RESUMO: O presente artigo visa analisar a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF, promovida pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE, contra o art. 6º do Decreto n. 31, de 20/03/2020, do Município de João Monlevade/MG, sob a luz da teoria da decisão judicial em Dworkin. Tem por objetivo verificar se a situação narrada objeto da decisão pode ser considerada um caso difícil na concepção de Dworkin, bem como analisar, de maneira crítica, se os termos da decisão obedeceram aos critérios estabelecidos por ele em sua teoria da decisão judicial. A decisão na ADPF, em referência, está inserida no contexto da implementação de medidas de enfrentamento da pandemia de COVID-19. Alegou-se que foram feridos o direito fundamental à liberdade religiosa e o princípio da laicidade estatal, ao ser determinada a suspensão irrestrita das atividades religiosas na cidade, bem como em face “dos demais decretos Estaduais e Municipais”, os quais teriam imposto violações equivalentes em todo o país A metodologia utilizada foi a análise doutrinária e pesquisa empírica em relação à ADPF 701/MG. Neste trabalho, buscou-se reunir informações com o propósito de responder ao seguinte problema de pesquisa: a decisão do Supremo Tribunal Federal, neste caso concreto, pode ser considerada legítima à luz da teoria de Dworkin?
Palavras chave: Dworkin. Teoria da decisão judicial. Juíz Hércules. ADPF. STF.
ABSTRACT: This article aims to analyze the decision taken by the Supreme Court in the Allegation of Non-Compliance with a Fundamental Precept – ADPF, promoted by the National Association of Evangelical Jurists – ANAJURE, against art. 6 of Decree n. 31, of 03/20/2020, of the Municipality of João Monlevade/MG, under the light of the theory of the court decision in Dworkin. Its objective is to verify if the narrated situation object of the decision can be considered a difficult case in Dworkin's conception, as well as to analyze, critically, if the terms of the decision obeyed the criteria established by him in his theory of the judicial decision. The decision in the ADPF in reference is inserted in the context of the implementation of measures to fight the COVID-19 pandemic. It was alleged that the fundamental right to religious freedom and the principle of state secularism were violated, when the unrestricted suspension of religious activities in the city was determined, as well as in the face of "other State and Municipal decrees", which would have imposed equivalent violations throughout the country The methodology used was doctrinal analysis and empirical research in relation to ADPF 701/MG. In this work, we sought to gather information in order to answer the following research problem: can the decision of the Supreme Court in this specific case be considered legitimate in light of Dworkin's theory?
Keywords: Dworkin. Judicial decision theory. Judge Hercules. ADPF. STF
SUMÁRIO: 1. Teoria da decisão judicial de Ronald Dworkin. 1.1 Argumentos de princípio e argumentos de política. 1.2 Direito como integridade. 1.3 “Hard cases” a figura do juiz Hércules. 2. Relato do caso judicial da APDF Nº 701/MG: conflito entre liberdade de cultos religiosos e direito à saúde pública. 3. Análise crítica da decisão monocrática do Min. Nunes Marques à luz da Teoria dworkiana. 3.1 Análise voto Min. Gilmar Mendes na ADPF N. 811/SP. Considerações finais. Bibliografia.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho busca analisar o contexto de casos difíceis, os chamados “hard cases”, em que a legislação não abarca com clareza as situações a serem resolvidas pelos juízes. Nesse sentido, surge a figura fictícia criada por Ronald Dworkin, o Juiz Hércules, que é capaz de discernir quais são os direitos das partes, mesmo que não haja regra específica que regule os fatos a serem resolvidos, dependendo de uma interpretação do direito além das regras jurídicas positivadas.
Dworkin formula sua própria teoria dos casos difíceis, afirmando que, na hipótese em que nenhuma regra estabelecida dita uma decisão em qualquer direção e que, à primeira vista, a decisão gerada possa ser guiada seja por princípios, seja por políticas, o juiz deve decidir a partir de argumentos de princípios e não de políticas.
O recorte da pesquisa é a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF, nº 701/MG, que teve como relator o Min. Nunes Marques, na qual se decidiu sobre a liberação de cultos religiosos durante a pandemia e o alcance das medidas de restrição impostas pelo Poder Executivo para conter o vírus Covid/19. Este trabalho será realizado sob o método analítico e dedutivo, a partir da visão de direito como integridade de Dworkin. Para o desenvolvimento do presente estudo, foram feitas pesquisas bibliográficas, sendo levantados e analisados livros, artigos científicos e periódicos pertinentes ao tema, que pudessem permitir uma melhor compreensão do objeto deste estudo, além da análise da argumentação dos votos dos Ministros do STF.
Assim sendo, primeiramente será analisada a teoria da decisão jurídica de Dworkin, passando ao relato do caso judicial constante na ADPF mencionada, com intuito de se fazer uma análise crítica da teoria dworkiniana, no sentido de se perquirir se a questão debatida pode ser considerada um “caso difícil”, bem como se atende aos requisitos do filósofo em sua teoria da decisão judicial.
O presente trabalho estrutura-se em três capítulos. O primeiro capítulo contém uma abordagem geral do desenvolvimento da teoria da decisão em Ronald Dworkin, pelo qual são expostos os principais elementos de seu pensamento: crítica ao positivismo; as concepções do direito como integridade; Juiz Hércules e “Hard cases”.
No segundo capítulo, trabalha-se a evolução jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal sobre a necessidade de se compatibilizar o distanciamento social, decorrente da epidemia da Covid19, com a liberdade religiosa, destacando quais são os limites do Estado no que toca a essas medidas de restrição.
Em seguida, o terceiro capítulo apresenta a decisão do STF à luz da teoria de Dworkin, com análise da decisão monocrática do Min. Nunes Marques e o voto posterior do Min. Gilmar Mendes, na ADPF m. 811/SP, explorando seus argumentos jurídicos e políticos. Este capítulo objetiva demonstrar que, para o autor, uma decisão do tribunal só é legítima enquanto fundada em argumentos de princípio.
Aqui será retratada a força do precedente no direito como integridade e serão apresentados alguns dos argumentos de política utilizados pelos Ministros do Supremo na ocasião. Além disso, será exposta a ponderação, que foi realizada em muitos dos votos, entre a laicidade do Estado brasileiro (art. 19, inc. I, da Constituição Federal) e o direito fundamental à liberdade religiosa (art. 5º, inc. VI, da Carta Magna) em conflito com o direito à saúde pública e o direito à vida, bem como a necessidade de medidas restritivas para conter a pandemia pelo vírus Covid-19.
Por derradeiro, a partir da construção teórica abordada, serão feitas as considerações finais, explicitando os principais pontos sustentados e conclusões sobre a teoria dworkiana aplicada ao caso concreto (ADPF nº 701/MG).
1.TEORIA DA DECISÃO JUDICIAL DE RONALD DWORKIN
1.1 Argumentos de princípios e argumentos de política
Dworkin defende um modelo de normas complexo, composto de regras e princípios. Para ele, argumentos de princípios diferenciam-se de argumentos de política, uma vez que estes últimos são compostos por padrões que objetivam possíveis melhorias no sistema econômico, político ou social da comunidade. Por outro lado, argumentos de princípios devem ser observados como exigência de justiça, equidade ou moralidade (Dworkin, 2002, p. 36).
Em outras palavras, argumentos de princípio dizem respeito aos “direitos de uma pessoa”, já os argumentos de política são os “objetivos de uma comunidade dada” (Kozicki, 2012, p. 106). No caso dos argumentos de política, aplica-se uma estratégia para promover o maior benefício à coletividade, muitas vezes em detrimento de direitos individuais. Já os argumentos de princípio, pelo contrário, visam garantir o direito de um indivíduo ou de um grupo, mesmo que isso implique em uma piora à sociedade.
Dworkin afirma que, tanto os argumentos de política, quanto os argumentos de princípio, são importantes, mas “exceto em circunstâncias extraordinárias, a disputa deve ser resolvida a favor do princípio, isto é, a favor de um julgamento justo para o acusado” (Dworkin, 2000, p. 42). Ambos justificam uma decisão política, mas o primeiro visa proteger algum objetivo da coletividade como um todo, enquanto o segundo procura respeitar ou garantir um direito de um indivíduo ou de um grupo. Se, por um lado, os argumentos de princípio destinam-se a estabelecer um direito individual, os argumentos de política, por outro, destinam-se a estabelecer um objetivo coletivo.
1.2 Direito como integridade
Dworkin (2014, p. 38) defende o chamado "direito como integridade", que insiste que as afirmações jurídicas combinam elementos que se voltam tanto para o passado quanto para o futuro, interpretando a prática jurídica como um processo em desenvolvimento. O direito como integridade depende de uma comunidade de princípios.
Duas são as formas de integridade definidas por Dworkin: a integridade na legislação e a integridade na deliberação judicial. A segunda requer que, até onde seja possível, os juízes tratem o sistema de normas públicas como se este expressasse e respeitasse um conjunto coerente de princípios e, com esse fim, que interpretem essas normas de modo a descobrir normas implícitas entre e sob as normas explícitas (Dworin, 2014, p. 42).
O direito como integridade e a comunidade de princípios alinham-se à concepção do Estado de Direito. Para Dworkin, existe uma rede de princípios que rege a comunidade política, de modo que os juízes, ao decidirem casos controversos, devem se ater a esses princípios, afastando-se dos argumentos de política, que são típicos do Poder Legislativo.
A criação da lei exige uma decisão política por parte do Legislativo, que deverá pensar como ela beneficiará o público em geral, mas, após sua criação, o requerimento do queixoso baseado nessa lei torna-se um direito, deixando de ser uma questão política. Dessa forma, qualquer pessoa poderá demandar na justiça a garantia de tal direito, mesmo que isso seja maléfico para o resto da sociedade. Por isso, Dworkin (2000, p. 107) afirma que “o queixoso está se valendo de um argumento de princípio quando promove a ação no tribunal, não de um argumento de política”.
Portanto, o autor afirma que se um direito individual for previsto no ordenamento, ele deve ser aplicado, mesmo que isso custe caro à comunidade, porque nenhum cálculo utilitarista seria capaz de justificar a privação de direitos que o Poder Legislativo assegurou a esses indivíduos. Isso é o que Dworkin chama de “levar os direitos a sério”.
Nesse diapasão, os direitos individuais não podem ser fulminados em detrimento do bem-estar geral quando apresentados num julgamento, pois “o julgamento é, caracteristicamente, uma questão antes de princípio que de política” (Dworkin, 2000, p. 72). Assim, é de suma importância, para Dworkin, a aplicação, pelos tribunais, dos direitos individuais, pois entende que a jurisdição legitima-se a partir de argumentos de princípio, de modo que o bem-estar geral não pode ser utilizado como fundamento justificável para reduzir, e muito menos para eliminar, esses direitos.
No Estado democrático de direito, uma decisão judicial baseada em princípios abstratos e vagos não pode ser tomada arbitrariamente pelo magistrado com base na discricionariedade judicial. Nesse contexto, Dworkin contribui para a construção de uma teoria construtivista capaz de garantir, simultaneamente, uma solução justa para um determinado caso e rejeitar a discricionariedade como fundamento da decisão judicial.
A criatividade judicial é fortemente criticada por Dworkin, uma vez que haveria, segundo ele, violação do princípio da separação dos poderes. Entende, o autor, que o juiz não é um legislador e tampouco deve ser um legislador suplente, sob pena de ferir o liberalismo, pois aplica retroativamente ao caso normas de criação posterior.
O direito como integridade pressupõe que os juízes atuem de forma diversa dos legisladores, os quais podem utilizar de argumentos de política para definir determinada regra, ou seja, podem justificar a criação de uma norma em virtude do bem-estar coletivo que promoverá. Por outro lado, os juízes devem se valer de princípios para tomarem as suas decisões e não em política.
Dworkin refuta o conceito de direito parcialmente indeterminado ou incompleto proposto por Hart. Em sua concepção interpretativa do direito, ele inclui, além do direito posto, identificado por meio de suas fontes sociais, princípios jurídicos implícitos, que se ajustam ao direito posto e com ele mantém coerência, conferido sua melhor justificação moral (Hart, 2020, p. 75).
De acordo com Jefferson Luiz Alves Marinho (2021, p. 34), Dworkin defende a tese do direito como integridade como forma de superar o convencionalismo e o pragmatismo judicial. No convencionalismo, um direito ou responsabilidade só decorre de decisões anteriores se estiver explícito nessas decisões anteriores, ou se puder ser explicitado por meio de métodos ou técnicas convencionalmente aceitos pelos profissionais do direito. Por outro lado, no pragmatismo judicial, os juízes sempre devem tomar decisões que sejam melhores para o futuro da comunidade, ignorando qualquer forma de coerência com o passado como algo que tenha valor por si mesmo.
Para o autor, a melhor interpretação construtiva da prática jurídica de uma comunidade só é considerada verdadeira, segundo o direito como integridade, se é derivada de princípios como o da justiça, da equidade e do devido processo legal, ou seja, a partir do momento em que a comunidade aceitou um princípio e este foi utilizado na decisão de um caso é considerado que a prática jurídica está sob a sua melhor luz. Significa dizer que as pessoas entendem não ser governadas apenas por regras decorrentes das convenções políticas, pois reconhecem a validade superior de um sistema de princípios atinentes à justiça, à equidade e ao devido processo legal, cujo conteúdo faz parte da arena política.
Por isso, “segundo o direito como integridade, as proposições jurídicas são verdadeiras se constam, ou se derivam, dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade” (Dworkin, 2014, p. 272).
Segundo o próprio Dworkin:
“O direito como integridade nega que as manifestações do direito sejam relatos factuais do convencionalismo, voltados para o passado, ou programas instrumentais do pragmatismo jurídico, voltados para o futuro. Insiste em que as afirmações jurídicas são opiniões interpretativas que, por esse motivo, combinam elementos que se voltam tanto para o passado quanto para o futuro; interpretam a prática jurídica contemporânea como uma política em processo de desenvolvimento. Assim, o direito como integridade rejeita, por considerar inútil, a questão de se os juízes descobrem ou inventam o direito; sugere que só entendemos o raciocínio jurídico tendo em vista que os juízes fazem as duas coisas e nenhuma delas (2014, p. 271)”.
Conforme Bitencourt e Sobrinho (2011, p. 65), a decisão judicial, nesse modelo proposto por Dworkin apresenta uma resposta correta para cada caso que irá decidir. Segundo seu entendimento, sempre existirão princípios organizados coerentemente no sistema jurídico vigente capazes de fundamentar a decisão do juiz. Esses princípios serão construídos argumentativamente em conformidade com a práxis jurídica e social da comunidade que vê o direito como integridade: a comunidade dos princípios.
A prática judicial, para Dworkin, deve conceber o direito como um romance em cadeia, analisando passado, presente e futuro como se fosse uma narrativa, o que faz com que o juiz analise o ordenamento jurídico como um todo juntamente com os critérios morais próprios de sua pessoa e da comunidade. O autor faz uma comparação entre direito e literatura, afirmando que cada juiz é um romancista em cadeia, devendo redigir um capítulo do romance sem que seja retirado o sentido e a cadência da história, é neste sentido que impõe a necessidade do dever de coerência entre as decisões.
O argumento central é de que cada juiz, assumindo seu papel de um romancista da corrente, deve ler o que os outros fizeram no passado e, ao decidir um novo caso, cada juiz deve buscar dar continuidade à narrativa mantendo uma espécie de coerência formal com o que se escreveu até ali. Segundo, deve o juiz enfrentar a questão de como desenvolver a história, mantidas as limitações anteriores, mas buscando tornar o romance melhor (Borges Motta, 2018, p. 138 e 139).
Com isto, Dworkin pretende destacar duas ideias importantes que se interligam: a primeira é de que o juiz possui uma função dupla que é de autor e intérprete, pois deve interpretar o que foi feito no passado para dar seguimento à cadeia do direito; e a segunda é que a consciência do juiz ao decidir um caso concreto é pensar em algo maior cujo seu papel é continuar, pois ao interpretar um caso ele acrescentará algo que já havia sido escrito, ou seja, quando um juiz interpretar o romance em cadeia, dele já fará parte a sua decisão (Coutinho e Silvestre, 2021, p. 68).
A análise utilizada pelo intérprete/autor, para verificar se uma teoria possui a melhor justificação, deve ser construída e examinada em duas dimensões: a) Dimensão de adequação: nesta dimensão o intérprete deverá buscar entre as interpretações aquela que a melhor se adeque e fluía sobre todo o texto, mostrando a melhor explicação geral e estrutural do romance. A decisão deve enquadrar-se na prática interpretada. b) Dimensão de justificação: Caso mais de uma interpretação seja adequada e se ajuste com o conjunto textual o autor deverá, segundo a dimensão de justificação, julgar qual das leituras possíveis possui uma melhor explicação política e moral (Coutinho e Silvestre, 2021, p. 87).
Para o autor, uma interpretação deverá satisfazer as duas dimensões para ser considerada razoável, portanto, deverá enquadrar-se na prática interpretada e mostrar o seu valor moral e político.
Com relação aos princípios e regras, a distinção entre eles é de natureza lógica, em que as regras se aplicam na sistemática do “tudo ou nada”, ou seja, analisando o enunciado da regra, ou ela é válida ou inválida; compara-as inclusive com um jogo de beisebol em que são estabelecidas regras e essas são cumpridas exatamente nos termos do seu enunciado, não retira a possibilidade de existirem exceções, mas afirma que elas constariam expressamente em sua descrição.
Já os princípios atuam de forma diversa no ordenamento jurídico, uma vez que podem deixar de ser aplicados em determinado caso e isso não significa sua exclusão do ordenamento jurídico, pois o mesmo princípio ignorado em uma situação pode ser perfeitamente adequado e invocado em outro caso. Isto é, o princípio direciona a um caminho, mas precisa de uma decisão particular (Dworkin, 2002, p. 56).
Entende ainda que os princípios são, com alta carga de legitimidade, a efetiva representação de uma comunidade e, por isso, funcionam como trunfos ou coringas em relação ao poder político do governo ou Estado. Percebe-se, portanto, que, para Dworkin, o conceito de Direito é interpretativo e está extremamente ligado à moral, justiça e política. Diferentemente de Hart, para quem há separação entre Direito e Moral, sendo o que define um sistema jurídico é a atenção aos direitos e deveres, independentemente do mérito moral de suas fontes (Hart, 2020, p. 38).
1.3 “Hard cases” a figura do juiz Hércules
Para Dworkin, os hard cases (casos difíceis) são entendidos quando o sentido da norma não está claro, quando existe uma divergência entre as normas estabelecidas ou, ainda, quando aparentemente não existir norma para aplicar ao caso. Ao decidir casos difíceis, os juízes devem recorrer a padrões que não se confundem com regras, de tal modo que ressalta a importância dos princípios, sendo esta uma de suas críticas ao positivismo.
Nesses casos, a solução é apresentada tendo em vista o direito como integridade, que instrui os juízes a identificar direitos e deveres, a partir de um sistema coerente de princípios, que melhor traduzam a estrutura jurídica e política da comunidade. Deparando-se com um caso difícil, o juiz positivista criava novos direitos e os aplicava
retroativamente ao caso objeto de sua decisão, portanto tal liberdade refletiria na criação de direitos que até o momento eram inexistentes.
Assim, afirmava Dworkin ao salientar que “quando uma ação judicial específica não pode ser submetida a uma regra de direito clara, estabelecida de antemão por alguma instituição, o juiz tem, segundo tal teoria, o “poder discricionário” para decidir o caso de uma maneira ou de outra” (Dworkin, 2014, p. 67).
Para ele, além do uso das regras, os princípios são essenciais para resolver casos obscuros, pois permitem desvelar o que até então se encontrava oculto, podendo assim resolver a situação desafiadora da racionalidade jurídica. Tomar como base o pensamento de Dworkin e, em sua teoria procurar respostas e mecanismos para a resolução de conflitos difíceis, pode se apresentar como uma possível maneira de melhorar e aprimorar as decisões dos magistrados, por meio de uma harmonia na observância de regras preexistentes e princípios como o da integridade (Coutinho e Silvestre, 2021, p. 29).
Dworkin quebra os paradigmas do positivismo jurídico construindo marcos teóricos para o pensamento contemporâneo, sendo crítico das ideias propostas por Herbert Hart, em especial sobre o conceito de poder discricionário e suas repercussões para a interpretação jurídica e aplicação do direito. A construção de uma teoria da interpretação feita por Dworkin tem como ponto de partida a crítica à metodologia tradicional utilizada pelos juízes diante de uma possibilidade de decisão discricionária, questões de divergência interpretativa ou ainda, diante de caso difícil em que há falta de regra clara que regulamente a matéria, fazendo-os decidir de qualquer maneira e de maneira errada.
Dworkin critica o sistema positivista, no sentido de que é falho por aplicar exclusivamente as regras. Acredita, o filósofo, que, para a decisão de um caso concreto, é indispensável à integração das normas aplicáveis aos princípios, uma vez que estes, além de pertencerem ao sistema legal, são ainda seus embasadores. Para ele, as propostas legais não são meramente descritivas como no positivismo jurídico que se limita a descrever os fatos codificados, mas sim como proposições interpretativas que combinam elementos de descrição e avaliação (Coutinho e Silvestre, 2021, p. 49).
Pelas mãos de Dworkin, criou-se, então, a figura do juiz Hércules, que seria um modelo ideal de julgador, o qual seria capaz de interpretar o conjunto de regras, princípios e padrões morais seus e da sociedade de modo a alcançar a única resposta correta ao caso concreto analisado. Para o autor, crítico da discricionariedade total dos juízes, acredita-se que toda decisão deva ser fundamentada, defendendo que, no lugar da discricionariedade, aplica-se a hermenêutica e argumentação.
Hermes, mensageiro grego, em sua tarefa árdua de decidir, buscaria, a princípio, a intenção daquele produziu a norma, ou seja, do legislador (Dworkin, 2007, p. 381). Sua primeira tarefa, portanto, consiste em identificar quem é o emissor da mensagem a ser transmitida. Uma vez que Hermes se baseia na teoria da intenção do locutor, entende que a interpretação dá-se como uma conversa entre amigos, onde um busca compreender o que o outro quis dizer com suas expressões.
Contudo, o trabalho de Hércules não é tarefa fácil, tendo em vista que o processo legislativo é complexo. Em pouco tempo, Hermes percebe que a teoria da intenção do locutor não determina, por si só, quais intenções devem ser analisadas, e qualquer escolha arbitrária feita por ele prejudicaria de forma irreparável o resultado interpretativo (Dworkin, 2007, p. 384).
Entretanto, o modelo de Hércules leva a diversas críticas acerca de seu solipsismo. Afinal, Hércules é um juiz que descobre o melhor direito sozinho; um juiz solitário que descobre a vontade democrática sem interagir com a comunidade a que pertence. Dworkin possui muitos críticos à sua teoria, dentre eles Neil MacCormick, que entende a possibilidade de existirem quatro problemas para que um caso difícil seja assim considerado, são eles: problema de intepretação, de pertinência, de prova e de qualificação; MacCormick entende pela impossibilidade de existir apenas uma resposta correta para cada caso difícil.
Dworkin cria um juiz imaginário, como uma espécie de modelo a ser seguido pelos juízes (common law) na tarefa de decidir questões jurídicas. Em sua teoria, o juiz tem a tarefa de realizar a interpretação construtivista do direito e é guiado pelo princípio da integridade e da equidade, cuja tradição e historicidade serão notas presentes para a decisão no direito vigente, na forma de um modelo hermenêutico (BITENCOURT e SOBRINHO, 2011, p. 82).
Para Dworkin, o Positivismo apresenta uma teoria inadequada sobre os casos difíceis, pois o juiz teria o poder discricionário de decidir de uma maneira ou de outra, como se uma das partes tivesse o direito de ganhar a causa através de um direito preexistente, dessa forma, o juiz estaria criando novos direitos “new legal rights” e aplicando-os retroativamente ao caso objeto da questão litigiosa.
Há uma obrigação imposta aos juízes de, mesmo diante da indeterminação textual, definirem quais são os direitos que as pessoas têm, sem que isso represente uma invenção de obrigações ou deveres de forma retroativa. Isso decorre do fato de as pessoas serem titulares do direito de obterem uma decisão judicial favorável ainda que a demonstração dos direitos que as pessoas têm seja controvertida e contrária à ideia de um procedimento mecânico para identificar os direitos nos casos difíceis (Dworkin, 2010, p. 127). Principal crítico de Dworkin, Hart deixa expresso a defesa que faz do poder discricionário do juiz.
2. RELATO DO CASO JUDICIAL DA APDF Nº 701/MG: CONFLITO ENTRE LIBERDADE DE CULTOS RELIGIOSOS E DIREITO À SAÚDE PÚBLICA
No presente caso, em diferentes locais do país, a reação do Poder Público à epidemia de COVID1 acabou por atrair aspectos federativos que reclamaram uma solução nacional e uniforme, o que justificou a necessidade do controle concentrado por meio da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).
A ADPF objeto de estudo tinha como argumento principal a de que a liberdade de culto durante a pandemia de Covid/19 estava sendo disciplinada sem qualquer uniformidade no país. Enquanto em alguns Municípios e Estados, o culto presencial foi simplesmente proibido, em outros ele foi tolerado, dentro de certas regras restritivas do contato interpessoal. Nesse sentido, a título exemplificativo, o Decreto Municipal n. 2.019, de Palmas, no Tocantins, permitiu a reabertura de igrejas e templos com respeito ao distanciamento social de 2 metros e outras medidas de prevenção (Acesso em 02.04.2021). Em outras cidades, como São Paulo, houve proibição.
Em tal contexto, a questão constitucional fundamental que surgiu — e que justificou um remédio de controle concentrado como a ADPF — é a de saber se cada ente federado pode efetivamente proibir a realização de culto presencial, em dadas fases da epidemia, ou se apenas a restrição da presença do público e imposição de medidas de distanciamento social seriam suficientes.
No presente caso, a ANAJURE (Associação Nacional de Juristas Evangélicos) propôs ADPF contra diversos decretos municipais que, no contexto da pandemia e das medidas sanitárias de proteção à saúde, determinaram a suspensão irrestrita das atividades presenciais religiosas em seus respectivos municípios. O cerne da argumentação, então, é se os decretos seriam inconstitucionais por violarem a liberdade de locomoção, a laicidade do Estado e o direito fundamental à liberdade religiosa (principais argumentos da inicial).
Importante destacar que, no julgamento da ADPF 703, sob a relatoria de Alexandre de Moraes, decidiu-se que a Anajure não tinha legitimidade para apresentar ao Supremo ações de controle concentrado de constitucionalidade. Segundo o pleno do STF, só seria admitida a propositura de ações como essas quando formuladas por entidades de classe e confederações sindicais, vedada a participação de associações que congregam pessoas vinculados por convicções e práticas intelectuais e religiosas.
Por outro lado, no julgamento da ADPF 703, o Min. Nunes Marques afirmou que o pedido de liberação de cultos e missas diferencia-se do julgamento anterior envolvendo a Anajure porque a nova solicitação guardaria relação fundamental com os objetivos essenciais da associação, incluindo a liberdade religiosa.
Além dessas questões preliminares, a decisão monocrática também pretendeu, ao julgar as medidas de restrição quanto a cultos presenciais como violadoras da liberdade religiosa, superar a decisão firmada pelo Plenário do STF na ADPF 672, que reafirmou a constitucionalidade dos entes federativos para adotar as medidas administrativas sanitárias adequadas para a garantia do direito à saúde no enfrentamento da pandemia, de acordo com a predominância do interesse.
Nesses termos, a decisão monocrática violaria não só a própria distribuição de competências federativas, mas também a autoridade das decisões tomadas pelo Plenário do STF, não havendo qualquer mudança da situação fática e/ou jurídica que pudesse amparar uma superação da jurisprudência em tão curto espaço de tempo.
Destacou-se que esse entendimento foi explicitado pelo Plenário da Suprema Corte no referendo da medida cautelar proferida na ADI 6.341, ao se consignar que os entes federativos possuem competência administrativa comum e legislativa concorrente para dispor sobre o funcionamento de serviços públicos e outras atividades econômicas no âmbito de suas atribuições, nos termos do art. 198, I, da Constituição Federal.
Sobre o tema, também deve ser destacado o que assentado na ADPF 672, rel. Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgada em 13/10/2020, em cuja ementa se tem o seguinte: “Em relação à saúde e assistência pública, a Constituição Federal consagra a existência de competência administrativa comum entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 23, II e IX, da CF), bem como prevê competência concorrente entre União e Estados/Distrito Federal para legislar sobre proteção e defesa da saúde (art. 24, XII, da CF), permitindo aos Municípios suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, desde que haja interesse local (art. 30, II, da CF); e prescrevendo ainda a descentralização político-administrativa do Sistema de Saúde (art. 198, CF, e art. 7º da Lei 8.080/1990), com a consequente descentralização da execução de serviços, inclusive no que diz respeito às atividades de vigilância sanitária e epidemiológica (art. 6º, I, da Lei 8.080/1990)”.
Deveras, para o Supremo Tribunal Federal, a competência da União para legislar sobre assuntos de interesse geral não afasta a incidência das normas estaduais e municipais expedidas com base na competência legislativa concorrente, devendo prevalecer aquelas de âmbito regional, quando o interesse sob questão for predominantemente de cunho local. Trata-se da jurisprudência já sedimentada, no sentido de que, em matéria de competência federativa concorrente, deve-se respeitar a denominada predominância de interesse
Ao mencionar que os decretos, quanto à proibição de cultos, missas ou rituais presenciais, prejudicariam a liberdade religiosa, que deve ser tutelada pelo Estado mesmo nas atuais circunstâncias, a decisão confundiria restrição e proibição de atividade. Foi destacado que o Estado brasileiro permanece laico, podendo cada um seguir (ou não) uma determinada crença sem que com isso deva ser prejudicado ou favorecido. O que ocorre é que atividades essenciais como ensino, por exemplo, e tantas outras, sofreram restrições em favor da emergência sanitária.
Com efeito, a Constituição de 1988, embora consagre expressamente a separação entre igrejas e Estado (CF, art. 19, I), estabelece um conjunto de garantias para que a liberdade religiosa possa ser exercida em toda a sua dignidade — por exemplo, quando admite a convicção religiosa como motivo para a recusa ao serviço militar obrigatório (CF, art. 143, § 1º c/c art. 5º, VIII); quando tolera o ensino religioso (CF, art. 210, § 1º); quando atribui efeitos civis ao casamento religioso (CF, art. 226, § 2º), etc. Como explica JORGE MIRANDA (Manual de Direito Constitucional. 2ª ed. Coimbra Editora: Coimbra, 1993, t. IV, p. 359), a liberdade religiosa, para ser usufruída, demanda algo mais que a mera abstenção do Estado em obstar o seu exercício, verbis: “A liberdade religiosa não consiste apenas em o Estado a ninguém impor qualquer religião ou a ninguém impedir de professar determinada crença. Consiste, ainda, por um lado, em o Estado permitir ou propiciar a quem seguir determinada religião o cumprimento dos deveres que dela decorrem.
A Constituição Federal eleva a liberdade religiosa ao patamar de direitos fundamentais na Lei Maior, o que significa dizer que, assim como o direito à saúde, a promoção da defesa da crença religiosa deve ser vista como sendo um direito fundamental, passando a ser dever do Estado promovê-lo, respaldado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da laicidade estatal.
É o que se depreende da do art. 5º, inc. VI da Carta Magna, que, sendo um direito imprescritível e inalienável, confere a todos os brasileiros e estrangeiros, residentes no país, a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.
Basicamente, entende-se como Estado laico aquele em que o poder estatal não adota uma religião oficial para o país e não interfere na crença religiosa dos indivíduos, que são livres para escolher e adotar uma religião ou mesmo se declarar ateu (não acredita em Deus/Deuses) ou sem religião específica.
Os direitos fundamentais, quando em posição de conflito, devem ser ponderados, de tal forma que a dignidade da pessoa humana deve ser diretamente resguardada. Contudo, a Constituição Federal não estabelece uma hierarquia entre os direitos fundamentais, cabendo assim à doutrina e aos tribunais a solução desses conflitos, com destaque ao direito à vida, pois se necessita deste para a realização dos demais.
Num primeiro momento, em decisão proferida no dia 03.04.2021, o Min. Nunes Marques decidiu a liminar favoravelmente à liberação de cultos religiosos durante a pandemia, compatibilizando a necessidade de distanciamento social, decorrente da epidemia da Covid19, com a liberdade religiosa. Destacou que a proibição categórica de cultos não ocorre sequer em estados de defesa (CF, art. 136, § 1º, I) ou estado de sítio (CF, art. 139).
Antes, é possível a harmonização da liberdade religiosa com medidas preventivas também reconhecidamente eficientes no combate à pandemia, como exigência de uso de máscaras, disponibilização de álcool em gel nas entradas dos estabelecimentos, aferição de temperatura, utilização do ambiente respeitando a ventilação adequada, sempre que possível com portas ou janelas abertas, bem como a observância de certo distanciamento social. Tais parâmetros devem, assim, ser utilizados como balizas mínimas de segurança.
A decisão liminar, decidida monocraticamente, considerou as seguintes determinações: a) que os Estados, Distrito Federal e Municípios abstenham-se de editar ou de exigir o cumprimento de decretos ou atos administrativos locais que proíbam completamente a realização de celebrações religiosas presenciais, por motivos ligados à prevenção da Covid19; e b) que sejam aplicados, nos cultos, missas e reuniões de quaisquer credos e religiões, os protocolos sanitários de prevenção, relativos à limitação de presença (no máximo, 25% da capacidade). Além das medidas acima mencionadas, outras como: distanciamento social (com ocupação de forma espaçada entre os assentos e modo alternado entre as fileiras de cadeiras ou bancos), observância de que o espaço seja arejado (com janelas e portas abertas, sempre que possível), obrigatoriedade quanto ao uso de máscaras, disponibilização de álcool em gel nas entradas dos templos, aferição de temperatura, fixadas estas como balizas mínimas, recomendando-se também outras medidas profiláticas editadas pelo Ministério da Saúde; sem prejuízo da possível e gradativa mitigação das restrições pelo Poder Executivo, conforme haja evolução positiva no tratamento e combate à pandemia.
Ao decidir monocraticamente deferindo liminar, Nunes Marques não se limitou a suspender os trechos dos decretos. Ao contrário, determinou que estados, Distrito Federal e municípios abstenham-se de editar ou de exigir o cumprimento de decretos ou atos administrativos locais que proíbam completamente as celebrações religiosas, dando abrangência nacional à solicitação da Anajure.
Muitas críticas foram feitas à decisão monocrática do Min. Nunes, especialmente: teria a decisão ido em frontal desacordo com o que foi decidido pelo Plenário do STF na ADIn 6341 MC, na qual se reforçou a competência legislativa e administrativa concorrente dos entes federativos na adoção de medidas sanitárias de enfrentamento da pandemia. Demais disso, violou-se a decisão unânime proferida na ADPF 703, em que se declarou a ilegitimidade ativa da Anajure para a propositura de ações de controle abstrato de constitucionalidade, apenas reiterando mais de 30 anos de jurisprudência pacífica do STF acerca do alcance da legitimidade conferida às entidades de classe de âmbito nacional (CF 103 IX).
Entendeu-se, à época da decisão liminar, pela necessidade de um distinguishing fundada: 1) na instrumentalidade do processo diante da relevante liberdade religiosa; 2) no princípio da primazia da resolução de mérito; e 3) "aparente" divergência da jurisprudência, em vista da decisão na ADPF 696 AgRg no qual o tribunal teria aceitado implicitamente a legitimidade da Associação Brasileira de Juristas Pela Democracia (ABJD). Em caso de divergência, ter-se-ia que privilegiar o acesso à justiça (ABBOUD, Georges, 2021).
Em 08 de abril de 2021, fora publicada nova decisão, reconsiderando a medida liminar. Por maioria de votos, julgou-se o pedido improcedente na ADPF n. 811, ao fundamento de que são válidos e constitucionais os atos de Governadores e Prefeitos que permitem a abertura ou determinam o fechamento de igrejas, templos e demais estabelecimentos religiosos durante a pandemia da COVID-19.
Assim, para verificar a legitimidade da decisão monocrática proferida na ADPF em análise, na visão de Dworkin, deve-se perguntar se a possibilidade de liberação de cultos religiosos foi justificada a partir de argumentos de política ou de princípio.
3. ANÁLISE DA DECISÃO MONOCRÁTICA LIMINAR DO MIN. NUNES À LUZ DA TEORIA DWORKIANA
A primeira questão que se verifica à luz da teoria de Dworkin, é que o caso analisado na ADPF pode ser tido como um “hard case”, uma vez que não havia norma clara e precisa a ser aplicada exclusivamente ao caso concreto, devendo a decisão judicial se fundamentar em princípios, o que se aproxima à definição de Direito defendida por Dworkin. Houve, pois, uma ponderação dos princípios aplicáveis ao caso, de modo que mais de um princípio teve incidência, porém alguns tiveram dimensão de peso superior, destacando-se sobre os demais.
Destarte, o caso em discussão também pode ser considerado um hard case na visão de Dworkin em virtude da discussão sobre valores morais e de justiça adotados pela sociedade. Nesse contexto, o que se discute não é o que diz a lei, nem qual lei deve ser aplicada, a problemática está totalmente voltada a questões principiológicas da moral e da justiça.
Importante mencionar que Dworkin é um crítico do poder discricionário nas decisões, por, dentre outros motivos, entender que a função do juiz é apenas aplicar o direito e promover a justiça. Afirma ainda que, em um caso difícil em que não houvesse nenhuma norma, o fato do juiz ter que legislar, além de violar o princípio da irretroatividade da norma, estaria rompendo um dos fundamentos do Estado do Direito (Kozicki, 2012, p. 46).
O autor propõe uma nova hermenêutica em que entende o Direito não somente como o texto da norma, mas a interpretação como um todo, levando em conta o propósito do Direito e da justiça, corroborado com o fato de entender que a discricionariedade do juiz é vinculada aos princípios. O autor defende que, em caso de conflitos de princípios, é necessário analisar qual deles melhor se enquadra para resolução do caso concreto, sendo que o critério de escolha do princípio é tão somente o voltado à decisão mais justa e moralmente correta, a decisão que o juiz Hércules tomaria.
Dworkin defende a tese de que as decisões judiciais baseadas em argumentos de princípio são compatíveis com os pilares democráticos e devem ser assim fundamentadas, mesmo nos casos politicamente controversos. Sua teoria geral dos direitos não admite que algum indivíduo seja objeto de determinada desvantagem em razão de argumentos que sustentem objetivos coletivos. Isso porque esse tipo de decisão, caracterizada por argumentos de política, devem ser, para o autor, tomadas por meio do processo político majoritário.
A decisão monocrática tomada pelo Min. Nunes foi duramente criticada, à época, por supostamente divergir de jurisprudência anteriormente consolidada do próprio STF, em casos semelhantes. Uma pergunta que se poderia fazer, à luz da teoria de Dworkin, seria no sentido de que, ao tomar esta decisão, o ministro teria atuado como o juiz Hércules, capaz de manter a coerência de suas decisões com as já tomadas anteriormente (precedentes) pela própria Corte? A resposta parece ser não.
Para Dworkin, o juiz, ao continuar o romance em cadeia deve “criar um conjunto da melhor qualidade possível”. Assim, demonstra-se o precedente judicial como uma proposição jurídica que não foi criada do nada, tal proposição precisa ser continuada e não pode perder sua unidade e vínculo interpretativo. De acordo com ele, o Direito é construído a partir da interpretação do julgador, o que não implica cair em um decisionismo nem em um enfraquecimento da força vinculante do precedente, uma vez que a natureza dos precedentes é de mutabilidade e de adaptação, podendo um ordenamento notadamente estático adquirir nuances de dinamismo por meio da interpretação.
Contudo, teria a decisão monocrática do Min. Nunes ido em frontal desacordo com o que foi decidido pelo Plenário do STF na ADIn 6341 MC, na qual se reforçou a competência legislativa e administrativa concorrente dos entes federativos na adoção de medidas sanitárias de enfrentamento da pandemia. Demais disso, violou-se a decisão unânime proferida na ADPF 703, em que se declarou a ilegitimidade ativa da Anajure para a propositura de ações de controle abstrato de constitucionalidade, apenas reiterando mais de 30 anos de jurisprudência pacífica do STF acerca do alcance da legitimidade conferida às entidades de classe de âmbito nacional (CF 103 IX).
Pode-se dizer, dessa forma, que o Min. Nunes Marques não manteve a coerência como “autor de um romance em cadeia”, na perspectiva dworkiana, ainda que tenha tentado fundamentar em um suposto distinguishing. Na perspectiva de Ronald Dworkin, os precedentes judiciais são elementos abertos de um sistema que tem como escopo a integridade. O método distinguishing estabelece uma comparação entre o caso antigo resolvido pelo precedente e o novo caso, realizando um comparativo no intuito de se descartar o precedente ou usá-lo caso se molde com o caso atual. Porém, os fundamentos da decisão monocrática do Min. Nunes não foram razoáveis, pois não havia qualquer mudança da situação fática e/ou jurídica que pudesse amparar sua decisão.
Como já dito anteriormente, na ADPF 703, em fevereiro de 2021, já havia decidido que a Associação de Juristas Evangélicos não podia ser considerada “entidade de classe de âmbito nacional”, nos termos da Constituição e da jurisprudência do Supremo. Não houve dúvida. O Min. Nunes Marques comparou a legitimidade de outras “associações de juristas”, em relação a qual, até o presente o momento, não há qualquer dúvida ou divergência. Ademais, quanto ao mérito da liminar, o Min. Marques, como vimos, registra que a “disciplina desuniforme sobre a liberdade de culto” justificaria a intervenção do STF, porém, não fundamentou em decisões já tomadas pela própria Corte, mas sim recorreu à decisão da Suprema Corte dos EUA, de fevereiro de 2021, que anulou restrições a cultos religiosos presenciais no estado da Califórnia. Ora, sabe-se que decisões da Suprema Corte dos EUA são fontes subsidiárias, não justifica desconsiderar jurisprudência nacional sedimentada (Pereira e Arguelhes, 2021, p. 36).
Por outro lado, do ponto de vista dos argumentos de princípios e de política, a decisão monocrática tomada pelo Min. Nunes, ao conceder a liminar e liberar cultos religiosos presenciais, com medidas de restrição, durante o período de Páscoa, fundamentou-se, numa visão Dworkiana, em argumentos de princípios, pois teria privilegiado o direito de um indivíduo ou de um grupo (religioso), em detrimento do interesse de toda a sociedade, uma vez que o direito à saúde pública, baseado na necessidade de contenção ao vírus Covid/19, refere-se não a um grupo de pessoas (que professa qualquer religião), mas sim a todos indistintamente.
Nesse contexto, à luz da teoria de Dworkin, poder-se-ia dizer que a decisão monocrática de liberação de cultos religiosos foi legítima, na medida em que os juízes, ao decidirem casos controversos, devem se ater a argumentos de princípios, afastando-se dos argumentos de política, que são típicos do Poder Legislativo. Isto é, o bem-estar geral não pode ser utilizado como fundamento justificável para reduzir ou para eliminar direitos individuais ou coletivos.
Por outro lado, é importante destacar que houve revogação da liminar anteriormente concedida, tendo o Min. Nunes cedido à posição do STF que, por maioria, decidiu que (ADPF 811/SP, Min. Gilmar Mendes): as medidas de restrição foram razoáveis e resultaram de análises técnicas relativas ao risco ambiental de contágio pela Covid-19, conforme o setor econômico e social, bem como de acordo com a necessidade de preservar a capacidade de atendimento da rede de serviço de saúde pública. A norma revelou-se adequada, necessária e proporcional em sentido estrito para o combate do grave quadro de contaminação que antecedeu a sua edição.
3.1 Análise do voto do Min. Gilmar mendes na ADPF n. 811/SP
Como visto, inicialmente houve liberação dos cultos religiosos durante a pandemia, por decisão monocrática do Min. Nunes na ADPF N. 711/MG. Porém, esta decisão fora modificada, após o voto do ministro relator na ADPF N. 801/SP, Min. Gilmar Mendes, que entendeu que as medidas de restrição ao covid/19 eram constitucionais, tanto no sentido formal, como no sentido material, devendo ser mantidas, a critério dos Municípios e Estados, de acordo com suas competências.
Analisando o voto do Min. Gilmar Mendes, à luz da teoria de Dworkin, os principais argumentos utilizados foram os de política, voltados aos interesses da sociedade vista como um todo, privilegiando o direito à saúde coletiva, e não o direito de um indivíduo ou de um grupo específico. Do ponto de vista do filósofo, não seria considerada uma decisão legítima, pois não caberia ao Judiciário proteger algum objetivo da coletividade como um todo, pois esse seria um papel do Legislativo.
Contudo, os argumentos do Min. Gilmar Mendes também se basearam na ponderação entre princípios e em máximas implícitas, o que, numa visão do Direito como integridade de Dworkin faria sentido, como já analisado. O referido Ministro iniciou seu voto fundamento-o no direito à fraternidade (ADPF 811/SP):
“(...) “pretende sintetizar a dimensão jurídica da individualidade, expressa pelos direitos, que tornam o ser humano imune a interferências na sua esfera própria (subjetiva), com a dimensão jurídica da sociabilidade, expressa pelos deveres que todo convívio social implica” (...) Desse modo, a fraternidade “estabelece que somente aquele que está protegido por direitos pode ser obrigado a cumprir deveres, bem como somente a assunção de deveres pode legitimar a pretensão a direitos” (BARZOTTO, Luis Fernando; e BARZOTTO, Luciane Cardoso. Fraternidade, um conceito dialético: uma abordagem a partir da experiência jurídica. In Direito e Fraternidade: ensaios em homenagem ao professor Dr. Lafayette Pozzoli. LACERDA, Luana Pereira; GIACÓIA Júnior, Oswaldo; SANTOS, Ivanaldo. CASTILHO, Ana Flávia de Andrade Nogueira (org.). Curitiba: Editora CRV, 2018, p. 23-31).”
Para ele, a dialética entre direitos e deveres, que compõe o direito à fraternidade, é o melhor caminho para resolver as oposições jurídicas que envolvem as restrições às liberdades individuais, em razão das medidas de enfrentamento à pandemia do novo Coronavírus. O Ministro destacou que há uma diferença importante entre a existência de uma dimensão interna (forum internum) e de uma dimensão externa (forum externum) do direito à liberdade religiosa. O forum internum consiste na liberdade espiritual íntima de formar a sua crença, a sua ideologia ou a sua consciência, enquanto que o forum externum diz respeito mais propriamente à liberdade de confissão e à liberdade de culto. A ADPF em referência estaria relacionada ao segundo aspecto, o externo.
Para o Ministro Gilmar Mendes, a dimensão interna da liberdade religiosa (consciência e crença) é vista como um direito absoluto, enquanto a dimensão externa (manifestação em culto) está sujeita às limitações prescritas em lei. Por essa razão, a dimensão externa estaria limitada pela reserva legal prevista no inciso VI do art. 5º da Constituição da República que assegura “o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei”. Afirmou em seu voto: “no sentido técnico, “não é o direito à liberdade religiosa que está sujeito a restrições, mas a forma como o direito é exercido. Por conseguinte, pode-se dizer que o direito à liberdade religiosa é absoluto na dimensão interna (forum internum) e limitado na forma de expressão externa (forum externum)” (MAZURKIEWICZ, Piotr. Religious Freedom in the Time of the Pandemic. Religions, v. 12, 2, 2021, p 16.)”.
Nesse sentido, entendeu que havia constitucionalidade formal nos decretos que restringiam o exercício dos cultos religiosos, pois respeitada a competência dos estados e municípios para adoção de medidas temporárias de restrição ao exercício de atividades religiosas para enfrentamento da pandemia do novo Coronavírus (arts. 23, inciso II, e art. 30, inciso VII, CF/88).
À luz da teoria Dworkiana, o Min. Gilmar Mendes teria preservado os precedentes anteriores e teria ido ao encontro da ideia de Direito como integridade neste ponto: ao mencionar, em seu voto, o objetivo de preservar a integridade da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, destacando as decisões monocráticas anteriores que reconheceram que as restrições de realização de cultos, missas e outras atividades religiosas, coletivas e determinadas podem ser realizadas por decretos municipais e estaduais, e podem se mostrar medidas adequadas, necessárias e proporcionais para o enfrentamento da emergência de saúde pública.
O min. Gilmar Mendes destacou que os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote); veiculam também um postulado de proteção (Schutzgebote). Na dogmática alemã é conhecida a diferenciação entre o princípio da proporcionalidade como proibição de excesso (Ubermassverbot) e como proibição de proteção deficiente (Untermassverbot). Nesse sentido, afirmou que a medida sanitária é adequada, necessária e proporcional, havendo razoável consenso na comunidade científica no sentido de que os riscos de contaminação decorrentes de atividades religiosas coletivas são superiores ao de outras atividades econômicas, mesmo aquelas realizadas em ambientes fechados e que estas medidas impostas foram resultantes de análises técnicas relativas ao risco ambiental de contágio pela Covid-19, conforme o setor econômico e social, bem como de acordo com a necessidade de preservar a capacidade de atendimento da rede de serviço de saúde pública. Concluiu, o relator, que houve também respeito à constitucionalidade no aspecto material.
Portanto, observa-se que o voto do Min. relator na ADPF n. 811/MG manteve coerência com os precedentes anteriores do STF, por outro lado, trouxe argumentos que favorecem mais a sociedade vista como um todo (direito à saúde pública) e, neste sentido, pode-se dizer que se baseou, principalmente, em argumento de política, do ponto de vista da teoria de Dworkin.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho buscou estudar as bases teóricas de Ronald Dworkin, para, após, analisá-las sob o ponto de vista das decisões judiciais tomadas na ADPF N. 711/MG. Observou-se que o filósofo contribui para a construção de uma teoria construtivista, que rejeita a discricionariedade como fundamento da decisão judicial, sob o argumento de que, ao decidir, o juiz deve priorizar argumentos de princípios, destinados a estabelecer um direito individual ou de um grupo, enquanto argumentos de política garantiriam o objetivo da coletividade como um todo.
Para o autor, os juízes, ao decidirem casos controversos, devem se ater a esses princípios, afastando-se dos argumentos de política, que são típicos do Poder Legislativo, de forma que o bem-estar geral não pode ser utilizado como fundamento justificável, sob pena de violação à separação de poderes. Afirma ainda que, em um caso difícil em que não houvesse nenhuma norma, o fato do juiz ter que legislar, além de violar o princípio da irretroatividade da norma, estaria rompendo um dos fundamentos do Estado do Direito.
Segundo Dworkin, o conceito de Direito é interpretativo e está extremamente ligado à moral, justiça e política. Diferentemente de Hart, para quem há separação entre Direito e Moral, sendo o que define um sistema jurídico é a atenção aos direitos e deveres, independentemente do mérito moral de suas fontes.
Dworkin entende que um caso difícil ou “hard case” é entendido quando o sentido da norma não está perfeitamente claro, quando existe uma divergência entre as normas estabelecidas ou, ainda, quando aparentemente não existir norma para aplicar ao caso. Este filósofo criou a figura do juiz Hércules, que seria um modelo ideal de julgador, o qual seria capaz de interpretar o conjunto de regras, princípios e padrões morais, seus e da sociedade, de modo a alcançar a única resposta correta ao caso concreto analisado.
Para o autor, o positivismo apresenta uma teoria inadequada sobre os casos difíceis, pois o juiz teria o poder discricionário de decidir de uma maneira ou de outra, como se uma das partes tivesse o direito de ganhar a causa através de um direito preexistente, dessa forma o juiz estaria criando novos direitos e aplicando-os retroativamente ao caso objeto da questão litigiosa.
Neste sentido, ao analisar o caso representativo da ADPF N. 711/MG, foi possível verificar que a decisão monocrática proferida pelo Min. Nunes Marques, que liberou os cultos religiosos no período de Páscoa, não atende integralmente os requisitos de uma decisão legítima, à luz da teoria de Dworkin. Viu-se, inicialmente, que o caso pode ser considerado um “hard case”, pois a solução não está prevista de forma clara no ordenamento jurídico vigente, dependendo de um trabalho interpretativo, inclusive havendo colisão de normas jurídicas e ponderação de princípios.
Com efeito, a Constituição Federal eleva a liberdade religiosa ao patamar de direito fundamental, o que significa dizer que, assim como o direito à saúde, a promoção da defesa da crença religiosa deve ser vista como sendo primordial, passando a ser dever do Estado promovê-la. Por outro lado, não se estabelece uma hierarquia entre os direitos fundamentais, cabendo assim à doutrina e aos tribunais a solução desses conflitos.
Muitas críticas foram feitas à decisão monocrática do Min. Nunes, especialmente: teria a decisão ido em frontal desacordo com o que foi decidido pelo Plenário do STF na ADIn 6341 MC, na qual se reforçou a competência legislativa e administrativa concorrente dos entes federativos na adoção de medidas sanitárias de enfrentamento da pandemia. Demais disso, violou-se a decisão unânime proferida na ADPF 703, em que se declarou a ilegitimidade ativa da Anajure para a propositura de ações de controle abstrato de constitucionalidade, apenas reiterando mais de 30 anos de jurisprudência pacífica do STF acerca do alcance da legitimidade conferida às entidades de classe de âmbito nacional (CF 103 IX).
A decisão monocrática violaria não só a própria distribuição de competências federativas, mas também a autoridade das decisões tomadas pelo Plenário do STF, não havendo qualquer mudança da situação fática e/ou jurídica que pudesse amparar uma superação da jurisprudência em tão curto espaço de tempo. Trata-se da jurisprudência já sedimentada, no sentido de que, em matéria de competência federativa concorrente, deve-se respeitar a denominada predominância de interesse.
Noutro momento, a decisão monocrática fora revista e revogada, após decisão do Min. Gilmar Mendes, na ADPF N. 811/MG, tendo este fundamentado seu voto na constitucionalidade formal e material das medidas de restrição adotadas por Municípios e Estados durante a pandemia pelo Coronavírus. À luz da teoria Dworkiana, o Min. Gilmar Mendes teria preservado os precedentes anteriores e teria ido ao encontro da ideia de Direito como integridade neste ponto: ao mencionar, em seu voto, o objetivo de preservar a integridade da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, destacando as decisões monocráticas anteriores que reconheceram que as restrições de realização de cultos, missas e outras atividades religiosas coletivas determinadas podem ser realizadas por decretos municipais e estaduais, e podem se mostrar medidas adequadas, necessárias e proporcionais para o enfrentamento da emergência de saúde pública.
Destarte, o voto do Min. relator na ADPF n. 811/MG manteve coerência com os precedentes anteriores do STF, por outro lado trouxe argumentos que favorecem mais a sociedade vista como um todo (direito à saúde pública) e, neste sentido, pode-se dizer que baseou-se, principalmente, em argumento de política, do ponto de vista da teoria de Dworkin.
Assim, pode-se concluir que, tanto a decisão monocrática proferida pelo Min. Nunes na ADPF 711/MG, que liberou os cultos religiosos, compatibilizando com as medidas de restrição impostas pela pandemia, como a decisão do Min. Gilmar Mendes, na ADPF 811/SP, que entendeu pela constitucionalidade da proibição de culto pelos Estados e Municípios, podem ser analisadas à luz da teoria de Dworkin. Porém, verificou-se que nenhuma das decisões atende integralmente os requisitos de uma decisão legítima, do ponto de vista do filósofo.
Se, por um lado, a decisão do Min. Nunes foi baseada em argumentos de princípios (ao privilegiar direitos individuais ou de um grupo – liberdade de cultos religiosos) em detrimento de argumentos de política (direito de todos indistintamente, ou seja, da sociedade), não manteve a jurisprudência já sedimentada do STF no sentido da (i)legitimidade para a ação constitucional da Anajure, bem como no que toca à competência concorrente em matéria de saúde entre União, Estados e Municípios, com predominância do interesse. Em tese, houve desrespeito ao ideal de Direito como integridade, na visão da teoria dworkiana, uma vez que caberia ao juiz, como “romancista em cadeia”, manter a coerência com a jurisprudência já consolidada.
O Ministro Gilmar Mendes, por sua vez, mantido a integridade de decisões anteriores do STF, mas, no entanto, teria privilegiado a coletividade (saúde pública) em detrimento de direitos individuais (liberação de cultos).
É certo, portanto, que árdua é a tarefa do juiz Hércules, tal como idealizada por Dworkin em sua teoria da decisão judicial, sendo mais razoável acreditar na crítica feita por Neil MacCormick de que não existe possibilidade de apenas uma resposta correta para cada caso difícil.
Isso porque, diante do hard case estudado, mostra-se a teoria de Dworkin como inviável e de difícil alcance, primeiro que, para se fazer uso exclusivamente dos argumentos de princípios, romper-se-ia, logo de início, com a integridade das decisões que o STF vem tomando há décadas.
Segundo que, diante da gravidade imposta pela pandemia em níveis raros de sobrevivência, soa estranho que se defenda o direito de um grupo específico (aqueles que defendem a liberação das missas e cultos) quando do outro lado da balança, como direito de todos, está o próprio direito à vida.
Não se trata de discricionariedade gratuita do magistrado, em interferência do Poder Judiciário em seara do Legislativo, trata-se, simplesmente, de priorizar o direito que antecede a todos os outros, o da vida. Logo, a despeito de nenhum dos entendimentos atingir a integralidade dos requisitos defendidos por Dworkin, a decisão que se mostra mais acertada é aquela defendida pelo STF e endossada pelo Ministro Gilmar Mendes, no julgamento da ADPF n. 811.
Se não é alcançável a integralidade de Dworkin, mostra-se mais aceitável contentar-se com a própria sobrevivência. E não há que se falar em aceitar o mínimo, afinal, sobreviver, em tempos atuais, é o nosso ato mais heroico.
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Juíza de Direito do Estado do Amazonas. Qualificação: Especialista em Direito Público pela UFC. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela FAERPI.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PENNA, Larissa Padilha Roriz. Liberação de cultos religiosos durante a pandemia pelo Covid-19 (ADPF 701/MG): uma análise à luz da Teoria da Decisão Judicial em Dworkin Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 set 2021, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57215/liberao-de-cultos-religiosos-durante-a-pandemia-pelo-covid-19-adpf-701-mg-uma-anlise-luz-da-teoria-da-deciso-judicial-em-dworkin. Acesso em: 23 dez 2024.
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