Resumo: Partindo da ideia da sociedade de risco, especialmente na forma delineada pelo sociólogo Ulrich Beck, elabora-se noções sobre o contexto social e político que conduz ao emprego do Direito Penal como resposta à sensação de insegurança social, caminhando em paralelo com o aumento de tipos penais que visam salvaguardar bens jurídico de natureza supraindividual e com o aumento da tipificação penal de condutas a afetas a crimes de perigo. Com a identificação e conjugação de elementos da sociedade de risco aliado ao direito penal moderno, busca-se demonstrar a aproximação deste cenário ao desenvolvimento da chamada expansão do direito penal.
Palavras-chave: sociedade de risco, medo, expansão do direito penal, bem jurídico supraindividual.
Sumário: 1. Introdução; 2. O Direito entre a sociedade de risco e o medo; 3. Bens jurídicos supraindividuais face a expansão do Direito Penal; 4. Considerações finais. 5. Referências.
1. Introdução
O Direito se altera constantemente. Entre evoluções de conceitos, interpretações diferenciadas de princípios, geração de novas legislações, o direito se constrói e reconstrói a partir dos problemas sociais que lhe são apresentados.
Das visões que vem para trazer novas reflexões ao Direito, a sociologia está entre aquelas que mais nos permite compreender o caminho que nos trouxe até o cenário atual da ciência jurídica. Nesse sentido, as ponderações da chamada sociedade de risco merecem lugar de destaque, haja vista o impacto das problemáticas que impõe ao Estado, em especial à formulação das respostas a demandas da sociedade por meio do Direito Penal.
2. O Direito na sociedade de risco
A expressão sociedade de risco foi popularizada pelo sociólogo Ulrich Beck. Em obra de 1986 – sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade –, nela o autor apresenta um estudo sobre a magnitude dos riscos na sociedade pós-industrial, definindo sua compreensão e sua configuração na era moderna.
Sustenta o sociólogo que a sociedade, com sua crescente produção social de riqueza, apresenta uma extensão dos riscos inerentes à convivência, superando-se a esfera individual e adentrando a uma dimensão de novos riscos coletivos.
De acordo com o autor, na modernidade tardia, a produção social de riqueza é acompanhada sistematicamente pela produção social de riscos. Consequentemente, aos problemas e conflitos distributivos da sociedade da escassez sobrepõem-se os problemas e conflitos surgidos a partir da produção, definição e distribuição de riscos científicos-tecnologicamente produzidos.[1]
Em apertada síntese, o argumento central explanado na obra sobre a sociedade de risco diz respeito à maneira como a sociedade industrial, caracterizada pela produção e distribuição de bens, foi deslocada pela sociedade de risco, em que a distribuição dos riscos não corresponde às diferenças sociais, econômicas e geográficas da típica primeira modernidade. O desenvolvimento da ciência e da técnica não podem mais dar conta da predição e controle dos riscos. Estes, por sua vez podem gerar ocorrências de alta gravidade para a saúde humana, o meio ambiente, e sistema econômico e social, desconhecidas a longo prazo e que, quando descobertas, tendem a ser irreversíveis.
A sociedade de risco, pelo próprio autor, caracteriza-se “como uma época em que os aspectos negativos do progresso determinam cada vez mais a natureza das controvérsias que animam a sociedade”[2]
Ulrich Beck aponta que os riscos modernos incluem os riscos ecológicos, químicos, militares, nucleares, genéticos, informacionais e produzidos industrialmente. Incorporou também os riscos econômicos, como as quedas nos mercados financeiros internacionais e desestruturação da máquina estatal, os quais podem advir, aliás, de práticas criminosas relacionadas a crimes econômicos.
E delimita, ainda, delimita a definição destes riscos pela conjugação de três elementos fundamentais que o compõe. São, portanto, riscos que: (i) não são limitáveis nem no espaço nem no tempo e tampouco no plano social; (ii) não podem ser atribuídos a pessoas com base nas regras de causalidade, da culpabilidade e da responsabilidade em vigor; e (iii) não podem ser objeto de compensação ou de alguma fiança[3].
A tese exposta pela sociedade de risco é compreendida a partir de momento posterior à segunda guerra, quando a sociedade se torna deveras complexa ao aportar riscos que são verdadeiramente globais[4].
Neste sentido, o raciocínio proposto por Ulrich Beck é figurado pela concepção de que a modernização dissolveu a sociedade agrária no século XIX, abrindo espaço à sociedade industrial. No período atual, a modernização dissolve o perfil tradicional da sociedade industrial, fazendo com que surja outra noção de sociedade.[5]
Assim o autor pondera que "risco" não significa catástrofe, significa antecipação da catástrofe. Os riscos consistem em encenar o futuro no presente, ao passo que o desenrolar das futuras catástrofes é, em princípio, desconhecido. Sem técnicas de visualização, sem formas simbólicas, sem meios de comunicação de massa, os riscos não se concretizam como método de imbuir na sociedade uma sensação de temor.
A questão sociológica é esta: se a destruição e o desastre foram antecipados, isso pode gerar uma pressão para agir. A construção social de uma antecipação “real” de catástrofes futuras no presente (como a mudança climática ou a crise financeira) pode se tornar uma força política que transforme o mundo (para melhor ou para pior) [6].
Afirma, ainda, que os riscos de grande escala atravessam a autossuficiência das culturas, idiomas, religiões e sistemas tanto quanto a agenda política nacional e internacional; eles perturbam suas prioridades e criam contextos para a ação entre posições, partidos e nações conflitantes que não conhecem nada uns sobre os outros, que se rejeitam e se opõe.[7]
Em que pese a brevidade com que se trata um conceito tão complexo como o da sociedade de risco neste espaço, deve-se considerar que é forçoso reconhecer que a sociedade sempre envolveu riscos, mesmo que tomada a definição do termo tal qual empregada pela sociologia. Contudo, constata-se que a profundidade do estudo conclui pela significação de risco de maneira mais agressiva em razão das particularidades, em grande parte derivadas das facilidades tecnológicas e desenvolvimento cultural, da atual sociedade. Quer dizer que, diferentemente do passado, os riscos hodiernamente enfrentados pela sociedade se protraem no tempo e no espaço.[8]
Há a possibilidade de que as consequências derivadas dos riscos mencionados venham a se produzir tão-somente em outro Estado, ou que uma decisão tomada hoje venha a produzir efeitos deletérios daqui anos à frente. É como constatou Paulo Silva Fernandes:
O réquiem pela sociedade industrial (seguido do advento do prefixo ‘pós’ e subsequente baptismo da nossa era com esta designação) coincide com a transmutação dos riscos, de local e temporalmente localizados e definidos, em universais e de difícil delimitação temporal, e também do aparecimento de terríveis catástrofes derivadas de, já se disse, decisões humanas.[9]
Certo é que o Direito não seria poupado do debate jurídico instaurado ante a percepção da sociedade de risco. Com efeito, podemos concluir sem grandes esforços que o fato de vivermos na sociedade de risco influencia, diretamente e especialmente, o Direito Penal.
É notável que com o advento da nova sociedade de risco e suas facilidades adveio também crônica sensação social de insegurança, culminada em uma sociedade do medo. Este sentimento é propagado no imaginário coletivo agravado pelas características da sociedade massificada atual, da qual é inerente a intensa divulgação de fatos de interesse jurídico-penal, amplamente mostrados e repetidos por intermédio dos inúmeros e velozes meios de comunicação, ecoando-se sua gravidade a tal ponto que os receptores das mensagens sentem real temor e assimilam o entendimento de que o Estado revela-se incapaz de prevenir e reprimir a prática de infrações penais.
Neste contexto, o Direito Penal se rearma como resposta ao medo determinado por uma maior identificação/solidarização da coletividade com as vítimas, em decorrência do medo de tonar-se uma delas.[10]
Esse medo está relacionado ao sentido dado por Zygmunt Bauman ao sentimento, para quem esta é a denominação concedida à incerteza, bem como à ignorância da ameaça e do que pode ser feito, do que é possível ou impossível de ser realizado, sobretudo se a solução estiver além do alcance do indivíduo.[11]
É esse o medo da sociedade de risco, ele assombra sem que haja uma explicação visível, é difuso, disperso, mas orienta o comportamento cultural e social. E é nesse ponto que o medo e a necessidade por mais segurança se encontram com a limitação da liberdade. A liberdade, a intimidade, a privacidade individual tornam-se passíveis de sofrer restrições severas em troca de expectativa de segurança em relação aos sofrimentos e riscos do mundo externo. Aqui é o próprio indivíduo que vem a “abrir a mão de uma parcela, geralmente generosa, de liberdade em troca da obtenção, em tese, de mais segurança[12]”.
É o cenário, portanto, que leva ao clamor popular pelo recrudescimento da intervenção punitiva e uma constante pressão sobre os poderes públicos para que reformas penais sejam realizadas, sempre no sentido de promover um maior rigor no combate à criminalidade.[13]
Não importa se o perigo representado pelo risco de que algo vá acontecer venha a se concretizar ou não. Basta a possibilidade de sua ocorrência para que se gere uma realidade social nova, para que um novo valor tido pelo grupo como algo digno de proteção seja violado, ou seja, para que a sensação de segurança se transforme em insegurança.[14] O mero risco – gerador do medo e da insegurança – é suficiente para que os cidadãos se sintam ameaçados e em perigo, e consequentemente clamem por proteção. Sentimento este que é fielmente diagnosticado pela oportuna expressão: o discurso de risco começa ali onde a crença na segurança termina[15].
Neste marco da sociedade mundial de risco, com surgimento de riscos tomados como em grande escala graças aos efeitos da globalização e assimilando as incertezas e inseguranças criadas pelos novos riscos tecnológicos e econômicos, se estabeleceram os elementos para que a crescente demanda social por segurança ocorresse. O fato, contudo, é que esta demanda revelou-se normativa e substancialmente direcionada ao sistema penal.
As demandas pelo incremento da repressão penal diante do discurso de risco são comumente atendidas pelos poderes públicos em termos populistas, e que com pouco apreço a soluções não imediatistas busca o Direito Penal como um instrumento que serve para alardear uma pretensa solução. Assim, não raras vezes são criadas leis com normas incriminadoras compostas por tipos insuficientemente concretos que deixam de considerar o delito como fenômeno social, possuindo uma matriz meramente simbólica[16]. Evidentemente, a insegurança jurídica gerada pela presença de um Direito Penal simbólico, em muito, supera a suposta segurança social dele oriunda.[17], de modo que, nesse aspecto, o discurso motivado pelo frenesi de risco pode acarretar a ineficiência do próprio sistema penal.
3. Bens jurídicos supraindividuais face a expansão do Direito Penal
Sendo os grandes riscos que dão corpo à sociedade de risco aqueles que superam a esfera individual, a hipótese que admite lidar com tais riscos por meio do Direito Penal conduz à ideia de uma criminalidade moderna, de um Direito Penal moderno.
Este Direito Penal moderno comporta uma estrutura diferenciada, descrita por Winfried Hassemer a partir das seguintes características: não tem vítimas individuais, ou melhor, as vítimas individuais só existem de forma mediata; atinge bens jurídicos supraindividuais e vagos; os danos causados tem pouca visibilidade à primeira vista; suas formas de concretização são civis, ou seja, raramente a ação culmina em violência física e as práticas criminosas caracterizam-se pela internacionalidade, pela profissionalidade e pela divisão do trabalho[18]. Tais fatores conjugados com a criminalidade de massa contribuem para a sensação de ausência de proteção comunitária.
Tem-se que as questões sociais e políticas afetam o cerne do Direito Penal porquanto demandam uma resposta prática. Isso implica a necessidade de interpretação, sistematização e desenvolvimento da ordem jurídica e de teorias científicas no que tange ao Direito Penal, acarreta, portanto na dogmática penal, o caminho da racionalização jurídica[19]. Nas palavras da professora Marta Machado:
a percepção dos fenômenos da sociedade de risco e do Estado preventivo e a gama de pressão que exercem sobre o sistema penal emergem justamente ao lado de uma tendência cada vez mais progressiva de orientar o discurso dogmático-penal à realidade dos problemas sociais.[20]
Identificam-se, assim, no campo dos novos riscos, tendências de política criminal que tem em comum, de maneira geral uma proposta de extensão da intervenção estatal sancionadora, de modo a utilizá-la como meio para evitar o maior número possível de resultados indesejáveis.
Não se trata, simplesmente, do aumento quantitativo da reação punitiva ou da simples definição de novos comportamentos penalmente relevantes, mas do desenvolvimento de uma nova racionalidade de imputação, a partir da utilização de figuras dogmáticas diferenciadas – algumas vistas como excepcionais no passado – mais flexíveis e direcionadas muito mais à prevenção dos riscos do que à tradicional manifestação repressiva.
A propósito disso, o professor espanhol Jesús-María Silva Sánchez constata em sua obra a expansão do Direito Penal, que:
A sociedade atual aparece caracterizada, basicamente, por um âmbito econômico rapidamente variante e pelo aparecimento de avanços tecnológicos sem paralelo em toda a história da humanidade. O extraordinário desenvolvimento da técnica teve, e continua tendo, obviamente, repercussões diretas em um incremento do bem-estar individual. Como também tem a dinâmica dos fenômenos econômicos. Sem embargo, convém não ignorar suas consequências negativas.[21]
Verifica-se, de fato, uma real expansão do Direito Penal, como bem ressalta Silva Sánchez. Para o autor, já desde algum tempo, pode-se perceber, na maioria dos países, uma tendência clara de introdução de novos tipos penais, agravamento de penas já existente, reinterpretação de garantias penais clássicas, criação de novos tipos penais, ampliação dos espaços de risco relevantes, flexibilização de regras de imputação e relativização de princípios de garantia. A isso poderia se ter por expansão do Direito Penal.[22] É claro, ainda, que os elementos trazidos pela sociedade de risco foram a verdadeira força motor no desenvolvimento da expansão do direito penal.
Ainda que se pretenda conceber a política criminal moderna a partir de uma índole restritiva e minimalista, na prática o movimento a que se submete o Direito Penal na sociedade de risco é o de expansão – efetivamente, essa é a tônica das alternativas propostas pelo direito penal de risco, sintetizado na extensão da proteção a bens jurídicos supraindividuais.
A política criminal que vem sendo imposta pode ser verificada a partir da constatação das seguintes alterações ocorridas no paradigma da práxis do Direito Penal; (i) uma considerável ampliação dos âmbitos sociais passíveis de intervenção penal, a qual passa a abarcar tanto as novas realidades e riscos sociais quanto aqueles preexistentes cuja vulnerabilidade é potencializada; (ii) a significativa transformação dos objetivos e do campo de atuação da própria persecução penal, que passa a se preocupar com a criminalidade dos poderosos, principais detentores da capacidade de desenvolver as novas formas delitivas utilizando de posição e condição social, e que até então dificilmente entravam em contato com o sistema punitivo; (iii) proeminência à intervenção punitiva em detrimento de outros instrumentos de controle social; (iv) necessidade de adequação do conteúdo do Processo Penal às dificuldades ínsitas à persecução das novas formas assumidas pela criminalidade, o que perpassa o processo de modernização e atualização de instrumentos punitivos e métodos de investigação no sentido de torná-los mais eficazes ao processamento dos crimes inseridos na lógica da sociedade de risco.
Ademais, em referência à dogmática penal, o salutar debate em pauta é delimitar pelas seguintes tendências político-jurídicas da criminalidade de risco: (v) a de ampliar a proteção penal a bens jurídicos supraindividuais; (vi) a de alargar e antecipar a tutela penal, abandonando a lesão ao bem jurídico como centro gravitacional do sistema para criminalizar as inobservâncias aos deveres de conduta e organização, mediante o uso habitual dos tipos de perigo abstrato; (vii) a formulação de tipos indeterminados e de normas penais em branco, que trazem largas referências a dispositivos extrapenais; e, (vii) a de repensar o conceito de culpabilidade para abarcar não só as pessoas físicas, mas também as pessoas jurídicas.
Tais mecanismos voltam-se à utilização do Direito Penal como instrumentos para responder aos anseios da sociedade por proteção, promovendo, assim, uma alteração qualitativa na intervenção penal. Em última instância, tais estratégias buscam a eficácia na obtenção da almejada segurança e inserem-se em um clima político voltado à estabilização da confiança dos cidadãos na inviolabilidade da ordem jurídica. Há aqui uma alusão a um confronto entre Estado e riscos sociais, cujo combate vem sendo realizado por meio do Direito Penal em detrimento de ser, em verdade, o ramo do Direito que se caracteriza pela utilização como ultima ratio.
A relevância da qual se revestiu o Direito Penal ao tutelar os bens jurídicos de natureza supraindividual é realidade incontestável. Se, em princípio, o direito penal cuida dos interesses individuais, com o evoluir da sociedade moderna, passou-se também a ocupar-se bens coletivos e, depois, com os bens metaindividuais. Hoje, não sem razão, bens jurídicos em demasia encontram-se penalmente resguardados, sendo, contudo, motivo de preocupação dogmática.[23] Temas como a tutela do meio ambiente, direito do consumidor, direito médico, direito informático são objetos desta proteção penal supraindividual.
A este propósito, o Professor Renato de Mello Jorge Silveira constata a economia como um dos bens jurídicos supraindividuais mais tutelados pelo Direito Penal moderno[24]. O autor aponta duas definições ao Direito Penal econômico, o primeiro considera-o simplesmente o direito das atividades econômicas ou da empresa, vale dizer, como o conjunto de normas jurídico-penais que protegem a ordem econômica entendida como regulação jurídica da produção, distribuição e consumo de bens de serviços. Já o segundo – em sentido estrito – poderia ser visto como o conjunto de normas jurídico-penais que protegem a ordem econômica entendida como regulação jurídica do intervencionismo estatal na economia.[25]
O Direito Penal Econômico guarda particularidades muito próprias, inserindo-se na categoria do Direito Penal supraindividual. Ele, conceitualmente, contudo, é anterior à constatação da chamada sociedade de risco descrita por Ulrich Beck, estando presente desde a segunda metade do século XX.[26] De fato, os primeiros passos do Direito Penal econômico foram determinados por Edwin Sutherland em suas proposições criminológicas acerca dos crimes dos poderosos – o famigerado crime do colarinho branco – com capacidade para afrontar a economia amplamente considerada.
A evolução analisada aqui, contudo, constata-se pela conjugação do advento da expansão penal e do da preocupação com direitos supraindividual, que constituem as condições necessárias à verdadeira inserção de bens jurídicos como a proteção da economia em sentido amplo ou o meio ambiente na legislação criminal gerando instrumentos normativos atualizados como a Lei de Lavagem de Capitais, a Lei das Organizações Criminosas, a Lei da Empresa Limpa, e a responsabilidade penal da pessoa jurídica por crimes ambientais. É como aponta Cláudia Barrilari ao asseverar que o Direito Penal, antes isolado na torre da última reserva de resposta estatal para os autos individuais, agora é chamado para tutelar os conflitos que surgem nesse novo panorama mundial[27].
4. Considerações finais
Apresentadas algumas das características principais do Direito Penal enveredado a lidar com a moderna concepção de risco, é possível afirmar que o fenômeno do surgimento dos riscos efetivamente impõe ao Direito Penal um confronto entre as novas tendências político-criminais, que têm em seu horizonte a sociedade de risco, e os princípios fundantes da racionalidade penal moderna.
É, atualmente, lugar-comum falar-se na necessidade da busca de um “Direito Penal mínimo”. Entretanto, tais colocações, entram em choque com a constatação de certa expansão desse mesmo Direito Penal, sentida pela criação de novos tipos penais próprios de uma sociedade em fase de avanços tecnológicos.[28]
Nesse sentido, diante da complexidade da sociedade de risco ante a estrutura da dogmática penal, pode se dizer que o produto da pós-modernidade, no ambiente de relações sociais, econômica e culturais, trouxe consigo um conjunto de riscos e insegurança, bem como problemas do controle social, que afetaram, sobremaneira, o Direito Penal. Ramo do direito que agora, que recebeu a missão de dispor de novas formas de prevenção e minimização dos riscos.[29]
Nos termos das abordadas ideias sobre a expansão do Direito Penal por Jesús-María Silva Sanchez, o expansionismo da repressão penal é uma realidade incontestável em contínua progressão, bastante favorecida pela situação crítica das sociedades contemporâneas, em razão de fatos como instabilidade econômica e política e das questões geradas pela globalização. A consequência é a configuração do direito criminal como verdadeiro Direito Penal de risco, que pode ser constatado através do Direito Penal aplicado ao contexto das empresas[30]:
El Derecho penal de la empresa ha ido configurándose progresivamente como un “Derecho penal del riesgo”. Ello ha determinado su transformación estructural. Así, la estructura clásica del Derecho penal – la prohibición directa del riesgo jurídicamente desaprobado – ha pasado a convivir con otras estructuras mas compleja y menos estudiadas, que sin embargo habrán de asociarse a aquella de modo probablemente irreversible. Es cierto que el modelo de prohibición directa de riesgos ha debido afrontar la aparición de fenómenos problemáticos para cuya superación seguramente no dispone de los mecanismos adecuados.[31]
Neste proceder, se à expansão do Direito Penal segue-se um direito penal de risco, a sociedade deve se preparar para lidar com a situação instalada, sem prejuízo da discussão sobre a correção ou não deste expansionismo a descaracterizar os aspectos fundantes do Direito Penal. Isto porque pouco se atentou para criar mecanismos verdadeiramente adequados para tratar os riscos relacionados a direitos supraindividuais.
De fato, nós nos defrontamos com um conflito no Direito Penal, ou seja, a mudança de paradigma da discussão distintiva da dogmática penal, a qual se alterna da função do direito penal e passa a focar na penúria de buscar atender à necessidade de um sistema de prevenção capaz de contrapor-se aos riscos e, por via reflexa, prevenir riscos penais. Com efeito, o avanço da tipificação de crimes de perigo, levando em consideração a lesão a bens jurídicos transindividuais, é consequência da utilização do Direito Penal como um instrumento de gestão de riscos[32].
Assim, ganham espaço no ordenamento jurídico penal os crimes de perigo, aqueles estruturados para a proteção dos bens coletivos supraindividuais ou difusos, mas é preciso ter cautela com a criação de crimes como os de perigo abstrato. Deve-se ter a elaboração de leis penais de maneira bastante estrita a um mínimo indispensável, sob pena de, além da notada expansão penal, ter-se presente, também, uma quebra dos princípios fragmentários e de ultima ratio, tão duramente alcançados como verdadeira garantia humana em face do poder do Estado.[33] Bem por isso insiste-se que não se vislumbra, ao menos pelo direito criminal a solução adequada e eficaz para o tratamento de riscos alinhados a bens jurídicos supraindividuais.
Uma importante repercussão da conjugação desses elementos é percebida no que concerne ao mundo empresarial, onde surgiu o debate sobre a implementação de programas de conformidade (ou compliance). O que antes existia sob o manto da Governança Corporativa e gestão de riscos, sendo por grandes companhias na lida com questões societárias e administrativas, passa também a tutelar, por meio de regras privadas, situações atinentes ao Direito Penal.
Com efeito, a empresa que cria regras próprias atendendo a demandas geradas pela legislação com conteúdo penal ou administrativo-sancionador, tal como ocorre com Lei de Lavagem de Capitais e a Lei da Empresa Limpa, exerce uma auto regulação regulada[34] afim de gerir riscos criminais, sob esse aspecto o Compliance Criminal é mais uma resposta atual à mudança de paradigma determinada pelas particularidades da nossa sociedade de risco.
Em conclusão, experimentamos atualmente uma reação no Direito, fruto da sociedade de risco combinada com a sensação de medo que lhe é latente, forçando-o a evoluir. O resultado prático tem sido enxergar no Direito Penal o instrumento a viabilizar a panaceia de todos risco, incluindo àqueles na mira da modernidade que são inerentes à atuação econômica, ao meio ambiente, ao campo tecnológico, entre outros que causam riscos massivos. Consequentemente verifica-se um aumento da repressão criminal, uma expansão das situações tuteladas pelo Direito Penal para tratar dos direitos supraindividuais, circunstância essa que impôs atualmente uma lógica diferenciada na atuação do judiciário criminal suplantando o Direito Penal clássico rumo a um novo Direito Penal.
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[1] BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 23.
[2] BECK, Ulrich. A política na sociedade de risco. In: Ideias: revista do instituto de filosofia e ciências humanas, n. 1. Campinas: Unicamp, 2010. p. 229.
[3] BECK, Ulrich. A política na sociedade de risco. In: Ideias: revista do instituto de filosofia e ciências humanas, n. 1. Campinas: Unicamp, 2010 p. 229.
[4] É imperioso recordar-nos dos riscos advindos da produção de energia nuclear com potencialidade de dizimar completamente territórios extensos, crises financeiras iniciadas no sistema bancário que atingem toda a economia global, casos de distribuição de remédios impróprios que são disponibilizados ao alcance de milhares de pessoas.
[6] BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 362.
[7] BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 365.
[8] É bem de se ver que o homem, em sua vivência em comum, sempre se viu deparado com inúmeros riscos; mas, por igual, inegável é que, principalmente a partir da segunda metade do séc. XX, com o advento de novas situações de risco, foi ele também submetido a uma inesperada vida mais perigosa. Na Europa, por exemplo, verificaram-se situações paradigmáticas, como o desastre de Chernobyl ou as dramáticas ocorrências relativas ao Contergan, Lederspray ou do Azeite de Colza. Em particular no Brasil, de se notar, além dos inúmeros desastres naturais como os referentes a derramamentos de petróleo, a catástrofe ocorrida na Vila Parisi, São Paulo. Cf. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. A construção do bem jurídico espiritualizado e suas críticas fundamentais. In: Boletim do IBCCRIM, janeiro de 2003.
[9] FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “sociedade de risco” e o futuro do direito penal: panorâmica de alguns problemas comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 51-52.
[10] WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. Medo e direito penal: reflexos da expansão punitiva na realidade brasileira. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2011. p. 15. Escreve o citado autor: o medo assume verdadeiro protagonismo na vida das pessoas, trazendo, como consequência, uma generalizada sensação de insegurança capaz de criar o ambiente propício para a expansão do direito penal.
[11] BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 57.
[12] TRAMBORLIM, Fábio Augusto; SANTANA, Vinícius Cruz. Sociedade de risco e a democratização da gestão de riscos. In: BUSATO, Paulo César; GUARAGNI, Fábio André (coord). Compliance e Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2015, p. 8.
[14] SOUZA, Luciano Anderson de. Expansão do Direito Penal e globalização. São Paulo: Quartierlatin, 2007. p. 108.
[15]FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, “sociedade de risco” e o futuro do direito penal: panorâmica de alguns problemas comuns. Coimbra, Almedina, 2001. p. 59.
[16]Conforme explica o Professor Alemão Claus Roxin, efetivamente “as leis penais simbólicas não buscam a proteção de bens jurídicos. Entendo como tipos penais simbólicos as leis que não são necessárias para o assegura mento de uma vida em comunidade e que, ao contrário, perseguem fins que estão fora do Direito Penal como o apaziguamento do eleitor ou uma apresentação favorecedora do Estado”. In: ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. Tradução de André Luís Callegari. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 24.
[17]SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal supraindividual. Interesses difusos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 70.
[18] HASSEMER, Winfried. Perspectivas de uma moderna política criminal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 8. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 41-51.
[19] ARAÚJO. Marina Pinhão Coelho. Tipicidade penal: uma análise funcionalista. São Paulo: Quartierlatin, 2012. p. 29.
[20] MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Op. cit. p. 92.
[21] SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal na sociedade pós industrial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 28-29.
[22] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. A ideia penal sobre a corrupção no Brasil - da seletividade pretérita à expansão de horizontes atual. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 89. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
[23] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal supraindividual. Interesses difusos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 29.
[24] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal supraindividual. Interesses difusos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 63.
[25]SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. A ideia penal sobre a corrupção no Brasil - da seletividade pretérita à expansão de horizontes atual. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 89. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
[26] Idem. A busca de legitimidade dos crimes de perigo abstrato no direito penal econômico. In: Boletim do IBCCRIM, n. 238, setembro de 2012.
[27] BARRILARI, Cláudia Cristina. Crime empresarial, autorregulação e compliance. São Paulo: RT, 2018, p. 21.
[28] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal supraindividual. Interesses difusos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 31.
[29]LYRA, José Francisco Dias da Costa. A moderna sociedade de risco e o uso político do controle penal ou a alopoiesis do direito penal. Revista brasileira de ciências criminais. n. 95. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
[30] SÁNCHEZ, Jesús-Mária Silva. Aproximação ao Direito Penal contemporâneo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 77.
[31] SANCHEZ, Jesus-Maria Silva (Director). Criminalidad de empresa y compliance: prevención y reacciones corporativas. Barcelona: Ed. Atelier, 2013. p. 13.
[32] RODRIGUES, Fillipe Azevedo. Análise econômica da expansão do direito penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2014. p.133;
[33] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal supraindividual. Interesses difusos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 67
[34] Para o tema da autorregulação, consultar a obra Crime Empresarial, autorregulação e compliance de Cláudia Barrilari, que com maestria pondera: A consolidação da autorregulação passa por uma reconfiguração não só do Direito como do Estado, que não pode mais ser compreendido como um conjunto unitário e isolado, cuja estrutura interna é segmentada de forma hierárquica. Esse novo Estado, denominado por alguns Estado policêntrico, convive com estruturas mais autônomas, com vínculos horizontais de interdependência, de modo a convergir para a estrutura de rede. Cf: BARRILARI, Cláudia Cristina. Crime empresarial, autorregulação e compliance. São Paulo: RT, 2018, p. 58.
Artigo publicado em 11/10/2021 e republicado em 29/07/2024
Mestrando em Filosofia do Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado Exceção (PUC/SP - CNPq); Especialista em Direito Penal na Escola Superior do Ministério Público; Advogado Criminalista.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARCHIONI, GUILHERME LOBO. O Direito Penal configurado pela sociedade de risco Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 jul 2024, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57267/o-direito-penal-configurado-pela-sociedade-de-risco. Acesso em: 23 dez 2024.
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