MONIQUE SOARES EXPÓSITO[1]
(coautora)
ADRIANA PATRÍCIA CORTOPASSI COELHO[2]
(orientadora)
Resumo: O presente artigo visa oferecer uma visão geral a respeito do aborto, suas modalidades, o aborto no Brasil e suas evoluções. Este tema é de grande complexidade e tem gerado grandes discussões, pois vai além da ciência, envolvendo religião, crenças e cultura. O aborto é um método que visa a interrupção da gestação e em alguns determinados casos é praticado de forma clandestina ocasionando, em consequência, diversas sequelas físicas e psicológicas entre as abortantes. Apesar da existência de legislações, sanções e todo um controle, sabe-se que o aborto nunca deixou de ser praticado. O objetivo do presente artigo é estabelecer uma discussão sobre o aborto acerca do direito à escolha por parte da mulher sob seu próprio corpo. O aborto é uma prática antiga, tanto quanto a humanidade, com isso, cria-se a necessidade da discussão a respeito de sua descriminalização e sua relação com as questões de saúde e de direitos humanos e fundamentais e, primeiro de entre todos, o direito à vida.
Palavras chave: Vida. Aborto. Direito ao aborto. Descriminalização.
Abstract: This article aims to provide an overview of abortion, its modalities, abortion in Brazil, and its evolution. This topic is of great complexity and has generated great discussions, as it goes beyond science, involving religion, beliefs, and culture. Abortion is a method that aims to terminate the pregnancy and some cases is practiced clandestine, causing in consequence various physical and psychological sequels among abortionists. Despite the existence of laws, sanctions, and a whole control, it is known that abortion has never stopped being practiced. The purpose of this article is to establish a discussion on abortion about the right of choice for women under their own bodies. Abortion is an old practice, as much as humanity, with this, there is a need for discussion about its decriminalization, and its relationship with health and human rights and fundamental issues, and, first of all, the Right to life.
Keywords: Life. Abortion. The Right to abortion. Decriminalization.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. NOÇÕES GERAIS DO CONCEITO SOBRE A VIDA. 1.1 Aspectos gerais. 1.2 Princípios. 1.2.1 Dignidade da pessoa humana. 1.2.2 Liberdade de escolha. 1.3 ADPF54 – Conceito de vida para o STF. 2. DO CRIME DE ABORTO. 2.1 Aborto – Tópico Geral. 2.2 Auto aborto. 2.3 Aborto com consentimento da gestante. 2.4 Aborto sem consentimento da gestante. 3. DO ABORTO PERMITIDO. 3.1 Do aborto terapêutico. 3.2 Do aborto por estupro. 3.3 Do aborto de anencéfalos. 4. PROBLEMATIZAÇÃO – LEGALIZAÇÃO DO ABORTO. 5. VOTO DO MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO – HABEAS CORPUS 124.306/RJ. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
O aborto é um fato social. É, majoritariamente, realizado à margem da lei pondo em risco as mulheres que a ele se sujeita. Para alguns, trata-se do direito à vida, para outros, é notório que envolve o direito da mulher sob seu próprio corpo. Com isso, discutir sobre a legalidade do aborto não é uma tarefa simples, pois a questão do aborto não envolve apenas os artigos do Código Penal Brasileiro, válido desde 1940, mas implica também em questões individuais como: moral, religião, cultura, ciência, entre outros.
O debate sobre o aborto legal aumentou no Brasil devido a decisões judiciais em todo o país para a realização de aborto em algumas situações especiais e por conta dos questionamentos nos casos já previstos em lei, como o caso de risco de vida para a mulher, quando a gestação é resultante de um estupro ou se o feto for anencéfalo a partir de um entendimento do STF.
Um caso de grande repercussão e discussão foi a condenação de um padre pelo impedimento de um aborto legal. O caso ocorreu em Anápolis (GO) em 2005. Posteriormente em agosto de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) tornou definitiva a decisão de que o padre Luiz Carlos Lodi deverá pagar R$ 398 mil de indenização por danos morais para um casal impedido de realizar o aborto de forma legal, pois o feto tinha uma anomalia que o impedia de sobreviver fora do útero, comprovado através do ultrassom, além do risco de vida da mulher.
Tatiele, mãe do bebê, já estava no hospital pronta e autorizada a realizar o procedimento quando o hospital foi informado do recebimento de um Habeas Corpus impedindo o ato. Sendo o padre o autor da ação e alegando prática de homicídio pelos pais e se apoiando em suas crenças religiosas. Em consequência, Tatiele retornou a sua casa e passou dias de dor e sangramento até o dia em que foi realizado o parto e, como já esperado pelos médicos, o bebê sobreviveu cerca de 1 hora após seu nascimento.
Pontua-se que a complexidade com relação ao aborto vai além das práticas clandestinas que acarretam em um impacto negativo na saúde pública, mas implicam, também, em discussões sociais como moral e religião que por sua vez possuem seus entendimentos e suas razões enraizados apesar do que já se encontra permitido em lei gerando assim a necessidade de debates intensos, significativos e eficientes levando em consideração a quantidade de vidas envolvidas.
Biologicamente, a vida é compreendida como um fenômeno natural desencadeada por um processo contínuo de reações químicas, envolvendo processos metabólicos, moléculas, ácidos desoxirribonucleicos (DNA), entre outras características particulares. Sob o ponto de vista fisiológico, a vida pode ser definida como a capacidade de um ser vivo realizar suas funções vitais básicas como comer, respirar, metabolizar, excretar, crescer, reproduzir, etc. Entre os principais processos fisiológicos dos seres humanos estão respirar o oxigênio e expirar o gás carbônico. O conceito de vida é algo complexo e demanda reflexões e estudo, pois envolve questões específicas de cada ser humano relacionando a fé, religião, crenças e valores de cada um de forma individual.
A Constituição Federal de 1988 surge em um contexto de busca da defesa e da realização de direitos fundamentais do indivíduo e da coletividade em diferentes áreas. O Título I da Constituição Brasileira é denominado “Dos Princípios Fundamentais” e estabelece que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal constitui-se em um Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos cinco princípios: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Estes princípios são os fundamentos do Estado Democrático de Direito que é a República Federativa do Brasil.
A dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1°, inciso III da Constituição Federal assegura ao homem direitos mínimos que devem ser respeitados pela sociedade e pelo poder público, de maneira a preservar a valorização do ser humano. Nesse sentido, a respeito da dignidade da pessoa humana Flávia Piovesan diz que:
“(…) está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a interpretação das suas normas e revelando-se, ao lado dos Direitos e Garantias Fundamentais, como cânone constitucional que incorpora “as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro.” (PIOVESAN, Flávia, Diretos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, Editora Max Limonada, 2004, p. 54)
Dessa forma, o princípio da dignidade da pessoa humana nasce para proteger o ser humano, mantendo e garantindo o viver com dignidade e respeito recíproco nos seus direitos mais importantes e fundamentais.
Liberdade de escolha consiste em uma das possibilidades da forma de pensar e agir. Assim, apesar do embate sobre amplitude axiológica desse termo a CF/88 consagrou esse direito no rol dos direitos e garantias individuais em suas diversas modalidades (SILVA, José Afonso, 1958, p. 384).
A liberdade é condição daquele que é livre e possui capacidade de agir por si mesmo, implicando assim na responsabilidade do indivíduo por seus próprios atos. Em se tratando do direito da mulher sobre seu próprio corpo e sobre seu desejo de ser mãe, alguns indivíduos falam em morte e outros em autonomia e a liberdade de escolha da mãe, pois a mesma possui total poder sobre a criança e também sobre o seu corpo.
A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) através de seu advogado Luís Roberto Barroso ofereceu a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) para em casa de ocorrência de gestação de feto com anencefalia. A decisão proferida na ADPF 54 acrescentou nova modalidade que exclui a hipótese de crime de aborto, qual seja, quando se tratar de feto anencéfalo.
A decisão do STF proporciona uma virada jurisprudencial sobre tais casos. Antes da decisão, o Estado não tinha uma interpretação definida sobre o tema, fazendo com que a decisão final ficasse para cada juiz. Na maioria das vezes a prática era aceita, mas em alguns casos a paciente teve que completar a gestação de um natimorto sem direito a abortar e em outros casos a sentença foi dada em um estágio muito avançado da gravidez em que não poderia ser realizado o aborto.
Segundo o Deputado Federal e Professor Titular da Universidade de São Paulo e da Universidade de Campinas, Dr. José Aristodemo Pinotti, lemos o trecho Extraído da ADPF 54: “O feto anencéfalo, sem cérebro, não tem potencialidade de vida. Hoje, é consensual, no Brasil e no mundo, que a morte se diagnostica pela morte cerebral. Quem não tem cérebro, não tem vida”.
Incluindo ainda o representante da Sociedade de Medicina Fetal, Dr. Heverton Neves Pettersen, que afirmou: “nós consideramos o feto anencéfalo um natimorto neurológico. Do ponto de vista técnico, ele não tem sequer o desenvolvimento do sistema nervoso central.”
Igualmente, o Dr. Thomaz Rafael Gollop, representante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, foi peremptório: “anencefalia é uma das anomalias mais frequentes, mais prevalentes no nosso meio. Ela é incompatível com a vida, não há atividade cortical, corresponde à morte cerebral. Ninguém tem nenhuma dúvida acerca disso”.
O aborto é uma modalidade de crime contra a vida, tutelado e protegido pelo Código Penal entre os artigos 124 a 128, tratando-se da interrupção da gravidez de forma intencional, mas podendo ocorrer também de maneira espontânea ou acidental.
O aborto é um dos temas mais discutidos no Direito Penal com posicionamentos pontuais defendendo a descriminalização seja no âmbito da clandestinidade como na liberdade de escolha e dignidade da pessoa humana.
O auto aborto está tipificado no artigo 124 do Código Penal se tratando de quando a gestante, por sua livre e espontânea vontade, realiza a prática de aborto interrompendo a gravidez indesejada por seus próprios meios com pena de detenção de um a três anos. Auto aborto se trata de crime próprio, tendo em vista que somente a gestante pode praticá-lo atuando como sujeito ativo. O sujeito passivo titular do bem jurídico a ser protegido, no caso o direito à vida, é o ser humano em formação.
O aborto consentido pela gestante se encontra previsto no artigo 124 do Código Penal juntamente ao auto aborto e no artigo 126 do mesmo código. Nesta modalidade, a gestante permite que outra pessoa realize o aborto. Vale ressaltar que, o terceiro envolvido e responsável pelas manobras abortivas, responderá pelo delito no artigo 126 do Código Penal, com pena de reclusão de um a quatro anos, enquanto a gestante responderá no artigo 124, com pena de detenção de um a três anos. Segue entendimento de Bitencourt:
“(...) Admite-se a participa como atividade acessória, quando o partícipe se limita a instigar, induzir ou auxiliar a gestante tanto a praticar o auto aborto como a consentir que lhe provoque (...). Contudo, se o terceiro além dessa merda atividade acessória, intervindo na realização propriamente dos executórios, responderá não como coautor, que a natureza do crime não permite, mas como autor do delito do art. 126” (BITENCOURT, Cezar Roberto, Código Penal Comentado. 3, Editora São Paulo: Saraiva, 2005, p. 432).
No crime de aborto com consentimento da gestante vemos o chamado concurso necessário pela necessidade da participação de ao menos duas pessoas. Contudo, a responsabilidade dos envolvidos acontece de forma distinta em tipos penais diferentes, o que chamamos de exceção a teoria monista. Caso não existisse artigo próprio, o terceiro envolvido responderia com base no artigo 124 do Código Penal. Com isso, o legislador com o intuito de punir mais severamente o terceiro que pratica o aborto, inclui ao Código Penal o artigo 126.
O aborto cometido sem o consentimento da gestante está disposto no artigo 125 do Código Penal com pena de reclusão de três a dez anos. O agente provoca o aborto na gestante sem seu consentimento causando risco não só a vida intrauterina, mas também a integridade física da mãe. O aborto sem o consentimento se trata de um crime comum, onde o sujeito ativo se refere a qualquer pessoa, exceto a gestante. Esse tipo penal possui uma maior penalidade, tendo em vista sua gravidade. A aplicabilidade da pena se estende nos casos em que a gestante for menor de quatorze anos, alienada, débil mental ou também se o consentimento for obtido através de fraude, violência ou grande ameaça.
No ramo dos tipos de aborto permitidos temos o aborto terapêutico (Art. 128, I, CP) permitido nos casos de risco à vida da gestante. Entretanto, com o avanço da ciência a tendência é diminuir os casos onde a prática do aborto será considerada salvamento de vida ou da integridade física da gestante. Várias complicações serão abolidas através de métodos da medicina moderna sem muitos agravamentos à gestante e ao nascituro.
É permitido também o aborto em caso de estupro (Art. 128, II, CP) sendo autorizado a realização da interrupção de uma gravidez de feto gerado pelo ato criminoso do estupro sem consequência criminal ao médico que realiza. Segundo ROCHA (2000, p.55), o aborto no caso de estupro é plenamente justificável de acordo com as leis referentes ao assunto. Nesses casos a gestante passa por um constrangimento físico vexame social e tortura psíquica, ferindo seu direito à dignidade, sua honra e integridade física, direitos constitucionais resguardados pelo Estado.
O aborto de anencéfalos, fetos com má formação do cérebro durante a formação embrionária, parte de uma interpretação do STF no julgado da ADPF n°54. Com a maioria dos votos do plenário do STF ficou entendido que obrigar a mulher a manter a gravidez nesses casos implicaria em risco a saúde psicológica e física além da impossibilidade de vida do feto fora do útero. Segundo FREITAS (2005), a gravidez do feto anencéfalo resulta em inúmeros problemas maternos durante a gestação, dentre eles: eclampsia, embolia pulmonar, aumento do volume do líquido amniótico e até a morte materna.
Conforme o artigo 128 do Código Penal:
“Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54)
Aborto necessário
I – Se não há outro meio de salvar a vida da gestante;”
(BRASIL, Código Penal 1940)
Nos casos de aborto terapêutico para ser legal, é imprescindível que a interrupção da gravidez seja absolutamente necessária e que haja ameaça à vida da gestante, não apenas danos à sua saúde ao contrário de outras normas. Ela configura um estado de necessidade porque é preciso escolher uma vida para que não se perca as duas.
Neste sentido, afirma CAPEZ:
“Consoante a doutrina, trata-se de uma espécie de estado de necessidade, mas sem a exigência de que o perigo de vida seja atual. Assim, há dois bens jurídicos (a vida do feto e da genitora) postos em perigo, de modo que a preservação de um (vida da genitora) depende da destruição do outro (vida do feto). O legislador optou pela preservação do bem maior, que, no caso, é a vida da mãe, diante do sacrifício de um bem menor, no caso, um ser que ainda não foi totalmente formado. […] basta a constatação de que a gravidez trará risco futuro para a vida da gestante, que pode advir de causas várias, como, por exemplo, câncer uterino, tuberculose, anemia profunda, leucemia, diabetes. […] É indispensável a concordância da gestante ou do representante legal, podendo o médico intervir à revelia deles, até porque muitas vezes a mulher se encontra em estado de inconsciência e os familiares podem ser impelidos por motivos outros, como interesse na sucessão hereditária, no momento de decidir sobre o sacrifício da vida da genitora ou do feto.” (CAPEZ, Fernando, Curso de Direito Penal, Editora São Paulo: Saraiva, 2007, p.134)
HUNGRIA (1955) classifica o aborto necessário ainda como terapêutico (curativo) ou profilático (preventivo), mas deve-se ressaltar que o médico deve estar sempre ciente de que o procedimento é permitido devido ao fato de salvar a vida da gestante. É indiscutível que a legalidade desse tipo de aborto independe do consentimento da gestante ou de seu representante (Art. 146, § 3º, CP), pois outros interesses (o sacrifício da mãe em prol do filho ou até mesmo interesses sucessórios) poderiam influenciar na decisão, motivo pelo qual o legislador a realizou previamente.
O despacho judicial não é necessário dada, na maioria dos casos, a urgência com que os procedimentos devem ser realizados para salvar a vida da mãe. No entanto, existe a possibilidade de recorrer à justiça para prevenir qualquer responsabilidade criminal.
Vale ressaltar que como critério do Conselho Federal de Medicina disposto também no Manual Técnico de Gestação de Alto Risco do Ministério da Saúde, a constatação da causa que aflige a vida da gestante deve ser comprovada por pelo menos dois outros médicos para que fique comprovado de forma clara e plena a necessidade da intervenção abortiva.
O Código Penal fixou a possibilidade do médico praticar o aborto quando se tratar da única maneira de salvar a vida da gestante. Contudo, em caso de perigo de vida iminente e na falta de médico, uma outra pessoa poderá realizar o procedimento sendo causa de exclusão de ilicitude, conforme disposto nos artigos 23, I e 24 do Código Penal.
Consoante ao artigo 128 do Código Penal:
“Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54)
(…)
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II – Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.” (BRASIL, Código Penal 1940)
Denominado pela doutrina de aborto humanitário, ético ou sentimental não há ainda um consenso quanto às razões que o justificam embora haja poucos autores que se manifestem contra a sua prática. Dentre eles, encontra-se Aníbal Bruno, de cuja obra extrai que:
“Mas, por mais respeitáveis que sejam, esses sentimentos, tomar a situação como justificativa da morte do ser que se gerou é uma conclusão de fundo demasiadamente individualista, que contrasta com a ideia do Direito e a decidida proteção que ele concede à vida do homem e aos interesses humanos e sociais que se relacionam com ela e demasiadamente importantes para serem sacrificados a razões de ordem pessoal, que, por mais legítimas que possam parecer não tem mérito bastante para se contrapor ao motivo de preservação da vida de um ser humano.” (BRUNO, Aníbal, Direito Penal, Rio: Editora Forense, 1966, p.173-174)
Apesar de alguns entendimentos contrários à prática do aborto em caso de estupro se mantém o entendimento majoritário da doutrina e da sociedade como um todo assegurando a dignidade e a honra da mulher. Ao contrário do aborto necessário ou terapêutico é necessário o consentimento prévio da gestante ou de seu representante, caso ela seja incapaz. No tocante à prova de que a gravidez resulta do estupro HUNGRIA (1955) diz que: “Para evitar abusos, o médico só deve agir mediante prova concludente do alegado estupro, salvo se o fato é notório ou se já existe sentença judicial condenatória do estuprador”.
A anencefalia é definida na literatura médica como a má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação. De modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico (Âmbito Jurídico, 2013). Tem como resultado a morte do bebê ao nascer e como consequência para a mãe existem graves riscos à sua saúde ao passo em que a gravidez é desenvolvida como eclampsia e embolia pulmonar.
Embora não haja legalidade clara no aborto de fetos anencéfalos no Código Penal, possui um entendimento pacificado pelo Supremo Tribunal Federal para prática de tal aborto conforme se encontra consubstanciado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54. Antes da ADPF 54 gestantes de fetos anencéfalos deveriam solicitar judicialmente autorização para a interrupção da gestação, o que poderia não ser concedido pelo juiz. Outro fator era o judiciário não corresponder com a agilidade necessária ao caso o que por muitas vezes demorava mais do que o necessário para realizar o aborto de forma segura para a gestante sem que lhe acarretassem complicações maiores. Por se tratar de antecipação consentida do parto diante da hipótese comprovada de gravidez de feto anencéfalo não há o que se falar em infração penal uma vez que não afeta o bem jurídico tutelado e protegido pelo Estado e pela ordem social. De acordo com Capez, no que tange ao tema de aborto de anencéfalos, este aduz que:
Aliás, no que toca ao abortamento do feto anencéfalo ou anencefálico, entendemos que não há crime, ante a inexistência de bem jurídico. O encéfalo é a parte do sistema nervoso central que abrange o cérebro, de modo que sua ausência implica inexistência de atividade cerebral, sem a qual não se pode falar em vida. A Lei n. 9.434, de 4-2-97, em seu art. 3º, permite a retirada post mortem de tecidos e órgãos do corpo humano depois de diagnosticada a morte encefálica. Ora, isso significa que, sem atividade encefálica, não há vida, razão pela qual não se pode falar em crime de aborto, que é a supressão da vida intrauterina. Fato atípico, portanto. (CAPEZ, Fernando, Curso de Direito Penal. 15, Editora São Paulo: Saraiva, 2011, p. 146)
No caso de uma gravidez anencefálica não há possibilidade de formação de vida, ou seja, falta o chamado suporte fático-jurídico que é a potencial vida humana que deve ser protegida, deixando então de existir fundamentação condizente com a norma protetiva.
Quando analisado o aborto, depara-se com o dilema “vida ou escolha materna” que culmina em uma colisão entre princípios e direitos fundamentais e, sendo assim, é necessário balizar de forma racional o que seria mais viável: manter a vida intrauterina do feto mesmo sem a vontade da genitora ou a opção pelo aborto poderia causar menos danos físicos e psicológicos à mãe? De acordo com Kant:
“No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade. (…) o que se faz condição para alguma coisa que seja fim em si mesma, isso não tem simplesmente valor relativo ou preço, mas um valor interno, e isso quer dizer, dignidade. Ora, a moralidade é a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmos, pois só por ela lhe é possível ser membro legislador do reino dos fins. Por isso, a moralidade e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas providas de dignidade.” (KANT, Immanuel, Fundamentos da metafísica dos costumes, 2011, p.82)
São muitas as vertentes e discussões a respeito da legalização do aborto. Se a favor ou contra os argumentos são numerosos e alguns bastante sólidos. De um lado temos a Bancada Religiosa formada por membros do Congresso Nacional e dos legislativos estaduais e municipais tendo em vista que as questões éticas e morais no Brasil possuem influência cristã. Os dogmas religiosos acreditam que a vida começa após o ato sexual e por sua forte participação na criação das leis temos a teoria do nascituro concepcionista que assegura ao nascituro personalidade desde a concepção.
Em geral, um pró-vida defensor da vida desde o ato da concepção entende que a vida humana se trata de algo inegociável e tirá-la em qualquer circunstância é um ato de assassinato em potencial e, por isso, defendendo que os argumentos a respeito do abandono paterno, falta de moradia e alimentação, entre outros, necessitam ser resolvidos, mas são mazelas de fundo moral, não justificando nenhum método de prática abortiva. Com relação ao direito sobre o próprio corpo indaga-se a respeito de uma mulher mantendo relações sexuais consentidas e ciente da possibilidade de gravidez, mesmo com o uso de contraceptivos, tendo em vista que nenhum método oferece 100% de confiabilidade e, desta forma, optar pelo aborto pelo simples fato de ser algo indesejável naquele momento.
Com base na situação da ilegalidade das práticas abortivas no qual os números estatísticos não param de aumentar, a Bancada Religiosa e o grupo pró-vida, defendem uma maior fiscalização e punição da mulher que comete o crime e das clínicas clandestinas. Alegam ainda que se a maneira de acabar com a ilegalidade é a descriminalização outros crimes, alguns hediondos, também deveriam ser descriminalizados levando em consideração que seu combate também não ocorre de maneira efetiva.
Em outra esfera temos a Bancada dos Direitos Humanos utilizando-se de argumentos, pesquisas e estatísticas para basear seu posicionamento. Defendem veementemente a relação do aborto ilegal com as questões de saúde pública pelo fato do aborto ser, destacadamente, uma causa de mortalidade materna no país e as complicações causadas pelo procedimento serem a terceira causa de ocupação dos leitos obstétricos conforme dados fornecidos pelo CFM (Conselho Federal de Medicina).
A ciência considera que o feto só possuirá vida após a formação do cérebro e o início do batimento cardíaco, que se iniciam a partir da 12° semana de gestação, por isso, defendem a legalização do aborto até esse prazo. A descriminalização é vista para o grupo pró-aborto como liberdade de crença permitindo que cada mulher seja livre para tomar suas decisões não podendo ser obrigada a ter um filho indesejado, o que pode vir a lhe causar um mal psicológico dentre outros problemas sociais.
De acordo com uma pesquisa feita pelo Ministério da Saúde realizada pelo IBOPE, cerca de 5 milhões de mulheres já abortaram no país entre elas 80% se declararam praticantes de alguma religião. Com essa pesquisa o grupo pró-aborto argumenta que existe uma grande dificuldade em se falar sobre aborto seja no meio social ou no meio jurídico, pela existência de um tabu em relação ao assunto. E que apesar dos fundamentos religiosos, basilares das leis e principal empecilho da legalização, isso não coibi as práticas abortivas por mulheres religiosas. Em uma entrevista à Folha, Drauzio Varella defende a legalização e diz:
“A legalização do aborto não impede que políticas de gravidez precoce e indesejada e de educação sexual sejam implementadas. A legalização pode salvar vidas de mulheres que muitas vezes são mães, sofrem pra criar os filhos sozinha, buscam prevenção no SUS, não encontra, e se torna mais uma vítima, ao abortarem em clínica clandestina, ou dentro de casa.” (VARELLA, Drauzio, Seminário Sabatina, Folha, 2005)
Em 2016, no julgamento do Habeas Corpus (HC) 124.306, o Ministro Luís Roberto Barroso votou a favor da liberdade de duas pessoas acusadas pela prática do crime de aborto. O Ministro alegou que a prisão preventiva não continha elementos individualizados que demonstrassem a necessidade da custódia cautelar e que para ele a criminalização do aborto antes do primeiro trimestre de gestação viola direitos fundamentais da mulher, como sua autonomia, integridade física e psíquica, direitos sexuais e reprodutivos, igualdade de gênero e discriminação social.
Trata-se de um habeas corpus pleiteado em efeito da prisão preventiva estabelecida pela 4ª Câmara Criminal do TJRJ julgado em 2016. Conforme consta nos autos, os acusados (que mantinham clínica de aborto) foram presos em flagrante, em 14/03/2013 devido à suposta prática dos crimes descritos nos arts. 126 (aborto) e 288 (formação de quadrilha) do Código Penal em concurso material por quatro vezes e por terem provocado aborto na gestante/denunciada com o consentimento desta. Perante pedidos proferidos em recurso interposto pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro foi expedido a prisão preventiva dos réus com fundamento na garantia da ordem pública e na necessidade de assegurar a aplicação da lei penal. O Ministro Luís Roberto Barroso solicitou vista antecipada dos autos e em seu voto compôs uma argumentação direcionada para o deferimento da ordem de ofício e retirou a prisão preventiva dos réus e demais corréus, atentando a inconstitucionalidade da incidência do tipo penal do aborto no caso de interrupção voluntária da gestação no primeiro trimestre, a partir de uma interpretação conforme a Constituição dos artigos 124 e 126 do Código Penal. Em seu voto no HC 124.306/RJ o ministro Luís Roberto Barroso expõe acerca do tema:
“A integridade física da mulher é abalada porque é o corpo da mulher que sofrerá as transformações, riscos e consequências da gestação. Aquilo que pode ser uma benção quando se cuide de uma gravidez desejada, transmuda-se em tormento quando indesejada. A integridade psíquica, por sua vez, é afetada pela assunção de uma obrigação para toda a vida, exigindo renúncia, dedicação e comprometimento profundo com outro ser. (...) Ter um filho por determinação do direito penal constitui grave violação à integridade física e psíquica de uma mulher.” (BARROSO, Luiz Roberto, STF, 2016)
O Ministro alega que não estão presentes os requisitos que legitimam a prisão preventiva, sendo eles: o risco para a ordem pública, econômica, a instrução criminal ou aplicação da lei penal pelo fato dos acusados serem primários; terem bons antecedentes, possuírem trabalho e residência fixa e terem comparecido aos atos de instrução. Além disso alega que a criminalização do aborto fere vários direitos fundamentais da mulher. Dentre os direitos citados durante o voto temos o direito a autonomia da mulher e seu direito de escolha e de tomada de decisão resguardados e o controle sob seu próprio corpo; direito a integridade física e psíquica, referente as transformações que o corpo da mulher sofre durante a gestação. Temos também os direitos sexuais e reprodutivos no qual o Estado não pode obrigar a mulher a manter uma gravidez indesejada, direito a igualdade de gênero, alegando o fato do homem não engravidar e, com isso, para se alcançar a igualdade plena a mulher deve poder decidir a respeito da gravidez; e a discriminação social, referente a mulheres pobres, sem acesso a clínicas e médicos particulares, e não podem utilizar o sistema público de saúde para realizar o procedimento abortivo, tirando sua possibilidade a um procedimento seguro.
Além dos direitos fundamentais expostos, o Ministro Luís Roberto Barroso alega também que a criminalização do aborto antes do primeiro trimestre não observa de maneira suficiente o princípio da proporcionalidade. Conforme explica Barroso:
“O princípio da proporcionalidade destina-se a assegurar a razoabilidade substantiva dos atos estatais, seu equilíbrio ou justa medida. Em uma palavra, sua justiça. Conforme entendimento que se tornou clássico pelo mundo afora, a proporcionalidade divide-se em três subprincípios: (i) o da adequação, que identifica a idoneidade da medida para atingir o fim visado; (ii) a necessidade, que expressa a vedação do excesso; e (iii) a proporcionalidade em sentido estrito, que consiste na análise do custo-benefício da providência pretendida, para se determinar se o que se ganha é mais valioso do que aquilo que se perde.” (BARROSO, Luís Roberto, STF, HC 124.306/RJ, 2016)
Quanto à adequação é necessário analisar se a criminalização protege a vida do feto e também verificar se há meio alternativo à criminalização que proteja de forma igual o direito à vida do feto, mas restringindo menos os direitos das mulheres. Referente a proporcionalidade em sentido estrito, é preciso constatar se as restrições aos direitos das mulheres são ou não compensados pela proteção na vida do feto. Com isso, aplicando o princípio da proporcionalidade à prática o Ministro argumenta que não é possível alegar que a mulher que se submete ao procedimento abortivo o faça por prazer. Após a apresentação do voto do Ministro Luís Roberto Barroso, os Ministros Edson Fachin e Rosa Weber acompanharam seu entendimento e o Ministro Luiz Fux concedeu a revogação da prisão preventiva.
O objetivo do presente artigo é demonstrar o quanto a discussão a respeito da legalização do aborto se torna um debate extremamente polêmico e complexo. São extensos os posicionamentos, assim como as áreas correlacionadas como opinião pública, moral, impactos socioeconômicos, saúde pública, religião, ciência, direito, entre outras. Através desse trabalho foi possível compreender melhor o aborto, os posicionamentos pró e contra, as previsões legais e os entendimentos jurídicos. Demonstrou-se não existir um consenso claro sobre o início da vida e sim teorias que justificam diferentes fases da gestação para defini-lo como o marco inicial. O próprio código penal não define esse início com exatidão, mas observa-se que as exceções à antijuricidade do tipo penal pressupõem que o objetivo intrínseco da lei não é proteger o direito à vida do feto. No caso do aborto legal em casos de estupro, por exemplo, a condição da mulher finalmente é colocada em evidência relativizando o direito à vida do feto.
Em análise ao que foi pontuado ao longo do trabalho, conclui-se que a criminalização das práticas abortivas, além de causar danos à saúde da mulher, causa também um grande dano à saúde pública. Mesmo com a ilegalidade o aborto não deixa de ser praticado e por esse motivo várias mulheres buscam práticas clandestinas para abortar. No caso de mulheres com dificuldade de acesso aos serviços de saúde pública e de baixa renda, além da clandestinidade, se submetem a procedimentos inseguros ocasionando em sérios riscos a vida da mulher que ao final precisam procurar hospitais em estado grave, após várias complicações.
Nessa perspectiva, enfatiza-se a necessidade de um debate entre defensores dos direitos humanos, direitos sexuais e reprodutivos, pesquisadores, membros do Executivos, Legislativo e Judiciário, sobre a necessidade de mudança nas leis sobre o aborto buscando soluções eficazes em relação a saúde pública, gerando assim, uma diminuição no número de mortes maternas causadas pelo aborto clandestino. É necessário que o Direito acompanhe os avanços sociais e científicos oferecendo-lhes uma regulamentação adequada, haja visto que o cenário social da época em que a tipificação do aborto foi criada mudou e o número de mortes decorrentes de abortos clandestinos clama por mudanças na lei.
A proteção aos direitos constitucionais da mulher visa uma reforma urgente na legislação objetivando a descriminalização do aborto para legalizar o seu direito de escolha, se quer ou não realizar o procedimento do aborto até a décima segunda semana de gestação prevalecendo a vontade consciente da gestante que goza de autonomia e liberdade que a evolução da sociedade lhe garante. Assim, a mulher poderia ser plenamente dona de seu corpo e de seu destino com plena capacidade de se autodeterminar.
Contudo, o aborto não deve ser banalizado visto como uma forma de anticoncepção ou se tornar rotina entre as mulheres. É de suma importância que o Estado tenha um planejamento estatal, invista mais em métodos de conscientização e contracepção, invista na educação sexual e apoie as mulheres que desejam ser mães, mas por falta de condições optam pelo aborto. Por fim, é necessário que se discuta o assunto na sociedade ainda que sendo um tabu entre a população, até mesmo na comunidade acadêmica. É necessário retirar essa problematização das obscuridades e, ao mesmo tempo, precisa-se estudar e debater o tema abrindo espaço para sanar dúvidas e reforçar a urgência de medidas públicas voltadas a resolver esse problema que mata milhões de mulheres em todo o mundo.
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