificasse que a utilização da prova ilícita em favor da acusação não colocaria “em risco a aplicabilidade potencial e finalística” da atividade estatal responsável pela produção probatória. Como exemplo dessa hipótese, cita o caso em que a própria vítima, por exemplo, produzisse sorrateiramente a prova que incriminasse o acusado, entrando em seu domicílio.
Nessa hipótese, segundo crê o autor, não é possível vislumbrar um incremento ou estímulo à pratica de ilegalidade na produção probatória, de forma que não se está, portanto, colocando em risco a aplicabilidade potencial e finalística da atividade estatal responsável pela produção probatória. Ao contrário, segundo acredita, se está tratando a situação com a devida prudência que ela demanda.
Assim, invocando a concepção de Alexy sobre proporcionalidade, Pacelli (2017, p.198) aduz que o exemplo acima é exatamente uma hipótese em que há uma tensão entre princípios de igual valor, sendo possível a solução pelo critério da proporcionalidade, como conclui.
“Nesse quadro, o exame de cabimento do juízo de proporcionalidade deve passar também não só pela identificação de uma tensão ou conflito entre princípios constitucionais relativos à efetiva proteção de direitos fundamentais (do réu e da vítima), mas pela elaboração de critérios objetivos, tanto quanto possíveis, em que a escolha por um dos princípios possa não implicar o sacrifício integral do outro. Pertinentes aqui as ponderações de Robert Alexy, na sua teoria dos princípios como mandados de otimização, cuja aplicabilidade poderá ocorrer segundo graus de efetividade, de modo a permitir a convivência pacífica entre todos aqueles que integram o ordenamento”. (PACELLI, 2017, p.198)
Dissertando sobre essa teoria, Aury Lopes Júnior (2014, p.430) questiona a idéia de proporcionalidade, haja vista tratar-se de critério hermenêutico que não é absoluto. Em outras palavras, o processualista adverte que, em se tratando de método teórico, muitas vezes o conceito de proporcionalidade pode ser facilmente manipulado de acordo com as conveniências de quem o utiliza.
Por essas razões Lopes Jr. (2014, p.430) acredita que se trata de grave retrocesso a consideração desse tipo de metodologia e, por essas razões, argumenta:
“O perigo dessa teoria é imenso, na medida em que o próprio conceito de proporcionalidade é constantemente manipulado e serve a qualquer senhor. Basta ver a quantidade imensa de decisões e até de juristas que ainda operam no reducionismo binário do interesse público x interesse privado, para justificar a restrição de direitos fundamentais (e, no caso, até a condenação) a partir da “prevalência” do interesse público”. (LOPES JR, 2014, p.430)
Como se nota, apesar da discussão ser fervorosa e, no caso dos argumentos de Pacelli (2017) haver uma boa fundamentação acerca de suas razões, a aplicação do critério da proporcionalidade para utilização da prova ilícita em favor da acusação não é algo prevalente na doutrina processual penal, conforme destacam Aury Lopes Júnior (2014) e Nestor Távora e Rosmar Rodrigues(2017).
A liberdade é direito fundamental previsto no art. 5º da Constituição Federal. Também o inciso XXXIX desse mesmo artigo determina que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. (BRASIL, 1988) Como se nota, a liberdade é uma garantia individual que limita o poder punitivo estatal, impedindo arbitrariedades por parte do ente soberano, protegendo-se, assim, a harmonização entre o povo e o poder formal que por ele foi constituído.
Sendo assim, nota-se que o sistema penal brasileiro, em âmbito material e processual, é um sistema garantista, pois enquadra-se na definição proposta por Luigi Ferrajoli, qual seja: o cognitivo de legalidade estrita. (FERRAJOLI, 2002, p.31)
Assim, o inciso XXXIX do art. 5º da Constituição Federal obedece ao primado da legalidade estrita que chancela (juntamente com outros dispositivos) a adoção brasileira da perspectiva garantista.
Tal primado, conforme sustenta o próprio Ferrajoli (2002, p.31) é o que garante que um sistema penal não se dará a partir da consideração da pessoa que pratica a conduta, mas sim com base na conduta em si. Desta forma, um sistema garantista que tem como pilar a legalidade, constitui garantia porque impede que alguém, a pretexto de ser punido, seja na verdade perseguido por ser desta ou daquela maneira. Assim Ferrajoli explica:
“O princípio da legalidade estrita é proposto como uma técnica legislativa específica, dirigida a excluir, conquanto arbitrárias e discriminatórias, as convenções penais referidas não a fatos, mas diretamente a pessoas e, portanto, com caráter constitutivo' e não regulamentar' daquilo que é punível: como as normas que, em terríveis ordenamentos passados, perseguiam as bruxas, os hereges, os judeus, os subversivos e os inimigos do povo; como as que ainda existem em nosso ordenamento, que perseguem os desocupados' e os vagabundos', os propensos a delinquir', os dedicados a tráficos ilícitos', os socialmente perigosos e outros semelhantes'”. (FERRAJOLI, 2002, p.31)
Eugênio Pacelli (2017) discorrendo sobre o garantismo ressalta que este não significa a abdicação ou afastamento do jus puniendi estatal. Segundo o autor, é preciso ter em mente que a intervenção penal está contemplada no ambiente garantista. Desta forma, as garantias individuais, mormente a liberdade, não são excludentes do poder de punir do Estado, sendo apenas um marco limitativo que reclama um procedimento específico e preestabelecido para que o Estado possa punir acusados.
Na verdade, conforme bem destaca Pacelli (2017, p.33), o poder de punir do Estado é também instrumento do garantismo na medida em que, através dele, há a tutela de outros direitos individuais fundamentais. Assim, o autor mineiro, fazendo uma interpretação mais ampla do conceito de garantismo assevera que:
“[...] não significa, de outro lado, que a intervenção penal não esteja contemplada no ambiente garantista. Para além das ponderações de ordem criminológica, mais ajustadas a determinados modelos de sistemas penitenciários e de sistemas punitivos, a Constituição da República, essencialmente garantista, determina a tutela penal dos direitos fundamentais, quando, em diversos momentos e dispositivos, refere-se ao desvalor atribuído a determinadas condutas lesivas (racismo, drogas, terrorismo, tortura etc.) e ao procedimento penal para a aplicação do Direito (ações penais públicas, ações privadas subsidiárias das públicas etc.). Não haverá incompatibilidade entre o garantismo e a intervenção penal, no âmbito exclusivo da dogmática penal, quando se puder justificar a condenação criminal pela estrita observância do devido processo penal constitucional, e, de modo mais sensível, ao dever de fundamentação das decisões judiciais”. (PACELLI, 2017, p.33)
A grande questão, no entanto, é saber que esse jus puniendi, ainda que seja compreendido como parte indissociável do garantismo, deve sempre se pautar em uma conduta processual legalista por parte do Estado. Noutras palavras, o poder-dever de punir, ainda que considerado como parte do próprio garantismo, deve ser limitado pela maior das garantias: a da liberdade individual.
Nesse ponto, de uma forma ou de outra, percebe-se que sempre a garantia da liberdade individual estará contrastando com o jus puniendi estatal, principalmente como limitadora natural da sua existência, como é demonstrado aqui. Isso porque, toda a problemática discutida nesse trabalho gira em torno da tensão entre o jus puniendi estatal e a garantia de liberdade individual assegurada a todo cidadão brasileiro.
Quando se cogita a utilização da prova ilícita no processo penal, seja como meio de defesa, seja como ferramenta para acusação, o que se está discutindo, por via oblíqua, é o limite do jus puniendi estatal. E o limite do jus puniendi estatal é, exatamente, a garantia de liberdade do indivíduo, de modo que, o Estado, no afã e na prerrogativa de apurar infrações penais, deve observar a garantia do direito de liberdade, sendo o cárcere a exceção, que só pode ser consequência de uma persecução penal que observe rigorosamente a lei e os princípios constitucionais.
Conclusão
Após o cotejo de todas essas questões envolvendo a discussão acerca da utilização da prova ilícita, o que se viu foi que, apesar da aparente tensão entre o jus puniendi e as garantias individuais, na verdade, há por parte do ordenamento jurídico um fim único que é a harmonização social e a construção de uma sociedade equilibrada em um Estado democrático de Direito.
O processo penal é a porção do ordenamento jurídico que lida com as liberdades e, por via indireta, com os direitos mais basilares da sociedade, tais como honra, vida, propriedade, etc. Não sem razão, afinal o processo penal cuida da persecução penal, onde há a proteção dos bens jurídicos mais importantes dadas a natureza de intervenção mínima ostentada pelo Direito Penal.
Por essas razões, o processo penal é palco de frequentes tensões entre valores, conforme foi demonstrado. Nesse trabalho o que se buscou foi revelar as nuanças do aparente conflito entre a restrição a determinadas provas e a busca pela verdade real.
Buscou-se discorrer sobre o que são os meios de prova, além das limitações ou vedações da prova para que, então, se chegasse ao que se considera prova ilícita e prova ilícita por derivação. Nesse ponto, buscou-se discorrer sobre as teorias principais a respeito e, posteriormente, chegou-se à problemática do conflito entre a prova ilícita e a sua utilização para solucionar questões que, muitas vezes, ficariam sem solução.
Foi demonstrado o entendimento de autores que são radicalmente contra a utilização da prova ilícita, mas, foi trazido à baila, outrossim, o entendimento de autores no sentido de ser possível a ponderação concreta no que concerne à utilização da prova ilícita, ainda que para favorecer a acusação. Não há unanimidade de ideias, mas foi possível demonstrar como tem ocorrido o debate.
Referências
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TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 11ª ed. rev. atual e ampl. Salvador: JusPODIVM, 2017.
[1] Acadêmico de Direito no Centro Universitário UNA. E-mail para contato: [email protected].
[2] Doutoranda em Educação pela PUC Minas. Mestra em Direito Privado pela PUC Minas. Educadora. Professora de Direito do Centro Universitário UNA. Professora da Pós-Graduação da PUC Minas Virtual. Presidente da Comissão OAB Diversidade, Gênero e Vulnerabilidades da 197ª Subseção da OAB/MG, na qual também é membro do Conselho Deliberativo. Advogada. E-mail para contato: [email protected].
Bacharelando em Direito pelo Centro Universitário UNA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Christopher Rodrigues de. A Aplicabilidade da Prova Ilícita na Persecução Penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 jul 2021, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57039/a-aplicabilidade-da-prova-ilcita-na-persecuo-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
Por: RODRIGO PRESTES POLETTO
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
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