RESUMO: Este texto apresenta os resultados do trabalho de conclusão de curso realizado na graduação, na área do direito. Trata-se de pesquisa com aportes bibliográficos desenvolvida com objetivo de analisar por meio do código Civil Brasileiro as limitações da liberdade do indivíduo em virtude do uso do seu próprio corpo, apresentou como objetivos mais específicos: verificar quais são os limites da disposição do próprio corpo de acordo com o Código Civil brasileiro; demonstrar de acordo com a lei quais os parâmetros e limites que caracterizam a legalidade ou nulidade à integridade física e ao próprio corpo e, ponderar acerca das motivações que determinam e delimitam uso correto do corpo humano segundo a lei e a sociedade, bem como o embate com os direitos da personalidade no que diz respeito à integridade do corpo. Ademais visando atender os objetivos propostos adotou-se como estratégia para coleta de informações a documentação indireta – com observação sistemática, abrangendo pesquisa bibliográfica de fontes primárias e secundárias, além de documentação oficial. A análise dos referenciais teóricos acerca do tema proposto, apontam empasse no ordenamento, o que acarreta certa confusão entre se realmente existe total liberdade para com o nosso corpo, ou estamos sendo restringidos pela legislação.
PALAVRAS-CHAVE: Limite da legislação. Liberdade do indivíduo. Direito ao corpo. Direito da personalidade. Corpo humano.
ABSTRACT: This text presents the results of the end-of-course work done during the undergraduate course, in the law area. It is a qualitative research with bibliographical contributions and developed with the main objective of analyzing through the Brazilian Civil Code the individual freedom limitations by virtue of their own body usage: To verify which are the disposition limits of one's own body according to the Brazilian Civil Code; to demonstrate according to the law which are the parameters and limits that characterize the legality or nullity to physical integrity and to one's own body and to ponder about the motivations that determine and limit the correct use of the human body according to the law and society, as well as the clash with the rights of personality regarding the integrity of the body. Furthermore, in order to meet the proposed objectives, the strategy adopted to the collection of information was indirect documentation - with systematic observation, including bibliographic research of primary and secondary sources (doctrines in general, scientific articles, master's dissertations, and doctoral theses), as well as official documentation (legislative proposal, messages, laws, decrees, precedents, rulings and decisions). The theoretical references analysis about the proposed theme point to a lack of order, which leads to some confusion as to whether there really is total freedom with our bodies, or whether we are being restricted by legislation.
KEYWORDS: Legislation limit. Individual freedom. Right to own body. Right to own personality. Human body.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. O CORPO HUMANO NO AMBITO JURIDICO; 1.1 DEFINIÇÃO DO CORPO HUMANO; 1.2 O CORPO COMO UM DIREITO DA PERSONALIDADE; 1.3 O DIREITO À INTEGRIDADE FÍSICA; 2. OS BONS COSTUMES; 2.1 A CLÁUSULA DOS BONS COSTUMES; 2.2 A ACEITAÇÃO DOS BONS COSTUMES; 3. A DISPONIBILIDADE LIMITADA DO CORPO HUMANO. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
A liberdade do indivíduo pode ser considerada como um direito e como um bem. Nesse sentido, podemos partir do pressuposto de que o ser humano é livre para agir e para utilizar o seu corpo da maneira que desejar, contudo, na prática não é dessa maneira que acontece, principalmente no que diz respeito aos direitos e deveres que nos são impostos socialmente.
Desse modo, torna-se válido uma averiguação da prática jurídica no que diz respeito às relações de liberdade que o indivíduo possui quanto ao uso do seu próprio corpo em virtude das suas vontades. É possível questionarmos se há a possibilidade em se ter total direito sobre o corpo mediante a lei e a sociedade, sendo assim, o uso do corpo conforme a vontade do indivíduo pode ser entendida como prejudicial aos bons costumes pré-fixados e já estabelecidos.
As discussões sobre os limites do corpo no Código Civil brasileiro podem ajudar a validar as práticas pessoais, médicas e sociais relacionadas as ações quanto ao uso do corpo. Nesse caso, torna-se válido abordar novas práticas e interpretações que possam assegurar ao indivíduo a liberdade de ação em relação ao uso do seu próprio corpo na sociedade.
Observa-se que as modificações corporais são situações muito comuns e aparentes na sociedade, entretanto, é sabido que o ser humano não tem total direito sobre o que fazer com o seu próprio corpo. Os limites relacionados a liberdade do corpo são sempre impostos e resguardados pela legislação brasileira. Ao se analisar o Código Civil Brasileiro é possível a verificação das limitações impostas ao sujeito que estão relacionadas à disposição do uso do seu próprio corpo. Conforme o artigo 13º do CC: “Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes”, ou seja, a intervenção relacionada à integridade física de caráter voluntário passa a ser considerada uma atividade proibida, por não se tratar de uma exigência médica, ocasionando assim uma discussão sobre até onde este artigo conflita com os direitos da personalidade que garantidos pela Constituição Federal.
Nesse sentido, a realização desta pesquisa justificou-se por enfatizar o embate gerado entre uma questão de garantia constitucional e sobre as restrições impostas pelo Código Civil, portanto, se faz necessária a análise sobre as limitações que o sujeito pode encontrar na lei que possam restringir o uso da liberdade para dispor do próprio corpo. Com intuito de elucidar o problema de pesquisa proposto elaborou-se como objetivo geral: “analisar por meio do código Civil Brasileiro as limitações da liberdade do indivíduo em virtude do uso do seu próprio corpo”. Como objetivos mais específicos: 1) verificar quais são os limites da disposição do próprio corpo segundo o Código Civil; 2) demonstrar de acordo com a lei quais são os parâmetros e limites que caracterizam a legalidade ou nulidade à integridade física e ao próprio corpo; 3) Ponderar acerca das motivações que determinam e delimitam o uso correto do corpo humano segundo a lei e a sociedade, bem como o embate com os direitos da personalidade no que diz respeito à integridade do corpo.
1. O CORPO HUMANO NO ÂMBITO JURÍDICO
O ser humano possui inúmeras formas de imprimir sua personalidade, tanto em âmbito pessoal quanto coletivo. Visando possibilitar o adequado tratamento da matéria, bem como conceder melhor contorno jurídico ao cidadão, costumeiramente submetem-se os direitos da personalidade a diversos tipos de classificação, mais precisamente às que abordam de forma segmentada as questões relativas à parte física, bem como à parte espiritual ou moral de cada um (TREVISAN, 2015).
O direito ao próprio corpo, caracterizado como o direito à integridade física e à sua disposição, em todo ou em parte, em vida ou após a morte, pode ser considerado como um direito dual, na medida em que sua natureza jurídica se encontra na intercessão da categoria dos direitos da personalidade. O direito ao próprio corpo implica ainda que o corpo seja visto como propriedade do indivíduo, como afirmavam os teóricos clássicos como John Locke e Hegel, e não como propriedade de uma estrutura de poder repressiva, ou de uma moral conservadora que impõe seus dogmas através das leis (QUINTERO, 2017).
A temática a qual norteou todo o processo de realização desta pesquisa exigiu uma definição clara do que seria o Corpo Humano no âmbito filosófico e jurídico, ou melhor, o que seria o direito do próprio corpo. De acordo com Zarias (2019), entre a condenação de Tiradentes e a proposta legislativa de Francisco Silva, somos confrontados com soluções paradoxais. Na primeira, observa-se que a pena de morte e a danação do corpo são consideradas como uma condenação da pessoa para além de sua existência física, enquanto na segunda situação, a pessoa, em sua existência carnal, é condenada pela retirada de uma parte de seu corpo enquanto viva. A distância histórica que separa um caso do outro exemplifica o caráter mutável e fluido do estatuto legal do corpo, o qual encontra uma de suas principais fronteiras quando confrontando com a noção de pessoa.
Em um ponto de vista filosófico, o ser humano foi definido pelo filósofo Platão, como uma “cisão entre dois mundos: o inteligível da alma e o sensível do corpo”, referindo-se a forma intelectual e a ao físico de cada um, classificando como uma união de fatores para a configuração corpórea, levando em conta fatores como alma e a capacidade de pensamento e liberdade do homem. Para Foucault (1999, p. 163), “em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhes impõem limitações, proibições ou obrigações”. Ademais a ideia de um poder social agindo sobre o corpo complementa o pensamento sobre quais são os limites da liberdade do indivíduo em relação ao seu próprio corpo, uma vez que “o corpo está diretamente mergulhado num campo político” (FOUCAULT, 1999, p. 29).
O Direito define o corpo humano como uma forma física para se caracterizar a existência na sua forma material, ou seja, a sua estrutura física, como: pele, órgãos, tecidos entre outras partes, sendo considerado um bem da personalidade, para assim, como foi dito, caracterizar a existência do ser, o conjunto para se ter direitos e deveres com a legislação. (GALLO, 2006).
Assim sendo, o corpo humano apresenta-se como um símbolo da relação dos seres humanos com os diversos tipos de ambientes, seja, social, cultural e físico legitimando-se em um conjunto de representações tanto no contexto individual quanto coletivo.
1.2. O Corpo como um Direito da Personalidade
Segundo Adriano Godinho (2014), os direitos da personalidade são decorrentes da personalidade do indivíduo alinhado à dignidade humana que por sua vez compreendem aspectos físicos e psíquicos, esses abarcam também a integridade corporal, intelectual e moral das pessoas incluindo entre eles os direitos à vida, à saúde, à integridade física e psíquica, à liberdade, à privacidade, à imagem, à honra e ao nome, entre outros atributos (GODINHO, 2016). Nesse sentido, podemos verificar que os direitos de personalidade estão atrelados às expressões jurídicas particulares à própria pessoa humana, uma vez que integram de forma intrínseca a essencialidade do indivíduo.
Para o autor supracitado, os direitos da personalidade tanto derivam quanto conferem à personalidade significado, ou seja, trata-se de direitos elementares que uma vez ausentes reduziriam a personalidade humana a um simples rótulo. Nesse caso, ao ser desprovida de direitos, a pessoa natural se tornaria uma espécie de centro de imputação de direitos e deveres, sendo assim somente um mero partícipe nas relações jurídicas (GODINHO, 2014).
Silva (2014), em seu estudo aponta sérios problemas relacionados ao reconhecimento de um direito ao próprio corpo como um direito de personalidade e critica os atuais modelos teóricos relativos à estrutura de tal direito, com o intuito de propor um novo modelo, baseado no paradoxo da soberania, segundo o qual a autonomia do sujeito deve ser preservada ao máximo no processo de construção da identidade pessoal. Ademais, embora não se trate de exemplos pátrios, o autor apresenta o caso das chamadas “ugly laws” em cidades dos Estados Unidos, como Chicago que retrata bem essa problemática, na qual dispunha no Municipal Code, Section 36.034, revogado apenas em 1974, que:
Nenhuma pessoa que seja doente, mutilada ou de alguma maneira deformada a ponto de ser feia, objeto de repulsa ou pessoa imprópria, será admitida em ou sobre vias públicas ou outros lugares públicos nesta cidade, ou poderá expor a si mesma à exibição pública naqueles ou nestes lugares, sob a pena de não menos que um dólar e não mais que cinquenta dólares por cada ofensa.
O Direito da Personalidade se define como um conjunto de direitos absolutos, extrapatrimoniais, intransmissíveis, imprescritíveis, indisponíveis, vitalícios, gerais e necessários, dentre outras características que configuram esse conjunto de garantias. Todos estes aspectos garantem ao ser humano a liberdade de controlar e dominar suas vontades e seus pensamentos das mais diversas formas, sem ter de ser controlados por terceiros, sendo este o titular da sua capacidade jurídica, com uma total assistência do Estado, mas é claro, seguindo com seus deveres de cidadão conforme a legislação (FIGUEIREDO e GIANCOLI, 2010, p. 48). Além disso, De Cupis (1956, p77.) pontua que,
O ser humano é o sujeito principal e destinatário de todas as relações jurídicas [enquanto sujeito em si dessas relações]. Por essa razão, o ser humano é sempre titular da capacidade jurídica [art. 1° do Código Civil], que é a qualificação virtual e potencial do agir juridicamente. A personalidade jurídica é — em outras palavras — a veste formal da substância humana (DE CUPIS, 1956, página 77).
Segundo Grigio (2014) o corpo humano pode ser considerado uma das principais fontes do direito da personalidade, sendo o alvo em sua maior parte dos direitos no qual temos, podendo fazer quaisquer que sejam mudanças ou modificações próprias, como é perceptível na sociedade atual, como tatuagens, piercings, incisões e outros meios de expressar o direito de cada um, entretanto, ao se verificar o Código Civil Brasileiro de 2002, é perceptível uma ambiguidade quanto a vontade do sujeito e o que se é permitido à ele.
A ambiguidade à qual o autor supracitado se refere trata-se justamente da parte “e o que se é permitido a ele”, contudo, para que o sujeito exerça a vontade soberana sobre o seu corpo estabelecida em lei, tal exercício de ser livre, isto é, não pode estar submetida à vontade do outro ou limitada por esta mesma lei, cabendo unicamente ao indivíduo a livre definição dos limites e possibilidades em relação ao seu próprio corpo.
1.3. O Direito à Integridade Física
No ordenamento jurídico brasileiro temos os direitos da personalidade como foram apresentados anteriormente, dentre esses direitos correlato ao direito à vida, é conhecido o direito à integridade física, sendo este de fato o direito tutelado a higidez do ser humano em seu sentido amplo, mantendo a incolumidade corpórea e intelectual. (PAMPOLHA e STOLZE, 2007, p. 155).
Segundo Pampolha e Stolze (2007, p. 157), dentro do direito à integridade física é possível encontrar em sua amplitude, o direito ao corpo humano e às suas devidas partes integrantes, podendo ser este o corpo vivo ou ao cadáver. O corpo vivo é considerado um objeto jurídico inalienável, seja em vida ou em morte, neste sentido relacionado ao próprio corpo o Código Civil Brasileiro de 2002 em seu art. 13, definiu que:
Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.
Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.
A partir lei supracitada, observa-se um empasse no ordenamento, o que acarreta certa confusão entre se realmente existe total liberdade para com o nosso corpo, ou estamos sendo restringidos pela legislação, pois o mesmo afirma que temos que seguir os “bons costumes”, levantando assim questionamentos sobre até onde vai a liberdade para se fazer o que quiser com o próprio corpo e o que seriam estes bons costumes presentes na pesquisa.
2 OS BONS COSTUMES
Moura (2018), apresenta a perspectiva de que a lei, por excelência, é a fonte primária do Direito, mas o Direito também nasce comumente dos costumes cristalizados na sociedade civil, trata-se das práticas e usos comuns continuadas do povo. Ademais, os costumes simbolizam consenso, um contrato social implícito entre as pessoas, enraizado por meio de uma utilização prolongada e contínua, análogo às teorias contratualistas do século XVIII.
2.1 A Cláusula dos Bons Costumes
Segundo Castro (2017), os bons costumes são definidos como a “cláusula geral que impõe limites externos à autonomia existencial por meio de seu tríplice função interpretativa, geradora de deveres e limitadora de direitos –, determinando padrões de conduta sempre que os atos de autonomia implicarem consequências jurídicas relevantes (efeitos diretos e imediatos) para duas ou mais esferas jurídicas”.
No que se refere a cláusula de bons costumes em relação à autonomia corporal é possível identificar com mais veemência o dever de não mercantilização, que se destaca mediante a proibição de qualquer vantagem patrimonial vinculada ao ato de disposição do sujeito em relação ao próprio corpo. A autora reflete sobre a necessidade de se observar a não instrumentalização do corpo, uma vez que o indivíduo não deva ser transformado em um meio para satisfazer interesses de outrem.
Para Castro (2017, página 117),
No âmbito da autonomia corporal, ganha destaque o dever de não mercantilização, pelo qual não se permite, pela incidência dos bons costumes no art. 13 do Código Civil, que o corpo ou suas partes sejam comercializados. Trata-se de medida que respeita a dignidade das pessoas em situação de vulnerabilidade concreta, que sacrificariam o próprio corpo em troca de vantagem patrimonial, assim como visa a coibir que haja outra forma de acesso a órgãos humanos que não seja por meio da solidariedade sem objetivo patrimonial, já que tal possibilidade feriria a dignidade de inúmeros pacientes que não poderiam ter acesso a transplantes de forma remunerada e geraria um sistema inadmissível de exclusão do acesso à saúde (CASTRO, 2017, página 117).
Paszczuk (2011), retrata em seu trabalho o processo de transplante como verdadeira possibilidade de salvar vidas, ou até mesmo, por intermédio deste procedimento melhorar a dignidade de vida, de pessoas que estão vivendo de forma indigna por deficiência de algum órgão ou tecido. Evidenciou ainda, o instituto dos direitos da personalidade, em especial o direito à integridade física por tratar o transplante de órgãos e tecidos de uma operação cirúrgica realizada no corpo humano, forma prevista e possibilitada pelo Código Civil Brasileiro, que deve ser tratada por lei especial, Lei nº. 9.434 de 1997, a qual traz diretrizes para o procedimento do transplante.
Neste sentido, o pensamento de Paszczuk (2011) vai ao encontro do que defende Castro (2017), uma vez, que ambos concordam que a integridade física deve ser amplamente defendida e, o caráter de doação de órgãos de ser gratuito é mais uma forma de defesa à integridade física, pois proíbe uma pessoa que se encontra em dificuldades financeiras de dispor de partes de seu corpo, um dos bens mais preciosos da vida. O transplante de órgãos só poderá ser feito se analisados os preceitos legais, sempre em busca de uma melhor condição, não se pode degradar a integridade física do ser humano.
Zarias (2019), em seu trabalho faz ponderações acerca da investigação da ordem pública do corpo por meio de projetos de lei apresentados na Câmara e Senado Federal. Ressalta ainda, as inúmeras propostas acerca da doação de sangue e, transplante de órgãos, de forma genérica, ou específica, quando trata de córneas, rins, fígado, pulmões e outros, assim como da utilização de próteses, da pesquisa com embriões e células-tronco, da reprodução assistida, do aborto ou da interrupção voluntária da gravidez, da eutanásia, da regularização dos enterramentos e cremação de cadáveres, entre outras situações.
O autor supracitado esclarece diferenças entre doação voluntária e compulsória ao discorrer acerca do processo histórico legislativo da doação e transplante de órgãos. Conforme o referido autor remonta, na Câmara dos Deputados, à proposição do deputado federal Adylio Martins Viana, do Partido Trabalhista (PTB/RS), em 22 de agosto de 1958, quando apresentou o Projeto de Lei 4542/1958, que dispunha sobre a “extirpação de órgãos ou tecidos de pessoa falecida”. Tal proposta tornou-se a Lei 4280/1963, cujo art. 1º estabelecia:
É permitida a extirpação de partes de cadáver, para fins de transplante, desde que o de cujus tenha deixado autorização escrita ou que não haja oposição por parte do cônjuge ou dos parentes até o segundo grau, ou de corporações religiosas ou
civis responsáveis pelo destino dos despojos (ZARIAS, 2019, página, 147).
Paszczuk (2011), contribui com o debate ao evidenciar a relevância da temática em questão, uma vez que visa o estudo e alterações no corpo humano e na vida do ser humano que será receptor e, no caso específico do transplante busca uma vida mais digna. O referido autor aborda ainda que o estudo da vida humana e do corpo integrado ao procedimento de transplante de órgãos contribui principalmente para o direito à integridade física, a qual não pode ser diminuída além das formas previstas no art. 13 do Código Civil Brasileiro. Paszczuk (2011) afirma:
Os transplantes deverão ser feitos em estabelecimento previamente autorizado pelo Sistema Único de Saúde. Outro aspecto importante que traz a lei é a garantia da isonomia dos que necessitam de órgãos, no sentido da lista única de cadastro por Estado da federação de pessoa necessitada de um transplante (PASZCZUK, 2011, página 449).
Ao discutir acerca do debate em torno dos limites e propriedades do corpo Quintero (2017), polemiza acerca do aluguel do útero, a interrupção da gravidez, a eutanásia ou o suicídio, a amputação voluntária de membros, a castração e a troca de órgãos genitais, a venda e doação de órgãos, de acordo com a autora, são algumas das formas que põe no centro da questão da propriedade do corpo, tal como os seus limites.
Os avanços científico-tecnológicos têm levado ao limite as capacidades do intercâmbio corporal. A possibilidade de vender órgãos sem por isso sacrificar a vida de quem os possui, os novos modelos de concepção alugando ventres o intercambiando células reprodutoras, o uso de material genético ou materiais corporais, o transplante de órgãos, etc., tem colocado o corpo em uma nova cena jurídica (QUINTERO, 2017).
O debate mostra-se amplo e complexo, pois quem está na fila de espera para o procedimento de transplante de órgão anseia por uma solução urgente, contudo nem sempre seus anseios acontecem de forma satisfatória. De acordo com Zarias (2019),
Segundo o Registro Brasileiro de Transplantes (ABTO, 2018), o número de transplantes realizados está aquém da necessidade, verificando-se uma lenta evolução de doadores efetivos no país, entre os anos de 2011 e 2018, ainda insuficiente para atender a demanda. Esse déficit serve de mote para a proposição de leis que promovem a doação de órgãos, por meio do registro de potenciais doadores, regulação de procedimentos médicos, financiamento da saúde etc. Mas também origina propostas que ultrapassam os limites constitucionais, impondo uma ruptura entre as noções de pessoa e corpo, tal como vimos no início desse artigo com o Projeto de Lei do deputado federal Francisco Silva acerca da “doação compulsória de órgãos”, expressão que contém em si um contrassenso: legalmente, ato de doar é voluntário e livre de qualquer obrigação (ZARIAS, 2019, página, 148. ).
Embora o Brasil seja uma referência em transplante de órgãos a situação ainda requer muita atenção, haja vista que o país ocupa a posição de um dos países com o maior número de indivíduos aguardando na fila de espera pelo transplante de órgãos.
2.2 A aceitação dos bons costumes
Segundo Vieira (2015, p. 68 – 70), a disponibilidade total do corpo é considerada um ato inaceitável e impossível, visto que não há condições de o ser humano se desfazer de alguma parte de seu corpo sem acabar com a própria vida, sendo este o motivo pelo qual o ordenamento jurídico dizer que se trata de uma disponibilidade limitada ao ato, não podendo ocorrer um atentado contra o bem superior, a vida, e nem uma controversa aos bons costumes ou aos princípios da ordem pública e boa-fé.
Deste modo, Godinho (2014, p. 234), diz que os bons costumes valem como um padrão de comportamento consciencioso, aceito e confiável, que correspondem a moral determinada como limites à autonomia privada, em sede de direitos da personalidade.
Ressalta-se então, conforme já apontado neste texto que os costumes, além de práticas cristalizadas e continuadas por determinado povo simbolizam consenso, um contrato social implícito entre as pessoas, enraizado por meio de uma utilização prolongada e contínua, análogo às teorias contratualistas do século XVIII.
3 A DISPONIBILIDADE LIMITADA DO CORPO HUMANO
Ao explorar alguns aspectos concernentes à autonomia da vontade da pessoa em relação à disposição do próprio corpo sob a ótica dos direitos fundamentais, Gozzo e Moinhos (2012), afirmam que a atuação e avanço científico sobre o corpo humano aliados à autonomia da vontade da pessoa, pode trazer sérias consequências causadoras de um descontrole social da biotecnologia, motivo pelo qual as áreas do conhecimento da Medicina e Direito devem estar juntas na defesa de seus respectivos interesses.
Neste sentido, ao se referir a autonomia privada em relação ao direito ao corpo, é certo falar no termo disponibilidade limitada, prevista no art. 11 do Código Civil, com cada indivíduo tendo em princípio, o poder de autodeterminar em relação ao seu corpo. Porém, este poder de atuação sobre o próprio corpo se torna limitado, sendo considerado ilícito o seu exercício quando contrariar os bons costumes. A atuação sobre o próprio corpo e a modelação deste, constitui abuso de direito da personalidade quando o titular, em sua atuação, exceder os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, valores que extrinsecamente limitam a própria existência e validade do direito geral de personalidade (VIEIRA, 2015, p. 68).
Segundo Bafundi (2000, p.158), o limite intrínseco da liberdade de disposição do próprio corpo se encontra na “exigência de tutelar os componentes essenciais da personalidade”, sendo assim as lesões e modificações que são expressas no art. 13 do CC, acarretariam uma ofensa ao princípio da dignidade humana, sendo contrário a real função da liberdade, que seria o fato de expressar a personalidade.
Desta forma, evidencia-se que a disposição do corpo é limitada tanto pelas legislações civil e constitucional quanto pelos bons costumes, e demais leis que complementam o ordenamento jurídico pátrio.
CONCLUSÃO
Ao se buscar analisar e fazer ponderações acerca da limite da legislação, bem como da liberdade do indivíduo e o direito sobre o seu próprio corpo do indivíduo e o direito sobre o seu próprio corpo deparou-se com realidades distintas e particulares que configuram em certos aspectos certa ambiguidade na interpretação.
Ao se responder o primeiro objetivo específico que consistiu em verificar os limites da disposição do próprio corpo de acordo com o Código Civil Brasileiro, o estudo evidenciou que embora sejam comumente observadas modificações corporais, tornando-se situações aparentemente comuns na sociedade, entretanto, é sabido o ser humano não tem total direito sobre o que fazer com o seu próprio corpo. Os limites relacionados a liberdade do corpo são sempre impostos e resguardados pela legislação brasileira. A análise do Código Civil Brasileiro possibilitou a verificação das limitações impostas ao sujeito e que tais limitações estão encontram-se diretamente relacionadas à disposição do uso do seu próprio corpo.
Quanto ao objetivo de demonstrar de acordo com a lei os parâmetros e limites que caracterizam a legalidade ou nulidade à integridade física e ao próprio corpo, o estudo apontou que o direito ao próprio corpo, caracterizado como o direito à integridade física e à sua disposição, em todo ou em parte, em vida ou após a morte, pode ser considerado como um direito dual, na medida em que sua natureza jurídica se encontra na intercessão da categoria dos direitos da personalidade.
Desta feita, as ponderações acerca das motivações que determinam e delimitam o uso correto do corpo humano segundo a lei e a sociedade, bem como o embate com os direitos da personalidade no que diz respeito à integridade do corpo mostra-se amplo e complexo, principalmente, quando se coloca em pauta a questão do transplante de órgãos, pois quem está na fila de espera para realização de tal procedimento anseia por uma solução urgente, contudo sabe-se que nem sempre seus anseios acontecem de forma satisfatória.
Aponta-se que a discussão acerca da relação entre os limites e possibilidades da legislação da liberdade do indivíduo, à luz da análise do Código Civil Brasileiro bem como o direito sobre o seu próprio corpo suscitam várias outras reflexões e, consequentemente fomentam mais subsídios para o debate.
O presente estudo evidenciou o empasse no ordenamento, o que acarreta certa confusão se realmente existe total liberdade para com o nosso corpo, ou estamos sendo restringidos pela legislação, pois o mesmo afirma que temos que seguir os “bons costumes”, levantando assim questionamentos sobre até onde vai a liberdade para se fazer o que quiser com o próprio corpo e o que seriam estes bons costumes.
Portanto, elucida-se que, por se tratar de uma temática ampla e complexa, os questionamentos originados não se encerram aqui. Contudo, espera-se que os resultados desta pesquisa possam servir de parâmetro e motivação para que novos achados possam vir a contribuir para a construção e produção de conhecimento acerca da abordagem dos limites da legislação brasileira acerca da liberdade do indivíduo e o direito sobre o seu próprio corpo.
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ZARIAS, Alexandre. A ordem pública do corpo humano e suas fronteiras legislativas no Brasil. Sociologias, Porto Alegre, ano 21, n. 52, set-dez 2019, p. 132-161. Disponível em: https://www.scielo.br/j/soc/a/jnwLfCKqQXs6VgjPjBcFfjf/abstract/?lang=pt. Acessado em 15 de outubro de 2021.
bacharelando em Direito pelo Centro Universitário Fametro – CEUNI FAMETRO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PINTO, Victor Hugo Xavier. Limite da legislação acerca da liberdade do indivíduo e o direito sobre o seu próprio corpo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 nov 2021, 05:49. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57655/limite-da-legislao-acerca-da-liberdade-do-indivduo-e-o-direito-sobre-o-seu-prprio-corpo. Acesso em: 23 dez 2024.
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