DAGMAR ALBERTINA GEMELLI [1]
(orientadora)
RESUMO: O estudo a seguir analisa a aplicabilidade do artigo 323 do Código Penal, a respeito do crime de abandono de função, frente à Lei nº 1.818, de 23 de agosto de 2007, que dispõe sobre o Estatuto dos Servidores Públicos Civis do Estado do Tocantins. A pesquisa investiga a necessidade do “abandono de função/cargo” ainda se encontrar na esfera penal, considerando que o Direito Administrativo possui todas as ferramentas necessárias ao enfrentamento da questão, comportando, inclusive, a possibilidade de demissão do servidor negligente, conforme prescreve o artigo 157, II da Lei nº 1.818/2007. O objetivo do artigo é estabelecer as distinções entre as referidas previsões legais e aferir se o tipo penal encontra lugar na jurisprudência do estado do Tocantins, bem como se a previsão de âmbito administrativo, por si só, se mostra suficiente para solucionar os conflitos dessa natureza. Para tanto, foi utilizado o método de pesquisa qualitativo, com os procedimentos metodológicos de pesquisa bibliográfica.
Palavras-chave: Servidor Público. Cargo. Função. Abandono.
ABSTRACT: This article analyses the applicability of the section 323 of the Brazilian criminal code about the crime of post abandonment, according to the law 1.818 of 23 august 2007, which deals with the civil servants code of the State of Tocantins. The research investigates the necessity of the “abandonment of post/job” still belonging to the criminal sphere of the law, especially considering that the Administrative Rules has all the necessary tools to combat the issue, admitting the possibility to fire the negligent servant, as prescribed in the Section 157, II of law nº 1.818/2007. The objective of this article is to establish the distinction between the referred legal rules and gauge if this specific criminal law finds its place in the jurisprudence of the state of Tocantins and in the administrative scope, by itself, proves being enough to resolve the conflicts of such nature. For that purpose, it was used the Qualitative research method, in addition to the methodological procedure of bibliographic research.
Keywords: Public Servant. Civil Servant. Post. Abandonment.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 SERVIDORES PÚBLICOS. 2.1 FUNÇÃO, CARGO E EMPREGO: DISTINÇÕES TERMINOLÓGICAS. 3 A PREVISÃO LEGAL. 3.1 A PREVISÃO DO CÓDIGO PENAL QUANTO AO CRIME DE ABANDONO DE FUNÇÃO. 3.2 A PREVISÃO DA LEI Nº 1.818 DE 23 DE AGOSTO DE 2007, QUANTO AO ABANDONO DE CARGO. 4 JURISPRUDÊNCIA DO ESTADO DO TOCANTINS: INCIDÊNCIA DO TIPO PENAL ABANDONO DE FUNÇÃO E INCIDÊNCIA DO ABANDONO DE CARGO. 4.1 APELAÇÃO CÍVEL 0047799-46.2018.8.27.2729/TO. 4.2. APELAÇÃO CÍVEL 0027659-93.2019.8.27.0000/TO. 4.3. APELAÇÃO CÍVEL 0011010-53.2019.8.27.0000. 4.4. APELAÇÃO CÍVEL 5006314-30.2012.827.0000. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS. 6 REFERÊNCIAS.
O presente trabalho versa sobre o crime de abandono de função, previsto no artigo 323 de Código Penal, em contraste com a Lei nº 1.818, de 23 de agosto de 2007 (sobre o Estatuto dos Servidores Públicos Civis do Estado do Tocantins), que também dispõe sobre o abandono de cargo público, ambos frente à jurisprudência do estado do Tocantins.
Inicialmente, justifica-se a escolha do tema a partir do anseio de se estabelecer as distinções entre as referidas previsões legais e, posteriormente, aferir se o tipo penal ainda encontra lugar na jurisprudência do estado em epígrafe, bem como se a previsão de âmbito administrativo, por si só, se mostra suficiente para solucionar os conflitos dessa natureza.
Para tanto, os objetivos se encontram dispostos no sentido de analisar as supraditas leis; estudar a previsão do código penal a respeito do abandono de função; compreender a previsão da Lei nº 1.818/2007, quanto ao abandono de cargo; bem como analisar o “crime de abandono de função” e o “abandono de cargo” na jurisprudência do Tocantins.
A fim de se alcançar os objetivos propostos, a presente pesquisa se valerá, em sua abordagem, do método de pesquisa qualitativo; no ponto de vista de sua natureza, será básica; quanto aos seus objetivos, será descritiva; e, finalmente, no que concerne aos procedimentos metodológicos, será adotada a pesquisa bibliográfica e a pesquisa documental.
O tema encontra o seu ápice quando busca verificar a necessidade ou não de tal dispositivo ainda se encontrar na esfera penal, considerando que o Direito Administrativo possui as ferramentas necessárias ao enfrentamento da questão, comportando, inclusive, a possibilidade de demissão do servidor negligente, tanto na Lei nº 1.818/2007, ora estudada, quanto, a título de exemplo, no artigo 132 da Lei nº 8.112/90 - regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais.
O estudo defende a eficácia da previsão normativa no âmbito administrativo, no que tange à punição do agente que atenta contra a administração pública, deixando de atuar conforme a sua designação, tal como visa demonstrar a perda de eficácia, ou mesmo, o desuso do tipo penal.
O trabalho em tela se aterá à jurisprudência disponível no sítio do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins, a fim de verificar a aplicabilidade do abandono de função como tipo penal na jurisprudência deste estado, partindo da hipótese de que sua aplicabilidade tenha se tornado, atualmente, inutilizada, diante da aplicação da previsão administrativa.
Pelo que se pergunta, o dispositivo penal “abandono de função” tem encontrado lugar na jurisprudência do Tocantins ou as situações dessa natureza se veem solucionadas com base, apenas, no que preveem as leis administrativas a respeito do abandono de cargo e suas consequências?
Ante o problema apresentado, o que se pretende estudar no presente trabalho, com base na leitura de doutrinas e jurisprudências, é se ainda existe a necessidade de que o Código Penal Brasileiro verse sobre o abandono de função.
2 SERVIDORES PÚBLICOS
A Constituição de 1988, na seção II do capítulo que trata da Administração Pública, emprega a expressão “Servidores Públicos” para designar as pessoas que prestam serviços, com vínculo empregatício, à Administração Pública Direta, autarquias e fundações públicas.
Para Di Pietro (2017), “servidor público” é a expressão empregada, em sentido amplo, para designar todas as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e às entidades da Administração Indireta, com vínculo empregatício, já em sentido menos amplo, exclui os que prestam serviços às entidades com personalidade jurídica de direito privado.
É importante observar que nenhuma vez a Constituição utiliza o vocábulo funcionário, o que não impede que seja este mantido na legislação ordinária. Outra definição trazida por Carvalho Filho (2020, p. 1.095), acerca dos servidores públicos é a seguinte: [...] são todos os agentes que, exercendo com caráter de permanência uma função pública em decorrência de relação de trabalho, integram o quadro funcional das pessoas federativas, das autarquias e das fundações públicas de natureza autárquica.
Outros aspectos a se considerar são as características que esboçam o perfil da categoria dos servidores públicos. Na definição de Meirelles (2016), a primeira delas é a profissionalidade, significando assim que os servidores públicos exercem efetiva profissão quando no desempenho de suas funções públicas. Compõem, por conseguinte, uma categoria própria de trabalhadores.
Outra característica é a definitividade, ou seja, constitui a permanência no desempenho da função. Isso não quer dizer que não haja funções de caráter temporário, mas todas estas vão representar sempre situações excepcionais que, por serem assim, fogem à regra geral da definitividade (CARVALHO FILHO, 2020).
É importante trazer à baila, também, a existência de uma relação jurídica de trabalho, pois nela pode verificar-se a todo o tempo a presença de dois sujeitos: de um lado, a pessoa beneficiária do exercício das funções, que em sentido amplo pode qualificar-se como empregador (pessoas federativas, autarquias e fundações autárquicas), e de outro, o servidor público, vale dizer, aquele a quem incumbe o efetivo exercício das funções e que empresta sua força de trabalho para ser compensado com uma retribuição pecuniária (DI PIETRO, 2017).
Por fim, vale ressaltar que os servidores públicos fazem do serviço público uma profissão e se distinguem dos demais agentes pelo fato de estarem ligados ao Estado por uma efetiva relação de trabalho.
2.1 FUNÇÃO, CARGO E EMPREGO: DISTINÇÕES TERMINOLÓGICAS
A Constituição federal, em vários dispositivos, emprega os vocábulos cargo, emprego e função para designar realidades diversas que existem paralelamente na Administração.
Cumpre, pois, distingui-las, vide:
[...] para bem compreender o sentido dessas expressões, é preciso partir da ideia de que na Administração Pública todas as competências são definidas na lei e distribuídas em três níveis diversos: pessoas jurídicas (União, Estados e Municípios), órgãos (Ministérios, Secretarias e suas subdivisões) e servidores públicos; estes ocupam cargos ou empregos ou exercem função (ROCHA, 2009, p. 23).
Na observação de Bandeira de Mello (2009) cargo é a denominação dada à mais simples unidade de poderes e deveres estatais a serem expressos por um agente. Cargo público é o lugar dentro da organização funcional da Administração Direta e de suas autarquias e fundações públicas que, ocupado por servidor público, tem funções específicas e remuneração fixada em lei ou diploma a ela equivalente.
O art. 3º da Lei nº 1.818/2007 – Estatuto dos Servidores Públicos Civis do Estado do Tocantins, define o cargo público como a unidade estrutural instituída na organização do serviço público, com denominação própria, atribuições e responsabilidades específicas e subsídio correspondente, para ser provido e exercido por servidor, na forma estabelecida em lei.
Já o art. 3º da Lei nº 8.112/1990 - Estatuto dos Servidores da União, define o cargo público como sendo o conjunto de atribuições e responsabilidades previstas na estrutura organizacional que devem ser cometidas a um servidor.
O conceito da lei acima referenciada não é perfeito, Carvalho Filho (2020) elucida nessa controvérsia que cargo não é um conjunto de atribuições; cargo é uma célula, um lugar dentro da organização; além do mais, as atribuições são cometidas ao titular do cargo.
A função pública é a atividade em si, ou seja, função é sinônimo de atribuição e corresponde às inúmeras tarefas que constituem o objeto dos serviços prestados pelos servidores públicos. Nesse sentido, fala-se em função de apoio, função de direção, função técnica (DI PIETRO, 2017).
Em geral, emprega-se a expressão função gratificada, que, na verdade, indica uma gratificação da função, ou seja, uma função especial, fora da rotina administrativa e normalmente de caráter técnico ou de direção, cujo exercício depende da confiança da autoridade superior (SPITZCOVSKY, 2019).
O cargo, ao ser criado, já pressupõe as funções que lhe são atribuídas. Não pode ser instituído cargo com funções aleatórias ou indefinidas: é a prévia indicação das funções que confere garantia ao servidor e ao Poder Público (GASPARINI, 2015).
Por fim, a expressão emprego público é utilizada para identificar a relação funcional trabalhista, assim como se tem usado a expressão empregado público como sinônima de servidor público trabalhista (DI PIETRO, 2017).
Sintetizando, o servidor trabalhista tem função (no sentido de tarefa, atividade), mas não ocupa cargo. O servidor estatutário tem o cargo que ocupa e exerce as funções atribuídas ao cargo.
3 A PREVISÃO LEGAL
3.1 A PREVISÃO DO CÓDIGO PENAL QUANTO AO CRIME DE ABANDONO DE FUNÇÃO
O crime de abandono de função se encontra previsto no Título XI - Dos crimes contra a Administração Pública, Capítulo I - Dos crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral, constantes no Código Penal Brasileiro, precisamente no artigo 323, que, embora tenha como descrição o “abandono de função”, assim dispõe:
Art. 323 - Abandonar cargo público, fora dos casos permitidos em lei:
Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa. Se do fato resulta prejuízo público:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
Se o fato ocorre em lugar compreendido na faixa de fronteira:
Pena - detenção, de um a três anos, e multa.
Observe-se que, em que pese haver a menção ao abandono de “função”, o que o legislador de fato alberga diz respeito ao abandono do “cargo público”, diferenciação importante para a introdução a este estudo, posto que o abandono da “função” não configura crime, repise-se, apenas o abandono do “cargo”. Em outras palavras, um servidor temporário que abandona a sua função, responde apenas administrativamente.
Dessa forma, em atenção à letra da lei, a previsão da Lei nº 1.818/2007 será mencionada ao longo do texto como “abandono de cargo” e aquela do código penal como “abandono de função”, mantendo-se a originalidade de sua previsão, mas conscientes do espírito da lei.
O cuidado do Código Penal em dispor sobre tal possibilidade encontra respaldo no fato de que, sem os funcionários públicos a máquina administrativa não consegue alcançar o seu pleno funcionamento, por isso a assiduidade e, até mesmo, a pontualidade do servidor, são características indispensáveis, como ensina Frota (2014), no sentido de que "o abandono de emprego importa violação do dever de assiduidade, afetando a continuidade do serviço, que é postulado essencial da administração”.
É, portanto, incontestável a relevância de que o assunto esteja comportado no rol de crimes contra a administração pública, desde que alcance a sua finalidade, qual seja, a de inibir e punir situações de abandono de cargo/função.
Compreendido isso, salta-se para a análise do supracitado artigo 323, o qual dispõe em seu caput sobre a ausência do servidor (crime formal), ressalvando os casos permitidos em lei, a exemplo de doença, inundação, caso fortuito, força maior, etc., os quais inviabilizam qualquer sanção, por ausência dos pressupostos do tipo penal, sobretudo do animus abandonandi, isto é, o desejo de abandonar o cargo público (FROTA, 2014).
Outro ponto que merece destaque, quanto à previsão penal, refere-se ao tempo de consumação do crime, para o qual não existe um lapso temporal predefinido, aplicando-se como requisitos para a consumação, além do comprovado desejo de abandonar, ou seja, o dolo do servidor, as qualificadoras de que tratam os parágrafos do artigo 323.
Nesta seara, Da Costa (2002) ensina que o delito penal encontra suas origens no âmbito das probabilidades de dano ao serviço público, motivo pelo qual, a depender da essencialidade do serviço abandonado, a sanção cominada ganha maior peso, como se vê dos parágrafos supramencionados, essa seria a razão, também, para estudiosos sustentarem que a mera ausência do servidor, que não gere esse perigo de dano, não configuraria a infração penal.
Em linhas finais, tem-se que, se a conduta assume o risco de causar prejuízo ao serviço público, mesmo que não corra o prazo de que trata a Lei nº 1.818/2007, ainda assim se configurará a infração penal, sobre isso se discorrerá a seguir.
3.2 A PREVISÃO DA LEI Nº 1.818 DE 23 DE AGOSTO DE 2007, QUANTO AO ABANDONO DE CARGO
O abando de cargo, no que tange à esfera administrativa e para os fins deste estudo, se encontra no artigo 162 da Lei nº 1.818/2007, nos seguintes termos: configura abandono de cargo a ausência intencional do servidor ao serviço, sem justificativa legal, superior a 30 dias consecutivos. Redação praticamente idêntica àquela do artigo 138 da Lei nº 8.112/1990.
Sobre o cargo público, é válido mencionar a conceituação trazida no artigo 3º da Lei 1.818/2007, no seguinte sentido: (...) é a unidade estrutural instituída na organização do serviço público, com denominação própria, atribuições e responsabilidades específicas e subsídio correspondente, para ser provido e exercido por servidor, na forma estabelecida em lei.
Tal como a previsão do artigo 3º da Lei nº 8.112/1990: (...) é o conjunto de atribuições e responsabilidades previstas na estrutura organizacional que devem ser cometidas a um servidor.
Pois bem, como dito anteriormente, ao contrário do dispositivo penal, a Lei nº 1.818/2007 estabelece o lapso superior a trinta dias consecutivos de ausência do servidor a fim de que se configure a infração administrativa, logo, ainda que o cargo tenha sido ocupado pelo substituto legal daquele que se dispôs a abandonar o cargo, passados mais de trinta dias consecutivos, restará configurado o abandono disciplinar.
Contudo, o delito disciplinar compreende dois planos, quais sejam, o objetivo e o subjetivo. O primeiro diz respeito ao fato de o servidor deixar de comparecer ao expediente de sua repartição por mais de trinta dias consecutivos, já o segundo, refere-se, novamente, ao animus abandonandi.
Antônio Carlos enfatiza que o abandono de cargo público não se consuma com a pura verificação dos mais de trinta dias consecutivos de faltas ao serviço, mas exige a presença da intencionalidade (falta de justa escusa) como pressuposto da configuração do delito disciplinar” (BRASIL, 2015).
Para além disso,
[...] os serviços públicos não podem parar. A acefalia administrativa não é permitida. Portanto, os institutos do direito administrativo têm atrás de si um princípio fundamental: eles são alicerçados em princípios e procurar a fundamentação do direito administrativo é situar-se num grau mais alto nos estudos jurídicos, o que permite sair do casuísmo e, ao mesmo tempo, integrar-se no campo da ciência do direito administrativo (CARVALHO, 2016, p. 203).
Por todo o exposto, é cabível mencionar que o encontro das citadas figuras delituais somente ocorre quando, a par de não haver a substituição automática sobredita, a ausência voluntária, e injustificada, seja por mais de trinta dias consecutivos, hipótese em que a conduta do agente público poderá, de pronto, ser encaixada como delito penal e disciplinar (BANDEIRA DE MELLO, 2009).
Outrossim, do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo 726.600, São Paulo, relatado pelo Ministro Luiz Fux, extrai-se que:
Não se discute que a violação ao dever de assiduidade e pontualidade afronta diretamente a moralidade da função pública e o princípio da continuidade do serviço público. Porém, para que o descumprimento do referido dever gere a demissão, é inexorável que o agente pratique o ato de abandono ou inassiduidade intencionalmente. Portanto, o motivo que levou o autor a faltar ao serviço público é fundamental para o julgamento da presente pretensão, pois caso as faltas injustificadas sejam decorrentes da doença que acometeu o servidor, e a Fazenda Pública tivesse ciência de seu estado, a procedência do pleito é de rigor. Caso contrário, se as faltas injustificadas são provenientes de descaso ou desídia com o serviço público, a improcedência se impõe.
Afere-se que a intencionalidade ou animus, se constitui da vontade livre do agente em abandonar o cargo público. Logo, qualquer fator que possa desviar a autonomia de sua vontade, desfigura o abandono de cargo, podendo se configurar como, por exemplo, a falta do dever de assiduidade. Ademais, a repartição poderá lhe cobrar os valores pagos por falta da prestação do serviço, mas não poderão as autoridades processantes aplicar-lhe a pena de demissão.
4 JURISPRUDÊNCIA DO ESTADO DO TOCANTINS: INCIDÊNCIA DO TIPO PENAL ABANDONO DE FUNÇÃO E INCIDÊNCIA DO ABANDONO DE CARGO
O direito administrativo, nas palavras de Meirelles (2017), é o conjunto harmônico de princípios jurídicos que regem os órgãos, os agentes e as atividades públicas tendentes a realizar concreta, direta e imediatamente os fins desejados pelo Estado.
É necessário esclarecer que muitas infrações às normas administrativas são punidas no âmbito do próprio direito administrativo; entretanto, há certos ilícitos que, pela exacerbada gravidade, são igualmente previstos no cenário do direito penal, tal como a corrupção do funcionário público e o abandono do cargo/função.
Diante disso, o Código Penal possui, como já dito, um longo Título XI, cuidando dos crimes contra a administração pública, envolvendo os crimes praticados por funcionário público contra a Administração em geral; os crimes cometidos por particular contra a Administração em geral; os delitos praticados por particular contra a Administração pública estrangeira; e os crimes cometidos contra a Administração da Justiça.
Ao trazer a incidência do tipo penal abandono de função e a incidência do abandono de cargo contidas na jurisprudência do Estado do Tocantins, observa-se que é pequena a quantidade de processos referentes ao “abandono de cargo” e que inexistem processos a respeito do “crime de abandono de função”, o que se evidencia quando da pesquisa realizada no sítio do Tribunal de Justiça do Tocantins.
Quando pesquisado, no dia 18 de março de 2021, o descritor “Abandonar cargo público”, obteve-se 66 (sessenta e seis) resultados, dos quais 9 (nove) diziam respeito a “abandono da causa” e não “abandono de cargo”; 2 (dois) versavam sobre “abandono de cargo” sem a devida comprovação do animus abandonandi; e, ainda, diversos processos apenas continham em suas respectivas ementas as expressões “abandonar”, “cargo”, “público”, mas não guardavam relação com o tema pesquisado.
Por sua vez, quando pesquisado o descritor “Configura abandono de cargo a ausência intencional do servidor ao serviço por mais de trinta dias consecutivo”, se obteve 5 (cinco) resultados, dos quais 1 (um) versava sobre “abandono de cargo” sem a devida comprovação do animus abandonandi e 3 (três) já faziam parte do resultado obtido no descritor anteriormente citado.
Pesquisou-se, também, pelo descritor “abandono de cargo”, restringindo a pesquisa por meio da ferramenta “assuntos”, à busca no âmbito do Direito Penal, pelo que se obteve 15 (quinze) resultados, e o descritor “crime de abandono de função”, também restrito à busca no âmbito do Direito Penal, onde se obteve 21 (vinte e um) resultados, todos, mais uma vez, diziam respeito a processos que continham em suas respectivas ementas as expressões “abandonar”, “cargo”, “público”, mas não guardavam relação com o tema pesquisado.
Isto posto, transcreve-se abaixo a ementa dos processos mais relevantes para os fins deste estudo (casos concretos em que se verificou o cometimento do abandono do cargo), grifando-se trechos essenciais à rápida compreensão das decisões.
4.1 APELAÇÃO CÍVEL 0047799-46.2018.8.27.2729/TO
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO AO CARGO PÚBLICO. EFEITO SUSPENSIVO. FUNDAMENTAÇÃO RELEVANTE E RISCO DE DANO GRAVE OU DE DIFÍCIL REPARAÇÃO. NÃO DEMONSTRADO. NULIDADE DE PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. AUSÊNCIA DE SINDICÂNCIA PRÉVIA. NÃO CONFIGURAÇÃO. ABERTURA DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR DENTRO DO PRAZO LEGAL. ABANDONO DE CARGO. PENA DE DEMISSÃO. AUSÊNCIA DE ANIMUS ABANDONANDI NÃO COMPROVADA. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.
1. Não se vislumbra a possibilidade de atribuição de efeito suspensivo ao recurso e nem tão pouco o deferimento da tutela antecipada determinando a reintegração do apelante no cargo efetivo que ocupava, posto que não demonstrada fundamentação relevante e risco de dano grave ou de difícil reparação.
2. A Lei Complementar n° 8/99, não exige a instauração da prévia sindicância ao processo administrativo, em especial quando houver provas suficientes para a instauração do procedimento, bastando o expediente devidamente instruído.
3. A extrapolação do prazo para a instauração do PAD não constituiu causa de nulidade, na medida em que o termo inicial do prazo prescricional de cinco anos da pretensão punitiva disciplinar do Município inicia-se na data do conhecimento do fato pela autoridade competente.
4. A jurisprudência exige o elemento subjetivo que caracteriza o animus abandonandi, não sendo suficiente a constatação do abandono do cargo, mas a razão que levou a tal atitude, sendo que o ônus da prova incumbe ao servidor. Contudo, na espécie, o requerente nenhuma prova produziu desse justo motivo a explicar as mais de 600 faltas, não juntou aos autos nem no processo administrativo a comprovação de que seus pais estavam doentes, ou de que durante o período em que esteve afastado do serviço público, estava cuidando de seus genitores.
5. Recurso conhecido e não provido.
Pois bem, a apelação confronta sentença proferida em Ação de Reintegração ao Cargo Público ajuizada contra o município de Palmas/TO, que por sua vez julgou improcedentes os pedidos formulados e condenou a parte requerente ao pagamento das custas do processo e de honorários.
Em sede de apelação o requerente aduziu que o ato de sua demissão se deu de forma injusta e arbitrária, posto que retornou ao seu cargo por meio da Portaria nº 332/SEMUS/GAB, de 18 de abril de 2016, bem como que o prazo para a abertura do Processo Administrativo Disciplinar não se deu de forma atempada e que administração sequer realizou sindicância. Que o período exacerbado até a abertura do processo configurou “perdão tácito”.
Entre outros pontos, requereu a atribuição de efeito suspensivo ao recurso e, no mérito, a reforma da sentença para reintegrar-lhe ao cargo de agente de combate a endemias no município de Palmas/TO, doutra banda, o município pugnou pela manutenção da sentença.
Antes as razões aduzidas, do Voto proferido vê-se que não houve a possibilidade de atribuição de efeito suspensivo ao recurso e tampouco o deferimento da tutela antecipada determinando a reintegração do apelante ao cargo que ocupara.
Do mesmo modo, não foi verificado vício formal na condução do procedimento disciplinar impugnado e, no que tange à necessidade ou não de que se instaurasse sindicância, depreende-se que tal procedimento é dispensável quando já existem elementos suficientes para justificar a instauração do PAD, como no caso em tela.
É o que dispõe a Lei Complementar nº 8/99, no sentido de que não é obrigatória a instauração da prévia sindicância ao processo administrativo, em especial quando houver provas suficientes para a instauração do procedimento, bastando o expediente devidamente instruído:
Art. 174 Recebidos os autos da sindicância, ou o expediente devidamente instruído, a unidade de corregedoria permanente, ou a comissão, os autuará, submetendo-o à autoridade competente, que baixará ato instaurando o processo administrativo disciplinar.
Parágrafo Único - Publicado o ato, de que trata o caput, dar-se-á início ao processo administrativo disciplinar (grifos do autor).
O Relator ainda explicou que o prazo para a instauração do PAD não constitui causa de nulidade, posto que o prazo prescricional de cinco anos da pretensão punitiva do município tem início na data do conhecimento do fato pela autoridade competente para instaurá-lo. Veja-se:
Art. 139 A ação disciplinar prescreverá:
I - em cinco anos, quanto às infrações puníveis com demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade e destituição de cargo em comissão;
II - em dois anos, quanto à suspensão;
III - em cento e oitenta dias, quanto à advertência.
§ 1º O prazo de prescrição começa a correr da data em que o fato se tornou conhecido. (g.n.)
Do elemento subjetivo que caracteriza o animus abondonandi, tem-se que o ônus da prova incumbe ao servidor, o qual não produziu provas para explicar mais de 600 faltas, além do que, não juntou aos autos a comprovação de que seus pais estiveram doentes no período em que se manteve afastado de seu cargo público, o que havia sido apresentado como justificativa de sua ausência.
Por todas as razões elencadas a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins decidiu, por unanimidade, CONHECER e NEGAR PROVIMENTO ao recurso, mantendo inalterados os termos da sentença de primeiro grau que não concedeu a reintegração ao cargo público.
4.2. APELAÇÃO CÍVEL 0027659-93.2019.8.27.0000/TO
APELAÇÃO CÍVEL E REMESSA NECESSÁRIA. ANULATÓRIA DE ATO ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. ABANDONO DE CARGO. PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. PEDIDO DE PRODUÇÃO DE PROVA TESTEMUNHAL. NÃO VERIFICAÇÃO. PRELIMINAR DE INÉPCIA DA INICIAL. AUSÊNCIA JUNTADA PAD. AFASTADA. PENA DE DEMISSÃO. VÁLIDA. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO DO MÉRITO ADMINISTRATIVO. REGULARIDADE FORMAL. OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
1. Descabe falar em nulidade por cerceamento de defesa nos casos em que o magistrado que conduza a instrução do feito a desnecessidade de produção de prova oral por verificar estar a causa madura para julgamento. Ao destinatário das provas cabe avaliar e definir a modalidade e extensão probatória.
2. Não há qualquer prejuízo ao apelante na ausência de juntada do PAD pela autora, mesmo porque tendo sido responsável pela condução do procedimento, tem melhores condições de trazê-lo aos autos.
3. A análise de nulidade em processo administrativo disciplinar está restrita ao exame da regularidade formal do procedimento.
4. No caso concreto, o processo administrativo disciplinar transcorreu com a devida observância de todas as formalidades constitucionais e legais, especialmente os princípios do contraditório e da ampla defesa.
5. Considerando que a servidora se ausentou injustificadamente do seu serviço por período superior a trinta dias, resta configurado o abandono do cargo, a teor do disposto no art. 125, II e III c/c art. 131 e 132 da Lei Municipal nº. 013/2001 (Regime Jurídico Único dos Servidores de Palmeirantes-TO), o que enseja na sua demissão.
6. Não havendo qualquer vício ou ilegalidade que a macule, a reforma da sentença que determinou a reintegração é medida que se impõe.
7. Recurso conhecido e provido.
O Caso em questão alcançou o judiciário quando da proposição de ação de reintegração ao cargo de professora de ensino fundamental, por servidora pública concursada que aduziu haver sido demitida irregularmente, por suposto cometimento de falta disciplinar prevista na Lei Municipal nº 013/2021 de Palmeirante/TO, sem ter havido processo administrativo disciplinar.
Em que pese o município contestar arguindo que houve o regular processo administrativo disciplinar por abandono do cargo, não levou aos autos o referido processo, alegando a sua não localização, inclusive após nova intimação para juntada integral do PAD.
Diante disso, a sentença se deu no sentido de reintegrar a servidora ao cargo, além de lhe conceder todos os direitos e progressões da carreira no período, bem como indenização por danos morais.
Motivo pelo qual, em sede recursal, a Prefeitura Municipal de Palmeirante/TO foi aos autos pleiteando a anulação ou reforma da sentença, o julgamento improcedente dos pedidos apresentados pela servidora pública.
Apelou-se em relação à validade do Processo Administrativo Disciplinar, dando especial atenção à incorporação do PAD, outrora perdido e não apresentado pela gestão, aos autos. O que se tornou a principal prova de que a demissão sob análise seguiu os ritos legais.
Contra-arrazoando, a apelada pugnou pela manutenção integral da sentença, alegando, sobretudo, o descumprimento da ordem judicial deferida na sentença, por parte do município, que não a reintegrara ao cargo até aquele momento, bem como apontando suposta litigância de má-fé e juntada de documentos novos.
Pois bem, do Voto, extrai-se o seguinte:
Sem grandes digressões, embora a ausência de juntada pelo ente público do inteiro teor do PAD que culminou na demissão da servidora tenha motivado a procedência do pleito de reintegração na origem, apesar de reconhecido pelo magistrado sentenciante como “questionáveis as ausências da Autora”, entendo que, ao revés, a juntada dos demais documentos que o integram, ainda que em sede de apelação, exime de dúvidas a respeito da anulação almejada pela Apelada, na ação proposta da origem (grifos do autor).
Finalmente, verificando-se que a Apelada efetivamente se ausentou de suas funções por diversas ocasiões, injustificadamente, por período superior a trinta dias, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins decidiu, por unanimidade, conhecer o recurso voluntário e dar-lhe provimento, reformando integralmente a sentença de primeiro grau, declarando a validade do PAD que culminou na demissão da servidora pública, julgando improcedente a sua reintegração ao cargo, além de inverter os ônus sucumbenciais.
4.3. APELAÇÃO CÍVEL 0011010-53.2019.8.27.0000
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. ANULATÓRIA DE ATO ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. ABANDONO DE CARGO. INEXISTÊNCIA DE JUSTIFICATIVA. PENA DE DEMISSÃO. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO DO MÉRITO ADMNISTRATIVO. REGULARIDADE FORMAL. OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
1. A análise de nulidade em processo administrativo disciplinar está restrita ao exame da regularidade formal do procedimento.
2. No caso concreto, o processo administrativo disciplinar transcorreu com a devida observância de todas as formalidades constitucionais e legais, especialmente os princípios do contraditório e da ampla defesa.
3. Considerando que a servidora se ausentou injustificadamente do seu serviço por período superior a trinta dias, resta configurado o abandono do cargo, a teor do disposto no art. 162 da Lei Complementar n. 1818/2007 (Estatuto do Servidor Público do Estado do Tocantins), o que enseja na sua demissão, com fulcro no art. 157, II, do mesmo diploma legal.
4. Não havendo qualquer vício ou ilegalidade que a macule, a manutenção da sentença que julgou improcedentes os pedidos formulados neste sentido pelo Apelante, é medida que se impõe.
5. Recurso conhecido e desprovido.
Dos autos em espeque, extrai-se que, num primeiro momento, a apelante ajuizara Ação de Anulação de Processo Administrativo Disciplinar c.c. Ação de Reintegração em Cargo Público, com pedido de tutela de urgência, em face do estado do Tocantins.
Momento em que alegou ter sido auxiliar de enfermagem efetiva do quadro de pessoal do Estado, tendo sido admitida no serviço público no dia 31/01/2006, e trabalhado até o dia 30/04/2015, quando se ausentou do trabalho por ter sofrido violência doméstica.
Afirmou que em meados de 2015 tentou retornar às suas atividades, entretanto, seu superior, à época, achou por bem lhe conceder licença por interesse particular, sendo que, após a concessão do afastamento, teve notícias da publicação de sua demissão, ato que alega ser nulo, por violação ao contraditório, a ampla defesa, ao devido processo legal e a proporcionalidade e razoabilidade.
No entanto, a Sentença proferida pelo Juiz de Direito Edimar de Paula – respondendo pela 2ª VFFRP, se deu no sentido de que o abandono de cargo se mostrou patente, pois pelo que se extrai do PAD, a autora ficou de novembro de 2014 a maio de 2015 sem comparecer no serviço público, ou seja, mais de 30 dias consecutivos, de forma intencional e sem justificativa legal (art. 162, da Lei nº 1.818/2007) e não desincumbiu de seu ônus de demonstrar que no período em que esteve sem comparecer ao serviço público estava realmente com problemas psicológicos decorrentes de violência doméstica.
Dessa forma, por não vislumbrar vícios de procedimento no processo administrativo disciplinar e estando configurados os requisitos legais do abandono de cargo, entendeu não merecer reparos a penalidade de demissão atribuída à parte autora. Pelo que rejeitou os pedidos formulados na peça inicial e resolveu o mérito da ação, nos termos do art. 487, I, do NCPC.
Pois bem. Inconformada com a referida sentença, a servidora em testilha interpôs a Apelação sob exame, pugnando pela reforma da sentença e a anulação do processo administrativo que culminou em sua demissão, além da reintegração ao cargo anteriormente por ela ocupado.
Ante o exposto, a 4ª Turma da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins decidiu, por unanimidade, negar provimento ao recurso de apelação, mantendo todos os termos da sentença supramencionada, que entendeu não merecer reparos a penalidade de demissão atribuída à apelante.
4.4. APELAÇÃO CÍVEL 5006314-30.2012.827.0000
EMENTA: APELAÇÃO CIVEL. AÇÃO ANULATÓRIA DE ATO ADMINISTRATIVO. ABANDONO DE CARGO. PENA DE DEMISSÃO. OBSERVADO O DEVIDO PROCESSO LEGAL, CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. CONFIGURADO ABANDONO DE CARGO NOS TERMOS DA LEI ESTADUAL Nº. 1818/07. ALEGAÇÃO DE PREJUÍZO PELA FALTA DE ADVOGADO AFASTADA. SÚMULA VINCULANTE Nº 5 DO STF. SENTENÇA MANTIDA. DECISÃO UNÂNIME.
1- Por meio da Portaria nº 99/2001, foi instaurado sindicância administrativa para apurar irregularidades no serviço público estadual, referente ao fato do ora apelante detentor do cargo de médico não estar trabalhando desde maio/2000 e estar obtendo frequência normal.
2- O artigo 162 da Lei nº 1818/07 configura abandono de cargo a ausência intencional do servidor ao serviço, sem justificativa legal, superior a 30 dias consecutivos.
3- O apelante ao ser inquirido em juízo admitiu ter se ausentado do seu serviço, no caso os plantões que teria que cumprir, deixando os mesmos para seu irmão que também é médico fazer.
4- A alegação de prejuízo pela falta de advogado para o patrocínio de sua defesa, já se encontra superada ante o enunciado da Súmula Vinculante nº. 05 do Supremo Tribunal Federal – “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a constituição”.
5- Recurso conhecido e improvido. Decisão unânime.
Dos autos em testilha se depreende que o apelante propôs a Ação Anulatória de Ato Administrativo nº. 2007.0006.5479-3, em desfavor do Estado do Tocantins, visando anular o ato administrativo que resultou na Portaria nº 1110/2002, com a demissão do recorrente do cargo público que ocupava no Estado, como médico.
Na sentença o magistrado considerou inexistente o direito invocado pelo requerente e desacolheu, com fundamento no art. 269, I, do CPC, o pedido para anular o processo administrativo e o ato exoneratório, entendendo que não foi ferida a ampla defesa no Processo Administrativo Disciplinar - PAD, especialmente calçado na Súmula 5 do STF (a falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição).
Dada a sua insatisfação, o requerente interpôs a Apelação sob análise, visando a reforma da referida sentença, sustentando irregularidades no ato administrativo que originou a instauração do Processo Administrativo nº 2001.2300.000320, que culminou na sua exoneração por abandono de cargo.
Embora tenha alegado, entre outras coisas, que não existiam faltas lançadas em sua ficha funcional e, assim, por não haver clara motivação, o ato administrativo deveria ser invalidado, o Voto da Desembargadora Jacqueline Adorno se calçou no seguinte sentido:
O Administrador Público deve obediência ao princípio da legalidade, norteador de todos os atos administrativos. Como bem ensina Hely Lopes Meirelles “a legalidade como princípio de administração (CF, art. 37, caput) significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso. (...) enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa “pode fazer assim”; para o administrador público significa “deve fazer assim”.
Pelo que passou a decidir, diante do atendimento a todas as formalidades legais, sobretudo do contraditório e da ampla defesa, bem como do devido processo legal, como sendo legítima a decisão de demissão por abandono de cargo do servidor.
O recurso foi conhecido como próprio e tempestivo, no entanto, lhe foi negado provimento, mantendo inalterada a sentença atacada, por fim, levado à apreciação dos Desembargadores componentes da 4ª Turma Julgadora da 2ª Câmara Cível do Egrégio Tribunal de Justiça do Tocantins, como dito anteriormente, o recurso foi conhecido e improvido por unanimidade.
Quando da pesquisa jurisprudencial realizada no sítio do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins, observou-se que é pequena a quantidade de processos referentes ao “abandono de cargo” e que inexistem processos a respeito do “crime de abandono de função”.
Por esse motivo, as ementas supramencionas e contextualizadas dizem respeito, tão somente, a apelações cíveis, as quais tiveram como ponto de partida o Processo Administrativo Disciplinar, resultado esse que corrobora com a tese sustentada no projeto de pesquisa que norteia o presente estudo, qual seja: que a disposição penal a respeito do crime de abandono de função não encontra lugar na Jurisprudência do Estado do Tocantins.
O que se aplica ao contexto sob análise, tendo em vista que, como demonstrado, no âmbito da jurisprudência do Tocantins há vários casos de cometimento do crime formal de abandono de função; o Estado tem enfrentado esse tipo de situação criminalizada pelo Direito Penal; no entanto, os casos não são denunciados e tudo se resolve no âmbito administrativo.
Os servidores são desligados e até reintegrados, isto é, respondem administrativamente, mas criminalmente não existem providências. É válido salientar que o dispositivo prevê detenção ou multa e, evidentemente, se há possibilidade de aplicação de multa, a detenção muito provavelmente não será necessária, no entanto, ainda assim, na prática, nenhuma das opções é aplicada.
Para os fins deste estudo não se analisou se nos casos concretos houve o crime material, aqueles previstos nos parágrafos do tipo penal, mas salienta-se que em todos os casos se verifica o crime formal (aquilo que está descrito no tipo), considerando, sobretudo, que no ilícito penal o intervalo temporal é apenas aquele apto a verificar o dolo de deixar o cargo vago, diferente daquele previsto no ilícito administrativo.
Urge salientar que não se objetivou defender a necessidade ou não de que os servidores que, porventura, abandonem cargo, sofram a pena de multa ou detenção, pelo contrário, após evidenciar que a punição que se faz por meio do processo administrativo, qual seja: o desligamento/demissão do servidor, tem sido suficiente para resolver as referidas questões, o tipo penal deixa de ter utilidade, passando a existir apenas de forma “simbólica”.
Logo, embora o “abandono de cargo” alcance o judiciário, na perspectiva da jurisprudência do estado do Tocantins, os fatos não são levados sob a ótica do artigo nº 323 do Código Penal, mas tão somente para dirimir conflitos em torno da previsão administrativa, o que reforça a ideia de que o tipo penal não encontra aplicação prática na jurisprudência do Tocantins.
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Universidade Federal do Tocantins - UFT. Advogada e pós-graduanda em Direito Administrativo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BEZERRA, Deylla Rodrigues Alves. Crime de abandono de função: aplicabilidade do dispositivo penal na jurisprudência estadual, frente à previsão do estatuto dos servidores públicos civis do Tocantins Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 ago 2021, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57080/crime-de-abandono-de-funo-aplicabilidade-do-dispositivo-penal-na-jurisprudncia-estadual-frente-previso-do-estatuto-dos-servidores-pblicos-civis-do-tocantins. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
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