AMANDA BARROS MANESCHY[1]
(coautora)
RESUMO: As revoluções industriais trouxeram inúmeras mudanças na forma como o trabalho humano é realizado; no entanto, nunca se verificou alterações tão drásticas como a decorrente da Quarta Revolução Industrial. A partir desse marco histórico, houve a necessidade de uma releitura das características das relações jurídicas no mundo do trabalho, sobretudo no que se refere à subordinação. As novas tecnologias trouxeram inéditas possibilidades nesse contexto e, com isso, fizeram surgir também novas profissões, cujas peculiaridades fazem com que se questione se estamos diante de um trabalho autônomo ou de uma verdadeira relação de emprego. Nesse sentido, é preciso avaliar se, nos novos modelos de prestação de trabalho, a subordinação por algoritmo altera o conceito tradicional de subordinação, bem como perquirir qual rumo deve ser dado pelo ordenamento jurídico para proteção mínima dos trabalhadores.
Palavras-chave: Algoritmo. Plataformas digitais. Relação de trabalho. Subordinação. Uber.
ABSTRACT: Industrial revolutions have brought several changes in the way human work is done. However, there has never been such a drastic change as that resulting from the fourth industrial revolution. From this historical landmark, there is a need of reinterpreting the characteristics of legal relations in the world of work, especially with regard to subordination. New technologies have brought new possibilities of work and with it have also given rise to new professions, whose peculiarities make it seem as if we are facing a self-employed job or a true employment relationship. Therefore, it is necessary to evaluate, in the new models of work provision, whether the subordination by algorithm changes the traditional concept of subordination and to investigate which direction should be given by the legal system in order to give the minimum protection of these workers.
Keywords: Algorithm. Digital platforms. Work relationship. Subordination. Uber.
INTRODUÇÃO
O mundo do trabalho vem sofrendo constantes modificações. Desde o surgimento da máquina a vapor até a criação de computadores na década de 60, muitos elementos mudaram. Passamos dos empregos duradouros, nos quais o trabalhador iniciava o vínculo empregatício ainda na juventude e o mantinha até a aposentadoria, para a situação em que o trabalho é fluido, impessoal, para tomadores de diferentes partes do mundo. Seja de que modo for, nos dias atuais, os meios de subsistência da humanidade se dão majoritariamente através do trabalho, sendo ele realizado de forma pessoal ou virtual – neste último, que se concretiza via plataformas digitais, atinge-se maior número de trabalhadores; porém, a concorrência aumenta e a precarização do trabalho também.
Vivemos em um modelo de sociedade em que o consumo por meios virtuais ganhou mais espaço, em detrimento da aquisição pessoal e presencial de bens e serviços, o que faz com que cada vez haja menos necessidade de existirem trabalhadores na ponte entre bens e consumidor final. A consequência disso é a diminuição da demanda de pessoas na prestação dessas tarefas, com o consequente aumento da oferta do trabalho informatizado e informal.
Mas até que ponto esse trabalho pode ser considerado anônimo, ou seja, realizado por qualquer pessoa com mero cadastro em plataformas digitais? Como fica a proteção de trabalhadores que se colocam à disposição da plataforma e qual é o limite para a realização desse trabalho? Essas questões têm sido cada vez mais suscitadas, justamente pela novidade surgida em decorrência do acesso a plataformas de trabalho e serviços, para as quais basta o acesso à Internet e a um smartphone.
A partir do cadastro a uma plataforma, o indivíduo consegue trabalhar de várias formas, sem ter, na condução de seu trabalho, um chefe, supervisor ou gerente. No entanto, o que se constata é que existe um forte controle sobre si, tanto na execução da atividade para a qual se habilitou, como sobre suas atitudes e comportamento, os quais são submetidos a avaliações, tanto da plataforma como do usuário final do serviço.
O controle do trabalho e da permanência do trabalhador vinculado às plataformas é feito pelo algoritmo. Assim, são geradas não só novas relações de trabalho, mas também novas formas de subordinação. Nesse horizonte, o que suscita questionamento é isto: qual é o limite de subordinação feito pelo algoritmo? Esses trabalhadores são detentores de alguma proteção legislativa? É o que abordamos no presente estudo.
1 TECNOLOGIA E TRANSFORMAÇÕES DAS RELAÇÕES DE TRABALHO
Evoluções tecnológicas sempre impactaram o mundo do trabalho. A invenção da máquina a vapor, por exemplo, pode ser tida como a primeira tecnologia a transformar radicalmente os meios de produção, impondo aos trabalhadores adequação aos novos métodos de trabalho. Em decorrência dessas mudanças, propiciadas pela evolução nos modos de produção, tais sujeitos tiveram que enfrentar diversos desafios, como aprendizado de novas técnicas de trabalho, sujeição a extensas jornadas laborais, sendo, inclusive, expostos a acidentes e doenças do trabalho.
A Primeira Revolução Industrial aconteceu entre 1760 e 1840, como consequência da construção de ferrovias e da invenção da máquina a vapor; a Segunda teve início no final do século XIX, decorrente da descoberta da eletricidade, que propiciou a produção em massa ao ingressar na linha de montagem; a Terceira, também conhecida como Revolução Digital, teve início na década de 1960, trazendo a computação pessoal nas décadas de 1970 e 1980 e o advento da Internet em 1990 (SCHWAB, 2019). Assim, ao longo dos séculos, as relações de trabalho sofreram constantes modificações, mas nunca de forma tão brusca como as decorrentes das novas tecnologias disruptivas, surgidas a partir da chamada Quarta Revolução Industrial.
Schwab (2019), em sua obra A Quarta Revolução Industrial, adverte que
A quarta revolução industrial, no entanto, não diz respeito apenas a sistemas e máquinas inteligentes e conectadas. Seu escopo é muito mais amplo. Ondas de novas descobertas ocorrem simultaneamente em áreas que vão desde o sequenciamento genético até a nanotecnologia, das energias renováveis à computação quântica. O que torna a quarta revolução industrial fundamentalmente diferente das anteriores é a fusão dessas tecnologias e interação entre os domínios físicos digitais e biológicos. (SCHWAB, 2019, p. 240)
A principal consequência das mudanças apontadas é que as novas tecnologias propiciaram que, com menor capital investido e muito menos trabalhadores, empresas conseguissem lucros muito maiores do que os decorrentes das revoluções industriais anteriores. A explicação para esse fenômeno se encontra na possibilidade de acesso a produtos e serviços sem custos, trazendo, para a palma de nossas mãos, a possibilidade de realizar várias formas de contratação, como compras de eletrodomésticos, acesso a transporte (como táxi e Uber), além de lazer (através das plataformas de streaming).
Frente a essa nova realidade, constata-se que a vida ficou mais fácil para o consumidor, embora a precarização do trabalho seja inconteste, em face da substituição da mão de obra pelo acesso on-line para a aquisição de bens e serviços. A mudança nas formas de realização de trabalho conta com três elementos que são a base da nova economia, quais sejam, Internet, Big Data e Smartphone (ZIPPERER, 2019).
Em decorrência dessas tecnologias, nas últimas décadas, verificou-se o surgimento da chamada “economia de compartilhamento”, por meio da qual a prestação de trabalho se realiza de qualquer lugar do mundo, para qualquer tomador no mundo, originando novas formas de economia, tais como a economia por intermediação (intermediary economy), a economia de “bico” ou trabalhos precários (gig economy) e a economia de plataforma (plataform economy) (ZIPPERER, 2019).
Nas novas formas de prestação de trabalho, nota-se uma relação triangular, da qual participam a empresa de plataforma, os trabalhadores e as pessoas que adquirem os serviços. Esse tipo de relação não é novidade da Quarta Revolução Industrial, na medida em que há tempo se verifica a prestação de trabalho por intermediação de outrem, como nas atividades realizadas por meio de empresas de trabalho temporário (ZIPPERER, 2019).
O diferencial decorrente do trabalho em plataformas digitais reside na nova forma de terceirização. Se antes, no trabalho prestado através de empresa intermediadora de mão de obra, a atividade era disponibilizada para um determinado trabalhador, agora surge o conceito de crowdsourcing (HOWE, 2006), ou multiterceirização, que consiste em terceirizar o trabalho não para determinado trabalhador, mas para um grupo de pessoas ou multidões (crowds), a partir de uma chamada aberta (ZIPPERER, 2019).
Outro termo de importância incorporado às novas formas de trabalho é crowdworking (crowd + working, ou seja, multidão + trabalho), que consiste no exercício de atividade laboral, por parte dos trabalhadores dessa multidão, que pode se dar por crowdworking on-line e crowdworking off-line (STEFANO, 2016). A distinção entre os dois modelos consiste no fato de que, no primeiro, o trabalho pode ser executado sem qualquer contato com o provedor ou com o beneficiário do serviço. Já no crowdworking off-line, exige-se que o executor do trabalho esteja em determinado local e em momento certo para a realização do mesmo, ou seja, o trabalho é realizado de forma presencial e não virtual (ZIPPERER, 2019).
O novo formato de prestação de trabalho, característico da Quarta Revolução Industrial, afeta sobremaneira os tradicionais conceitos de subordinação e pessoalidade nas relações de trabalho. O trabalhador não mais se encontra inserido no ambiente da empresa, com contato direto com o provedor do trabalho. A partir de agora, não há sequer o contato entre pessoas, mas somente entre o trabalhador e a plataforma.
Em que pese o surgimento dessas novas formas de disponibilização de prestação de serviços, há um elemento que envolve as relações de trabalho, com maior ou menor presença: a subordinação. O trabalho passou a ser realizado de maneira muito diferente das primeiras formas de produção, nas quais o trabalhador estava inserido no ambiente da empresa. Agora, os meios telemáticos é que dão os comandos, disponibilizam serviços e conduzem a realização do trabalho. Nesse sentido, mostra-se necessária uma reavaliação do conceito de subordinação.
2 SUBORDINAÇÃO: CONCEITO E RELEITURAS AO LONGO DA HISTÓRIA
Inobstante o vínculo empregatício resultar da síntese indissolúvel de cinco pressupostos fáticos-jurídicos consubstanciados nos artigos 2º e 3º da CLT, quais sejam, prestação de serviço por pessoa física, pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e subordinação (DELGADO, 2018), é cediço que este último constitui o elemento nuclear do emprego, dado que o Direito do Trabalho tem por seu objeto a regulação e a proteção do trabalho subordinado, excluindo da sua tutela e abrangência outras fórmulas de contratação de prestação de serviços, a exemplo dos trabalhadores autônomos. Amauri Mascaro Nascimento (2012) distingue o trabalhador autônomo do subordinado tendo em vista a maneira como o trabalho é prestado, visto que os primeiros detêm o poder de direção da própria atividade, enquanto os segundos alienam o poder de direção em troca de salário:
O modo como o trabalho é prestado permite distinguir melhor entre o trabalho subordinado e o trabalho autônomo desde que seja percebido que há trabalhos nos quais o trabalhador tem o poder de direção sobre a própria atividade, autodisciplinando-a segundo seus critérios pessoais, enquanto há trabalhadores que resolvem abrir mão do poder de direção sobre o trabalho que prestarão, fazendo-a não coativamente como na escravidão, mas volitivamente como exercício da liberdade , transferindo, por contrato, o poder de direção para terceiros em troca de um salário, portanto, subordinando-se. (NASCIMENTO, 2012, p. 580)
No entanto, devido ao seu caráter instrumental, o conceito de subordinação carrega consigo, ainda nos dias atuais, um quê de maleabilidade que acompanha a construção e o desenvolvimento das relações jurídicas em sociedade (BICALHO, 2017); isto é, ao longo do tempo, apresentou significativas transformações para adequar-se à realidade em que estava inserido. No ordenamento jurídico brasileiro, a subordinação, embora esteja prevista no referido art. 3º da CLT (o qual não traz especificamente o termo subordinação em sua redação, e sim a expressão “sob a dependência deste”), teve seu uso consagrado pela doutrina e jurisprudência. Essencialmente são três as principais dimensões que o conceito de subordinação jurídica apresentou ao longo da história: a dimensão clássica, a dimensão objetiva e a dimensão estrutural (DELGADO; DELGADO, 2017).
A noção de subordinação em sua dimensão clássica ou tradicional está diretamente ligada ao próprio surgimento do Direito do Trabalho, pois, uma vez que as leis trabalhistas surgiram em um contexto histórico marcado pela exploração do trabalhador, foram elas que conferiram ao empregado subordinado uma série de direitos em troca da limitação da sua autonomia de vontade. Isto é, a subordinação clássica é a situação jurídica que deriva do próprio contrato de trabalho, sendo constituída pela ideia de sujeição personalista do trabalhador à direção do empregador, do dever do empregado de se submeter às ordens emanadas do poder diretivo, verticalmente. A figura da subordinação do obreiro ao seu empregador nessa dimensão era, portanto, facilmente identificada, em decorrência da forma como o trabalho era desenvolvido nos modelos de produção fordista e taylorista, em que os trabalhadores realizavam suas atividades no interior das fábricas típicas do início da industrialização, com severa e direta fiscalização do patrão, em espaço físico determinado e com jornadas pré-estabelecidas. Há, na subordinação clássica, portanto, o encontro direto entre os sujeitos contratantes, com conexões de poder de comando e de intensidade de comando (DELGADO; DELGADO, 2017).
O critério subjetivista e o comando verticalizado do trabalho presentes na concepção clássica de subordinação, todavia, mostravam-se insuficientes frente às novas formas de prestações de serviços, bem como ao aparecimento das representações internas de trabalhadores, sobremodo após a Segunda Guerra Mundial, que mitigavam essa conexão de poder e intensidade de comando direto, dado que a direção acabava se dando de forma horizontalizada, sendo muitas vezes internalizada pelos trabalhadores e exercida de forma conjunta, como uma espécie de coordenação e organização do trabalho. Nessa esteira, durante o século XX até́ meados da década de 1970, como forma de atender à necessidade do período histórico vivenciado, a perspectiva clássica cedeu lugar a novas nuances da subordinação, com uma tendência expansionista de seu conceito com o objetivo de enquadrar outras relações de trabalho na definição de emprego, para que assim recebessem a proteção das leis laborais.
Ante a insuficiência da concepção tradicional a respeito do conceito de subordinação jurídica, surge a chamada dimensão objetiva, lançada na doutrina pátria pelo jurista Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena, que consistia na integração do trabalhador na organização da empresa, manifestando-se na “relação de coordenação ou de participação integrativa ou colaborativa, por meio da qual a atividade do trabalhador como que segue, em linhas harmônicas, a atividade da empresa, dela recebendo o influxo próximo ou remoto de seus movimentos” (VILHENA, 1975 apud DELGADO, 2018, p. 235). A subordinação, em sua concepção objetiva, deixa de lado o aspecto subjetivo clássico, focado na pessoa do trabalhador, e passa a ser vista pela atividade do trabalhador e integração desta nos objetivos empresariais.
Mauricio Godinho Delgado desenvolveu ainda a dimensão estrutural da subordinação jurídica, que, de acordo com o autor, consiste na “inserção do trabalhador na dinâmica do tomador de seus serviços, independentemente de receber (ou não) suas ordens diretas, mas acolhendo, estruturalmente, sua dinâmica de organização e funcionamento” (DELGADO, 2018, p. 352). Nessa concepção, portanto, não é necessária a integração do trabalhador nos objetivos empresariais, tampouco que receba ordens patronais diretas para que se verifique a subordinação, bastando que o obreiro esteja atrelado à dinâmica operativa do seu tomador de serviço.
Percebe-se, nessa esteira, que o conceito de subordinação nunca foi estático, nem deve o ser; ao contrário, desde sua concepção clássica, sofre modificações e interpretações – que não se esgotam nas que foram aqui mencionadas – para adequar-se à realidade condizente e abranger cada vez mais um número maior de trabalhadores, fazendo, consequentemente, com que o Direito do Trabalho possa cumpra as funções que lhe são peculiares.
A difusão das novas formas de organização do trabalho, principalmente aquelas que se utilizam da intermediação de mão de obra (fruto do avanço das chamadas “tecnologias disruptivas” e do surgimento da economia de compartilhamento), nos convida a retomar discussões sobre certas relações jurídicas vigentes, em especial a da subordinação jurídica, uma vez que hoje, com a presença dos aplicativos e sistemas telemáticos, presenciamos tão somente uma nova roupagem desta e não seu efetivo rompimento. Postas essas noções, a subordinação realizada por meio dos algoritmos será tratada com mais especificidade em item próprio.
3 A INTERMEDIAÇÃO DE MÃO DE OBRA E O ALGORITMO
A partir do surgimento da Internet e, consequentemente, das novas tecnologias, tais como os computadores pessoais, tablets e smartphones, que dão acesso a bens e serviços em nível mundial, surgiu também, o algoritmo. Esse elemento foi desenvolvido como uma espécie de inteligência que gerencia escolhas; nesse sentido, está presente em todos os acessos à Internet, direcionando bens e serviços, de acordo com as escolhas de cada um ao buscar conteúdos de seu interesse. Em decorrência disso, se, de um lado, o algoritmo gerencia as escolhas dos consumidores, ele, de outro lado, impacta as relações de trabalho, direcionando sua forma de execução, para ir ao encontro dos interesses das plataformas e dos consumidores.
Entender o que é o algoritmo e como se dá o seu funcionamento na direção do trabalho realizado através de plataformas digitais é imprescindível para a compreensão das relações laborais daí surgidas, das novas formas intermediação do trabalho e do próprio conceito de subordinação. No entanto, entender o que vem a ser algoritmo não se mostra tarefa fácil, na medida em que envolve conceitos matemáticos e de programação de computadores.
Com relação a conceitos matemáticos, a palavra “algoritmo” está associada à ideia de processo de cálculos, encadeamento necessário para a solução ou cumprimento de uma tarefa, bem como processo efetivo que produz uma solução para um número finito de etapas (MANZANO; OLIVEIRA, 2019).
Segundo Manzano e Oliveira (2019),
Do ponto de vista computacional, o algoritmo pode ser entendido como regras formais, sequenciais e bem definidas a partir do entendimento lógico de um problema a ser resolvido por um programador com o objetivo de transformá-lo em um programa que seja possível de ser tratado e executado por um computador, em que dados de entrada são transformados em dados de saída. (MANZANO; OLIVEIRA, 2019, posição 938)
Em sistemas de programação, com dados de entrada e saída, é preciso representar a troca de informações entre o mundo da máquina e o mundo exterior. Um algoritmo, portanto, é uma sequência de passos, em ordem e sem ambiguidade, que deve ser seguida para resolver um problema (GATTO, 2016).
A partir do desenvolvimento de plataformas digitais para aquisição de bens e serviços, esse sistema de programação passou a dirigir o modo como os bens e serviços devem ser realizados ou entregues. Na realização de trabalhos por meio de plataformas digitais, não há mais a presença da pessoa do gerente, coordenador, chefe, mas sim do algoritmo. Do lado do adquirente de produtos ou serviços, o algoritmo gerencia ofertas de acordo com suas escolhas pessoais, seus gostos, suas singularidades, ao acessar a Internet; do lado do prestador ou fornecedor, o algoritmo gerencia o serviço a ser realizado, o modo, o prazo, dando as diretrizes para o encontro entre a oferta e a procura.
Assim, sobretudo na prestação dos serviços, a relação de subordinação é entre o prestador/trabalhador e o algoritmo. Essa subordinação é feita através de um sistema de computador aliado a outros instrumentos telemáticos e a uma plataforma digital, que “emitem ordens e comandos ao trabalhador, ainda que sob o pseudônimo de sugestão ou rótulos mais amenos” (CASTILHO, 2021, p. 123). Nesse horizonte, empresas de diversos segmentos têm substituído seus gerentes pelo algoritmo, os quais direcionam o local, modo e forma de prestação do trabalho. Sobre isso, Carelli (2017) faz a seguinte observação:
Hoje, virtualmente, toda empresa funciona nesse modelo: os bancos estão deixando de ocupar cargos gerencias que estão sendo transformados em algoritmo. Mesmo os gerentes intermediários têm sido substituídos por trabalhadores de telemarketing menos qualificados, que somente transmitem aos clientes as informações passadas pelo sistema. Se a resposta não está no sistema, geralmente não há como ser resolvida a questão, pois é o algoritmo que está no controle e não os trabalhadores. (CARELLI, 2017, p. 140-141)
Assim, ao se partir do algoritmo, não se verifica mais a presença humana no gerenciamento e comando dos serviços. O trabalhador se insere no ambiente laboral simplesmente por seu acesso ao smartphone e à conexão à Internet. A situação mais emblemática desse tipo de comando para prestação do trabalho é a do Uber. Através desse aplicativo de transporte, o cliente solicita um carro, que não precisa ser um táxi formalmente constituído, e o motorista que estiver disponível e mais próximo do chamado aceita a realização da viagem solicitada. No entanto, esse trabalho não é realizado livremente pelo trabalhador: ao motorista é imposto um código de conduta, com constante avaliação de seu trabalho, podendo, inclusive, caso não seja bem avaliado, ser banido da plataforma.
4 A SUBORDINAÇÃO POR ALGORITMO
A subordinação jurídica, como dito anteriormente, sempre exigiu esforços doutrinários para sua delimitação e conceituação, dado o seu caráter instrumental. Com o avanço das tecnologias e a eclosão da chamada “economia de compartilhamento”, a prestação de serviço passou a se concretizar em qualquer lugar e a qualquer tempo, através da intermediação das plataformas digitais – fazendo surgir o que, para fins explicativos, conceituou-se como “subordinação por algoritmos”. Se, antes, a subordinação jurídica no modelo de produção anterior exigia uma fiscalização direta dos serviços, em local determinado e com jornada prefixada, hoje temos um trabalhador à disposição o tempo todo, a qualquer lugar, por meio de qualquer aparelho eletrônico conectado à Internet (CASTILHO, 2021).
Rodrigo de Lacerda Carelli (2018) assevera que a direção imposta pelos algoritmos é deveras mais eficaz do que qualquer controle pessoal, pois é feita de forma dispersa, seja pela própria organização algorítmica, seja por meio de sua clientela. De fato, os trabalhadores que prestam serviços via plataformas digitais seguem regras rígidas de comportamento, não só em relação ao padrão de atendimento aos clientes – que, ao final do serviço, podem avaliar aquele trabalho –, mas também frente ao estímulo, fomentado por essas empresas, do maior número possível de aceites de serviço, estando sempre a total disposição da plataforma, uma vez que, caso contrário, o trabalhador sofre punições preestabelecidas pelo algoritmo.
Como bem salienta Paulo César Castilho (2019):
Os motoristas que trabalham utilizando-se de plataformas digitais que lhes disponibilizam clientes para o transporte urbano seguem regras rígidas de comportamento, que são avaliadas por meio de algoritmos criados pela empresa fornecedora do aplicativo, com base em banco de dados próprios e nas informações fornecidas por seus clientes consumidores após a viagem.
Essa base de dados serve não só para direcionar as atividades do motorista (fique próximo a tal região pois está havendo muitas chamadas naquele setor, p. ex.), como também para advertir, punir e até dispensar seus serviços, excluindo-o do sistema, em razão das avaliações feitas pelos clientes do aplicativo ou por qualquer outro motivo ignorado pelo “parceiro”, já que o contrato entre eles prevê essa possibilidade, sem maiores explicações. (CASTILHO, 2019, on-line)
Como se vê, e ao contrário do que muitos da doutrina e jurisprudência acreditam, a atuação dos algoritmos nessas atividades não se limita ao fornecimento de dados, mas funciona como verdadeira pedra de toque decisiva no lugar do poder diretivo do empregador, pois, além de controlar, o algoritmo também avalia o serviço prestado, podendo aplicar penalidades típicas da relação de emprego, como advertência, suspensão e até mesmo a demissão – nesse caso, pelo desligamento do aplicativo (CASTILHO, 2021).
Nesse diapasão, é válido mencionar recente e emblemática decisão proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, o qual reconheceu presente o pressuposto da subordinação entre a motorista de aplicativo e a empresa Uber, dispondo sobre a realidade da sistemática de direção algorítmica existente nessas atividades, em que o trabalhador, ainda que sob o véu da autonomia, tem sua liberdade limitada ou até ceifada por esses sistemas:
O exercício de poder diretivo e disciplinar da UBER sobre NOME DA AUTORA está exaustivamente demonstrado como presente, característico e central na relação jurídica entre UBER e a motorista NOME DA AUTORA.
Da prova dos autos, extraio, em síntese:
a) As regras para o desenvolvimento da atividade de motorista estão rigidamente fixadas no contrato de adesão, reservando-se a UBER a alterá-las unilateralmente, em verdadeiro jus variandi; fixadas no contrato de adesão;
b) As regras para o comportamento do motorista estão rigidamente fixadas no contrato de adesão;
c) Cada regra fixada está acompanhada da consequência pelo seu não cumprimento que é a suspensão temporária ou desativação, ou seja, a ruptura do contrato;
d) A UBER, pelo algoritmo, suspende temporariamente o motorista que faz sucessivos cancelamentos;
e) A ferramenta de geolocalização fiscaliza o tempo e o modo de realização da atividade de motorista;
f) A UBER, pelo algoritmo, decide pelo envio de mensagens para os motoristas para que não cessem o trabalho;
g) O algoritmo decide pelo envio de mensagens para o motorista para que o motorista reduza sua taxa de cancelamento;
h) A UBER adverte os motoristas de que sua taxa de avaliação está abaixo da “média” da região;
i) A UBER envia mensagens e e-mails com orientação sobre como melhorar a sua avaliação;
j) O descumprimento das regras conduz a ruptura do contrato, após advertência e suspensão;
k) A UBER avalia unilateralmente e sem qualquer possibilidade de manifestação do motorista, decidindo a seu exclusivo critério, pela ruptura do contrato. (RIO DE JANEIRO, 2021, p. 36, grifos nossos)
Como se percebe, ainda que essas empresas, como é o caso da Uber, defendam suas práticas com base na autonomia dos trabalhadores, sendo estes “parceiros” da plataforma, a realidade é que tais indivíduos estão subordinados, ainda que não direta e pessoalmente, às plataformas, por meio da utilização dos algoritmos. Essa nova roupagem de nada serve além de mascarar a natureza jurídica do instituto.
5 A NECESSIDADE (OU NÃO) DE ATUALIZAÇÃO JURÍDICA-NORMATIVA SOBRE O TEMA
Sabe-se que, de acordo com o art. 6º da CLT, entendimento dado pela Lei nº 12.551 de 2011, a transição do controle pessoal e direto sobre os serviços para os meios telemáticos e remotos em nada altera a essência do conceito da subordinação jurídica, cuja previsão legal deriva da expressão “sob dependência”, constante no art. 3º desta mesma consolidação. Conforme aponta Carrion (2018, p. 56), “a relação de emprego independe da forma que o empregador usa para comandar, controlar e subordinar o emprego”. Dessa forma, ao primeiro olhar, não haveria necessidade de uma inovação legislativa para regulação do tema, podendo a releitura da noção do conceito de subordinação ser operada pela doutrina e jurisprudência, como assim foi feito durante décadas.
Por outro lado, é cediço que, ao deparar-se com uma nova realidade, o Direito do Trabalho deve caminhar para frente. Nessa missão progressista, as mudanças realizadas pelas evoluções tecnológicas hão de resultar em atualizações jurídico-legislativas que ajudem a compreender e definir melhor o conceito de subordinação mediante experiências telemáticas e informatizadas de comando de trabalho, ainda que feitas sob atuação de algoritmos, dado que esse comando, antes de tudo, é realizado por alguém (humano) que o programou para isso (CASTILHO, 2021).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se, de um lado, surgiram novas formas de trabalho para garantir a subsistência de maior número de trabalhadores, por outro, a precarização mostra a cada dia sua face. O trabalho realizado presencialmente, no ambiente da empresa, encontra-se cada vez mais escasso. No entanto, isso não significa dizer que os envolvidos nessas relações jurídicas estejam trabalhando menos ou ganhando mais. Ao contrário, o trabalho é cada vez mais extenuante para poucos ganhos financeiros, decorrentes da oferta para a multidão. Ressalte-se ainda que, mesmo distante do ambiente da empresa, os trabalhadores sofrem forte controle, ainda que trabalhando por meio de plataformas virtuais. Esse controle é contínuo e implacável, maior que o de um chefe ou patrão, pois não controla apenas a atividade do trabalhador enquanto este está à disposição da empresa; o algoritmo, na realidade, controla toda a vida do indivíduo, dia e noite, suas atitudes, seu comportamento, suas escolhas na realização do trabalho.
Nesse sentido, conforme verificamos, os trabalhadores em plataformas digitais não podem ficar excluídos da proteção mínima trabalhista. Portanto, as revoluções tecnológicas devem resultar em atualizações jurídico-legislativas que ajudem a compreender e definir, de forma mais precisa, a noção e o conceito desse tipo de subordinação realizada mediante algoritmos, a que estão submetidos tais trabalhadores, não só para que se alcance a segurança jurídica, como também para que o próprio Direito do Trabalho possa cumprir as funções que lhe são peculiares.
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[1] Especialista em Direto e Processo do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Advogada.
Especialista em Direto do Trabalho pela Universidade de São Paulo. Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Juíza do Trabalho do TRT da 2a Região. Professora Universitária das Faculdades Metropolitanas Unidas.
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