RESUMO: A prisão preventiva, presente no ordenamento jurídico brasileiro, deverá ser decretada se houver a prova da existência do crime concomitante com os indícios suficientes da autoria e, ainda, deverá atender o pressuposto fundamental fumus comissi delecti. Na ausência desses requisitos, previstos na legislação processual penal, essa medida cautelar se torna ilegal tendo em vista que, conforme determina a Constituição da República de 1988, a regra é a liberdade, e a prisão é exceção. Nesta perspectiva, a presente pesquisa procura demonstrar se, na aplicação do respectivo regulamento, há desrespeito aos direitos e garantias fundamentais consolidados na Constituição da República de 1988, notadamente no que se refere ao princípio da dignidade da pessoa humana, ao direito à vida e à liberdade, bem como ao princípio da presunção do estado de inocência. Ademais, será versado acerca de como o Supremo Tribunal Federal tem aplicado as alterações trazidas pelo pacote anticrime sobre esta questão, especialmente no que concerne às consequências da não revisão dos requisitos da prisão preventiva após o prazo de 90 dias exposto no art. 316, do Código de Processo Penal.
Palavras-chave: Prisão Preventiva; Garantias Fundamentais; Ordenamento Jurídico Brasileiro.
SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Os contornos jurídicos da prisão preventiva no Brasil 2.1 Pressupostos de admissibilidade e fundamentos 2.2 Hipóteses de cabimento 3 A prisão preventiva no retrocesso dos direitos fundamentais 3.1 O princípio da presunção do estado de inocência 3.2 Da dignidade da pessoa humana 4 A problemática em torno da necessidade de revisar o prazo de 90 dias para manutenção da prisão preventiva 5 Conclusão 6 Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
A prisão preventiva, mesmo diante da sua imprescindibilidade, apresenta caráter excepcional, uma vez que há outras modalidades cautelares no ordenamento jurídico braseiro menos gravosas ao acusado. Esse presente estudo tem por objetivo, mas não com a pretensão de exaurir o tema, em analisar se, na aplicação deste instituto, não há violação de garantias constitucionais conquistadas na ordem democrática brasileira.
Com o propósito de delimitar o tema, será realizada uma reflexão acerca da relação da aplicação desse instituto com os princípios e direitos envolvidos, notadamente o princípio do estado de inocência. A restrição ao jus libertatis deverá ser justificada e fundamentada exaustivamente, de forma a demonstrar a extrema necessidade em acautelar o processo.
Contudo, ainda que em determinados casos específicos, a aplicação dessa norma seja necessária para garantir o efetivo desenrolar do processo, resguardar a investigação criminal, bem como proteger a sociedade, deverá ser feita dentro do que reza a lei, sem, contudo, violar garantias fundamentais de valor maior, inerentes à condição digna do ser humano, como o direito à vida e à liberdade.
A Lei do Pacote Anticrime, de nº 13964 de 2019, trouxe alterações significativas nos requisitos para a decretação da Prisão Preventiva de modo a exigir fundamentação mais incisiva à sua aplicação. As hipóteses já apresentadas anteriormente no Código de Processo Penal permaneceram.
De tal forma, dentre as inovações apresentadas, foi acrescida, ainda que inédita em ordenamento jurídico brasileiro, a exigência de que se fundamente também a prova do perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado. Com este novo requisito, retira se a presunção de perigo do acusado apenas pela análise dos já existentes na norma em questão.
Ademais, outra grande modificação tão importante quanto, é a obrigação, de ofício, em revisar a manutenção dessa custódia cautelar, após o prazo de 90 dias, pelo mesmo órgão que a determinou, sob pena de tornar essa medida ilegal. Com isso, tem se o intuito de evitar o seu prolongamento por tempo indeterminado sem formação da culpa e, dessa forma, perder a sua natureza cautelar, o que ensejaria em irregularidade, uma vez que é vedado a aplicação desse instituto como antecipação de pena.
Nesse diapasão, será tratada a problematização enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal acerca das consequências da não revisão, no prazo determinado em lei, dos fundamentos que ensejaram na segregação cautelar, tendo em vista que existe no ordenamento jurídico brasileiro a presunção de inocência, bem como a não culpabilidade ao acusado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
2 OS CONTORNOS JURÍDICOS DA PRISÃO PREVENTIVA NO BRASIL
A prisão preventiva é uma medida cautelar, de natureza processual, presente no ordenamento jurídico brasileiro. Este instituto possui por finalidade acautelar o justo processo penal, de forma a garantir que o futuro provimento jurisdicional seja eficaz bem como evitar a desordem social. No entanto, jamais deverá ser tratado como forma de antecipação da pena privativa de liberdade, violando, dessa forma, o princípio do estado de inocência.
A sua aplicação deverá sempre ser de forma fundamentada e motivada, sob pena de torná-la ilegal e assim, resultar em cerceamento arbitrário, o que vai de encontro ao direito constitucional de liberdade de locomoção, conquista fundamental no Estado Democrático de Direito.
Vale por bem ressaltar que somente caberá a aplicação desta norma devido ao seu caráter excepcional previsto no art. 282, § 6º, do Código de Processo Penal, em situações nas quais não seja possível o uso de outras medidas cautelares menos gravosas, como as previstas no rol do art. 319 do Código de Processo Penal. Nas palavras de Fernando Capez (2021, p.348), tem-se o conceito.
A prisão preventiva é uma prisão processual de natureza cautelar decretada pelo juiz em qualquer fase da investigação policial ou do processo criminal, antes do trânsito em julgado da sentença, sempre que estiverem preenchidos os requisitos legais e ocorrerem os motivos autorizadores.
É evidente que, conforme bem assinalou o supracitado respeitável doutrinador, esse instituto, que é muito utilizado na jurisprudência brasileira, somente caberá em dois momentos. Durante a investigação criminal ou no curso do processo penal, neste, desde o seu início até a sentença recorrível, sob a condição de estarem presentes os requisites legais.
Cabe frisar que, até mesmo na fase recursal, é possível a sua aplicação, desde que não trate de recurso de defesa, por força do princípio da proibição da reformatio in pejus. Princípio este que consiste na proibição da reforma da decisão recorrida de forma a causar prejuízo à parte a assim evitar que piore a situação do recorrente, isso, desde que a outra parte não recorra.
Ainda no que tange à sua aplicação diante do caso concreto, a análise judicial dos meios que a ensejam, consoante o art. 312, do CPP, deve ser realizada criteriosamente, de forma mais embasada e consistente, uma vez que essa medida irá restringir a liberdade de locomoção do acusado sem sentença definitiva. Rangel (2021, p. 677) contribui de forma imprescindível para esse entendimento, quando diz:
A medida cautelar a ser adotada deve ser proporcional a eventual resultado favorável ao pedido do autor, não sendo admissível que a restrição à liberdade, durante o curso do processo, seja mais severa que a sanção que será aplicada caso o pedido seja julgado procedente. A homogeneidade da medida é exatamente a proporcionalidade que deve existir entre o que está sendo dado e o que será concedido.
Em vista disso, devido ao caráter instrumental da respectiva medida cautelar, o meio aplicado deve ser imprescindível para atingir o fim. Nesse viés, a praticidade eficaz do procedimento comum deve estar condicionada à decretação da prisão preventiva.
Todavia, ainda que presentes todos os pressupostos legais da referida medida, a sua aplicação deve conter seus alicerces em critérios triplos, ou seja, análise da necessidade, adequação e proporcionalidade da medida. O primeiro condiz no fato de, dentre os meios existentes para o sucesso do processo, o escolhido é o que menos irá restringir os direitos fundamentais do envolvido. O segundo, por sua vez, justifica ser a escolha em questão a melhor forma em manter a integridade da jurisdição e, por fim, o último atesta se as vantagens da aplicação da referida medida superam as desvantagens da mesma.
Diante dessa análise, evitar-se-á a decretação desnecessária da medida cautelar em questão, como qualquer outra prevista em lei brasileira, de forma a impedir que haja a banalização do instituto em prol da justiça, tão almeja, inerente ao trato com o suspeito de um crime no Estado de Direito.
2.1 Pressupostos de admissibilidade e fundamentos
A prisão preventiva é a única cautelar de natureza processual permitida em lei no curso do processo, tendo em vista o que dispões o art. 311, do CPP: “Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público, ou do querelante, ou mediante representação da autoridade policial”.
Houve significativa alteração no artigo supra com o advento da nova Lei do projeto anticrime. A decretação dessa medida cautelar não poderá ocorrer, de ofício, pelo juiz, na fase pré-processual. O magistrado fica adstrito à requerimento do Ministério Público ou da representação de autoridade policial. É mister salientar que a lei aumentou o rol dos legitimados para requerer a prisão preventiva, incluindo o assistente de acusação.
A excepcionalidade da medida em estudo encontra fundamento no princípio da Ultima ration, uma vez que somente poderá ser aplicada se esgotadas medidas não restritivas da liberdade bem como se presentes todos os pressupostos legais.
Estes pressupostos vêm delineados no art. 312, do CPP:
A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.
Parágrafo único. A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4º).
Nesta questão, tem-se o estudo minucioso das expressões fumus boni iuris e o periculum in mora na demonstração de tais requisitos caracterizadores de tal medida cautelar. O primeiro, também denominado pela doutrina de fumus comissi delicti, refere-se à existência de prova da existência de um crime e indícios suficientes da sua autoria. O segundo, igualmente classificado como periculum libertatis, ocorre quando faz se presente, no mínimo, um dos elementos previstos no caput do artigo supra, concomitantemente, com a comprovação indubitável do perigo que decorre do estado de liberdade do agente.
Evidencia se, no entanto, a importância em estabelecer o caráter subjetivo desses elementos, sobretudo da expressão garantia da ordem pública, devido à vagueza e imprecisão conceitual.
Num segundo plano, mesmo com a presença desses caracterizadores vistos acima, faz se necessário, no caso concreto, verificar as hipóteses legais para a decretação da prisão preventiva que serão analisados a seguir.
2.2 Hipóteses de cabimento
Ainda que atendidos os pressupostos e fundamentos caracterizadores da prisão preventiva, a sua decretação somente se dará mediante as hipóteses claras previstas no art. 313, do CPP:
Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva:
I – nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos;
II – se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal;
III – se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência;
IV – (revogado).
§ 1º Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019).
§ 2º Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019).
Cabe ressaltar a alteração do § 2º, ao referido artigo, pela Lei anticrime com o intuito de não se admitir a decretação dessa medida como forma de antecipação da pena devido à gravidade dessa medida. No entanto, dentro da razoabilidade e proporcionalidade da medida, sempre será feita a análise se não há medida menos gravosa, como bem assinala o saudoso Rangel, (2021, p. 727):
O Estado deve adotar outras medidas de garantias que não a custódia cautelar, pois como é cediço por todos, o princípio da intervenção mínima do Estado na esfera das liberdades públicas deve prevalecer no Estado Democrático de Direito. O máximo de garantias e o mínimo de intervenção pública.
Nestes termos, evidencia-se três possibilidades para a aplicação do instituto em estudo. Primeiramente, deve-se observar o disposto do art. 313, do CPP, segundo se há o fumus comissi delicti e o terceiro e último periculum libertatis. Diante disso, e ainda com fundamentação no art. 315, do CPP c/c o art. 93, inciso IX, da CR/88, o juiz poderá decretar a prisão preventiva.
3 A PRISÃO PREVENTIVA NO RETROCESSO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Com a Constituição da República de 1988, houve a consolidação dos direitos fundamentais inerentes ao Estado Democrático de Direito, que limitam a ação estatal perante o particular. Esses direitos, elencados no art. 5º, da Carta Magna, são tidos como cláusula pétrea e são interpretados de forma sistemática em todo o texto constitucional, ou seja, em toda imposição legal, deve-se, primordialmente, considerar os princípios norteadores da condição digna do ser humano, sobretudo no que tange a questões processuais penais.
A prisão preventiva representa uma medida de caráter extremo na privação da liberdade individual do acusado, uma vez que não decorre do devido processo legal. Essa medida cautelar, além de se submeter, rigorosamente, aos pressupostos legais, deve respeitar os direitos fundamentais presentes na Constituição da República de 1988. Institutos estes que têm por objetivo a observância das garantias mínimas na busca de uma tutela jurisdicional justa de forma a impor limites ao jus puniende estatal.
Ainda que sua aplicação tenha fundamentação legal, deve ser realizada no tempo necessário, dentro da razoabilidade, de forma a causar o mínimo prejuízo possível ao direito de ir e vir do suspeito, tendo em vista a sua presunção de inocência. O prolongamento de tal medida, além de denotar punição antecipada, trará consequências graves à vida social do imputado, bem como à sua condição de existência digna assegurada constitucionalmente. Além disso, irá criar entraves na sua relação com a sociedade como um todo, pois será vítima de atitudes preconceituosas que dificultarão o exercício da sua cidadania.
A prisão preventiva, ainda que necessária para a eficácia processual, bem como para a manutenção da ordem pública, fere valores fundamentais que estão presentes, de forma explícita ou implícita, nos textos constitucionais. Valores estes, conquistados democraticamente, são a base do ordenamento jurídico brasileiro, como o direito à vida e à liberdade, a presunção de inocência, notadamente o princípio da dignidade da pessoa humana, considerado pela doutrina e jurisprudência como um meta princípio, pilar para os demais direitos fundamentais.
Em função disso, a aplicação dessa medida cautelar somente se dará como ultima ratio, devendo, portanto, ser adotada com a devida cautela. Ainda que não haja hierarquia entre princípios, pois a relevância de cada um será determinada de acordo com o caso em concreto, será feita a seguir uma breve análise dos principais princípios que mais correlacionam com o tema em questão: A presunção de inocência e a dignidade da pessoa humana.
3.1 O princípio da presunção do estado de inocência
A CR/88 foi a primeira a estabelecer de forma clara e expressa esse princípio, no seu art. 5º, inciso LVII, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, também conhecido como o princípio da não culpabilidade. Não se presume a inocência e sim presume o estado de inocência ou não culpabilidade
Esse princípio estabelece uma regra de tratamento que limita o exercício do poder jurisdicional, da sociedade e de qualquer indivíduo perante o acusado. Nenhuma consequência jurídica administrativa e moral decorrente da prática de infração penal pode antecipar da sentença penal, ou seja, somente o juiz natural pode determinar a pena por meio do devido processo legal, único meio de efetivação do jus puniendi estatal. É a garantia do respeito ao poder jurisdicional.
É importante salientar que a presunção não é absoluta e sim relativa que só poderá ser desconstituída com o devido processo legal. Isto significa que enquanto há processo, há a presunção do estado de inocência, que só é determinada com o trânsito em julgado da sentença condenatória que demanda um juiz de certeza. Por isso o caráter excepcionalíssimo da prisão preventiva, adotada como ultima ratio na busca do equilíbrio entre esse princípio e a efetividade da função jurisdicional penal.
Diante dos pressupostos legais, na aplicação da respectiva medida cautelar, como qualquer outra permitida no ordenamento jurídico, nas palavras do Bernardo Gonçalves Fernandes (2018, p. 546), “o acusado deve ser tratado como inocente no curso de o processo criminal, observados os direitos e as garantias a ele inerentes”.
3.2 Da dignidade da pessoa humana
A dignidade da pessoa humana é imprescindível na garantia dos direitos fundamentais decorrentes do Estado Democrático de Direito. Presente de forma explícita na Constituição da República, em seu art. 1º, inciso III, o princípio da dignidade humana está, também, de forma implícita, em toda e qualquer norma, uma vez que é o pilar para a garantia dos direitos humanos fundamentais e, ainda, é de extrema importância na tutela do processo penal brasileiro.
Nucci Guilherme de Souza (2019) caracteriza o princípio em questão como objetivo e subjetivo. No primeiro aspecto, o autor refere-se ao mínimo existencial ao ser humano no que concerne às necessidades básicas reconhecidas no art. 7º, da Carta Magna em seu inciso IV. Já, na forma subjetiva, consiste no desenvolvimento da personalidade, sobretudo no que condiz ao sentimento de respeito e autoestima na relação com o outro, bem como na tutela do Estado.
O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana é essencial em todo ordenamento jurídico brasileiro pois constitui uma base para a efetivação dos direitos e garantias individuais. A sua relevância deve ser considerada sobretudo no que concerne às medidas que limitam direitos, notadamente no âmbito penal e processual penal, ressaltando, nesse contexto, a aplicabilidade das medidas cautelares necessárias à garantia do devido processo legal.
O ser humano deve possuir condições mínimas de forma a lhe assegurar sobrevivência digna. Ainda que se trate do encarcerado, independente qual delito tenha cometido, deve ser tratado com respeito e dignidade, assegurando-lhe a devida ressocialização de forma a ser reintegrado, dignamente, à sociedade.
De toda forma, o preso não deve ser submetido a celas imundas, fétidas e insalubres, uma vez que fere a sua dignidade. Ainda que o prisioneiro tenha atentado contra a dignidade do outro, o Estado, ente perfeito e abstrato, fomentador do direito e da justiça, não deve agir com espírito de vingança e sim, agir com imparcialidade, moral e eticidade em prol do Estado Democrático de Direito na aplicação da justiça.
Todavia, quando há banalização na decretação do instituto da prisão preventiva, seja no excesso de prazo, seja na não aplicabilidade da razoabilidade e proporcionalidade, há nítido desrespeito à dignidade humana em decorrência da presunção de inocência, bem como uma agressão ao debate democrático. No que tange ao preso preventivamente, este deve permanecer local condizente com sua condição de inocente, até que prove em contrário.
Ainda que a prisão cautelar seja aplicada com o objetivo de preservar a efetividade da instrução criminal numa situação concreta, o Estado, no exercício do seu poder punitivo diante da ocorrência de crime, não pode transformar essa prerrogativa em antecipação da pena sem o devido processo legal. Ademais, deve haver significativa ponderação acerca da dignidade humana, visto que este princípio sustenta a harmonização dos demais, notadamente o da presunção de inocência.
4 A PROBLEMÁTICA EM TORNO DA NECESSIDADE DE REVISAR O PRAZO DE 90 DIAS PARA MANUTENÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA
A medida cautelar tratada nesse trabalho está pautada, entre outros, nos princípios da provisionalidade e o da provisoriedade. O primeiro, consagrado no art. 282, §§ 4º e 5º, do CPP, está relacionado com a situação fática que ensejou a aplicação da prisão preventiva, ou seja, os elementos legitimadores da aplicação de tal medida já citados anteriormente: fumus commissi delicti e/ou no periculum libertatis.
Segundo o ordenamento jurídico brasileiro, com o afastamento de quaisquer requisitos que justifiquem a presente segregação, deve-se, de imediato, ocorrer a soltura do imputado. O desrespeito a esse princípio torna o ato ilegal, devendo, portanto, ser revogado ou, se necessário ao curso do processo, substituído por medida mais branda, como as elencadas no art. 319, do mencionado código.
Aury Celso Lima Lopes junior (2021, p.256) ainda cita, em sua obra, o princípio da “Atualidade ou Contemporaneidade do Perigo” o qual determina:
“Para que uma prisão preventiva seja decretada, é necessário que o periculum libertatis seja atual, presente, não passado e tampouco futuro e incerto. A “atualidade do perigo” é elemento fundante da natureza cautelar.”
No que condiz ao princípio da provisoriedade, a aplicação da respectiva medida deve estar condicionada ao fator tempo. A sua duração deve ou deveria ser mínima, tendo em vista a presunção de inocência do imputado e, ainda, não deve ensejar antecipação da pena, uma vez que, no ordenamento jurídico brasileiro, não há condenação sem o devido processo legal.
A indeterminação dessa medida gera consequências gravosas ao acusado, sobretudo quando se trata de inocente. A falta de um prazo determinado, suficiente à garantia da eficácia do processo, bem como para a segurança da sociedade, fere toda uma principiologia inerente a um Estado Democrático de direitos, consagrada na Carta Magna, notadamente o princípio da dignidade da pessoa humana.
Houve tentativas, tanto da jurisprudência quanto na legislação, de regulamentar o prazo limite para duração da prisão preventiva, mas não obtiveram êxito. No primeiro caso, tentaram colocar o prazo de 81 dias como prazo máximo e na legislação, 180 dias. Ainda com os prazos estabelecidos nos ritos processuais para a audiência de instrução e julgamento, não foram indicativos para limitar o prazo em questão, uma vez que não possuem sanção, o que os tornam ineficazes.
Contudo, com o advento da lei anticrime de nº 13964/2019, houve uma inovação no art. 316, do Código de Processo Penal, no trato dessa medida, a saber:
O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.
Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.
Com a introdução do parágrafo único, surgiu o dever de revisar, no prazo de 90 dias, os elementos ensejadores da medida cautelar em estudo. Por se tratar de medida mais gravosa do Estado em relação à liberdade do agente, essa revisão é de fundamental importância. Se a situação momentânea que justificou a medida cautelar não mais existe, caberá ao Judiciário ordenar a respectiva revogação.
A ideia do legislador é evitar que o acusado fique encarcerado de forma negligente, tendo em vista a sanção aplicada caso a revisão não ocorra, ou seja, a prisão será considerada constrangimento ilegal. Nas palavras de Aury Lopes junior (2021, p.258), definiu-se tal inovação como:
“a grande evolução que evita que o juiz simplesmente “esqueça” do preso cautelar, bem como impõem o dever de verificar se persistem os motivos que autorizaram a prisão preventiva ou já desapareceram.”
Ademais, esperava-se como consequência disso o desencarceramento dos presos provisórios que ficam, de certa forma, abandonados à própria sorte, especialmente aqueles que não possuem condições financeiras para contratar um advogado, uma vez que a Defensoria Pública, devido às especificidades do sistema prisional brasileiro, não suporta a grande demanda.
No entanto, o esperado não ocorreu. O Supremo Tribunal Federal, por meio da decisão proferida no Caso André do Rap – HC 191.836/SP, firmou o seguinte entendimento: “a inobservância do prazo de 90 dias “não implica automática revogação da prisão preventiva e, consequente, concessão da liberdade provisória, devendo o juízo competente ser instado a reavaliar a legalidade e atualidade de seus fundamentos” (Aury Lopes Junior, p. 258, 2021)
O caso, de grande repercussão social, aflorou a discussão acerca de qual juiz deve fazer a revisão dos elementos ensejadores da prisão preventiva. O doutrinador Guilherme de Souza Nucci (2021, p. 701) menciona o seguinte entendimento doutrinário.
O ideal é que o juiz, prolator da decisão de segregação, seja imediatamente cobrado, quando o habeas corpus chegar ao tribunal. Se não houver motivo plausível nem para a falta de revisão nem mesmo para a continuidade da prisão, torna-se essencial que o tribunal conceda a ordem de HC para soltar o preso.
Vale ressaltar que, toda essa problemática se deu devido ao caso de grande repercussão social. Houve tratamento excepcional no STF na revogação da liminar do caso em comento, por se tratar de indivíduo de grande periculosidade, determinando pelo seu retorno à prisão. Era de se esperar que não houvesse censura da sociedade, tendo em vista, as consequências desastrosas do tráfico de drogas para a sociedade como um todo.
Contudo, o presente trabalho não possui a pretensão em discutir a decisão do STF. No entanto, deve-se pensar numa situação como essa, naquele inocente que teve a sua liberdade restringida sem o devido processo legal. A função do Direito Penal é limitar o jus puniend estatal. É fazer valer os direitos e garantias fundamentais presentes na Constituição, sobretudo a dignidade da pessoa humana e a presunção do estado de inocência.
Vale ressaltar, no entanto que, a não revisão do prazo em questão, poderá resultar na perpetuação indeterminada da pena. A situação ainda se agrava, tendo em vista que, conforme apresentado na jurisprudência, tal revisão tem sido realizada por força da impetração de Habeas Corpus por parte da defesa técnica contratada pelo agente, consoante exemplos do Supremo Tribunal Federal expostos abaixo:
HABEAS CORPUS CONTRA DECISÃO MONOCRÁTICA DE MINISTRO DE TRIBUNAL SUPERIOR. RECORRIBILIDADE. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. SUPERAÇÃO. EXCEPCIONALIDADE. SINGULARIDADE E RELEVÂNCIA DA CONTROVÉRSIA. PRISÃO PREVENTIVA. INOBSERVÂNCIA DO PRAZO ESTABELECIDO PELO ART. 316, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. CONCESSÃO AUTOMÁTICA DA LIBERDADE PROVISÓRIA. INVIABILIDADE. SEGREGAÇÃO CAUTELAR FUNDAMENTADA EM ACÓRDÃO CONDENATÓRIO. INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE. (HC 191836/SP. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgamento 23/11/2020. Publicação 01/03/2021. 1ª Turma, STF)
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. CRIMES DE TRÁFICO DE DROGAS. PRISÃO PREVENTIVA. INOBSERVÂNCIA DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 316 DO CPP.DECURSO DO PRAZO NONAGESIMAL QUE NÃO ACARRETA A SOLTURA AUTOMÁTICA DO CUSTODIADO. 1. Ausente pronunciamento judicial conclusivo da Corte anterior quanto à matéria trazida nos autos, inviável a análise do writ pelo Supremo Tribunal Federal, sob pena de indevida supressão de instância. Precedentes. 2. O Plenário deste Supremo Tribunal firmou entendimento no sentido de que o mero decurso do prazo de 90 (noventa) dias previsto no art. 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal, não conduz à soltura automática do preso preventivamente. 3. Agravo regimental conhecido e não provido. (HC 195272 SP 0110468-44.2020.1.00.0000. Publicação 12/05/2021. STF)
Entretanto, deve-se pensar, por conseguinte, na maior parte dos encarcerados preventivamente que, por questões já expostas nesse tópico, não fazem uso dessa ação constitucional. Dessa forma, ficam com seus direitos e garantias constitucionais prejudicados por um sistema ineficaz e, ainda, submetidos a condições precárias do sistema prisional brasileiro. Com tudo isso, tal revisão, imposta pela lei, deveria ser realizada de ofício, tendo em vista tratar de relevante bem jurídico do acusado, a sua liberdade. Ademais, o exercício desse ato, conforme impõe a lei, evitaria a ocorrência de prisões ilegais e, consequentemente, contribuiria, sobremaneira, para diminuiu o encarceramento em massa.
5. CONCLUSÃO
O presente trabalho apresentou como propósito principal, levantar reflexão acerca dos abusos, por parte das autoridades responsáveis, da aplicação do instituto da prisão preventiva, sobretudo no que concerne à revisão do prazo de 90 dias, cuja finalidade é justificar a manutenção de tal medida. Foram apresentados posicionamentos doutrinários, bem como alguns exemplos jurisprudenciais de sua aplicação no Supremo Tribunal Federal.
As análises foram em torno dos pressupostos de validade da respectiva medida cautelar no ordenamento jurídico brasileiro presentes no Código de Processo Penal, bem como, tão importante quanto, dos princípios norteadores das garantias fundamentais consagrados na Constituição Federal vigente. Com isso, buscou-se compreender o atual entendimento do STF adotado no que tange às medidas voltadas para a manutenção da prisão preventiva após o prazo do art. 316, do CPP.
Tal análise buscou confrontar a aplicação de medida cautelar em questão com os princípios fundamentais ao Estado Democrático de Direito. Entre outros da mesma magnitude, foi realizada abordagem em torno dos princípios da dignidade da pessoa humana, bem como do princípio da presunção do estado de inocência no que se refere, sobretudo, aos reflexos desastrosos do excesso de prazo dessa segregação cautelar.
A problematização surge quando se extrapola os limites legais para a implementação da respectiva medida, de forma a acarretar banalização na sua aplicação. Uma prisão que, a princípio se faz necessária na aplicação do devido processo legal e na manutenção da paz social, torna-se ilegal quando não respeita os direitos e garantias fundamentais do acusado, notadamente no que condiz a bens jurídicos relevantes, como o direito à vida e à liberdade.
Nesse diapasão, tendo em vista que não há nenhuma garantia constitucional absoluta, é de extrema urgência a busca do equilíbrio, com a devida proporcionalidade e razoabilidade, na aplicação dessa medida na restrição à liberdade do acusado. Nessa linha de raciocínio, a revisão do prazo em questão não pode ser negligenciado, uma vez que as consequências de uma prisão ilegal para o indivíduo, podem ser irreversíveis na sua vida pessoal, tão ou mais na social.
Diante dos pressupostos de validade da cautelar em questão, nos termos da lei, deve-se buscar efetivamente, o que se propõe tal instituto, a aplicação justa do devido processo legal, preservando, de toda forma, os direitos e garantias individuais. Há situações fáticas, que tal medida torna-se imprescindível para a preservação da eficácia da persecução penal, notadamente, no que se refere à aplicação justa dessa medida coercitiva, como qualquer outra medida cautelar.
No entanto, se realizada, de modo a desprezar bens jurídicos de grande relevância do suspeito, gera excesso do poder punitivo estatal. Poder este que deve ou deveria encontrar limites nos princípios constitucionais. Vale ressaltar, contudo, que o uso indiscriminado da prisão preventiva, de forma a negligenciar o sistema, coloca em xeque a segurança jurídica, tão essencial no Processo Penal.
Ademais, deixa evidente que, o procedimento em questão, visto que promove o encarceramento em massa, perde seu caráter excepcional e, passa a ser questionado acerca de seu uso deliberado sobre aqueles que não fazem jus a uma defesa técnica eficiente. Ainda que a não revisão do prazo no memento certo não incorra em ilegalidade da medida, conforme entendimento do STF, deve-se, na pior das hipóteses, haver coexistência entre as garantias individuais e a defesa social.
Diante de todo o exposto, fica evidente que o presente trabalho, considerando os canais de pesquisa utilizados, cumpriu com o seu objetivo de, sem jamais apresentar a presunção de esgotar o tema, contribuir para a reflexão acerca da importância em discutir a problematização relacionada ao mesmo. Que outras ideias dialógicas sejam desenvolvidas, com o intuito de aprimorar, com o equilíbrio esperado, a aplicação das medidas cautelares presentes no CPP.
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graduanda do curso de Direito na faculdade Una-Aimorés- BH/MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JâNIA FRANçA, . A prisão preventiva e o retrocesso às conquistas democráticas do sistema jurídico brasileiro a partir da Constituição Federal de 1988. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 dez 2021, 04:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57851/a-priso-preventiva-e-o-retrocesso-s-conquistas-democrticas-do-sistema-jurdico-brasileiro-a-partir-da-constituio-federal-de-1988. Acesso em: 23 dez 2024.
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