Resumo: A legislação brasileira em vigor proporciona diversos privilégios ao trabalhador portuário vinculado ao Órgão Gestor de Mão-de-Obra (OGMO). Dentre eles, existe a reserva de trabalho nas instalações localizadas dentro das áreas de porto organizado, que veda que trabalhadores não sindicalizados possam ser contratados nestas instalações. O objetivo deste artigo é evidenciar a inconstitucionalidade dos dispositivos legais que determinam como requisitos para a oferta de trabalho a prazo indeterminado o registro e/ou o cadastro no OGMO e a vinculação sindical. O problema elaborado aponta que a reserva de mercado imposta pelo sistema normativo atual atenta contra a Constituição Federal de 1988 ao privilegiar grupos específicos de trabalhadores mediante o estabelecimento de critérios subjetivos para ingresso nas vagas oferecidas. A hipótese apresentada indica que essa inconstitucionalidade precisa ser sanada para que seja alcançada uma sociedade efetivamente justa e solidária. A pesquisa doutrinária, legislativa e a análise empírica da jurisprudência sobre o tema são a base metodológica adotada no trabalho, observada a interdisciplinaridade das fontes de pesquisa a partir de conceitos advindos de obras de diversas áreas do direito, além de obras não necessariamente jurídicas.
Palavras-chave: Inconstitucionalidade. Trabalhador Portuário. Privilégio. Liberdade Sindical.
Abstract: Current Brazilian legislation provides several privileges to the port worker linked to the Manpower Management Agency (OGMO). Among them, there is the reservation of work in facilities located within the organized port areas, which prohibits non-union workers from being hired in these facilities. The purpose of this article is to highlight the unconstitutionality of the legal provisions that determine as requirements for the offer of work for an indefinite period the registration and/or registration with the OGMO and union membership. The problem elaborated points out that the market reserve imposed by the current normative system violates the Federal Constitution of 1988 by privileging specific groups of workers through the establishment of subjective criteria for entry into the vacancies offered. The hypothesis presented indicates that this unconstitutionality needs to be remedied so that an effectively fair and solidary society can be achieved. Doctrinal and legislative research and empirical analysis of jurisprudence on the subject are the methodological basis adopted in the work, observing the interdisciplinary nature of the research sources based on concepts arising from works from different areas of law, in addition to works that are not necessarily legal.
Keywords: Unconstitutionality. Port worker. Privilege. Freedom of Association.
Sumário: Introdução. 1. A evolução histórica dos portos e da legislação nacional a eles pertinente. 2. O trabalhador portuário avulso (TPA) e suas particularidades. 3. As violações frontais à Constituição Federal de 1988 e a urgente necessidade de adequação legal. Conclusões. Referências.
Introdução
De acordo com dados fornecidos pelo Ministério do Meio Ambiente, o litoral brasileiro possui 7.367km de extensão e, considerando as saliências e reentrâncias existentes, o entorno da costa pode chegar a 9.200km (2018). Naturalmente, um País com margens de tamanha proporção deve possuir canais portuários eficientes, diante da extrema importância logística que estes representam para a economia, cuja exploração precisa conferir capacidade competitiva internacional e possibilitar o intercâmbio comercial de maneira efetiva.
No início do século XIX, com a transferência da Corte Portuguesa para o Brasil, o Rei Dom João VI chefiou a abertura dos portos brasileiros ao comércio com as nações fraternas. A partir de então, o País passou a fazer parte do sistema econômico liberal internacional e exportar matérias-primas como madeira e ouro, além de importar produtos manufaturados e especiarias frequentemente consumidas pelos colonizadores e pela nobreza (KAPPEL, 2009).
Hoje em dia, os portos brasileiros assumiram o papel de indispensável canal logístico de comércio internacional, representando cerca de 95% das negociações realizadas com o resto do mundo e impactando de maneira significativa na balança comercial pátria (BOZZELA, 2019). No entanto, ainda existem algumas amarras que entravam a modernização e o desenvolvimento da estrutura portuária nacional, responsáveis por aumentar os custos e impedir a livre atuação das empresas no mercado, de modo a dificultar a competitividade entre estas e suas concorrentes internacionais.
Em outras palavras, trata-se de travas consagradas no ordenamento jurídico que resultam de um contexto social muito anterior à globalização e à automação das instalações portuárias, as quais até hoje não foram enfrentadas de maneira destemida e prudente pelo legislador. Um destes obstáculos sustentados diretamente pela iniciativa privada – e, indiretamente por todos os consumidores de produtos importados e exportados, ou seja, por toda a sociedade – é a imposição legal de que o trabalho no setor portuário seja executado exclusivamente por operários que estejam registrados e/ou cadastrados junto ao OGMO, em nítida violação à Constituição Federal.
Para demonstrar a inconstitucionalidade das normas que garantem privilégios a grupos específicos de pessoas, o presente trabalho utilizou o método de abordagem dedutivo, a partir da análise doutrinária, legislativa e da análise empírica da jurisprudência sobre o tema. Inicialmente, apresenta a evolução histórica dos portos e da legislação nacional a eles pertinente (1) para, em um segundo momento, abordar as particularidades inerentes ao trabalhador portuário avulso (2). Por fim, o terceiro capítulo é dedicado à avaliação e confrontação dos dispositivos legais vigentes com princípios e fundamentos positivados na Constituição Federal de 1988 (3).
1. A evolução histórica dos portos e da legislação nacional a eles pertinente
Após a abertura dos portos no Brasil, em 1808, o trabalho de carga e descarga nos navios era feito pela própria tripulação ou pelos escravos (SPOLLE, 2009). Posteriormente, a mão-de-obra passou a ser assalariada, mas a organização dos trabalhadores ocorreu apenas em 1812 (ANDRÉ, 1998). Transcorrido mais de um século, essas relações passaram a ser legalizadas e organizadas por meio da contratação de operadores avulsos sindicalizados (TRINDADE, 1983), os quais ofereciam serviços braçais desqualificados e baratos para atender à demanda portuária.
Desde aquela época há registros de que algumas destas associações de trabalhadores se caracterizavam, segundo a melhor doutrina, como mafiosas e corporativistas, além de corruptas (SILVA, 2003), já que detinham todo o poder de organização da operação dos portos. Essa situação era motivo de protestos de empresas e organismos internacionais sob a argumentação de que os serviços prestados eram ineficientes e havia uma gama exagerada de sindicatos de classes (BAUMGARTEM, 2006).
Durante muito tempo os sindicatos se apoderaram das relações de trabalho e definiram as regras que as regulamentaram, o que culminou, em tese, com a edição da Lei nº 8.630/1993. A norma criou e transferiu ao OGMO as ferramentas formais e legais de controle e gestão do trabalho portuário, sem olvidar de proteger os obreiros do setor da automação, cuja intensificação estava iminente (BASÍLIO, 2008) em um cenário de instalações portuárias públicas e sucateadas (SOUZA, 2017).
A partir deste marco legal, definiu-se como modelo de gestão portuária nacional a denominada Landlord Port, no qual a iniciativa privada, por meio de arrendamentos (concessões), ficaria responsável pela operação dos portos e por investimentos em construção, aquisição ou reabilitação de superestruturas e equipamentos necessários para tanto (PIERDOMENICO, 2010). Assim, criou-se a figura do porto organizado para atender às necessidades da navegação e da movimentação e armazenagem de mercadorias, concedido ou explorado pela União, por tráfego e operações que estejam sob a circunscrição de uma autoridade portuária (MTE, 2001).
À época da legislação, os portos “não organizados” costumavam ser pequenos e pouco movimentados, sem administração, resumindo-se, na maioria das vezes, a pequenos cais destinados a receber mercadorias. Tal quadro foi muito modificado a partir da concessão das garantias à liberdade de iniciativa e à menor interferência estatal nestes terminais privativos localizados fora da área (MTE, 2001), mas a maior parte dos investidores seguiu preferindo se instalar fora das poligonais dos portos organizados, mesmo com infraestruturas precárias ou inexistentes (TCU, 2020).
No entanto, por não sofrerem as limitações legais ora abordadas, os terminais constituídos após a Lei nº 8.630/1993 não são objeto do presente estudo, que se limita àqueles dentro da área do porto organizado. Cabe destacar que os terminais que utilizavam a mão-de-obra dos trabalhadores avulsos antes da referida Lei estão submetidos às limitações nela previstas. Estes operadores são obrigados a manter a proporcionalidade entre trabalhadores avulsos e celetistas, ou seja, também padecem deste impedimento, ainda que em menor escala (PINTO, 2008).
A interpretação do art. 26, parágrafo único, da Lei nº 8.630/1993, combinado com a posteriormente ratificada Convenção n. 137, da OIT, era de que a contratação de trabalhadores sob vínculo empregatício pelo operador do porto organizado deveria se dar, prioritariamente, entre aqueles que fossem matriculados junto ao OGMO, ou seja, dentre os registrados, e, em caso de negativa por parte destes, os cadastrados. Minoritária doutrina considerava que seria possível a contratação por fora mercado caso houvesse negativa de registrados e cadastrados (MENEGHINI, 2020), mas a maior parte das decisões na esfera trabalhista era no sentido de que dentro do porto organizado, somente poderiam trabalhar matriculados no OGMO[1], posicionamento que se mantém até hoje em processos sobre o tema[2].
A constante necessidade de modernização dos portos e do trabalho portuário foi se intensificando em razão da automação, globalização e da competitividade com outras instalações ao redor do mundo. Naturalmente, este ambiente obrigou-se a acompanhar a evolução generalizada, adquirindo maquinários com novas tecnologias, afetando diretamente a forma do trabalho de movimentação de cargas nas instalações portuárias (SOUZA, 2017).
Neste cenário, resta claro que a atuação desvinculada e impessoal de trabalhadores avulsos é contrária à segurança e à organização das operações portuárias, que demandam mão-de-obra especializada e complexidade no desenvolvimento das atividades. Somente o vínculo empregatício, a pessoalidade, o treinamento constante e especializado permitem o devido planejamento e organização da execução dos trabalhos ao longo do tempo, considerando a peculiaridade e automação de cada instalação.
Ocorre que, ao contrário do esperado, a legislação subsequente e atualmente em vigor previu que a contratação da mão-de-obra pelos operadores dentro da área do porto organizado deve se dar exclusivamente através de trabalhadores registrados no OGMO (Lei nº 12.815/2013). Ou seja, a nova legislação ampliou a reserva de mercado existente (TCU, 2020). No mesmo sentido, o art. 3º, § 2º, da Lei 9.719/1998, proibia ao órgão gestor de mão-de-obra a cessão de trabalhador portuário avulso cadastrado ao operador portuário em caráter permanente, isto é, sob contrato de trabalho a prazo indeterminado.
Desta forma, a regulamentação legal acabou por engessar a instalação portuária, tornando-a dependente única e exclusivamente da mão-de-obra avulsa, através de requisições e fainas diárias. Essa conjuntura acabou tornando os custos mais elevados, sem qualquer garantia de maior eficiência, já que os TPAs não entendiam como vantajoso aceitar a proposta de emprego sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho[3].
Somente com o advento da pandemia e o reconhecimento expresso da essencialidade da atividade portuária, através da MP nº 945, editada em razão da iminente possibilidade de paralisação deste setor, a matéria foi enfrentada pela primeira vez com valentia e perspicácia.
A referida Medida Provisória, posteriormente convertida na Lei n. 14.047, de 2020, permitiu aos operadores portuários a contratação a prazo determinado por fora do OGMO pelo período de 12 meses, em caso de eventual falta de mão-de-obra de trabalhadores avulsos:
Art. 4º Na hipótese de indisponibilidade de trabalhadores portuários avulsos para atendimento às requisições, os operadores portuários que não forem atendidos poderão contratar livremente trabalhadores com vínculo empregatício por tempo determinado para a realização de serviços de capatazia, bloco, estiva, conferência de carga, conserto de carga e vigilância de embarcações.
§ 1º Para fins do disposto neste artigo, considera-se indisponibilidade de trabalhadores portuários qualquer causa que resulte no não atendimento imediato às requisições apresentadas pelos operadores portuários ao Órgão Gestor de Mao de Obra, tais como greves, movimentos de paralisação e operação-padrão.
§ 2º A contratação de trabalhadores portuários com vínculo empregatício com fundamento no disposto no caput não poderá exceder o prazo de doze meses.
Em suma, ao verificar que o sistema atual admitiria risco de suspensão das atividades portuárias, o legislador se viu obrigado a admitir a impossibilidade de coagir as empresas do setor a sujeitarem-se à vedação da contratação por fora do sistema do OGMO. Ou seja, a dura realidade instigou o Estado a atentar ao fato de que somente com o respeito à livre iniciativa é que o setor sobreviveria à pandemia do Covid-19, evidenciando que a obrigação de contratar TPAs tornou-se obsoleta ao longo do tempo.
2. O Trabalhador Portuário Avulso (TPA) e suas particularidades
Os trabalhadores portuários avulsos (TPAs) são caracterizam pela impessoalidade e não habitualidade da prestação de serviços. São trabalhadores escalados a cumprir suas fainas em favor de múltiplos requisitantes de mão-de-obra, apresentando-se quando desejam, com autonomia, e sem vínculo empregatício com os operadores portuários. Ademais, recebem valores por turnos de trabalho, os quais cumprem em equipes de trabalhadores, os denominados ternos, conforme pactuado em Acordos e Convenções Coletivas de Trabalho firmados por seus sindicatos representativos.
Dentro do OGMO, os Trabalhadores Portuários Avulsos podem ser cadastrados ou registrados. Os primeiros são uma espécie de mão-de-obra suplementar, e são chamados nas ocasiões em que os registrados não se habilitaram em número suficiente para as fainas requisitadas. Enquanto respondem as escalas como trabalhadores cadastrados, estes TPAs vão se qualificando e ingressam no registro, por intermédio do OGMO, assim que a abertura de vagas ocorrer.
Pouco se fala na doutrina e na jurisprudência que grande parte dos trabalhadores registrados e cadastrados junto ao OGMO foram privilegiados com tal relação em razão de seu parentesco ou familiaridade com as lideranças sindicais da época (SOUZA, 2017). De fato, até a implantação do OGMO no porto organizado, com a edição da Lei nº 8.630/1993, a matrícula dos trabalhadores no Sindicato era controlada pelas direções de seus entes representativos (MACHIN, 2009), que conferiam a condição de sindicalizado a seus apoiadores políticos e familiares. A sindicalização dos obreiros, portanto, sempre foi pré-requisito para que o trabalhador portuário avulso pudesse ser requisitado ou contratado pelas instalações portuárias do porto organizado, sob pena de violação legal, multas administrativas e o ajuizamento de ações civis públicas por parte do Ministério Público do Trabalho.
Há muito tempo, em razão da dimensão da importância que os portos nacionais possuem na balança comercial pátria, sem intercorrências ou problemas de sazonalidade, os TPAs possuem considerável quantidade de oportunidades diárias de trabalho, estimulados pela reserva legal de mercado que possuem, auferindo ganhos mensais muitas vezes superiores ao teto do funcionalismo público pátrio. Apenas a título ilustrativo, a média salarial do TPA no Porto do Rio Grande, no mês de junho de 2020, foi de R$ 9.672,67 (OGMO-RG, 2020). Ou seja, a legislação pátria confere ao Trabalhador Portuário Avulso benefícios não concedidos a qualquer outra classe de trabalhadores: a liberdade de se engajar quando quiser, desde que não deixe de comparecer por longos períodos para não perder o vínculo junto ao OGMO, e a garantia da reserva de mercado.
A consequência prática é que os operadores pertencentes à área do porto organizado ficam impossibilitados de contratar sob as regras da CLT. Ora, se só existe a possibilidade de manter vínculo empregatício com trabalhadores registrados junto ao OGMO e estes possuem enorme gama de oportunidades para engajamento como avulsos, recebendo mais remuneração com menos comprometimento, evidentemente que estes TPAS irão recusar o emprego sob prazo indeterminado. Em assim sendo, a empresa resta diariamente compelida a requisitar o obreiro na forma de trabalhador avulso.
De maneira ordenada, os trabalhadores acabam por desvirtuar a legislação portuária, que teve, ao longo do tempo, como objetivo modernizar e conferir competitividade aos portos nacionais. Referida incoerência já foi apontada pelo Poder Judiciário quando do julgamento do Recurso de Revista nº 0088500-19.2009.5.04.0122, DJE 2/10/2015, de relatoria do Min. João Ghisleni Filho, do TST:
(...) a interpretação dada pelos reclamantes e pela sentença permite que os trabalhadores registrados, por si só, determinem o formato de contratação, frustrando a própria eficácia do caput do art. 26, que permite a contratação de trabalhadores portuários com vínculo empregatício a prazo indeterminado e trabalhadores avulsos. Basta que, ofertadas as vagas para os trabalhadores registrados, estes recusem a contratação, o que faria com que eles mesmos fossem escalados como avulsos.
Dessa forma, cabe aos TPAs a escolha do modelo de contratação de sua mão-de-obra: seja por meio de vínculo empregatício, seja como trabalho avulso. Obviamente, os trabalhadores optam pela segunda modalidade, pois seus vencimentos são, sem sombra de dúvidas, maiores e inexiste subordinação ao empregador. Quanto à esta situação, cabe mencionar observação de clássica literatura do setor portuário:
(...) no Brasil, diferenciado em relação aos demais, pois os trabalhadores portuários avulsos não sofrem a concorrência direta da enorme população economicamente ativa que está desempregada. Ao contrário, além de não ser possível o acesso indiscriminado aos quadros dos OGMOs, também para a contratação, com vínculo empregatício, é assegurado que se dê preferência aos registrados ou cadastrados (PINTO, 2008).
O cenário não é de hipossuficiência do trabalhador, já que fica ao puro arbítrio deste, de modo organizado, a escolha do modo de contratação, o que é feito em prol de sua maior remuneração e liberdade, em detrimento de toda a sociedade. Isso se dá porque que este trabalhador, sem concorrência e com alta remuneração, onera as instalações portuárias, que são obrigadas a arcar com os custos e/ou repassá-los aos demais agentes da cadela logística, o que, por fim, reflete no valor de todos os produtos que passam por este modal de transporte.
Portanto, a recusa dos trabalhadores avulsos em laborar de forma vinculada acaba tornando obrigatória a sua requisição para as atividades nas empresas, o que é referendado pela maior parte das decisões proferidas pelos Tribunais da Justiça Trabalhista. A situação retratada gera custos e reduz a capacidade de atrair investimentos dos portos nacionais, dificultando sua competitividade. Tudo isso gerado por uma legislação embasada em costumes não mais condizentes com a necessidade de modernização de um setor desta relevância.
De um lado, as Leis nº 8.630/1993 e nº 12.815/2013 tiveram como propósito descorporativizar as relações de trabalho nos portos brasileiros, atenuando o monopólio sindical na intermediação de trabalhadores. De outro lado, a organização destes obreiros não permitiu que as instalações portuárias privadas localizadas dentro da área do porto organizado pudessem exercer a livre iniciativa da maneira prevista na Lei Maior. O Poder Judiciário manteve, salvo exceções, intocáveis os interesses desta classe, à revelia de preceitos constitucionais da livre iniciativa e da liberdade sindical.
3. As violações frontais à Constituição Federal de 1988 e a urgente necessidade de adequação legal
A Constituição Federal de 1988 contempla a livre iniciativa como fundamento da República Federativa do Brasil e prevê, expressamente, a necessidade de observância do princípio da livre concorrência (art. 1º). Em outras palavras, o topo da pirâmide de hierárquica legal determina que os terminais da área do porto organizado devem respeitar a livre iniciativa e assegurar o direito à concorrência igualitária com os terminais adventícios. Sendo assim, privilegia-se a liberdade de empresa em suas decisões, assegurando a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização, salvo os casos previstos em lei (CF, art. 170).
Da mesma forma, como já referido, os quadros de trabalhadores vinculados ao OGMO remontam a um período em que as lideranças sindicais determinavam quem poderia ou não ser vinculado ao sindicato laboral. Posteriormente, há relatos de concursos realizados de maneira completamente fraudulenta, privilegiando-se familiares, parentes e apoiadores[4].
Portanto, se por um lado a Carta Magna permite que o trabalhador não seja obrigado a ser sindicalizado, por outro lado a legislação portuária sempre exigiu que este se vinculasse a algum sindicato para possibilitar o vínculo junto ao OGMO. Ou seja, a norma infraconstitucional não resiste ao confronto com o disposto nos artigos 5º, XIII, e 8º, da Constituição Federal de 1988, que asseguram, respetivamente, o livre exercício de qualquer trabalho e a liberdade de associação profissional ou sindical.
Não pode existir norma que garanta exclusividade ou mesmo preferência para contratação, a qualquer título, para trabalhadores sindicalizados, porque isso implicaria tornar obrigatória a sindicalização. Resta claro, portanto, a incompatibilidade dos dispositivos que determinam a exclusividade da contratação de trabalhadores por dentro do OGMO com a livre iniciativa e livre concorrência.
Como se não bastasse a inconstitucionalidade apontada, a antiga ineficiência do sistema foi recentemente reforçada por auditoria do Tribunal de Contas da União, através da qual foi constatada a necessidade de modificar prontamente os regulamentos sobre o trabalho portuário em vigor:
A Lei 12.815/2013, como visto acima, expandiu o monopólio de mão de obra do OGMO, antes restrito ao trabalho da estiva, para capatazia e bloco, e, por conseguinte, estendeu os pontos indesejáveis de uma situação de monopólio para outros setores da mão de obra portuária. (...) A esse respeito é imperioso ressaltar que as despesas com os trabalhadores contratados via OGMO. (...) Ou seja, aproximadamente 1/3 da receita do terminal é destinada a cobrir gastos com mão de obra intermediada pelo OGMO. (...) Desses números é possível se extrair o potencial de redução de custos de operação de um terminal a partir de incrementos na eficiência do trabalho portuário (TCU, 2020).
O documento considerou custoso e prejudicial ao desenvolvimento do setor o monopólio da mão-de-obra pelo OGMO:
Quanto ao OGMO (...) Nada obstante, há elevado custo social do monopólio, tornando os terminais arrendados menos atraentes e contribuindo para a elevação do custo Brasil e para a perda de eficiência do setor portuário como um todo, com impactos negativos na participação brasileira na logística internacional. Nesse sentido, cumpre ressaltar que a legislação trabalhista pátria não tem por regra o estabelecimento de monopólio nas contratações, levando à conclusão que existem alternativas menos onerosas para a proteção do hipossuficiente (TCU, 2020).
Ao fim, a proposta do relatório do TCU foi a recomendação:
(...) ao Ministério da Infraestrutura que avalie a possibilidade de proposta legislativa visando ao fim do monopólio do OGMO no fornecimento de mão de obra portuária e à transição para um sistema que permita ganhos de eficiência ao setor portuário e estimule a capacitação e a especialização dos trabalhadores (TCU, 2020).
Tal modificação, segundo concluído, geraria maior produtividade da mão-de-obra portuária, redução dos custos e ganhos de eficiência, além de mencionar o tratamento isonômico entre terminais arrendados e TUPs e a maior atratividade do porto público, com consequente redução da ociosidade, aumento das receitas e da sustentabilidade financeira das instalações. Portanto, o TCU desvendou que as legislações existentes constituem um monopólio sindical e embaraço à livre concorrência, situações que inibem a atratividade para investimentos do setor.
Considerando a relevância dos portos nacionais, a política legislativa portuária deve ser de Estado, e não de Governo, não havendo espaço para manutenção de privilégios de classes para manter relações estreitas com federações sindicais e suas lideranças. Deve-se privilegiar a busca pela produtividade, sem olvidar da proteção do trabalhador, mas evitando-se que a sua ineficiência e alto custo sejam empecilhos para o desenvolvimento do país e de seu comércio exterior.
Conclusões
Não mais se discute a essencialidade dos portos para a cadeia produtiva do Brasil. A necessidade de modernização é constante, o que demanda grandes investimentos, os quais somente são feitos em cenários de segurança jurídica e de possibilidade de colher resultados. Ao aprofundar este estudo, verificou-se haver saliente anacronismo legislativo que em nada atende aos propósitos de um País que necessita se desburocratizar e reduzir custos para se tornar atrativo para investidores.
As regras do ambiente portuário, ao contrário do presumido, mantêm obrigações enfadonhas ao empresariado, focando-se somente na proteção desta espécie de trabalhador cujas particularidades evoluíram com intensidade, não mais se justificando qualquer prerrogativa de exclusividade para sua contratação. A manutenção da obrigação de contratação da mão-de-obra avulsa por parte dos operadores não cumpre com o dinamismo que o mercado exige e prejudica os investimentos no setor portuário pátrio. O alto custo deste trabalhador foi evidenciado por relatório do TCU, e é notório que o trabalhador avulso, em geral, não possui qualificação compatível com os vencimentos que recebe.
Tal conjuntura é resultado do desvirtuamento das leis que vieram para modernizar os portos, efetuado de maneira organizada pelos sindicatos obreiros desta esfera. Obviamente a legislação portuária precisa de severas modificações para possibilitar ao operador portuário maior liberdade para desenvolver sua atividade negocial, com segurança jurídica e redução dos custos operacionais. Além disso, eventual abertura de postos de trabalho à população em geral estimularia a política do pleno emprego, geraria mais renda e terminaria com a cultura histórica de que lideranças sindicais definam quem responde às escalas de trabalho mais rentáveis e de quem ingressa ou não nos quadros do sindicato e do OGMO.
O TCU reconheceu, ainda que tardiamente, a necessidade de reformas profundas neste sistema obsoleto de contratações, recomendando que as instalações portuárias mantenham seu quadro de empregados sob vínculo empregatício e invistam em qualificação, estimulando a livre concorrência dos terminais, independente de se localizarem dentro ou fora do porto organizado. Naturalmente, espera-se que a legislação portuária sofra as recomendadas modificações que privilegiam a livre iniciativa da atividade negocial e a possibilidade de contratação fora do sistema do OGMO, desengessando as empresas do setor e estimulando a política nacional de pleno emprego e renda para todos.
Ainda que a Medida Provisória 945 tenha cumprido esse papel durante a pandemia ao possibilitar contratações por 12 meses, o certo é que estas amarras somente serão completamente afastadas quando houver a plena liberdade, sem prazo determinado, para que os operadores da área do porto organizado possam contratar sob vínculo empregatício e atuar livremente como exploradores de atividade privada em uma seara de extrema competitividade.
Referências
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[1] https://www.portosenavios.com.br/noticias/portos-e-logistica/tst-decide-que-vinculo-empregaticio-e-exclusivo-para-trabalhador-portuario-inscrito-no-ogmo.
[2] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho - AIRR: 10003567220165020442, Relator: José Roberto Freire Pimenta, Data de Julgamento: 11/12/2018, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 14/12/2018.
[3] A respeito da greve dos estivadores contra a contratação sob regime de CLT:
[4] A notícia foi divulgada na página: https://novaestivarg.wixsite.com/novaestivarg/entenda-o-caso. Sobre o tema, o Tribunal Superior do Trabalho julgou a Cautelar Inominada nº 257011620155000000, de Relatoria do Min. Augusto César Leite de Carvalho (DJE: 11 dez. 2015).
Advogado. Formado em Direito pela .PUC-RS pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela FMP-FEMARGS, membro da Comissão de Direito Marítima, Aduaneiro e Portuário da OAB/RS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NUNES, Thomaz Cesca. A contratação de trabalhadores portuários sob vínculo empregatício nos portos organizados Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 out 2021, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57277/a-contratao-de-trabalhadores-porturios-sob-vnculo-empregatcio-nos-portos-organizados. Acesso em: 23 dez 2024.
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