RESUMO : O artigo trata da inserção de precedentes vinculantes no direito brasileiro, bem como sua feição no vigente Código de Processo Civil, examinando as implicações da vinculatividade na função e competência dos tribunais superiores. A princípio, intenta-se demonstrar, assente em estudo comparativo e análise histórica do stare decisis, sua plena compatibilidade com a tradição jurídica predominante no Brasil, o civil law. Superado este ponto, defender-se-á, a partir de revisão bibliográfica, que a letra da lei está sujeita a diversidade interpretativa e que a autonomia do magistrado em aplicar seu entendimento, ainda que em desacordo com a liturgia dos tribunais superiores, ocasiona um aumento de litigiosidade e uma imprevisibilidade jurídica mais nocivos à democracia que eventual enrijecimento da jurisdição. Finalmente, examina as hipóteses de justa superação de entendimentos vinculantes e a forma menos danosa de realizar-se referido processo, tudo a fim de que a integridade do judiciário seja, a um só tempo, previsível, isonômica e atual.
Palavras-chave: Precedentes vinculantes. Uniformização da jurisdição. Tribunais superiores.
ABSTRACT: This article deals with the insertion of binding precedents in Brazilian law, as well as its feature in the current Code of Civil Procedure, examining the implications of binding on the function and competence of the higher courts. At first, the intention is to demonstrate, based on a comparative study and historical analysis of stare decisis, its full compatibility with the prevailing legal tradition in Brazil, the civil law. Having overcome this point, it will be argued, based on a bibliographic review, that the letter of the law is subject to interpretive diversity and that the magistrate's autonomy in applying his understanding, even if in disagreement with the liturgy of the higher courts, causes an increase in litigation and legal unpredictability, more harmful to democracy than any possible stiffening of jurisdiction. Finally, it examines the hypotheses of just overcoming binding understandings and the least harmful way of carrying out this process, all so that the integrity of the judiciary is, at the same time, predictable, isonomic and current.
Keywords: Binding precedents. Standardization of jurisdiction. Higher courts.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Noções fundamentais. 1.1 Direito comparado e a importação de institutos. 1.2 Origens do Common Law e do Stare Decisis. 1.3 Comparação entre os juízes das tradições Common Law e Civil Law. 1.4 Diferentes rumos na busca por segurança jurídica. 2. O cenário jurídico brasileiro e a implementação de um sistema de precedentes obrigatórios. 2.1 Crise de imprevisibilidade do judiciário e a inafastável hermenêutica da jurisdição. 2.2 O problema das divergências interna corporis. 2.3 Os mecanismos uniformizadores da jurisdição no Código de Processo Civil de 2015. 2.3.1. Incidente de Assunção de Competência - IAC. 2.3.2. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas - IRDR. 2.3.3. Recursos repetitivos nos Tribunais Superiores 2.4 A inaplicabilidade de um precedente por distinção - distinguishing - ou superação - overruling. Considerações finais. Referências bibliográficas.
Introdução
Sancionada em 16 de março de 2015, a Lei n.° 13.105/2015, o atual Código de Processo Civil, se destaca como o primeiro diploma processual cuja tramitação legislativa e publicação se deram inteiramente em regime democrático. Vigente desde 18 de março de 2016, trouxe em seu bojo inúmeras inovações e conquistas para o direito brasileiro: a contagem dos prazos passou a se dar apenas em dias úteis, positivou a desconsideração de personalidade jurídica e a teoria dos capítulos da sentença, extinguiu os processos cautelares, maximizou a busca por solução consensual dos conflitos, entre outras.
Não obstante a pluralidade de mutações, é provável que o mais relevante impacto experimentado pelo processo civil brasileiro tenha sido a implantação de um sistema de precedentes a ser obrigatoriamente observado pelo magistrado. Com o advento do Código, a letra da lei perdeu o posto de único paradigma na tomada de decisão e passou a dividir espaço com interpretações vinculantes.
Referidas interpretações, por se tratarem de aplicações do direito escrito realizadas pelo judiciário no julgamento de casos concretos, são comumente chamadas de precedentes judiciais, os quais, diga-se, já ostentavam vinculatividade noutros Estados de Direito, mormente naqueles cuja tradição jurídica seja a do common law.
Justamente pela evidente transnacionalidade, muito se problematizou a respeito do sistema ser adotado no Brasil, cujo ordenamento configura um típico civil law. Nesse sentido, lançaram-se sobre o legislador acusações de subversão da ordem de direito e de moléstia à separação dos poderes, já que, alega-se, haveria institucionalizado a produção normativa pelo judiciário.
Contudo, o que se pretende demonstrar no presente estudo é que, para além da atividade hermenêutica ser típica e inafastável do judiciário, a vinculação dos magistrados a entendimentos firmados por tribunais superiores sequer extrapola o âmbito do próprio poder e ainda provê previsibilidade e segurança jurídica, as quais servirão à bem-vinda redução da litigiosidade e do tempo de duração do processo. Desse modo, adiante-se que o posicionamento no presente ensaio é no sentido de que as vantagens de referidas alterações superam em muito eventuais desvantagens.
Inicialmente, o enredo, que segue a ordem lógica-argumentativa, apresentará a origem histórica da vinculação a precedentes e a relacionará com a realidade e contexto jurídico brasileiros, analisando o cabimento e a possibilidade de sua adoção. Seguidamente, identificará os mecanismos de vinculação criados pelo legislador, bem como os meios de se afastar a incorreta aplicação no caso concreto. Por fim, serão tecidos comentários a respeito de mutações hermenêuticas e jurisprudenciais na vigência do atual sistema de precedentes, e, então, se encerrará o trabalho.
1. Noções fundamentais
Os rudimentos expostos no presente capítulo destinam-se à contextualização do leitor quanto à origem histórica e geográfica dos precedentes vinculantes, bem como o contexto político que desencadeou as contraposições mais latentes entre as tradições jurídicas de common law e civil law. Ainda, intenta realizar aproximação crítico-comparativa do exercício da magistratura num e noutro sistema.
1.1. Direito comparado e a importação de institutos
Pois bem, no mundo contemporâneo, o diálogo internacional entre as tradições jurídicas é propiciado e encorajado por uma globalização cada vez mais acentuada. A prosperidade do direito comparado permitiu que a individualidade do nacionalismo jurídico sucumbisse, pouco a pouco, às vantagens de aprender com a história e a academia estrangeiras.
Assim, instituições jurídicas de diversas origens são cada vez mais estudadas e repensadas em níveis transnacionais. Evidente que, considerando-se que as sociedades normatizam a partir de suas perspectivas e para suas necessidades, é de se esperar que esses diversos enfoques frutifiquem em institutos jurídicos extremamente plurais e elaborados, que, embora decorram dos anseios de determinado povo, podem, certamente, ser reproduzidos noutros locais.
Referido fenômeno, que há muito se faz presente no direito, inclusive no brasileiro, tem sido chamado por renomados autores de "importação dos institutos".[1]
Contudo, não se pode ignorar que a tradição jurídica, como o próprio nome diz, carrega mais que o instituto em si, carrega o contexto em que ele foi desenvolvido e é utilizado. Assim sendo, é descabido que um jurista julgue ou meça o instituto alheio com os fundamentos e pressupostos de sua própria formação.
Não se deve, sob pena da conclusão assemelhar-se à falácia do espantalho, examinar o produto extraído de uma tradição jurídica inserindo-o despido de adaptações noutro universo, pois daí sucederia que, utilizando-se de parâmetros estranhos e inaplicáveis, chegaria-se a resultados indesculpavelmente distorcidos e injustos.
Nessa investigação, em submissão às ponderações apresentadas, um jurista do civil law não mediria, ao perscrutar a tradição jurídica do common law, a utilidade dos métodos e a natureza da atividade jurisdicional com o olhar da tradição em que se formou. As conclusões decorrentes de tal análise não deixariam de ser infundadas e equivocadas, à medida em que desconsiderariam todo o prévio contexto formador.
E é buscando sempre se ater a tal moderação que o presente estudo analisará tanto a origem do instituto dos precedentes obrigatórios, quanto as vantagens e mecanismos de sua inserção no direito brasileiro, mormente aquela engendrada pelo legislador em 2015, quando da promulgação do vigente diploma processual.
1.2. Origens do Common Law e do Stare Decisis
A princípio, é necessário estabelecer os parâmetros fundamentais à correta compreensão da tradição jurídica anglo-saxônica, a fim de evitarem-se aversões precipitadas ao que ora se defende, mormente quando restar exposto que, sim, a teoria da vinculatividade dos precedentes, recentemente incorporada ao direito brasileiro, é originada no common law.
Ora, o common law, ao contrário do que muito se fala, não se trata de um direito de precedentes judiciais. Para referida tradição, ao menos inicialmente, o direito era extraído dos costumes dos englishmen[2], de modo que a segurança jurídica e a solução dos litígios alicerçavam-se na continuidade secular dos comportamentos sociais.
Naquele sistema, a partir da regra (lex non scripta) obtida das relações costumeiramente firmadas (precedente não judicial), o magistrado aplicava à lide a solução legítima. Veja-se, assim, que o processo indutivo manifesto no common law não se baseava, precipuamente, em construções judiciais, mas em construções da coletividade.
O caso enquanto fonte de direito não foi sempre entendido como caso judicial. Isto se evidencia, inclusive, pela longa existência de common law sem qualquer vinculatividade a precedentes judiciais.
Reporta-se que a consolidação e o desenvolvimento do common law enquanto método decisório se deram pós-invasão normanda das terras onde hoje se situa a Inglaterra (entornos de 1100 d.C.). A partir daquele momento, com o fito de unificar o povo, os litígios passaram a ser analisados sob a ótica dos costumes comuns a todo o reino, e, apenas subsidiariamente, em alguns casos, o juiz poderia aplicar os costumes locais dos envolvidos.
Tal medida visava evitar a ocorrência de arbitrariedades em desfavor do litigante de outra origem, sobretudo se considerando que muitos aliados do então rei, Henrique II, não eram nativos, mas sim forasteiros. Daí o nome common law, da prevalência das normas comuns a todo o reino e da supressão das potencialmente arbitrárias normas locais.
Foi só em 1861, mais de setecentos anos desde seu estabelecimento, que o common law presenciou, ainda em fase embrionária, a moderna doutrina de precedentes obrigatórios. No notório caso Beamish vs. Beamish[3], a House of Lords dispensou a reanálise da questão jurídica, sob o argumento de que a Corte já havia se pronunciado em litígio idêntico.
Notório que, nessa primeira oportunidade, o paradigma apenas foi utilizado para autovinculação do órgão.
Alguns anos mais tarde, em 1898, no igualmente notório caso London Tramways Company vs. London County Council[4], a House of Lords referendou o posicionamento anterior e a doutrina do stare decisis finalmente enrijeceu-se enquanto prática do judiciário, vinculando, a partir de então, não somente a própria Corte como os tribunais e julgadores a ela sujeitos.
No entanto, cabe ressaltar que, mesmo que a adoção de referida conduta pareça obstinada, o próprio Tribunal oportunamente pontuou que a obrigação de seguir o precedente judicial poderia ser afastada pela Corte em casos de patente injustiça, ou, a qualquer tempo e modo, por vontade do Parlamento.
Assim sendo, verifica-se que no direito inglês também havia pleno respeito à autonomia parlamentar, já que este poder não estaria de qualquer forma vinculado à posição da Suprema Corte. Daí se extrai um relevante conclusão: a vinculação jamais poderia ser acusada de afetar órgão outro que não do próprio judiciário.
Tudo isto se pontua para demonstrar que a hodierna confusão entre common law e stare decisis (vinculação a precedentes) advém, invariavelmente, de uma percepção turva a respeito dos verdadeiros significados e origens de ambos. Note que o common law relaciona-se com o fundamento da decisão, enquanto o stare decisis se relaciona com sua controlabilidade e estabilidade.
Justamente por essas razões, defende-se que common law e o stare decisis possuem existências autônomas, visando a admissão da possibilidade de inserção de um sistema de precedentes em países de cultura civil law.
A uma, por mera análise histórica, a duas, para evitar-se preconcebida repulsão a um instituto (stare decisis), fundamentada na crença de que sua adoção (mesmo que readequada e repensada) resultaria em inevitável deformação do instituto do civil law ou em indevida interferência entre os poderes.
Ressalve-se, adiantadamente, que não se ignora a existência de problemas na vinculação do judiciário a precedentes, apenas se busca demonstrar que a “commonlização"[5] do ordenamento não é um deles.
1.3. Comparação entre os juízes das tradições Common Law e Civil Law
Ainda tecendo pressupostos fundamentais à análise central deste trabalho, é preciso remontar às origens históricas e contextuais das modernas concepções jurídicas inglesa e francesa, posto que é justamente nas diferentes conjunturas sociais que reside o cerne explicativo da assimetria, aparentemente abismal, entre o papel da jurisdição num e noutro sistema.
Pois bem, no cenário pós-revolução do século XVIII, o Parlamento Francês passou a se impor incisivamente em face dos demais poderes, intentando, evidentemente, conservar seus êxitos revolucionários. Em decorrência de tal anseio, o Parlamento tentou suprimir todo e qualquer elemento volitivo da atuação dos magistrados. Os parlamentares entendiam que, por, majoritariamente, pertencerem à nobreza, os juízes estavam descontentes com os resultados da revolução e poderiam propiciar o retorno do absolutismo.
Para os revolucionários franceses, a limitação dos juízes se daria por meio de sua submissão, no exercício da jurisdição, a extensivos códigos que pretendiam antever regras gerais para toda e qualquer situação que pudesse ser levada sub judice. Essa idealização propunha que caberia ao magistrado apenas a tarefa de indicar a norma incidente, fazendo um elo entre o plano abstrato e os fatos a ele submetidos. Inclusive, vale a menção, daí decorreu a conotação de ser o juiz um “boca-de-lei”.
Veja-se que, enquanto o poder executivo era dotado da liberdade gerencial e ao legislativo cabia toda a produção normativa do Estado, o poder judiciário, por sua vez, era completamente despido de qualquer volição. Até mesmo a interpretação do dispositivo cabia ao legislativo, e sempre que o magistrado localizasse multiplicidade de entendimentos plausíveis, caberia a ele consultar o órgão legislativo responsável pela indicação do propósito normativo, no qual residiria, em tese, a hermenêutica apropriada.
Assim sendo, não é equivocado dizer que, na origem de sua estruturação moderna, o civil law buscou o esvaziamento intelectual da atividade jurisdicional, bem como condenava qualquer atuação que não fosse a meramente declaratória, qual seja, a indicação do dispositivo legal aplicável ao ato ou ao fato.
Doutra sorte, ao noroeste do continente europeu, os juízes anglo-saxônicos detinham histórico muito mais favorável. Historicamente, o julgadores ingleses ladearam o parlamento na luta contra o absolutismo. O fato dos ingleses terem sempre contado com seus juízes para afirmar o direito comum em face dos excessos do rei resultou na ausência de temores que justificassem uma submissão tão acurada do judiciário ao legislativo.
Assim sendo, verifica-se que, muito embora a teoria da supremacia parlamentar seja presente tanto no direito francês quanto no inglês, esta era dotada de amplitudes e preocupações totalmente distintas quando em relação aos julgadores. Tanto é verdade que não houve, no período revolucionário britânico, embargos à considerável autonomia decisória para o juiz do common law, ao passo que o judiciário do civil law teve de padecer de graves (talvez, necessárias) limitações.
Faz-se a ressalva, contudo, de que referida afirmação não conclui pela sujeição dos ingleses a arbitrariedades do judiciário, pois a autonomia do juiz inglês servia-se unicamente à tarefa de abstrair dos costume a regra aplicável ao caso concreto. Aliás, caso fossem os juízes ingleses arbitrários em suas atuações é provável que fosse outro o desfecho revolucionário.
Veja-se, assim, que nem no common law, nem no civil law, o juiz poderia aplicar sua vontade ao caso concreto. Em ambos os sistemas, havia uma norma preexistente, seja o costume, seja a lei escrita, e a diferença entre um e outro julgamento reside no fato de que um forte controle das decisões foi facilitado e objetivado pelos extensos códigos franceses.
Ainda, reforça-se o exposto com o fato de que a natureza da jurisdição no sistema inglês sequer era considerada constitutiva, tendo por muito prevalecido o entendimento de que o labor do juiz em encontrar a norma não escrita e aplicá-la ao caso era um labor meramente declaratório.
Conclui-se, por fim, que o common law nunca tratou seus juízes como absolutos, mas apenas percebeu suas competências de modo realista, enquanto que os franceses negavam a inarredável amplitude da atividade hermenêutica do judiciário, criando a ilusão de que, com isso, poderiam garantir plena segurança jurídica à sua jovem república.
1.4. Diferentes rumos na busca por segurança jurídica
Considerando-se que a reestruturação estatal almejada pelos revolucionários exigia brusca ruptura com o passado absolutista, houve, no direito francês, a adoção estrita da tripartição do poder estatal. Com isso, seria possível ao Parlamento não somente instituir limites administrativos ao Monarca, como, igualmente interessante, controlar a atuação do judiciário.
Ressalta-se quanto a este último, que, na Constituição de 1791[6], estabeleceu-se que a jurisdição não se prestava a processar e julgar políticos por razões inerentes às suas funções e muito menos a controlar atos da administração pública ou do legislativo. Além disso, o Parlamento reduziu a atuação do judiciário, proibindo-o de interpretar a lei e implementando[7] a necessidade de motivação fática e fundamentação legal em todas as decisões.
Deve-se pontuar que esse anseio dos iluministas por controlabilidade da jurisdição se deu em reação a um judiciário desobrigado de motivar suas decisões. Os magistrados do ancien régime interpretavam a lei, os fatos e concluíam os processos sem expor qualquer fundamentação, apenas proclamando o resultado. Até o ano de 1790, a indicação de motivos sequer era obrigatória, pelo que raramente era conhecida pelas partes.
Como é de se pressupor, não se verificava em semelhante judiciário qualquer tipo de previsibilidade ou integridade jurisprudencial, pelo que, naquela França, havia copiosa desconfiança para com a jurisdição.
Colaciona-se, a título de exemplo, notório relato de Voltaire[8] extraído de seu Dicionário Filosófico:
“No dia seguinte o meu processo foi julgado numa das câmaras do parlamento: perdi por unanimidade; explicou-me o meu advogado que eu teria ganho também por unanimidade numa outra câmara. "Eis uma coisa bem cômica” - disse-lhe eu - “de modo que, cada câmara, cada lei.” - “Sim”, - disse ele - “há vinte e cinco comentários sobre a lei municipal de Paris; isto é, provou-se vinte e cinco vezes que a lei municipal de Paris está errada; e se houvesse vinte e cinco câmaras de juizes haveria também vinte e cinco jurisprudências diferentes. Temos,” - continuou ele - “a quinze léguas de Paris uma província chamada Normandia, onde seríeis julgado de forma muito diferente daqui”.” (destaques não constam no original)
Ante tamanha desordem, não somente era oportuno, como, de fato, havia expectativa de que a revolução pusesse fim à arbitrariedade dos julgadores e conquistasse meios de promover a previsibilidade jurisdicional.
Em conformidade ao que se pensou à época, essa segurança se daria por respeito à letra, a qual, objetiva que é, seria igualmente oposta contra toda a nação. Esses textos e códigos, aliás, seriam escritos, pensados e votados pelos representantes escolhidos do povo, de modo que a res publica, pouco a pouco, se estabeleceria.
Desse contexto de desconfiança resultou que os juízes franceses foram se tornando tão vinculados ao Parlamento que sua única preocupação ao julgar era manterem-se fieis à letra. O resquício de tal conjuntura se vê nas decisões contemporâneas do judiciário francês, cuja estilística sugere uma mecânica e óbvia subsunção de fatos a leis, como se o magistrado estivesse num jogo nada complexo de junção de peças.[9]
Aliás, desde o sucesso da revolução, a visão jurídica recepcionada era de que não havia outro parâmetro legítimo além da lei, as pretéritas normas e decisões eram frutos asquerosos de um tempo superado. A aludidos magistrados, agora também eleitos, caberia apenas indicar a norma aplicável.
Não se deixa de notar, contudo, que vincular o julgador a um extensivo leque de leis e códigos, muitos deles recém-escritos, é um método pouco (ou nada) espontâneo para julgar. Nota-se que o civil law não propiciou considerável apreço por costumes ou pela indução, antes, prezava pela conformação da realidade à nova regra ideal, que constaria do plano legal, configurando, daí, uma jurisdição rigorosamente dedutiva.
No common law, diferentemente, a decisão legítima é aquela que busca retornar as coisas ao que elas sempre foram e deveriam continuar a ser, primando, portanto, pela coerência das relações. A naturalidade desse método reside justamente na publicidade inata da regra que, embora não escrita, é extraída de um comportamento que já é notoriamente conhecido por todos os indivíduos.
Desse modo, a busca por segurança jurídica no common law ter culminado na vinculação do magistrado a precedentes judiciais foi muito mais uma evolução, fruto do próprio contexto nacional e método decisório, do que uma brusca vinculação do judiciário. Inclusive, em aludido sistema, a vinculação formal do julgador se deu apenas recentemente, conforme já mencionado, e serviu muito mais à uniformização da jurisdição e à integração da jurisprudência do que à expurgação de decisões arbitrárias.
2. O cenário jurídico brasileiro e a implementação de um sistema de precedentes obrigatórios
No presente capítulo examina-se o cenário jurídico brasileiro, nação de tradição civil law, e as causas que conduziram o legislador à adoção do instituto de precedentes obrigatórios, nascido no direito inglês. Ainda, serão listados e comentados, à luz do Código de Processo Civil de 2015, os procedimentos geradores de precedentes com vinculação ex lege, bem como os meios de se afastar a incorreta aplicação de teses aos casos concretos.
2.1. Crise de imprevisibilidade do judiciário e a inafastável hermenêutica da jurisdição
Não obstante a idealização francesa, a prática revela que a letra da lei não é instrumento bastante à democrática e eficiente aplicação direito, tampouco à garantia de controlabilidade das decisões.
Essa insuficiência se verifica de variadas perspectivas, uma delas é notar que a sociedade atual sofre mutações em um ritmo muito mais acelerado que qualquer atividade parlamentar, e, em maior ou menor grau, cabe cada vez mais ao judiciário julgar casos concretos dotados de peculiaridades não previstas ou reguladas em lei. Em referidas ocasiões a atividade hermenêutica se vê na necessidade de, entre outros, criar analogias e estender amplitudes de incidência.
Em resposta a essa percepção, o direito contemporâneo de muitas nações tradicionalmente civil law tem passado a adotar por seu poder legislativo a positivação das cláusulas abertas. Referidas cláusulas são instrumentos do legislador que ampliam o poder decisório do juiz por meio da fixação de uma finalidade, o que não limita taxativamente a atuação do julgador.
A título exemplificativo, podemos citar o artigo 301 do CPC/2015, em que o legislador permite a aplicação de qualquer “medida idônea para asseguração do direito”. Veja que a finalidade da norma, embora expressa no texto, não possui meios predefinidos, pelo que o único requisito de validade da medida é a ausência de ilicitude e inconstitucionalidade. Nesse mesmo sentido, temos reiteradamente em nosso ordenamento a adoção de conceitos abstratos, passíveis de variadas interpretações, tais como a função social do contrato, da propriedade, da empresa, e outros, que são, certamente, juridicamente aptos a direcionar a decisão judicial.
Referida elasticidade jurisdicional, por mais necessária que seja na modernidade, não deve ser inserida no ordenamento sem uma contrapartida oponível ao magistrado. Conjectura-se que, se o judiciário está acostumado a se vincular apenas à lei, deixá-lo ser guiado por textos amplos pode ser extremamente perigoso para alguns dos fundamentos basilares da democracia, tais como a isonomia e a previsibilidade jurídica.
Além disso, toda a hipercomplexidade contemporânea possibilita outra situação igualmente propícia à prolatação de decisões conflituosas: o juiz pode se deparar com um vínculo jurídico que, por mais único que seja, é passível de ser judicializado sob argumentações legais e principiológicas variadíssimas: de direito virtual, securitário, de proteção a dados pessoais, trabalhista, tributário, administrativo, previdenciário, penal, entre outros.
Veja-se que um ato jurídico entre A e B ou mesmo a ocorrência de um fato, por mais simples que fossem no século XIX, podem muito bem, no presente tempo, ser fato gerador de dezenas de ações. Refletindo-se sobre isso, é imperativo admitir que, quanto mais se decide, maior a chance de interpretações antagônicas serem proferidas e decisões divergentes integrarem o mesmo mundo jurídico.
Por tudo isso, verifica-se que o civil law estrito, pós-revolucionário, também apresenta falhas de previsibilidade e controlabilidade jurídica. Vê-se que o judiciário do civil law enfrenta crises imediatamente relacionadas ao que passou-se a denominar de “jurisprudência lotérica", em que o litígio é incentivado não pela certeza do direito, mas justamente pelas diversidades de posicionamentos judiciais em casos idênticos, nos quais, quase sempre, qualquer polo tem chances e precedentes de vitória.
Ademais, é necessário repensar o civil law tal qual engendrado pelos revolucionários pelo simples fato de que tudo que aqui se narra jamais poderia ser por eles previstos. Ora, é certo os idealizadores viveram num tempo cuja atividade jurisdicional era afastada da grande massa, bem como em que se firmavam relações jurídicas muito mais rudimentares e carentes de repercussões.
Precisamente por isso, os países civil law que hoje sofrem de instabilidade e incoerência no judiciário não podem se isentar da busca por efetivação da igualdade entre os jurisdicionados sob o simples argumento de que assim incorreriam em inovação. Ao menos da perspectiva autoral, a inovação ou a importação de um instituto jurídico, desde que harmônicas com a Constituição, não precisam ser vistas como negativas em si mesmas.
2.2. O problema das divergências interna corporis
Passando-se à análise do cenário nacional, verifica-se que o judiciário brasileiro ainda sofre com diversos casos de incoerências internas. No curso de nossa república, decisões conflitantes e jurisdição contraditória sempre foram características negativas do poder julgador. São reiterados casos que, embora se perca a ação na primeira instância, se ganhe na segunda, ou vice-versa. Muitas vezes, inclusive, esses eventos originam-se da insurreição de julgadores que fazem valer seus próprios entendimentos em detrimento da unidade do Poder.
Veja-se que instâncias primevas forçarem seus entendimentos quanto à interpretação legal ou constitucional a despeito daquela de seus revisores, além de estimular a interposição de recursos, efetiva realidades jurídicas distintas em litígios idênticos pelo simples fato de que, em um dos processos, não houve condições de obter-se um jurisdictio recursal.
Pior situação e que com a primeira contribui é o fato de, em um mesmo tribunal, entendimentos totalmente inversos coexistirem por anos a fio e serem aplicados aos casos concretos por suas câmaras e turmas. Aqui, em análise perfunctória, concluir-se-á que o fator determinante de qual o direito será o judicialmente dito é a distribuição aleatória, a qual é responsável por indicar o órgão competente para o julgamento do recurso.
Referidas situações, por mais corriqueiras que sejam, não deixam de causar estranheza aos atentos ao conceito republicano de justiça, segurança jurídica e isonomia. Que isonomia há em semelhante administração de justiça? Pertinente ao tema, leia-se trecho da lição de Geraldo Ataliba[10]:
“Não teria sentido que os cidadãos se reunissem em república, erigissem um estado, outorgassem a si mesmos uma constituição, em termos republicanos, para consagrar instituições que tolerassem ou permitissem, seja de modo direto, seja indireto, a violação da igualdade fundamental, que foi o próprio postulado básico, condicional, da ereção do regime. […] A res publica é de todos e para todos. Os poderes que de todos recebe devem traduzir-se em benefícios e encargos iguais para todos os cidadãos. De nada valeria a legalidade, se não fosse marcada pela igualdade. […]” (destaques não constam no original)
Em reação a tais patologias funcionais e estruturais, o direito no Brasil tem se movimentado rumo a possibilitar um controle mais objetivo das decisões judiciais e conceder maior aplicabilidade e abrangência às interpretações realizadas por órgãos hierarquicamente superiores.
Num primeiro momento, o constituinte derivado de 2004, ao reformar o sistema judiciário, introduziu no ordenamento as chamadas súmulas vinculantes, por meio da Emenda Constitucional 45. Referida alteração incluiu nas competências do Supremo Tribunal Federal (STF) a de, após reiteradas decisões de nível constitucional, sumular seus entendimentos quanto à validade, à interpretação e à eficácia de normas controvertidas, sendo a posição então firmada de observância obrigatória pelos magistrados e tribunais.
Embora importante na construção de judiciário íntegro e autônomo em sua atividade hermenêutica, referida medida se aproxima muito mais de um fator de controlabilidade tardio do que de um real garantidor de segurança jurídica. Diz-se isto pois a necessidade de haver reiteradas decisões uníssonas da Suprema Corte sobre a matéria versada praticamente anula a possibilidade de haver uma eficiente uniformização da jurisdição.
Registre-se que no civil law certamente há respeito à jurisprudência de tribunais superiores, mormente da Suprema Corte. Desse modo, é inarredável concluir que, quando ver-se cumprido o requisito do STF ter reiteradamente decidido em mesmo sentido (algo que demanda tempo), os tribunais de justiça, regionais e até a primeira instância, provavelmente, já estarão semelhantemente posicionados, ou seja, já haverá razoável previsibilidade jurídica no tema antes mesmo da edição sumular.
Nota-se que tornar vinculante uma orientação que já está pacífica no Supremo não resolve o problema das inúmeras lides anteriores que obtiveram diferentes prestações jurisdicionais. Aliás, não é equivocado perceber esses primeiros casos como o suporte da consolidação da segurança jurídica, a qual, por infortúnio, não foi a eles garantida.
Não por acaso, conforme se explanará no item subsequente, o legislador precisou reavaliar e incrementar os métodos de uniformização da jurisdição disponíveis no ordenamento. Sua empreitada focou em construir um sistema cujo procedimento fosse mais independente de requisitos que naturalmente demandem muito tempo.
Ressalte-se, finalmente e a título de esclarecimento, que nesse primeiro instante não se verifica a adoção de um sistema de precedentes pelo constituinte derivado. Muito embora as súmulas vinculantes sejam, de fato, um marco no reconhecimento da função judicial enquanto interpretativa e criativa de direito, elas, em verdade, não caracterizam-se como decisões judiciais[11], mas sim, como dito alhures, o resumo de uma orientação sedimentada.
2.3. Os mecanismos uniformizadores da jurisdição no Código de Processo Civil de 2015
Antes de se examinar o sistema de precedentes incorporado pelo vigente Código de Processo Civil, convém discorrer sobre alguns pressupostos relativos à natureza e posição (dentro do ordenamento) das instâncias extraordinárias.
Primeiramente, importa firmar que a própria ratio essendi das instâncias extraordinárias reside na necessidade de se alcançar integridade hermenêutica no judiciário. Veja-se que, encerrado o duplo grau de jurisdição, a lide se estabiliza quanto à controvérsia fática e só pode ser reapreciada nas questões de direito.
Referida limitação parece sugerir que nos recursos extraordinários lato sensu não há interesse imediato na justa solução do litígio inter partes, mas sim na correta interpretação do direito, seja ele legal ou constitucional. Ora, nem o Superior Tribunal de Justiça nem o Supremo Tribunal Federal se confundem com terceira ou quarta instância, já que suas atuações não se prestam à reanálise do verdadeiramente ocorrido entre A e B, mas apenas à aplicação do direito ao que processualmente se entendeu ter ocorrido.
Ora, o motivo de um dissídio individual ultrapassar o constitucionalmente garantido duplo grau de jurisdição e ser apreciado por tribunais superiores reside na (im)possibilidade de integrar o mundo jurídico uma interpretação constitucional ou legislativa incompatível com aquela adotada pela respectiva autoridade máxima. Noutros termos, as instâncias superiores visam resguardar a legitimidade e a unicidade da jurisdição
É basilar que a razão de ser do STF consiste na guarda da Constituição, porém, não se deve ignorar que a Constituição, sendo elemento textual, está sujeita a possibilidades interpretativas variadas e que, em última análise, é a posição adotada por seu guardião originário o objeto realmente protegido.
Claro que há inúmeras críticas que podem ser tecidas ao fato de uma proteção tão ferrenha ser conferida a uma posição hermenêutica (por mais constitucionalmente competente que seja seu órgão autor), porém, a coexistência de pluralidade decisória, no entender do legislador e do constituinte, seria mais danosa à segurança jurídica e à democracia do que a crescente vinculação do judiciário.
Desse modo, se a competência para encerrar a divergência constitucional cabe ao STF, não parece tão absurda a ideia de que magistrados de piso se submetam a posições hermenêuticas por ele adotadas, especialmente àquelas que gozam de vinculatividade ex lege. Em verdade, a unidade do judiciário e percepção de que o juiz integra um poder, mas não o detêm individualmente, proporcionam a diminuição da litigância, aumento da segurança jurídica e encurtamento do tempo do processo.
Foi adotando este entendimento, ao menos, que o legislador ordinário ampliou os meios de uniformização para além da súmula vinculante apresentada pelo constituinte derivado de 2004. Veja, desse modo, que o Congresso Nacional entendeu ser possível e plausível a uniformização repentina da jurisdição, sem os sacrifícios inerentes ao decurso de tempo. Essa intenção do legislador conferiu aos tribunais o poder-dever de uniformizar a jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente, nos termos do artigo 927 do Código de Processo Civil de 2015.
O método abarcado pelo Código para efetivar essa uniformidade foi o de estabelecer obrigatória observância às teses jurídicas adotadas por órgãos especiais quando do julgamento de matérias com alta relevância e/ou repercussão.
Leia-se o rol do art. 927, caput, do CPC:
Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
Objeto central do presente estudo, o inciso III estabelece observância obrigatória a posicionamentos resultantes da análise de casos concretos. É o único inciso de todo o artigo cujo teor jurídico possui caráter incidental e não central. O inciso I trata de decisão em controle abstrato, em que o foco da discussão é a própria norma, os incisos II, IV e V se referem a diretrizes verbalizadas em súmulas e orientações que, embora recorram ao labor intelectual produzido em casos concretos, não são precedentes judiciais, mas mera materialização objetiva de um raciocínio jurisprudencial dominante[12].
Apura-se, por fim, que apenas os itens elencados no inciso III caracterizam-se verdadeiramente como precedentes.
Não se deixa de notar, ainda, que os mecanismos desse inciso são muito mais céleres que os constantes dos incisos II, IV e V. Ora, no inciso III, a reiterada manifestação do tribunal não configura-se como requisito, nem indiretamente, pelo que bastará a existência de relevância da matéria apta a provocar o tribunal competente, conforme se verá adiante.
Ademais, por expressa determinação do Código, a resolução, in casu, da questão de direito ensejará a elaboração, pelo tribunal competente, de uma tese do julgamento, a qual vinculará todos os julgadores de casos análogos.
Finalmente, não se ignora que julgar caso paradigma é produzir decisão replicável, o que demanda alguns cuidados extras, tais como obediência a um procedimento especial e exaurimento cognitivo do tema. Assim sendo, as peculiaridades de cada hipótese serão tratados em tópicos exclusivos.
2.3.1. Incidente de Assunção de Competência - IAC
O primeiro instituto a ser analisado é o Incidente de Assunção de Competência (IAC) cuja previsão legal está no art. 947 e parágrafos do Código de Processo Civil.
Leia-se a transcrição do artigo:
Art. 947. É admissível a assunção de competência quando o julgamento de recurso, de remessa necessária ou de processo de competência originária envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos.
§ 1º Ocorrendo a hipótese de assunção de competência, o relator proporá, de ofício ou a requerimento da parte, do Ministério Público ou da Defensoria Pública, que seja o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária julgado pelo órgão colegiado que o regimento indicar.
§ 2º O órgão colegiado julgará o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária se reconhecer interesse público na assunção de competência.
§ 3º O acórdão proferido em assunção de competência vinculará todos os juízes e órgãos fracionários, exceto se houver revisão de tese.
§ 4º Aplica-se o disposto neste artigo quando ocorrer relevante questão de direito a respeito da qual seja conveniente a prevenção ou a composição de divergência entre câmaras ou turmas do tribunal.
Embora o art. 555, § 1.º, do CPC/73 trouxesse um instituto semelhante ao IAC, verifica-se que o Diploma de 2015 trouxe inovações que engrandeceram o incidente. Na atual redação, ampliaram-se as hipóteses de cabimento para, além de recursos, casos de remessa necessária e processos de competência originária. Ainda, outrora privativa do relator na modalidade ex officio, hoje a assunção de competência pode se dar a requerimento da parte, do Ministério Público ou da Defensoria Pública.
No entanto, nenhuma dessas alterações impactam tão fortemente o direito quanto aquela relacionada ao objeto central deste trabalho, a saber, a dimensão vinculante do resultado do julgamento. Veja-se que o § 3.º do 947 é inequívoco ao afirmar que o resultado do julgamento “vinculará todos os juízes e órgãos fracionários”, de modo que a integralidade da jurisdição inferior estará obrigada a acatar a interpretação jurídica prolatada pelo órgão especial.
Não bastasse a clareza de referido parágrafo, o Código reitera essa vinculação no art. 927, inciso III, segundo o qual “os juízes e os tribunais observarão” “os acórdãos em incidente de assunção de competência”.
Analisando o instituto em si, verifica-se que o cabimento se dá quando da concorrência de três requisitos, sendo os dois primeiros deles característicos a outros os casos de julgamentos potencialmente vinculantes, a saber, a existência de relevante questão de direito e a repercussão social. A relevante questão de direito está diretamente relacionada a um razoável debate jurídico que, a um só tempo, envolva direitos não corriqueiros e seja potencialmente passível de divergência, conforme indica o § 4.º do art. 947 do CPC.
O requisito da repercussão social estabelece que a instauração de um IAC não ocorrerá se o debate detiver natureza predominantemente teórica, incapaz de ocasionar real implicação social. Não obstante, este requisito também exige que o direito em litígio ultrapasse o interesse das partes.
Atende à referida condição, por exemplo, o julgamento de uma questão que implique, direta ou indiretamente, no exercício da atividade empresarial por determinado segmento, ou afete um grupo de pessoais, tais como servidores, consumidores ou mesmo a população de determinada área, por exemplo.
Considerando-se a subjetividade dos primeiros dois requisitos para instauração de IAC, o § 2.º do art. 927 do CPC estabelece que a competência para sua verificação in casu pertence ao próprio órgão julgador, não estando este vinculado à proposta realizada pelo relator.
Finalmente, chama atenção o terceiro e último requisito mencionado no caput do 927: a inexistência de “múltiplos processos” versando sobre a questão. Embora essa excludente pareça um requisito logicamente oposto aos dois primeiros, a sua razão de ser reside no fato do IAC ser um mecanismo subsidiário dentre as técnicas de integralização jurisdicional.
Em síntese, a instauração de um IAC submete uma relevante questão de direito à apreciação cabal do órgão apto a enfrentar a discussão jurídica, pelo que é capaz de assegurar, preventiva e repressivamente, a convergência dos juízes e colegiados vinculados ao respectivo tribunal.
Finalmente, esse forte caráter vinculante de decisões proferidas em sede de IAC enseja a realização de audiências públicas e a intervenção de amicus curiae, prezando-se ao máximo pela ampla defesa e contraditório, além de farta instrução técnica e intelectual relacionada.
2.3.2. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas - IRDR
O segundo instituto a ser analisado é o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) cuja previsão normativa se encontra no art. 976 e seguintes do Código de Processo Civil.
Leia-se a transcrição integral do art. 976:
Art. 976. É cabível a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas quando houver, simultaneamente:
I - efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito;
II - risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.
§ 1º A desistência ou o abandono do processo não impede o exame de mérito do incidente.
§ 2º Se não for o requerente, o Ministério Público intervirá obrigatoriamente no incidente e deverá assumir sua titularidade em caso de desistência ou de abandono.
§ 3º A inadmissão do incidente de resolução de demandas repetitivas por ausência de qualquer de seus pressupostos de admissibilidade não impede que, uma vez satisfeito o requisito, seja o incidente novamente suscitado.
§ 4º É incabível o incidente de resolução de demandas repetitivas quando um dos tribunais superiores, no âmbito de sua respectiva competência, já tiver afetado recurso para definição de tese sobre questão de direito material ou processual repetitiva.
§ 5º Não serão exigidas custas processuais no incidente de resolução de demandas repetitivas.
Do texto colacionado, é possível aferir que, ao estabelecer o IRDR, o legislador objetivou impedir decisões conflitantes nos casos de litigância de massa. Referida classe de litígios configura-se quando uma mesma questão unicamente de direito é discutida judicialmente em ações que se multiplicam ou pela tipicidade ou pela abundância de envolvidos.
Assim sendo, a primeira diferença em relação ao IAC é que o IRDR não se presta a solucionar uma questão de direito por sua qualidade, mas sim por sua repetitividade. O legislador parece pressupor que o judiciário, ao julgar numerosos casos idênticos sem um parâmetro bem predefinido, poderia ferir a isonomia e a previsibilidade jurídica por não aplicar uniformemente o direito. Desse modo, a instauração do IRDR visa apenas impedir que princípios republicamos sejam violados, independentemente da discussão verdadeiramente sub judice.
Aliás, nota-se que os requisitos são estritamente objetivos, e é interessante o fato da multiplicidade ser verificada em concreto, “efetiva", enquanto o dano à isonomia ser analisado em abstrato, "risco de ofensa". Noutras palavras, a instauração de um IRDR exige comprovação de multiplicidade de feitos, mas não de conflito entre julgamentos, já que este incidente também pode ter natureza preventiva.
Ainda, é importante ressaltar que o inciso I do art. 976 do CPC exclui dos objetos de IRDR as controvérsias fáticas. Isso não quer dizer, contudo, que os litígios dependentes de instrução e averiguação de eventos não possam ser beneficiados pelo IRDR. A única ressalva é que, nesses casos, apenas os debates de natureza estritamente jurídica serão resolvidos com a eficácia típica desse instrumento.
A propósito exemplificativo, suponha que um enorme grupo de pessoas litiga em face de certa companhia pleiteando indenização por danos materiais sofridos. Suponha, contudo, que a responsabilidade da companhia está controvertida sob alegação de quebra do nexo de causalidade.
Nesse cenário hipotético, o IRDR se prestaria a dirimir, em favor de todos os casos, a controvérsia relativa à responsabilidade civil, mas não faria a fixação de todas as indenizações. Consequentemente, se fosse fixada a existência de responsabilidade, caberia a cada litigante enfrentar a controvérsia fática relativa à extensão do dano indenizável.
Ademais, quanto à vinculatividade das decisões proferidas não somente em IRDR, a qual é expressamente prevista nos arts. 927, inciso III e 985, incisos I e II, ambos do CPC, como também em outros instrumentos semelhantes, importa comentar que a imposição de uma decisão a terceiros estranhos ao processo configuraria, em tese, evidente afronta ao contraditório, e, portanto, padeceria de inconstitucionalidade.
No entanto, houve um minucioso cuidado do legislador em manter a constitucionalidade dos institutos mencionados, incluso o IRDR, ao determinar a máxima publicidade do processamento e futuro julgamento, conforme se lê no artigo 979, caput, bem como ao tornar obrigatória a intervenção do Ministério Público e a convocação de todos os demais legitimados para a tutela coletiva de interesses.
Finalmente, como o interesse no IRDR ultrapassa os limites da relação versada no paradigma, sua instauração não se sujeita a custas e a desistência ou abandono não implica em encerramento do incidente. Nesses últimos casos, o próprio Ministério Público assumirá a titularidade, dando-lhe prosseguimento até a decisão final, nos termos do art. 976, § 2.º, do CPC.
2.3.3. Recursos repetitivos nos Tribunais Superiores
O terceiro e mais importante caso de vinculatividade mencionado no inciso III do art. 927 do CPC é o da tese adotada em acórdão de julgamento dos recursos repetitivos nos Tribunais Superiores. A regulação específica desse instituto se dá pelo art. 1.036 e seguintes do CPC, que estabelecem variadas e minuciosas etapas procedimentais que não são o foco desta pesquisa.
Pois bem, antes de examinarem-se as peculiaridades do instituto em comento, um oportuno fundamento processual a ser destacado é que os recursos no direito brasileiro podem ser classificados em ordinários e extraordinários.
Os recursos ordinários servem, via de regra, como resposta ao interesse da parte vencida em ver a jurisdição reformar-se em seu favor. Neles, garantem-se o exercício do duplo grau, o exaurimento das controvérsias fáticas e a reapreciação dos fundamentos de direito e de fato utilizados na solução da lide.
Pontue-se que os recursos ordinários requisitam apenas o interesse recursal para terem lugar e sua razão de ser reside na necessidade de garantir ao jurisdicionado a ampla defesa de seus direitos e a possibilidade de revisão dos atos equivocados ou arbitrários que eventualmente sejam realizados por algum magistrado.
Noutros termos, essa classe de recursos encontra cabimento em quase todos os casos de sucumbência da parte. Exceções a essa regra são raras e, como exemplo, pode-se citar o embargo infringente, recurso ordinário que requisita, além do interesse recursal, a existência de um voto vencido favorável às razões de impugnação.
Por outro lado, os recursos extraordinários no direito brasileiro sempre tiveram um caráter mais relacionado à ordem pública, ou seja, seu cabimento demanda a análise de pertinência da controvérsia sob a ótica da política e da democracia. Assim sendo, embora a questão de direito seja apreciada à luz das circunstâncias do litígio, a existência de referidos recursos se fundamenta precipuamente na necessidade de expurgar do sistema as decisões que molestam a autoridade da Constituição e da legislação federal.
O requisito jurídico maior dos recursos extraordinários se satisfaz ao instrumentalizar-se e efetivar-se a uniformidade de interpretação do direito federal e constitucional.
Com a promulgação da Constituição de 1988, no entanto, o constituinte originário desdobrou o recurso extraordinário lato sensu em Recurso Extraordinário ao STF, stricto sensu, e Recurso Especial ao então criado STJ. Sem delongas, o primeiro foi precipuamente destinado a tratar de questões relevantes de ordem constitucional e o segundo de questões relativas a afrontas a lei federal ou a tratado internacional.
Assim, referidos recursos possuem requisitos de admissibilidade próprios, como prequestionamento da razão, os quais não são objetos deste artigo.
Retomando o tema em apreço, os recursos extraordinários lato sensu na modalidade de demandas repetitivas, embora possuam nomenclatura que remeta ao IRDR, com ele não se confunde. Note que a teleologia do IRDR é tratar igualmente questões replicadas, e, como este incidente se dá dentro do duplo grau de jurisdição, não há restrições relativas ao tema de direito versado. Um IRDR pode, assim sendo, versar sobre legislação municipal ou sobre responsabilidade civil em determinado evento, tudo desde que se encontre a controvérsia multiplicada em inúmeras demandas.
Em contrapartida, no instituto em comento, a multiplicidade apenas se soma aos demais requisitos de admissibilidade do respectivo recurso. Desse modo, é necessário afastar a percepção de que toda e qualquer controvérsia com múltiplas ações poderia, em tese, ser resolvido pelos órgãos de cúpula. Tal percepção advém da distorção a respeito da real teleologia dos tribunais superiores.
Mesmo entre as duas modalidades, mostra-se ainda mais excepcional o RE repetitivo, cuja competência para julgamento pertence ao Supremo Tribunal Federal. Este incidente sujeita-se, indiretamente, ao reconhecimento de repercussão geral, de modo que, ainda que haja vários Recursos Extraordinários versando sobre uma mesma questão constitucional controvertida, o incidente permanece sujeito a ter sua instauração negada.
Assim seria, por exemplo, caso a Corte reconheça que a contenda constitucional, por mais repetitiva que seja, não é relevante do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, e, portanto, é incapaz de ultrapassar os interesses subjetivos dos recorrentes e recorridos.
Justamente por essa peculiaridade, é, certamente, o mais importante dos precedentes trazidos pelo Código de 2015. Veja que ele cumula em si a (1) multiplicidade de litígios, (2) a relevância da questão de direito e a (3) eficácia vinculante, que, inclusive, se dá em todo território nacional.
Diferentemente, as duas outras classes de precedentes mencionadas no inciso III do art. 927 do CPC, além de requisitarem, isoladamente, ou a multiplicidade (IRDR) ou a relevância (IAC), não são dotados, precipuamente, de vinculatividade nacional. Naqueles incidentes, deve-se pontuar, apenas os juízes e órgãos fracionários vinculados ao respectivo tribunal se submetem à replicação do que for decidido.
Referida combinação, repita-se: exclusiva dos recursos extraordinários e especiais repetitivos, torna-os institutos capazes de desafogar contundentemente o judiciário, concedendo-lhe feição mais eficiente e célere. Não obstante, esses repetitivos também são os grandes prestigiadores de uma verdadeira isonomia, do devido processo legal e da previsibilidade jurídica, sendo instrumentos aptos a elidir, conforme nomeia Teresa Arruda Alvim, a mais “gritante das inconstitucionalidades” os jurisdicionados já nem saberem mais o que é o direito.[13]
Nada disso, contudo, seria tão proveitoso sem a percepção de que o órgão responsável por dirimir a controvérsia, nesses casos, é, justamente, aquele competente para dar, no tema, a última palavra. Assim sendo, inclusive, a vinculatividade tal qual expressada no CPC parece partir do pressuposto de que a jurisdição brasileira não está preparada para, voluntariamente, pensar-se enquanto unidade, salvo se em virtude de lei.
Ora, se uma questão meramente teórica já foi consolidada pela autoridade máxima no tema, por que razão um magistrado de instância inferior voluntariamente provocaria via recursal fadada à reforma de seu trabalho? Não se sabe. Mas fato é que o temor do legislador foi real o suficiente para corajosamente nulificar os atos judiciais que contrariassem suas cúpulas em seus vários precedentes hoje vinculantes.
Ora, nos termos do art. 489, § 1.º, inciso VI do CPC, padece de vício por falta de fundamentação qualquer decisão judicial que não seguir, in casu, precedente obrigatório aplicável, dentre os quais certamente se insere o acórdão proferido nos repetitivos em comento.
Desse modo, por tudo mais que se expôs, o julgamentos de recursos extraodinários lato sensu na modalidade repetitiva é, mais que bem-vinda, inovação necessária à boa administração da justiça, especialmente porque uniformiza a jurisdição quanto a pontos mui protegidos e basilares do Estado de Direito.
2.4. A inaplicabilidade de um precedente por distinção - distinguishing - ou superação - overruling
Retomando a discussão do item 2.4, o precedente e suas teses, diferentemente da legislação hipotético-dedutiva, originam-se do julgamento de um contexto fático. É importante notar que essa característica limita sua validade e incidência aos casos que, se aplicados, produzem a justa solução do litígio, tal qual ocorrido com as ações primevas.
Assim sendo, o legislador, ao importar o instituto inglês de precedentes vinculantes, stare decisis, trouxe também para o direito brasileiro a segurança promovida pelas excludentes de aplicação por distinção e superação. Referidas possibilidades se configuram quando a replicação do julgamento produz efeito diverso daquele produzido inicialmente, seja por inadequação contextual, seja por injustiça superveniente.
Assim sendo, no caso concreto em houver insurgência quanto à aplicação de um precedente, a parte poderá pleitear que a tese utilizada não seja aplicada ao seu processo. Nesse ato, cabe a ela comprovar que, ou seu caso possui elemento apto a elidir a necessária compatibilidade entre os feitos, ou, então, o entendimento firmado outrora está hoje superado por alteração social ou legislativa.
Examinar-se-ão as hipóteses individualmente, as quais, embora positivadas pelo legislador no art. 489, § 1.º, inciso VI, do CPC, são esmiuçadas apenas pela doutrina.
Pois bem, o distinguishing, em primeiro lugar, não é um método que se presta a questionar a inteireza ou o mérito de um precedente. Sua atuação se resume a demonstrar que os requisitos de compatibilidade entre o precedente usado e o caso em apreço não foram devidamente preenchidos.
Nesta hipótese, a parte impugnará o resultado da decisão indiretamente, pois o equívoco decisório reside estritamente na percepção fática. É essencial, caso se pretenda fazer a distinção, que o interessado examine o precedente original e elenque diferenças em pontos substanciais, ou seja, naqueles que foram indispensáveis à conclusão do primeiro julgamento, mas que não se fazem presentes no caso atual.
Essas circunstâncias essenciais são conhecidas como a ratio decidendi do precedente, pois, sem qualquer uma delas, abalaria-se o sustentáculo da conclusão jurisdicional vinculante.
Para uma rápida exemplificação, colaciona-se a posição firmada pelo STJ no julgamento do REsp 1.657.156/RJ, Tese de n.º 106:
A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos:
i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;
ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito;
iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência.
Suponha que o autor de uma demanda obtenha decisão favorável para a concessão de medicamento não incorporado em atos normativos do SUS. Referido êxito se deu ao demonstrar cabalmente que: (1) necessitava da droga, (2) nenhum outro medicamente fornecido pelo SUS auxiliaria seu tratamento, (3) não detêm capacidade financeira de arcar com uma aquisição onerosa e (4) o medicamente está devidamente registrado na Anvisa, pelo que seu uso já foi recepcionado em território nacional.
Suponha, no entanto, que, embora haja fartos indícios de compatibilidade entre as causas, o registro do medicamento na agência reguladora menciona seu uso em diversas doenças, dentre as quais não se encontra a aplicação pretendida na ação. Nesse caso, a decisão que determina a concessão do medicamente deve ser impugnada por meio da indicação do registro sanitário e da identificação da enfermidade.
No caso hipotético narrado, não se questiona o mérito do precedente, tampouco sua atualidade, mas apenas esclarece os fatos de modo a evitar a aplicação indevida.
Já a outra excludente de aplicação de precedentes, o overruling, é um método que se presta a questionar a inteireza, o mérito ou a aplicabilidade de um precedente ou tese de tribunal. Sua atuação intenta demonstrar alguma alteração, jurídica ou social, que tenha encerrado ou extinguido algum dos pressupostos de validade do precedente.
Suponha que um precedente se fundamenta em dispositivo revogado por outro diametralmente contrário. Nesse caso, é inequívoco que a vontade da lei há de se sobressair, afinal, a vinculatividade dos precedentes se aplica apenas ao próprio judiciário e certamente sucumbe à vontade do legislador.
Ademais, suponha também que uma tese foi firmada como obrigatória pelo STJ a partir de um feito que, posteriormente, submeteu-se, em grau recursal, à apreciação pelo STF. Então, quando da análise da questão constitucional, o julgamento acabou por modificar o desfecho dado pelo primeiro tribunal. Veja que, sendo o órgão máximo do judiciário, não há que se falar em conflito entre ambas as decisões, pelo que obviamente há revogação do precedente também neste caso.
Assim sendo, os precedentes devem ser constantemente acompanhados a fim de que sua utilização, por mais compatível que seja com o caso analisado, não seja feita indevidamente, já que precedentes estão sim sujeitos a superação.
Considerações finais
A corajosa importação, pelo legislador, de precedentes vinculantes suscitou questões muitos internalizadas e sensíveis ao jurista brasileiro. Dentre elas, o papel criativo da jurisdição teve notório reconhecimento legal, de modo que os limites do judiciário foram invocados por inúmeros críticos a fim de sustentar uma alegada distorção do ordenamento.
No entanto, conforme o presente artigo pretendeu demonstrar, a jurisdição despida de criatividade é idealizada, a letra não é nada em si mesmo pois precisa de um sentido atribuído, uma aplicação no mundo dos fatos. Em verdade, no momento em que dois magistrados decidem antagonicamente a partir do mesmo dispositivo, é inarredável concluir que, ou um deles está criando direito, ou o outro está extinguindo direito.
Assim sendo, ignorar a amplitude e o poder que de fato existe em mãos do judiciário configura crença numa repartição utópica. O trabalho do legislador em aceitar a realidade e controlá-la não pode ser desmerecido. Aliás, a partir do momento que sua atuação promoveu aumento da segurança jurídica e estabilidade de jurisdição, pode ser entendido que sua competência constitucional fora cumprida com louvor.
Ademais, apesar de inúmeras acusações ao legislativo, é possível entender sua escolha como mera correção de “distorções que são fruto de se levar às últimas consequências a ideia de que o juiz pode decidir de acordo com a sua convicção.”[14]
Conforme reiteradamente afirmado no decorrer deste ensaio, o entendimento autoral é no sentido de que a legislação e a Constituição, se desvinculadas de uma hermenêutica elaborada, são meros ajuntamentos de letras. Dizer que o juiz está vinculado somente à lei é o mesmo vinculá-lo apenas à sua própria lei.
A partir do momento que se pressupõe um livre convencimento hermenêutico, o judiciário estaria fadado à mais instrumentalizada das desordens e dissonâncias. Justamente por isso é preciso dizer que o livre convencimento do juiz é a respeito dos fatos e que a administração da justiça não é por ele exercida individualmente, mas enquanto integrante de um só Poder Judiciário.
Ao judiciário, portanto, e não ao juiz, cabe a aplicação da lei e o exercício hermenêutica constitucional.
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VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. São Paulo: Martin Claret, 2003. 334, 335 p.
[5] Neologismo usado para se referir ao ordenamento civil law que tende a adotar precedentes obrigatórios.
Graduado em Direito pela Faculdade Prof. Jacy de Assis da Universidade Federal de Uberlândia
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Djalma José Fernandes Alves. Precedentes judiciais vinculantes no Direito Brasileiro: Análise da função uniformizadora da jurisdição dos tribunais superiores Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 ago 2021, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57064/precedentes-judiciais-vinculantes-no-direito-brasileiro-anlise-da-funo-uniformizadora-da-jurisdio-dos-tribunais-superiores. Acesso em: 23 dez 2024.
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