JOSÉ ALVES MACIEL[1]
(orientador)
RESUMO: A Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, inseriu o artigo 28-A ao Código de Processo Penal, autorizando ao autor de infração penal, cuja pena não ultrapasse quatro anos, em crimes sem violência ou grave ameaça, havendo confissão formal, ser beneficiado com a celebração de um acordo de não persecução penal, fundado em condições previstas em lei, fixadas segundo o caso em concreto. Com a inserção do dispositivo de lei, o instituto jurídico passou a ser requerido também por acusados cuja prática delitiva fora anterior à lei, mas com processo penal em andamento, com base no princípio de retroatividade da lei penal mais benéfica. Portanto, o objetivo geral desta pesquisa é apresentar a possibilidade jurídica de realização de acordo de não persecução penal e a sua relação com o princípio da retroatividade. O método de elaboração escolhido foi o dedutivo, a medida que expõe a novidade legislativa aplicável aos casos processados após sua entrada em vigor e mais adiante apresenta a possibilidade de aplicação retroativa. A pesquisa bibliográfica desenvolvida, fundada em revisão de literatura, tem como método de análise o de pesquisa qualitativa, com resultados expostos através na transcrição de trechos.
Palavras-chave: Acordo. Não persecução penal. Retroatividade. Aplicação. Processo Penal.
ABSTRACT: Law No. 13,964, of December 24, 2019, inserted article 28-A into the Code of Criminal Procedure, authorizing the perpetrator of a criminal offense, whose sentence does not exceed four years, in crimes without violence or serious threat, with formal confession, be benefited from the signing of a non-criminal prosecution agreement, based on conditions provided for by law, established according to the specific case. With the insertion of the law provision, the legal institute was also required by defendants whose criminal practice was prior to the law, but with criminal proceedings in progress, based on the principle of retroactivity of the most beneficial criminal law. Therefore, the general objective of this research is to present the legal possibility of carrying out a non-criminal prosecution agreement and its relationship with the principle of retroactivity. The chosen method of elaboration was the deductive one, as it exposes the legislative novelty applicable to cases processed after its entry into force and later presents the possibility of retroactive application. The bibliographic research developed, based on a literature review, has as its method of analysis the qualitative research, with results exposed through the transcription of excerpts.
Keywords: Agreement. No criminal prosecution. Retroactivity. Application. Criminal proceedings.
INTRODUÇÃO
Encontra-se em evolução no ordenamento jurídico brasileiro o aprimoramento da chamada justiça negocial, marcada pela atuação conjunta das partes em prol do alcance de uma satisfativa prestação jurisdicional. No processo penal a hipótese também é admitida.
A possibilidade jurídica de celebração de um acordo de não persecução penal entre um sujeito acusado de delito e o Estado, representado pelo Ministério Público, consiste em mais uma das medidas processuais compreendidas pela chamada justiça penal negociada.
A exemplo do que já se permitia com a concessão da suspensão condicional dos processos e a transação penal em delitos de menor potencial ofensivo, o acordo de não persecução penal foi implementado no ordenamento jurídico brasileiro através da edição da Lei nº. 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que inseriu ao Código de Processo Penal o artigo 28-A.
O acordo mencionado está autorizado nos casos em que o arquivamento não se aplica, contudo com confissão da prática delitiva por crime com pena mínima inferior a quatro anos, sem violência e grave ameaça. Nessas circunstâncias, aliadas a outros requisitos legais, denominadas condições cumulativas ou alternativas, pode haver a celebração de um acordo entre o acusado e o representante estatal.
Ocorre que, com a autorização de realização de acordos de não persecução penal, advieram análises e questionamentos doutrinários e jurisprudenciais sobre a sua aplicabilidade, de modo que passou a se discutir sobre a sua aplicação àqueles acusados que praticaram crimes anteriores a sua vigência, com o respectivo processo em andamento, e com o atendimento dos seus requisitos legais.
Cumpre ressaltar, que o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica tem sua aplicabilidade no direito penal nacional e a sua não aplicabilidade para o direito processual penal (Art. 2º, CPP) a qual se aplica o princípio tempus regit actum. Dessa forma, essa pesquisa científica aborda a relação existente entre o mencionado princípio retroativo e a celebração de acordo de não persecução penal de acordo com previsão legal e entendimentos doutrinários e jurisprudenciais frente apresentar-se como uma norma processual material ou mista.
MATERIAL E MÉTODOS
Realizada no município de Gurupi, Estado do Tocantins e apresentada à Universidade de Gurupi – UnirG, a pesquisa se classifica como Bibliográfica, já que o tema selecionado está previsto na legislação e nas doutrinas e entendimentos jurisprudenciais nacionais, principalmente porque analisa a incidência de um fundamento processual como autorizador da retroatividade de uma lei em favor do acusado.
Quanto aos objetivos, a pesquisa é exploratória, posto que apresenta as principais disposições referentes ao assunto abordado e a metodologia utilizada para a análise dos dados e informações coletados consiste na utilização de técnicas de análise qualitativa do texto, quais sejam: análise de conteúdo, análise do discurso e confrontamento de informações coletadas.
1 A JUSTIÇA NEGOCIAL NO DIREITO BRASILEIRO
O ordenamento jurídico brasileiro tem sofrido importantes modificações no tocante a negociação entre as partes, instrumento este que tem sido incentivado nas mais variadas esferas do Judiciário em busca de maior efetividade na prestação jurisdicional.
No decorrer do desenvolvimento histórico do direito e da evolução temporal da justiça, sempre houve distanciamento entre povo e poder judiciário, e este, por sua vez, apresentava certo abastamento com relação aos outros poderes constitucionais. No entanto, diante das exponenciais necessidades jurídicas da população, bem como da maior interação entre povo e direito por meio da globalização, fez-se necessário buscar maneiras de aproximar o cidadão do ordenamento jurídico, facilitar o acesso ao judiciário e cumprir efetivamente o que os princípios constitucionais, norteadores do direito contemporâneo, pregam para seu exercício justo na sociedade (CARAVELO, 2018, p.1).
A consequência desse movimento consiste na desburocratização do acesso à justiça em busca da solução consensual dos conflitos através das varias formas de negociação (CARAVELO, 2018).
Na esfera criminal o debate também se instaurou.
O aumento significativo de processos penais e especialmente do número de aprisionamentos tornou cada vez mais urgente a necessidade de discutir o processo penal brasileiro. Os motivos de questionamentos se relacionam ao fato de que muitos crimes com pouco potencial ofensivo têm como autores pessoas com pouca ou nenhuma história criminal.
Para evitar o encarceramento desses indivíduos, “a justiça negocial criminal é um instrumento de política criminal para evitar o encarceramento de quem comete uma infração de menor expressão, admite o erro e pretende não mais delinquir” (AZEVEDO, 2020, p.1).
Em síntese, “na aplicação do direito penal, principalmente, busca-se difundir a ideia de que a restrição de liberdade como sanção punitiva não é a única forma de garantir a convivência harmônica na sociedade, a ressocialização do indivíduo e a intenção educacional da pena” (CARAVELO, 2018, p.1).
A justiça negocial no âmbito do direito penal já é uma realidade nacional, expressada através da transação penal admitida na Lei dos Juizados Especiais, nos acordos de delação premiada e mais recentemente através da aprovação do acordo de não persecução penal, objeto de estudo nesta pesquisa científica.
2 O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
A priori, vigorou no processo penal brasileiro um sistema adversarial, litigioso e pretensamente acusatório, o qual foi alterado com o advento da Carta Cidadã de 1988 que consagrou um sistema democrático, acusatório, e baseado nos direitos e garantias fundamentais (FARACO NETO e LOPES, 2020).
Conforme dito anteriormente, atualmente, a chamada justiça negocial tem ganhado espaço no âmbito criminal, uma vez que anteriormente era comum às demandas de natureza cível, e nos crimes de menor potencial ofensivo, regulamentados pela Lei 9.099/95.
Aliado à expansão penal e aos novos desafios impostos pela sociedade de riscos, no cenário processual penal, tem-se a introdução de instrumentos de justiça negociada, que ganhou especial repercussão no ano de 2019, com a proposta de plea bargain inserida pelo ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública do Brasil Sérgio Moro (2019/2020), no denominado Pacote Anticrime.
Trata-se de um instituto com gênese nos países que adotam o sistema de common law, constituindo uma espécie de acordo realizado entre a acusação e o acusado, mediante declaração de culpa, em troca da atenuação no número de acusações, na gravidade dessas, ou na redução da eventual pena (FERNANDES, MUSTAFÁ e ROCHA, 2020, p.1).
Portando, um dos resultados práticos desse ideal negocial no processo penal consiste na inserção do acordo de não persecução penal ao Código de Processo Penal Brasileiro.
2.1 CONCEITO E HIPÓTESES DE CABIMENTO
Com a sanção da Lei nº. 13.964, de 24 de dezembro de 2019, o Código de Processo Penal passou a prever o acordo de não persecução penal no seguinte dispositivo:
Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:
I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;
II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;
III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);
IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou
V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada. (BRASIL, 1941)
O acordo analisado trata-se de um “negócio jurídico de natureza extrajudicial, necessariamente homologado pelo juízo competente – pelo menos em regra, pelo juiz das garantias” (LIMA, 2020, p. 274).
Ao tratar acerca da inclusão do acordo de não persecução penal no ordenamento processual nacional, Aury Lopes Junior destaca:
Outrora inconstitucional a nosso juízo – pois previsto em uma resolução do CNMP (!) – o acordo de não persecução penal agora ingressa de forma regular no sistema processual penal, pela via legislativa adequada. Trata-se de mais um instrumento de ampliação do espaço negocial, pela via do acordo entre MP e defesa, que pressupõe a confissão do acusado pela prática de crime sem violência ou grave ameaça, cuja pena mínima seja inferior a 4 anos (limite adequado à possibilidade de aplicação de pena não privativa de liberdade), que será reduzida de 1/3 a 2/3 em negociação direta entre acusador e defesa (LOPES JUNIOR, 2020, p. 314-315).
O mencionado dispositivo contém a conceituação legal do acordo de não persecução penal bem como dos requisitos que autorizam a sua realização, todos mencionados no artigo 28-A. Além dos requisitos anteriormente apresentados, é preciso que o caso não se enquadre nas hipóteses do parágrafo 2º do artigo 28-A.
§ 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses:
I - se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei;
II - se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas;
III - ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e
IV - nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.
Da leitura dos dispositivos legais resta claro que o momento de celebração do acordo de não persecução penal se dá após o Inquérito Policial, quando ao Ministério Público é determinado o oferecimento da denúncia, havendo os elementos da justa causa penal.
Em sua essência, diferencia-se de outros institutos da justiça negocial, tal qual destaca o professor Renato Brasileiro de Lima:
Como se pode notar, há um reconhecimento da viabilidade acusatória, já que o investigado se vê obrigado a confessar circunstanciadamente a prática do delito. Nesse aspecto, o acordo diferencia-se de outros institutos de Justiça negociada existentes no nosso ordenamento jurídico, como, por exemplo, a transação penal e a suspensão condicional do processo, que não exigem a confissão. No entanto, à semelhança destes, a aceitação e cumprimento do acordo não causam reflexos na culpabilidade do investigado (LIMA, 2020, 274).
Desta feita, tem-se que o acordo consiste em um instrumento de negociação processual que requer uma postura diferenciada dos representantes judiciais, antes forjados no confronto, para abrirem-se para uma lógica negocial, estratégica (LOPES JUNIOR, 2020, p.315). Da celebração do acordo, efeitos diversos são gerados, por isso a cautela é necessária.
2.2 EFEITOS DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
Uma vez atendidos os requisitos legais e aceitos os termos por parte do acusado, diz o §3º do artigo 28-A do CPP que o “acordo de não persecução penal será formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor” (BRASIL, 1941).
Contudo, o mesmo dispositivo processual determina que, até que se concretize o acordo com a formalização do termo, será designada uma audiência para que o Magistrado analise a voluntariedade da homologação das condições, ouvindo-se o investigado acompanhado de seu defensor. Caso entenda por inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições impostas, o juiz devolverá os autos ao Parquet para que este reformule a sua proposta, com concordância do investigado e seu defensor (BRASIL, 1941).
O legislador deixa claro que o acordo não é obrigatório para o investigado, podendo este aceitá-lo ou prosseguir com o processamento da investigação e posterior ação penal.
Entendemos que – preenchidos os requisitos legais – se trata de direito público subjetivo do imputado, mas há divergência no sentido de ser um “poder do Ministério Público” e não um direito do imputado. Uma vez formalizado o acordo e cumpridas as condições estabelecidas, será extinta a punibilidade, não gerando reincidência ou maus antecedentes, registrando-se apenas para o fim de impedir um novo acordo no prazo de 5 anos (inciso III do § 2º) (LOPES JUNIOR, 2020, p.315-316).
Aceito pelas partes, o juiz ainda pode recusar a sua homologação se não atender aos requisitos legais, devolvendo o acordo ao Ministério Público para que este complemente as investigações ou ofereça a denúncia, caso entenda necessário (§§ 7º e 8º, art. 28-A).
Por outro lado, diz o §6º do artigo 28-A que, “homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal” (BRASIL, 1941).
Uma vez cumpridas as regras do acordo, a punibilidade do investigado será extinta, nos termos do §13º do artigo citado, não subsistindo qualquer efeito a não ser o registro que impedirá a celebração de outro acordo no prazo de 5 anos. Todavia, se descumprido acordo, o juízo será comunicado pelo Ministério Público que dará prosseguimento com o feito oferecendo a denúncia (LOPES JUNIOR, 2020, p. 312).
3 A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS BENÉFICA AOS ACORDOS DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
Com a entrada em vigor da Lei nº. 13.964, de 24 de dezembro de 2019, o Código de Processo Penal passou a contar com o artigo 28-A, permitindo a realização de acordos de não persecução penal quando atendidos aos requisitos determinados em lei.
Ocorre que esses acordos passaram a ser aplicados após a vigência da lei, restando aos acusados de delitos cometidos anteriormente, cujo processamento se encontram em fase avançada, a alegação de aplicabilidade do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica.
3.1 O PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE NO DIREITO PROCESSUAL PENAL
O ordenamento jurídico nacional está pautado em normas fundamentais, a partir das quais são elaboradas as leis, os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais. A tais normas dá-se o nome de princípios.
O Código de Processo Penal em seu artigo 3º deixa clara a importância dos princípios ao determinar que “A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito” (BRASIL, 1941).
Um dos princípios do direito penal consagrado, inclusive, em nossa Constituição Federal é o da retroatividade da norma penal mais benéfica, na qual é possível a aplicação de uma norma cuja entrada em vigor no mundo jurídico ocorreu em momento posterior a ocorrência de um determinado delito, desde que o benefício seja ao réu. Tal princípio é um marco de sensatez, estabelecendo critério razoável, proporcional e lógico já que, se determinadas condutas deixam de ser consideradas passíveis de punição ou passaram a ser vistas como menos gravidade, ao ponto de terem suas sanções diminuídas ou passíveis de algum tipo de benesse, não há qualquer razão para manter critérios mais gravosos, ainda que as condutas tenham ocorrido em momento diverso (PACHECO, 2019, p.1).
Em se tratando do direito penal processual, a retroatividade é vista de uma forma diversa do direito penal, uma vez que a entrada em vigor de uma lei de ordem processual se aplica a todos os sujeitos integrantes do sistema. Assim dispõe o artigo 2o: “A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior” (BRASIL, 1941).
As normas de natureza processual aplicam-se aos processos em andamento, ainda que o fato tenha sido cometido antes de sua entrada em vigor e mesmo que sua aplicação se dê em prejuízo do agente. É que a sua aplicação no tempo não se encontra regida pelo art. 5º, XL, da CF, o qual proíbe a lei de retroagir para prejudicar o acusado. Tal dispositivo constitucional não está se referindo à lei processual, que tem incidência imediata, mas tão somente à penal (CAPEZ, 2018, 89).
Nos termos desse entendimento legal, logo após iniciada a sua vigência, a Lei nº. 13.964, de 24 de dezembro de 2019, passou a ser aplicável a todos os procedimentos processuais penais em andamento no Brasil. Ocorre que, por estabelecer um momento processual específico para a celebração do acordo de não persecução penal, a retroatividade tornou-se pauta dentre os juristas em todo o país.
3.2 A APLICABILIDADE DA RETROATIVIDADE AOS ACORDOS DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL: ENTENDIMENTOS JURISPRUDENCIAIS
É certo que a lei processual ao entrar em vigor se aplica aos processos em andamento, contudo em se tratando do acordo de não persecução penal, a discussão reside na retroatividade para beneficiar o denunciado que já teria perdido o direito de acordo por se encontrar em estágio processual avançado.
Deste modo, haja vista que a entrada em vigor de uma nova lei significa a sua aplicação aos procedimentos posteriores, havendo benefício ao acusado, suscita-se a aplicabilidade do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica.
Sobre a lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, Rodrigo Leite afirma que a norma tem conteúdo misto e sua retroatividade, em si, não é objeto de maiores discussões, sendo que o grande debate reside em saber em qual momento ou até qual fase do processo essa retroatividade deve incidir (2020).
Um dos princípios do direito penal consagrado, inclusive, em nossa Constituição Federal é o da retroatividade da norma penal mais benéfica, na qual é possível a aplicação de uma norma cuja entrada em vigor no mundo jurídico ocorreu em momento posterior a ocorrência de um determinado delito, desde que o benefício seja ao réu. Tal princípio é um marco de sensatez, estabelecendo critério razoável, proporcional e lógico já que, se determinadas condutas deixam de ser consideradas passíveis de punição ou passaram a ser vistas como menos gravidade, ao ponto de terem suas sanções diminuídas ou passíveis de algum tipo de benesse, não há qualquer razão para manter critérios mais gravosos, ainda que as condutas tenham ocorrido em momento diverso (PACHECO, 2019, p.1).
Em que pese o princípio acima seja inequívoco quanto a possibilidade de retroatividade em favor do réu, em se tratando de acordo de não persecução penal, quatro correntes se apresentam quanto a possibilidade de ser ofertada após o oferecimento da denúncia.
Uma primeira vertente sustenta que o acordo somente pode ser celebrado até o recebimento da denúncia, pois se o acordo é denominado de “de não persecução” ele somente poderia ser celebrado até o início da persecução, cujo marco seria o recebimento da denúncia. Essa corrente tem fortes argumentos pela própria nomenclatura do instituto e pelo fato da homologação do acordo estar entre as atribuições do juiz das garantias. Esse entendimento foi adotado no Enunciado 20 do Encontro Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça: cabe acordo de não persecução penal para fatos ocorridos antes da vigência da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia e também no Enunciado 30 da Procuradoria-Geral de Justiça e da Corregedoria do Ministério Público de São Paulo: aplica-se o artigo 28 do CPP nos casos em que, oferecida a denúncia, o juiz entenda cabível a proposta de acordo de não persecução penal.
Numa segunda posição, defende-se que o acordo de não persecução penal poderia ser celebrado até o início da instrução penal. Essa posição foi adotada pelo Ministério Público de Minas Gerais após o Conselho Nacional do Ministério Público editar as Resoluções 181/2017 e 183/2018, mas antes da edição do Pacote Anticrime.
Uma terceira corrente argumenta que o acordo de não persecução penal (ANPP) deve ser celebrado até a sentença. Essa posição é defendida pelo Ministério Público de Santa Catarina (assim, cumpridas todas as condições objetivas e subjetivas do instituto, pode haver proposta de ANPP mesmo após o recebimento da denúncia, até antes da sentença). Tal posição também veio a ser adotada pelo Tribunal de Justiça e pelo Ministério Público de Minas Gerais por intermédio da Portaria Conjunta n. 20, de 23 de março de 2020. Essa é a posição de Andrey Borges de Mendonça (Lei anticrime: um olhar criminológico, político-criminal, penitenciário e judicial. São Paulo: RT, 2020, RB-11.21).
Uma quarta posição entende que o ANPP pode ser celebrado a qualquer momento antes do trânsito em julgado (LEITE, 2020, p.1) (Grifos do autor).
Ante a existência de divergência, bem como os direitos inerentes aos réus, naturalmente que, após a entrada em vigor da lei, os interessados passaram ao requerer a possibilidade de celebração do acordo de não persecução penal mesmo em processos com estágio processual posterior ao determinado na letra da lei.
Na jurisprudência, os pedidos e celebração de acordo em momento posterior já desencadearam entendimentos favoráveis. No caso abaixo, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina aplicou o princípio da retroatividade e afastou a tese de preclusão.
ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL (CPP, ART. 28-A). INSTITUTO DESPENALIZADOR. CARÁTER MATERIAL. RETROATIVIDADE DA LEI PENAL BENÉFICA (CF, ART. 5º, XL, E CP, ART. 2º). PRECLUSÃO. As prescrições legais que consagram medidas despenalizadoras qualificam-se como normas penais de caráter material benéficas e, por força de princípio constitucional, têm aplicação inclusive aos casos em curso, não ocorrendo preclusão do direito de propositura do acordo de não persecução penal se este instituto passou a viger após a denúncia e não houve ao acusado oportunidade para manifestar-se quanto ao tema. JULGAMENTO CONVERTIDO EM DILIGÊNCIA. (TJ-SC – APR: 00022607320148240080 TJSC 0002260-73.2014.8.24.0080, Relator: Hildemar Meneguzzi de Carvalho, Data de Julgamento: 06/12/2020, 2ª Câmara Criminal).
O Superior Tribunal de Justiça também já entendeu da mesma forma, declarando como norma penal de natureza mista, passível de retroatividade benéfica ao réu:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. FRAUDE À LICITAÇÃO. FALSADIDADE IDEOLÓGICA. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. PACOTE ANTICRIME. ART. 28-A DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. NORMA PENAL DE NATURA MISTA. RETROATIVIDADE A FAVOR DO RÉU. NECESSIDADE DE INTIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DECISÃO RECONSIDERADA. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO. 1. É reconsiderada a decisão inicial porque o cumprimento integral do acordo de não persecução penal gera a extinção da punibilidade (art. 28-A, §13, do CPP), de modo que como norma de natureza jurídica mista e mais benéfica ao réu, deve retroagir em seu benefício em processos não transitados em julgado (art. 5º, XL, da CF). 2. Agravo regimental provido, determinando a baixa dos autos ao juízo de origem para que suspenda a ação penal e intime o Ministério Público acerca de eventual interesse na propositura de acordo de não persecução penal, nos termos do art. 28-A do CPP (introduzido pelo Pacote Anticrime – Lei n. 13.964/2019). (STJ – AgRg no HC: 575395 RN 2020/0093131-0, Relator: Ministro Nefi Cordeiro, Data de Julgamento: 08/09/2020, T6- Sexta Turma, Data de Publicação: DJe 14/09/2020).
Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal entende que somente seria aplicável a retroatividade para os casos em que a denúncia ainda não tivesse sido aceita quando da entrada em vigor da lei. Nesse sentido, o julgado relatado por Dias Toffolli serve de exemplo (STF – ARE: 1267734 PR 5008931-70.2015.4.04.7003. Relator Dias Toffoli, Data de Julgamento: 02/09/2021, Data de Publicação: 08/09/2021).
Apesar disso, há a tendência de reforma desse posicionamento, uma vez que, recentemente, o ministro Gilmar Mendes proferiu voto favorável à retroatividade do acordo de não persecução penal até o trânsito em julgado no processo de Habeas Corpus 185.913 (SANTOS, 2021). Em seu voto, o ministro fixou a seguinte tese:
É cabível o acordo de não persecução penal em casos de processos em andamento (ainda não transitados em julgado) quando da entrada em vigência da Lei 13.964/2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento. Ao órgão acusatório cabe manifestar-se motivadamente sobre a viabilidade de proposta, conforme os requisitos previstos na legislação, passível de controle, nos termos do artigo 28-A, § 14, do CPP (STF – HC 185.913).
Deste modo, está claro que o assunto ainda não fora completamente superado, contudo é crescente o entendimento de retroatividade da lei para beneficiar àqueles indivíduos cujo processo penal encontrava-se em andamento quando da entrada em vigor da nova lei.
CONCLUSÃO
O sistema processual penal brasileiro tem como objetivo fundamental, além de responsabilizar e impedir a prática de novos delitos, a ressocialização da pena e a busca pela recuperação dos sujeitos delinquentes.
É fato que o alto número de aprisionamentos não tem refletido na redução dos crimes, uma vez que, o sistema penitenciário se apresenta defasado e ineficiente, atuando como instrumento de recrutamento de criminosos especialmente por parte das facções etc.
Neste sentido, a justiça negocial avançou e passou a ser admitida no direito penal com o passar dos anos, até recentemente ser sancionada a Lei nº. 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que passou a permitir a celebração do acordo de não persecução penal para os indivíduos que, tendo confessado a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos.
Em que pese o artigo 28-A inserido no Código de Processo Penal se aplique ao início da ação penal, mais precisamente antes de iniciada a persecução penal através da denúncia; com a entrada em vigor, a lei processual penal tem aplicabilidade aos feitos em andamento.
Diante do exposto, bem como do principio da retroatividade da lei penal benéfica em favor do réu, ainda que o feito encontre-se em momento processual posterior, estando o acusado enquadrado nas hipóteses legais de cabimento, poderá o mesmo requerer judicialmente a realização do acordo de não persecução penal. Por ser controversa, a matéria será objeto de análise judicial, contudo possui entendimentos favoráveis, inclusive dos tribunais superiores: Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal.
REFERENCIAS
AZEVEDO, Mariana. A justiça negocial no processo penal e o princípio da necessidade. Canal Ciências Criminais, atualizado em 28 jun. 2020. Disponível em: <https://canalcienciascriminais.com.br/a-justica-negocial-no-processo-penal-e-o-principio-da-necessidade/>. Acesso em 18 ago. 2021.
BRASIL. Decreto-Lei nº. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm>. Acesso em 03 set. 2021.
BRASIL. Decreto-Lei No 2.848, de 7 de Dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em 05 set. 2021.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 05 set. 2021.
BRASIL. STF – Supremo Tribunal Federal - ARE: 1267734 PR 5008931-70.2015.4.04.7003. Relator Dias Toffoli, Data de Julgamento: 02/09/2021, Data de Publicação: 08/09/2021. Disponível em: <https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1279553517/agreg-nos-embdiv-nos-embdecl-no-agreg-no-recurso-extraordinario-com-agravo-are-1267734-pr-5008931-7020154047003/inteiro-teor-1279553528>. Acesso em 14 out. 2021.
BRASIL. STF- Supremo Tribunal Federal. HC 185.913. Voto do Relator: Ministro Gilmar Mendes. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/voto-gilmar-anpp.pdf>. Acesso em 14 out. 2021.
BRASIL. STJ – AgRg no HC: 575395 RN 2020/0093131-0, Relator: Ministro Nefi Cordeiro, Data de Julgamento: 08/09/2020, T6- Sexta Turma, Data de Publicação: DJe 14/09/2020. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/930636258/agravo-regimental-no-habeas-corpus-agrg-no-hc-575395-rn-2020-0093131-0>. Acesso em.
BRASIL. TJ-SC – APR: 00022607320148240080 TJSC 0002260-73.2014.8.24.0080, Relator: Hildemar Meneguzzi de Carvalho,Data de Julgamento: 06/12/2020, 2ª Câmara Criminal . Disponível em: <https://tj-sc.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1106655513/apelacao-criminal-apr-22607320148240080-tjsc-0002260-7320148240080>. Acesso em 10 mai. 2021.
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. – 25. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
CARAVELO, Thiago Vinícius Pondian. A justiça negocial no Direito Penal: Juizados Especiais Criminais e colaboração premiada. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 21 ago. 2021. Disponível em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51709/a-justica-negocial-no-direito-penal-juizados-especiais-criminais-e-colaboracao-premiada. Acesso em: 21 ago. 2021.
FERNANDES, Beatriz Scherpinski; MUSTAFÁ, Rennan Herbert; ROCHA, Cláudia da. Justiça Negocial: A Nova Realidade do Processo Penal Brasileiro. Empório do Direito, 06 out. 2020. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/justica-negocial-a-nova-realidade-do-processo-penal-brasileiro>. Acesso em 02 set. 2021.
LEITE, Rodrigo. O acordo de não persecução penal retroage para alcançar os processos em curso? E até qual momento essa retroatividade deve incidir? 21 out. 2020. Disponível em: <https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2020/10/21/o-acordo-de-nao-persecucao-penal-retroage-para-alcancar-os-processos-em-curso-e-ate-qual-momento-essa-retroatividade-deve-incidir/>. Acesso em 10 out. 2021.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único – 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2020.
LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. – 17. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
PACHECO, Manuel Flavio Saiol. A aplicação do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica em sanções decorrentes de processo administrativo disciplinar. Jus.com, 2019. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/75068/a-aplicacao-do-principio-da-retroatividade-da-lei-penal-mais-benefica-em-sancoes-decorrentes-de-processo-administrativo-disciplinar>. Acesso em 04 out. 2021.
SANTOS, Rafa. Gilmar vota pela retroatividade do ANPP até o transitado em julgado. Revista Consultor Jurídico, 19 de setembro de 2021, 18h19. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-set-19/gilmar-vota-retroatividade-anpp-transito-julgado>. Acesso em 14 out. 2021.
Graduando do curso de direito da Universidade Unirg.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Thiago Paulo. Acordo de não persecução penal: relação com o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 dez 2021, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57741/acordo-de-no-persecuo-penal-relao-com-o-princpio-da-retroatividade-da-lei-penal-mais-benfica. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
Por: RODRIGO PRESTES POLETTO
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Precisa estar logado para fazer comentários.