RUBENS ALVES DA SILVA
RESUMO: Diante de um fato criminoso praticado por determinado sujeito, são observáveis três efeitos decorrentes dessa conduta, quais sejam: Penal, Administrativo e Civil. O primeiro consiste na aplicação de uma pena por meio do processo penal, o segundo, diz respeito ao funcionalismo público e consiste na submissão a um processo administrativo disciplinar, enquanto que o terceiro efeito possível, visa a recuperação do dano, a ser exigida por meio da Ação Civil “Ex Delicto”. Dessa forma, a ação civil ex delicto é a ação que tem por finalidade reparar um dano, tanto moral como material, proveniente de um ilícito penal que o objeto é uma sentença penal condenatória transitada em julgado, ou seja, um título executivo judicial, proposta contra o agente causador do dano ou contra que a lei civil apontar como indenizador. O presente estudo, portanto, teve por objeto, analisar o instituto da ação civil “ex delicto” na esfera civil, sob a luz do sistema de independência entre as esferas civil e penal, apreciando, ainda, as excludentes de ilicitude previstos no artigo 23 do Código Penal. Para tanto, foi realizada uma pesquisa bibliográfica partindo-se do levanto das disposições relacionadas à reparação do dano, presentes na Constituição Federal, no Código Civil, no Código Penal e no Código Processual Penal.
Palavras-chave: Reparação do Dano. Ação Civil “Ex Delicto”. Aplicabilidade. Execução.
ABSTRACT: Faced with a criminal act committed by a certain subject, three effects arising from this conduct are observable, namely: Criminal, Administrative and Civil. The first consists in the application of a penalty through criminal proceedings, the second concerns the civil service and the submission to a disciplinary administrative process, while the third possible effect aims at the recovery of the damage, to be demanded through of the “Ex Delicto” Civil Action. Thus, the ex delicto civil action is the action that has the purpose of repairing a damage, both moral and material, arising from a criminal offense that the object is a final judgment, that is, a judicial enforcement order, proposed against the agent causing the damage or against which civil law appoints as indemnity. The present study, therefore, aimed to analyze the institute of civil action “ex delicto” in the civil sphere, in the light of the system of independence between the civil and criminal spheres, while also considering the exclusion of illegality provided for in article 23. of the Penal Code. To this end, a bibliographic search was carried out starting from the lifting of the provisions related to the reparation of the damage, present in the Federal Constitution, the Civil Code, the Penal Code and the Penal Procedural Code.
Keywords: Damage Repair. Civil Action “Ex Delicto”. Applicability Execution.
INTRODUÇÃO
A ação civil ex delicto, ou, ainda, actio civilis ex delicto, constitui ação ajuizada pelo ofendido na esfera cível no intuito de obter indenização pelo dano causado pela infração penal, quando existente, tomando por base o princípio da neminem laedere, que define não ser permitido a ninguém lesar direito de outrem, e quem o faz, pratica um ato ilícito. Mais especificamente, nesse caso, o prejuízo sofrido por alguém não é na esfera civil, e sim na penal, sendo a causa de pedir o fato criminoso.
Dessa forma, sempre que se é cometido um ilícito penal, surge uma pretensão punitiva que enseja em ação penal e aplicação de pena ou medida de segurança aos culpados, sendo que, na maior parte das vezes, estabelecida uma pretensão civil, a fim de se reparar o dano causado. Assim o é, pois em regra a violação de um interesse penalmente protegido também enseja em prejuízo. Em contrapartida, cometendo-se um ilícito civil, só haveria em uma pretensão punitiva penal se o ato estivesse tipificado no Código Penal.
A legislação criminal vigente, sempre que possível, prima pelo ressarcimento da vítima, conforme tacitamente observado na Constituição Brasileira e no Código Processual Penal, que prevê o instituto da ação civil ex delicto, voltado para a reparação da vítima, de modo que a ação civil ex delicto é uma ação de execução a ser proposta pela vítima, contra o agente do crime, a fim de se obter reparação.
O Código Civil Brasileiro, por sua vez, determina no art. 927: “aquele que, por ato ilícito causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Os atos ilícitos estão definidos no Diploma Civil nos arts. 186 a 188, aduzindo que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (art. 186).
Assim, vale ressaltar que, embora esteja prevista no Código de Processo Penal, em seus artigos 63 ao 68, essa ação é proposta no âmbito cível. Ou seja, em hipótese de dano em decorrência de um ilícito penal, pode o interessado entrar com ação na sede civil a fim de satisfazê-lo, independentemente de ajuizamento de ação de condenação pelo crime cometido na sede penal, em obediência ao sistema adotado no Direito brasileiro, que é o da independência da jurisdição.
2 AÇÃO CIVIL EX DELICTO
A prática de um crime, usualmente, ofende um interesse jurídico da sociedade, acarretando uma lesão real ou potencial à vítima, e disso origina o jus puniendi para a aplicação da sanção penal, concomitantemente com a obrigação de reparar civilmente o ilícito cometido. Assim, da prática de um delito surgem, em regra, duas pretensões: (i) uma do Estado, de sancionar penalmente o agente e (ii) outra da vítima, de buscar a reparação pelo ilícito que sofreu em razão do delito.
Nesse sentido, a Constituição Federal, em seu art. 5°, incisos V e X, prevê a indenização por dano moral como proteção a direitos individuais:
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; ... A doutrina entende que, para a caracterização do dano moral, é necessário o preenchimento de três requisitos: ato ilícito, demonstração do dano e nexo de causalidade.
(...)
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
(BRASIL, 1988) (grifos do autor)
A obrigação de reparar o dano que uma pessoa causa a outrem constitui a chamada responsabilidade civil, mediante à especificação das condições que uma pessoa pode ser considerada responsável pelo dano sofrido por outra pessoa e em que medida está obrigada a repará-lo. A reparação do dano é feita por meio da indenização, que é quase sempre pecuniária. O dano pode ser à integridade física, à honra ou aos bens de uma pessoa, através do recurso conhecido como ação civil ex delito.
Conforme NUCCI, a ação civil ex delicto é a ação “ajuizada pelo ofendido, na esfera cível, para obter indenização pelo dano causado pelo crime, quando existente”. (NUCCI, 2015, p. 233).
Edilson Mougenot Bonfim, por sua vez, ensina que a ação ex declito
É uma proposta no juízo civil pelo ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros para obter a reparação do dano provocado pela infração penal. Abrange tanto o ressarcimento do dano patrimonial como a reparação moral (BONFIM, 2011).
O Código de Processo Penal prevê duas formas de a vítima buscar a reparação civil pelos danos sofridos em razão do delito: a) a execução civil ex delicto, tendo como base uma sentença penal condenatória transitada em julgado que servirá como título executivo judicial, conforme o art. 63, CPP; ou b) a ação de conhecimento ex delicto, em que a vítima ajuizará uma ação diretamente perante o juízo cível, tendo como causa de pedir o delito do qual foi vítima, consoante o art. 64, CPP.
Faz-se mister destacar, por fim, que a ação penal e a actio civilis ex delicto não se confundem, uma vez que a ação penal tem por escopo realizar o Direito Penal objetivo, com vistas à aplicação de uma pena ou medida de segurança ao criminoso, enquanto que a actio civilis tem por objetivo precípuo a satisfação do dano produzido pela infração. O que pode acontecer é de a infração penal gerar prejuízo à vítima, que poderá beneficiar da ação civil ex delicto.
2.1 Sistema de independência entre as esferas civil e penal
Em virtude de referir-se a uma ação que abarca os ramos cível e criminal, faz-se oportuno mencionar a independência entre o juízo penal e o juízo cível, que consiste na possibilidade de obtenção de decisões judiciais diversas sobre um mesmo e único fato. Haverá casos em que será permitido o ajuizamento simultâneo dos pedidos (penal e cível) em um único juízo (em regra, o penal), enquanto que em outros prevalece a separação entre as instâncias, verificando-se maior ou menor grau de independência entre elas.
Dessa forma, a prática de um ilícito penal pode (ou não) gerar um ilícito civil. Clássico é o exemplo do homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, CTB), que gerará (i) uma sanção penal e (ii) o direito dos familiares da vítima a uma indenização civil (art. 948, CC). O inverso também é verdadeiro, podendo, assim, haver um ilícito civil sem um ilícito penal (o que ocorre na infinita maioria das vezes, diante do caráter residual de aplicação do Direito Penal), como no caso de um mero descumprimento contratual.
Como bem afirma Arnaldo Rizzardo, “uma conduta pode, no entanto, acarretar violação civil e penal, trazendo, assim, dupla ilicitude. Ao mesmo tempo em que está cominada uma sanção penal, consta prevista a responsabilidade civil, impondo a indenização” (RIZZARDO, 2011, p. 48).
Para Eugênio Pacelli de Oliveira (2010, p. 205), no Brasil, adota-se o sistema de independência relativa ou mitigada, em razão da existência de uma subordinação temática de uma instância a outra, especificamente em relação a determinadas questões, onde o juiz penal tem autonomia para decidir o âmbito penal e o juiz do cível tem autonomia para decidir as questões civis de indenização.
Nesse contexto, a Lei nº 11.719/08 alterou o art. 387 do Código de Processo Penal (CPP), de modo a incluir no inciso IV o dever de o juiz, na sentença condenatória, fixar o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido.
De acordo com Eugênio Pacelli de Oliveira,
Consoante os termos do previsto no art. 63, parágrafo único, com a redação dada pela Lei nº 11.719/08, a vítima ou legitimados arrolados no caput do mesmo dispositivo (art. 63, CPP) poderão executar, desde logo, no Juízo Cível, a parcela mínima reparatória constante do art. 387, IV, CPP, sem prejuízo de prosseguir na apuração do montante efetivamente devido. (OLIVEIRA, 2010, p. 206).
Destarte, a via judicial a ser escolhida para ajuizar a ação reparatória depende das regras de subordinação temática, podendo ser a executória, quando houver execução da sentença penal condenatória (art. 475-N, II, do CPC) e parcela mínima para reparação dos danos sofridos pela vítima (art. 63, parágrafo único, CPP); ou mediante processo de conhecimento, em que devem ser encaminhados ambos os pedidos ao juízo cível, de acordo com o previsto art. 63 do CPP.
Art. 63/CPP. Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros.
Parágrafo único. Transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do caput do art. 387 deste Código sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido. (BRASIL, 1941)
Assim, consta estabelecida a fixação, pelo juiz criminal, da reparação do dano decorrente da infração penal, na sentença condenatória, sem prejuízo, óbvio, de futura liquidação para apuração dos prejuízos efetivamente sofridos.
Mais à frente, artigo 68 do CPP, traz a seguinte disposição:
Art. 68. Quando o titular do direito à reparação do dano for pobre (art. 32, §§ 1º e 2º), a execução da sentença condenatória (art. 63) ou a ação civil (art. 64) será promovida, a seu requerimento, pelo Ministério Público. (BRASIL, 1941)
Ou seja, quando o titular do direito de reparação do dano for desprovido de recursos materiais, o Ministério Público encontra-se legitimado para propor a ação que visa tal reparação. O Estado confiou ao Ministério Público a defesa dos interesses das pessoas pobres – das que não puderem prover às despesas processuais sem privar-se dos recursos indispensáveis ao seu sustento e o sustento de sua família.
Por sua vez, o Código Civil Brasileiro (BRASIL, 2002), a seu turno, determina no art. 927: “aquele que, por ato ilícito causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Os atos ilícitos estão definidos no Diploma Civil nos arts. 186 a 188, aduzindo que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (art. 186).
Por sua vez, o art. 935 do mesmo dispositivo legal, dispõe que
Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal. (BRASIL, 2002)
Dessa forma, existe uma atenuação pelo fato de que, havendo ação penal, sua sentença condenatória com trânsito em julgado traz, como efeito, também a coisa julgada no cível, visto que o fato gerador de ambas é o crime, sendo desnecessário o ajuizamento de ação de conhecimento de indenização por ilícito penal se o já estiver sido condenado penalmente pelo crime, onde a sentença penal condenatória transitada em julgado funciona como um título executivo judicial no juízo cível, dispensando a proposição de ação civil de conhecimento. Nesse caso, no âmbito civil, não se discute mais o que se deve (an debeatur) e sim o quanto é devido (quantum debeatur).
2.2 Do objeto da ação civil ex delicto
No que se refere ao objeto da actio civilis ex delicto, Tourinho Filho diz que:
A actio civilis ex delicto é aquela que se intenta visando à reparação ou satisfação do dano produzido pela infração, havendo três espécies de responsabilidade civil: a) restituição (devolução da coisa); b) ressarcimento (pagamento em pecúnia do valor da coisa); c) reparação (satisfação de danos morais) (TOURINHO FILHO, 2009, p. 262.)
A legislação brasileira, incluindo a própria Constituição, entende por indenização qualquer pedido de natureza ressarcitória ou reparatória. Entretanto, a doutrina procura distinguir em restituição e ressarcimento para danos de natureza econômica, reparação para danos de natureza moral, e indenização, sendo termo utilizado para definir modalidade de recomposição patrimonial do dano causado por ato lícito do Estado (desapropriações etc.).
Levando em consideração o que estabelece a doutrina, portanto, são quatro as modalidades para a recomposição civil do dano causado pela infração penal: restituição, ressarcimento, reparação e indenização. Dessa forma, quando o dano for de natureza econômica, poderá o objeto constituir-se de (a) uma restituição do bem apropriado indevidamente, de modo a recompô-lo patrimonialmente em decorrência da ilicitude também cível; ou (b) de um ressarcimento, com o intuito de satisfazer os danos emergentes e os lucros cessantes.
Quando o dano atingir o patrimônio moral do ofendido tratar-se-á de uma reparação civil do ilícito (conhecido por danos morais) por atentar valores atinentes à dignidade, à individualidade e à personalidade da vítima.
Já quando o dano for causado por ato ilícito do Estado, será feito jus uma recomposição por uma falha de quem, em regra, não poderia errar. No entanto, destaca-se que a Constituição Federal (BRASIL, 1988), tem uma conceituação mais abrangente, compreendendo como indenização “qualquer pedido de natureza ressarcitória ou reparatória” (art. 5º, V, CF e art. 68, CPP).
2.3 Da legitimidade para propor ação civil ex delicto
Nas palavras de Eugênio Pacelli de Oliveira
Tanto a execução da sentença penal condenatória passada em julgado quanto o ajuizamento da ação de conhecimento no juízo cível poderão ser propostos pelo ofendido ou seu representante legal”. Quando houver a falta do ofendido, ou de seu representante legal, conforme disposto no Art. 63, caput, do Código de Processo Penal, a legitimidade é atribuída aos seus herdeiros, “não se limitando ao rol de pessoas elencadas no art. 31 do mesmo Código” (OLIVEIRA, 2010, p. 191)
Dessa forma, a ação civil pode ser ajuizada pelo ofendido/representante legal ou por seus herdeiros, ou ainda, pelo Ministério Público, em decorrência de comprovação de privação de recursos, em conformidade com o disposto nas determinações do art. 32 do CPP.
Art. 32, §1º Considerar-se-á pobre a pessoa que não puder prover as despesas do processo, sem privar-se dos recursos indispensáveis ao próprio sustento ou da família.
§2º Será prova suficiente de pobreza o atestado da autoridade policial em cuja circunscrição residir o ofendido.
(BRASIL, 1941)
Assim, a legitimação da propositura de execução da ação ex delito, conforme o art. 68, do Código de Processo Penal, poderá ser transferida ao Ministério Público em caso de pobreza do ofendido (art. 32, §§ 1º 2 e 2º) para a propositura da ação civil decorrente do delito e para a execução da sentença penal condenatória transitada em julgado.
2.4 Da subordinação temática e eficácia preclusiva
Conforme mencionado anteriormente, o Brasil adota o modelo da independência relativa, de modo que nem todas as decisões proferidas em uma instância serão aproveitadas em outras. O legislador adotou os critérios da eficiência probatória e da extensão material do julgado para a determinação da subordinação temática.
Em consonância com art. 935 do Código Civil, uma vez comprovada no juízo criminal a existência do fato, bem como a sua autoria, tais questões não poderão ser mais discutidas na instância cível. Nesse caso, forma-se uma decisão com eficácia preclusiva subordinante, pois impede a reabertura da discussão em outro processo ou em outro juízo por ter como base a unidade de jurisdição.
No entanto, quando tratar dos demais casos, como sustenta Eugênio Pacelli de Oliveira (2010, p. 212), é perfeitamente possível a alegação, no cível, da concorrência de culpa no evento danoso, ainda que tal questão não tenha sido abordada no juízo criminal, ou, se abordada, não tenha se mostrado suficiente para afastar a responsabilidade penal.
Ainda baseando-se nos critérios da suficiência probatória e da extensão material do julgado, o Código de Processo Penal, no art. 65, prevê que há formação de coisa julgada na esfera cível quando a sentença penal reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular do direito. Trata-se de excludentes de tipicidade, de ilicitude e de culpabilidade previstos nos arts. 22, 23, 26 e 28 do CP, abarcando, para alguns doutrinadores, inclusive as putativas. (OLIVEIRA, 2010, p. 213).
Levando em consideração que para fins de absolvição, devem-se interpretar extensivamente as regras que constam no art. 65 do CPP, a Lei nº 11.690/08 incluiu entre as possibilidades de absolvição contidas no art. 386, VI, CPP, a fundada dúvida sobre a existência das aludidas excludentes, de modo a dar uma decisão certa baseada em uma incerteza.
No entanto, Eugênio Pacelli de Oliveira alerta:
Impõe-se registrar que, embora seja vedada a reabertura da discussão acerca da matéria então decidida (excludentes reais), a responsabilidade civil não será afastada quando houver expressa previsão legal neste sentido, ou seja, prevendo a recomposição do dano, mesmo nas hipóteses de legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular do direito. (OLIVEIRA, 2010, p. 214).
Desta forma, quando houver uma sentença absolutória penal em que esteja provada a inexistência do fato, não se poderá mais discutir tal questão no juízo cível, estando definitivamente afastada a responsabilidade civil, tudo em conformidade com o disposto no art. 66 do CPP.
Ou seja, a existência de sentença absolutória penal só servirá como impedimento à indenização civil se ocorrerem as hipóteses de o juiz penal declarar que está provada a inexistência do fato ou considerar que o réu não concorreu para a infração penal. Ou seja, nos casos em que houve a comprovação de que não houve o fato criminoso ou que o acusado não concorreu para o fato ilícito, não poderá a vítima propor ação civil ex delicto.
2.5 Das excludentes de ilicitude previstas no artigo 23 do Código Penal
Após expedição de sentença penal condenatória transitado em julgado surge uma pretensão indenizatória, a ser solicitada mediante ingresso de ação civil ex delicto, com a finalidade tácita de intermediar uma indenização pelo dano sofrido, justificada pelo dano sofrido em virtude de ilícito criminal.
Dessa forma, o ofendido está habilitado a executá-la na esfera civil, com a finalidade de reparação do equilíbrio moral ou patrimonial que é causado por um ou mais autores, quando a repercussão da infração penal também atingir a esfera da responsabilidade civil.
No entanto, apesar das várias disposições citadas ao longo do presente estudo, assegurando a reparação do dano, os Código Civil e Penal apresentam exceções a essa regra, as chamadas excludentes de ilicitude, que, em consequência de sua natureza não será possível exercer o direito da referida ação.
Assim, o art. 23 do Código Penal (BRASIL, 1940), sustenta que não haverá crime quando o agente pratica o fato em estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular do direito. Nesse sentido, o Código de Processo Penal estabelece que, a sentença penal condenatória transitada em julgado que reconhecer alguma excludente de ilicitude, também, trará coisa julgada no civil, de acordo com o art. 65 do CPP:
Art. 65. Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito” (BRASIL, 1941)
Dessa forma, é considerado transitado em julgado na esfera cível, a sentença penal que reconheça ter sido o ato praticado em estado de necessidade, ou seja, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito.
Vale ressaltar que, muito embora conste expressamente exposto que as excludentes fazem coisa julgada no civil, existem determinadas exceções legais que abrem espaço para discussões na esfera civil, fazendo-se necessário uma abordagem mais específica e individualizada acerca destas causas legais de excludentes prevista no art. 23 do CP, conforme constata Eugênio Pacelli de Oliveira:
Impõe-se registrar que, embora seja vedada a reabertura da discussão acerca da matéria então decidida (excludentes reais), a responsabilidade civil não será afastada quando houver expressado previsão legal neste sentido, ou seja, prevendo a recomposição do dano, mesmo nas hipóteses de legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular do direito. (OLIVEIRA, 2010, p. 214).
Tendo em vista esse cenário, há outro ponto a se destacar, no que se refere à legitima defesa, uma vez que o próprio legislador definiu o estado de necessidade, no art. 24 do Código Penal:
Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. (BRASIL, 1940)
Ademais, o instituto da legítima defesa encontra, ainda, previsão legal no art. 188 do Código Civil, Inciso II –“a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente”, ou seja, não é considerado ilícito o ato daquele em estado de necessidade, que ao encontrar em uma situação de perigo eminente, é obrigado a deteriorar ou destruir coisa alheia ou lesionar pessoa a fim de remover esse perigo.
O Código Civil, mais adiante, entretanto, traz as seguintes disposições:
Art. 929. Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188, não forem culpados do perigo, assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo que sofreram.
Art. 930. No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver a importância que tiver ressarcido ao lesado. (BRASIL, 2002)
Resumidamente falando, mesmo que o ato não seja considerado ilícito, o Código Civil ampara os bens do terceiro uma indenização correspondente aos prejuízos causados. Esclarecendo o assunto, Rogério Greco nos diz que:
Mesmo que a conduta do agente que atua em estado de necessidade não seja ilícita, porque seria uma incongruência o Código Penal considerá-la licita, enquanto para o Código Civil seria ilícita, se o terceiro que sofreu com a conduta do agente não tiver sido o causador da situação de perigo, permanecerá a obrigação de indenizar os prejuízos causados. Caso o perigo tenha sido criado por aquele que sofreu o dano, não lhe caberá, aqui, o direito de indenização. Embora o agente tenha a obrigação de indenizar aquele que sofreu o dano com a sua conduta, se a situação de perigo tiver sido provocada por culpa de terceiro, ser-lhe-á permitida ação regressiva contra este, para haver a importância que tiver sido ressarcida ao dono da coisa (GRECO, 2017, p. 443)
Destarte, a pessoa lesada ou o dono da coisa que tiver sofrido algum dano necessário ao afastamento do perigo e não forem culpados, terão eles o direito à indenização e assegura o direito de regresso do agente causador do dano contra o terceiro que tenha dado causa a esse estado de perigo a fim de reaver o que gastou ressarcindo o lesado ou o dono da coisa.
A legítima defesa, por sua vez, é definida de acordo com a situação atual ou iminente de injusta agressão em que o agente poderá ser atingido tanto para si como para um terceiro. E em razão disso o agente irá agir de forma a repulsar os atos do autor. Possui amparo legal no art. 188, do CC, inciso, “I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido.”, onde, aquele que atua em legítima defesa não pratica ato ilícito capaz de suportar a obrigação de indenizar.
Rogério Greco analisa da seguinte forma:
Aqui, temos em confronto um bem que se procura defender em face de uma injusta agressão contra ele praticada. Assim, prefere o ordenamento jurídico tutelar o bem injustamente agredido, e, se porventura o agressor vier a sofrer danos, não lhe caberá o direito de pedir indenização contra aquele que, defendendo licitamente seu bem ou interesse, fazendo cessar a injusta agressão que era levada a feito, com sua atitude causou danos no agressor. (GRECO, 2017, p. 427)
Entretanto, existe uma exceção da legitima defesa, onde será necessária a reparação civil. Trata-se de legitima defesa com erro de execução, conforme expõe o art. 73 do CP:
Art. 73 - Quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse praticado o crime contra aquela, atendendo-se ao disposto no § 3º do art. 20 deste Código. No caso de ser também atingida a pessoa que o agente pretendia ofender, aplica-se a regra do art. 70 deste Código. (BRASIL, 1940)
Assim, esta hipótese pode ocorrer quando um determinado agente almejando repelir a injusta agressão, agindo com animus defendendi, acaba por ferir outra pessoa que não o seu agressor, ou até mesmo os dois, agressor e terceiro. O resultado advindo da aberração no ataque, (aberratio ictus) seja, o ferimento ou a morte de terceiro e não seu agressor, este, estará amparado pela justificação da legitima defesa, assim, não podendo responder criminalmente. Contudo, em relação ao terceiro inocente, cabe responsabilidade civil do agente, conforme Assis Toledo afirma:
Não se aplica, pois, ao terceiro inocente a norma do art. 65 do Código de Processo Penal, já que, quanto a ele, a lesão, apesar da absolvição do agente, não pode ser considerada um ilícito civil. Trata-se, portanto, de uma hipótese em que a exclusão da responsabilidade penal não impede a afirmação da responsabilidade civil, restrita é claro ao terceiro inocente. (ASSIS, 1994, p. 199)
Portanto, uma vez evidente que tenha ocorrido o erro de execução em face ao terceiro inocente, surge a este, a pretensão indenizatória a fim de pleitear direito acometido pelo agente.
Por sua vez, o estrito cumprimento do dever legal não teve seu conteúdo expresso no Código Civil, somente no Código Penal: “Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”. Portanto, faz-se necessário, primeiramente, uma abordagem doutrinária conceituando-o.
Conforme preleciona Juarez Cirino dos Santos:
O estrito cumprimento de dever legal compreende os deveres de intervenção do funcionário na esfera privada para assegurar o cumprimento da lei ou de ordens de superiores da administração pública, que podem determinar a realização justificada de tipos legais, como a coação, privação de liberdade, violação de domicílio, lesão corporal etc. (JUARÉZ, 2000, p.187)
Trata-se, portanto, de instituto aplicado, mais comumente, por agentes públicos, uma vez que estes são encarregados de autonomia em nome do interesse público e, se necessário, podem restringir ou afetar direitos dos particulares e o motivo de não poderem ser responsabilizados é porque agirem no estrito cumprimento do dever legal, ou seja, não podendo ser responsabilizados civilmente.
Vale ressaltar ainda, a diferença entre o “estrito cumprimento” e o “dever legal”, o primeiro diz respeito que esse cumprimento não pode passar dos limites legais, por isso o uso da palavra “estrito”. Já o segundo remete à ideia de uma obrigação que advém de um ato normativo.
Finalmente, tem-se o estado regular de direito, que, assim como o estrito cumprimento do dever legal que, também, não foi objeto de conceituação pelo legislador. Nesse sentido, Paulo José da Costa Júnior leciona:
O conceito de direito, empregado pelo inciso III do art. 23, compreende todos os tipos de direito subjetivo, pertençam eles a este ou àquele ramo do ordenamento jurídico – de direito penal, de outro ramo do direito público ou privado- podendo ainda tratar-se de norma codificada ou consuetudinária. (COSTA JÚNIOR, 2011, p. 62)
Novamente, tal qual o estrito cumprimento do dever legal, o estado regular de direito, encontra sua base legal no Código Civil art. 188, diz que: “I - Os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido.” (BRASIL, 2002)
Assim, o exercício regular de um direito trata-se de um fato típico que tem sua ilicitude afastada pelo ordenamento jurídico, ou seja, a conduta é tipificada como crime, porém, por opção do legislador, passa a ser considerada como um direito de agir, perante uma permissão do ordenamento jurídico. Mas somente nesse âmbito, se por ventura, houver abuso desse direito e que não seja regular, caberão as devidas sanções por parte do agente que as cometeu, seja na esfera civil ou na penal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ação civil “ex delicto”, é a ação ajuizada na esfera cível, com a finalidade de pleitear a indenização por dano moral ou material reconhecido em infração penal, em obediência ao CPP, que estabelece ser um dos efeitos da condenação, a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime.
No entanto, via de regra, a violação da norma penal, além de acarretar a imposição de uma pena, enseja a responsabilização civil do criminoso, que deverá indenizar a vítima lesada.
No âmbito penal, com a violação da norma, surge para o Estado o “jus puniendi”, por meio do qual será aplicada a sanção ao infrator. Já no âmbito civil, a violação do bem ou interesse protegido ocasiona a obrigação de reparar o dano. Isso porque o ilícito penal (crime ou contravenção) não difere, em essência, do ilícito civil, ambos constituindo hipóteses de comportamentos contrários ao direito.
As consequências, entretanto, de cada modalidade de ilícito (civil ou penal) são diferentes. Enquanto do ilícito penal decorre a imposição de pena ao infrator, do ilícito civil, em regra, decorre a obrigação de indenizar o dano causado. Assim, verifica-se, nitidamente, e a correlação existente entre as esferas cível e criminal, porém com uma diferença: enquanto a ação civil objetiva a reparação do dano (moral ou material) decorrente da prática de um delito, a ação penal tem como finalidade precípua a punição do seu autor.
Justamente por esse motivo, nosso Código de Processo Penal adotou o sistema da independência das instâncias, pelo qual as duas ações podem ser propostas independentemente, uma no juízo cível, outra no juízo penal, haja vista que a ação cível cuida de questão de direito privado, de caráter patrimonial, enquanto a ação penal versa sobre a atuação do Estado, através do jus puniendi.
Assim, foi adotado no Brasil o Sistema da Independência Relativa, também chamado de Sistema da Interdependência, que estabelece a separação entre a jurisdição civil e a jurisdição penal, com prevalência desta última.
Não há necessidade, pois, de recorrer o ofendido à esfera cível de conhecimento para ver reparado seu dano oriundo do delito. Basta aguardar o trânsito em julgado da condenação criminal e promover, diretamente, a execução desse título no juízo cível. Havendo necessidade de liquidação do “quantum debeatur”, deverá essa providência anteceder a propositura da execução.
Ou seja, a sentença penal que transitar em julgado faz coisa julgada no cível, prevalecendo o fundamento de que não se pode haver decisões conflitantes sobre o mesmo objeto tutelado. A prevalência da decisão penal perante o civil é clara, uma vez que se intentada a ação penal, o juiz da ação civil poderá suspender o curso desta até o julgamento definitivo daquela.
A sentença penal condenatória transitada em julgado, servirá como título executivo para a proposição da ação ex delicto, sendo o ofendido, seu representante, herdeiros, a Defensoria Pública ou o Ministério Público (na falta daquele no Estado, e só em hipóteses em que o titular do direito à reparação do dano for pobre) legitimados a propor a ação. Esse título executivo, porém, é ilíquido, podendo o juiz penal, ao proferir uma sentença condenatória, fixar um valor mínimo de indenização, que servirá de base para que o juiz civil faça a liquidação definitiva.
Ocorrendo sentença penal absolutória em que não foi reconhecida a inexistência material do fato, ou que decidir que o fato imputado não constitui crime; e decisão que julgar extinta a punibilidade, é possível a propositura da ação civil. Entretanto, ocorrendo alguma excludente de ilicitude, a sentença penal que reconhecer uma dessas hipóteses fará coisa julgada no cível.
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Bacharel em Direito pela ULBRA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FELIZARDO, Adriana de Lima. Reparação do dano mediante ação civil ex delicto: aplicabilidade e execução no direito civil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 out 2021, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57280/reparao-do-dano-mediante-ao-civil-ex-delicto-aplicabilidade-e-execuo-no-direito-civil. Acesso em: 23 dez 2024.
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