RENATA RODRIGUES DE CASTRO ROCHA
(orientadora)
RESUMO: O presente artigo buscou estudar como a imigração forçada dos indígenas venezuelanos da etnia Warao pôs em cheque a promoção dos direitos humanos do refugiado em Palmas, Tocantins, a partir do ajuizamento de uma Ação Civil Pública, pois se encontravam em situação de rua, pedindo por “esmolas” nos semáforos. Para tanto, analisou-se, inicialmente, a relação jurídico-processual da matéria em questão, bem como os reflexos sociais e humanitários concretos, a partir dos ordenamentos jurídicos nacional e internacional. Foram consultados instrumentos normativos, entendimentos jurisprudenciais da Cortes Superiores, atos administrativos e judiciais internos, reportagens de veículos de imprensa locais, estudos sociais e etnológicos a respeito da temática indígena, além da literatura internacional especializada. As considerações finais sugerem que se trata de temática delicada, pela sua própria natureza jurídica, e que a Defensoria Pública da União realizou um trabalho produtivo ao propor a Ação Civil Pública, atendendo absolutamente todos os preceitos e fundamentos necessários.
Palavras-chave: Direitos Humanos dos Refugiados; Defensoria Pública da União; Ação Civil Pública; indígenas venezuelanos da etnia Warao.
ABSTRACT: The current article had seeked to study how the forced immigration of Venezuelan Warao indigenous people has questioned the guarantee of the human rights of refugees in Palmas, Tocantins, since the proposal of the Public Civil Suit, because they were in a homeless situation, begging for "handouts” at traffic lights. For this purpose, the legal relationship of the matter in question, as well as the social and humanitarian reflexes, from the national and international legal systems were initially analyzed. Normative instruments, jurisprudential understandings of the Higher Courts, internal administrative and judicial acts, local press reports, social and ethnological studies on the indigenous theme, and specialized international literature were consulted. The final considerations suggest that this is a delicate subject, by its very legal nature, and that the Office of the Federal Public Defender did an efficient work in proposing the Public Civil Suit, fulfilling absolutely all the necessary precepts and foundations.
Keywords: Human Rights of Refugees; Federal Public Defender; Public Civil Suit; Venezuelan Warao indigenous people.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. REFUGIADOS E DIREITOS HUMANOS. 2.1 - Migração dos Refugiados Venezuelanos da etnia Warao para o Brasil e suas implicações para os Direitos Humanos. 3.ÓRGÃOS (LATU SENSU) ENVOLVIDOS NA TUTELA JURISDICIONAL DOS REFUGIADOS WARAO, EM PALMAS/TO. 3. 1 - Fundação Nacional do Índio - FUNAI. 3.2 - União, Estados e Municípios. 3.3 - Secretaria de Habitação do Estado do Tocantins e Conselho Estadual do Conselho de Habitação. 4.ANÁLISE PROCESSUAL DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE N° 1002493-31.2021.4.01.4300 QUANTO AOS PRECEITOS LEGAIS E À TUTELA JURÍDICA DO POVO EM ESTUDO. 4.1 - A adequação do procedimento da ACP. 4. 2 - O preenchimento das condições da ação. 4.3 - A possibilidade e legalidade da concessão de tutela provisória de urgência para o amparo dos Warao, em Palmas, Tocantins. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
Em virtude da crise sociopolítica, econômica e humanitária vivenciada na Venezuela, amplamente reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) e seus órgãos subjacentes, houve um expressivo aumento no fluxo migratório dos povos desse país, dentre eles os indígenas da etnia Warao, aos seus vizinhos da América Latina, a exemplo do Brasil, o que ensejou à motivação do presente trabalho.
Nesse mesmo sentido, o jornal EL PAIS (2020) abordou este aumento abrupto da migração de venezuelanos ao Brasil, cenário que, hoje, faz com que estes constituam a maior população estrangeira em território nacional brasileiro, em número superior a 260 mil pessoas, dos quais mais de 45 mil são refugiados, até o final de 2020, importando no dobro do que se verificava até dois anos atrás.
Porém, justamente pelo fato de que o Estado de Roraima - o original epicentro do fluxo imigratório - não pôde, justificadamente, administrar toda a situação, a União, com incentivos financeiros internacionais, iniciou o procedimento de “interiorização” desses povos, ou, em outras palavras, o incentivo para que outras cidades do Brasil viessem a receber os venezuelanos que foram forçados a deixar os seus lares.
Isso levou o governo brasileiro a tomar providências pautadas na ação interinstitucional direcionada, a partir de 2018, pela Operação Acolhida, com o objetivo de melhor estudar e lidar com os impactos dessa repentina movimentação de cidadãos estrangeiros sob a qualificação de refugiados.
Ao mesmo tempo, o município de Palmas, capital do Estado do Tocantins, foi uma das localidades que passaram a receber os referidos imigrantes, situação em que foi evidenciada a ausência de políticas públicas e de preparo dos dois Entes supracitados, o que culminou em uma ação multifacetada dos órgãos e entidades competentes, a exemplo das Defensorias Públicas Estadual e Federal, além de representantes do Poder Público das respectivas áreas, a fim de que melhor se compreendesse a conjuntura.
Outrossim, é mister pontuar que o celeuma discutido concerne às aludidas omissões, além de manifestarem expresso descumprimento dos mandamentos maiores da Constituição da República Federativa do Brasil, bem como daquilo que foi pactuado em Tratados de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário, dão caráter de “lei morta” às Legislações Federal e Estadual que foram idealizadas a fim de que se fossem cumpridas as disposições maiores, além de impactar, de forma direta, na dignidade desse povo que já tanto sofreu e hoje apenas clama por uma existência plausível e que é prevista no ordenamento jurídico pátrio.
No que diz respeito ao aspecto processual, ressalta-se que, justamente pela natureza intrínseca ao instituto jurídico da tutela provisória, segundo a lei, a Doutrina e os posicionamentos dos Tribunais, a característica que mais predomina é a precariedade da decisão, uma vez que pode ser modificada e revogada a qualquer tempo, a depender do resultado do contraditório judicial do caso concreto.
Nessa ótica, apenas é evidenciada a atualidade e importância deste trabalho, que não se limitou ao estudo de fatos pretéritos, mas sim de uma conjuntura que é presente e que, inclusive, pode restar ainda mais evidenciada ao passar dos anos, uma vez que os processos migratórios na América do Sul estão longe de se darem por finalizados, em virtude das iminentes crises humanitárias.
Diante do exposto, a partir do método de abordagem hipotético-dedutivo, o presente artigo teve por objetivo analisar a atuação da Defensoria Pública da União na garantia dos direitos fundamentais dos povos indígenas da etnia Warao refugiados no município de Palmas, Tocantins. No que tange aos aspectos metodológicos, foi empregado o método qualitativo e documental na execução do estudo. Isto posto, realizou-se um levantamento bibliográfico e análise processual. Foram consultados instrumentos normativos, entendimentos jurisprudenciais da Cortes Superiores, atos administrativos e judiciais internos, reportagens de veículos de imprensa locais, estudos sociais e etnológicos a respeito da temática indígena, além da literatura internacional especializada.
Por fim, este trabalho buscou contribuir nas áreas dos Direitos Humanos dos Refugiados, bem como do Direito Constitucional e do Direito Internacional, balizados no Direito Processual Civil, tendo como respaldo o Direito Estadual Habitacional, ao melhor analisar e identificar as respectivas afrontas aos direitos fundamentais à saúde, à moradia e à alimentação pertinentes aos povos indígenas da etnia Warao residentes no Município de Palmas, no Estado do Tocantins.
2. REFUGIADOS E DIREITOS HUMANOS
Inicialmente, o refugiado pode ser conceituado como a pessoa humana que procura por asilo em país diverso do de sua origem, almejando proteção do estado estrangeiro (JUBILUT, 2007).
Desta mesma sorte, é imperioso destacar que o refugiado não se confunde com migrante (latu sensu), sendo este um gênero do qual aquele é uma de suas espécies. Ora, o migrante é qualquer pessoa que deixa a sua residência original e simplesmente busca por outra, pelos mais diversos motivos, não necessariamente entrelaçados a uma questão de proteção humanitária, comumente impulsionada por crises das mais diferentes naturezas, a exemplo das de cunho socioeconômico.
O refugiado, por outro lado, tem sua motivação no asseguramento de seus direitos básicos, inerentes ao cidadão nele mesmo, como os direitos à alimentação, moradia e saúde que, inclusive, contam com o status constitucional de “direitos sociais” conforme a disciplina da Constituição Federal, em seu Art. 6º, caput (BRASIL, 2021).
Ademais, nas observações de Masson (2021), é necessário esclarecer que os direitos sociais, por sua vez, também são concebidos como espécie do gênero direitos fundamentais, consistindo sua diferenciação apenas no tocante ao cunho de aplicabilidade. Apesar de existir uma sutil distinção, não é razoável buscar classificar esses dois grupos de direitos como se fossem essencialmente diferentes, pois não o são, uma vez que a Carta Magna disciplina acerca dos direitos fundamentais em capítulos estranhos ao do Artigo 5º.
Nesse mesmo sentido, nas lições de Jubilut (2007), a Constituição Federal elenca, em seu primeiríssimo artigo, os seus fundamentos, dentre eles, a dignidade da pessoa humana, que tem o condão de nortear toda a proteção dos direitos humanos dentro do território brasileiro. Por conseguinte, o artigo 3º diz respeito aos objetivos fundamentais, de modo a obrigar a todos (Administração Pública Direta e Indireta, de todos os níveis, bem como seus agentes públicos e, também, a própria sociedade civil) a se comprometerem com a sua efetivação do referido metaprincípio constitucional.
Quanto à divisão didática e teleológica, Jubilut (2007) também pontua que, apesar de o Direito Internacional dos Refugiados ser um ramo Direito Internacional dos Direitos Humanos, ambos apresentam o mesmo objeto, o mesmo método, os mesmos sujeitos e os mesmos princípios e finalidades, quais sejam: a proteção da pessoa humana na ordem internacional; regras internacionais a fim de assegurar essa proteção; o ser humano enquanto beneficiário e o Estado enquanto destinatário e encarregado principal das regras, pautadas na dignidade da pessoa humana.
Não obstante, o ordenamento jurídico brasileiro conta com uma Lei específica que também se preocupa em fornecer a conceituação legal do termo “refugiado”, qual seja a Lei Federal nº. 9.474/1997 (BRASIL, 1997), logo em seu Artigo 1º, in verbis:
Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:
I – devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;
II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior;
III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país (BRASIL, 1997, p.1).
Imperioso, de igual modo, é pontuar que o Brasil é signatário da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (ONU, 1951), posteriormente regulamentada e internalizada pela já citada Lei Federal nº 9.474, que assegura, logo em seus preceitos iniciais, que além de não haver qualquer forma de discriminação, os refugiados têm direito de estar em juízo, gozando do exato mesmo tratamento concedido a um nacional. Assim sendo, ainda que a Lei da Ação Civil Pública não discipline expressamente que também se aplica a refugiados, a legislação internacional resguarda clara e plenamente este direito.
No que tange ao contexto histórico, tem-se que a referida Convenção foi inicialmente adotada em 1951, entrando em vigor em 1954, sendo o Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), localizando-se sua sede em Genebra, Suíça. De acordo com o seu Estatuto, suas funções primordiais, são providenciar proteção internacional e buscar soluções permanentes para o problema dos refugiados. Trata-se, conforme o §2º, de um trabalho puramente humanitário e apolítico. A Convenção é, ainda hoje, a base de toda a legislação internacional sobre os direitos humanos, como um todo.
Ademais, após a edição de seu Protocolo de 1967 (ONU, 1967), concluído em Nova York, em Janeiro de 1967, essa pretensão a nível internacional foi finalmente viabilizada, eliminando a barreira meramente temporal de 1º de Janeiro de 1951, que dificultava o alcance da norma. No Brasil, devido ao fato de ser signatário do daquele, ocorreu a internalização do referido instrumento, por meio do Decreto nº. 70.946/72, que elucida, em seus preceitos iniciais, justamente a superação do marco temporal supracitado:
O Estados partes no presente protocolo,
Considerando que a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados assinada em Genebra, a 28 de julho de 1951 (doravante denominada Convenção), só se aplica às pessoas que se tornaram refugiados em decorrência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951.
Considerando que surgiram novas categorias de refugiados desde que a Convenção foi adotada e que, por isso, os citados refugiados não podem beneficiar-se da Convenção,
Considerando a conveniência de que o mesmo Estatuto se aplique a todos os refugiados compreendidos na definição dada na Convenção, independentemente da data-limite de 1º de janeiro de 1951 (BRASIL, 1978, p. 1). Grifo nosso.
Por fim, ainda no tocante à legislação internacional, também é plausível mencionar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais (OIT, 1989), que posteriormente foi consolidada e internalizada pelo recente Decreto n.º 10.088 (BRASIL, 2019), postula precisamente quem são considerados povos indígenas tribais, para todos os efeitos:
Artigo 1°
1. A presente convenção aplica-se:
a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial;
b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.
2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção (BRASIL, 2019, p.1).
Em virtude da crise sociopolítica, econômica e humanitária vivenciada na Venezuela, amplamente reconhecida pela Organização das Nações Unidas - ONU e seus órgãos subjacentes, houve um expressivo aumento no fluxo migratório dos povos desse país, dentre eles os indígenas da etnia Warao, aos seus vizinhos da América Latina, a exemplo do Brasil.
Segundo Pinto e Obregon (2019), ainda que seja uma tarefa difícil determinar uma data exata, em virtude de sua natureza essencialmente multifacetada e cumulativa, a Venezuela, aproximadamente desde a morte do então Presidente Hugo Chávez, em 2013, veio enfrentando um colapso de naturezas multifatoriais e com consequências diversas, em virtude do completo esgotamento do sistema econômico adotado pelo país.
Nesse sentido, como bem documentado pelo ACNUR (2019, p 10), “muitos venezuelanos buscam tratamento de saúde no Brasil, ou acabam contraindo doenças ou enfermidades durante o deslocamento, em razão da dificuldade de acesso a serviços básicos de saúde no país de origem”, o que apenas evidencia o desespero pela busca do refúgio.
O jornal EL PAIS (2020) abordou esse aumento abrupto da migração de venezuelanos ao Brasil, cenário que, hoje, faz com que estes constituam a maior população estrangeira em território nacional brasileiro, em número superior a 260 mil pessoas, das quais mais de 45 mil são refugiadas, até o final de 2020, importando no dobro do que se verificava até dois anos atrás.
Segundo a reportagem especializada supracitada, a maior parte dos migrantes buscou se situar no Estado de Roraima, devido à condição fronteiriça com a Venezuela. Porém, justamente pelo fato de que aquele - o original epicentro do fluxo imigratório - não pôde, justificadamente, administrar toda a situação, a União, com incentivos financeiros internacionais, iniciou o procedimento de “interiorização” desses povos, ou, em outras palavras, o incentivo para que outras cidades do Brasil viessem a receber os venezuelanos que foram forçados a deixar os seus lares, devido ao desafio que se tornou manter uma vida digna naquele local.
Isso levou o governo brasileiro a tomar providências pautadas na ação interinstitucional direcionada, a partir de 2018, pela Operação Acolhida, com o objetivo de melhor estudar e lidar com os impactos dessa repentina movimentação de cidadãos estrangeiros sob a qualificação de refugiados, dentre eles, estavam presentes os indígenas venezuelanos da etnia Warao.
Nessa perspectiva, como bem apresenta Durazzo (2020, p.1), a presença desse povo no território brasileiro vem crescendo de maneira paulatina, sendo naturalmente agravada em tempos recentes, devido à delicada conjuntura supracitada. Segundo o já citado doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN:
O povo Warao, tradicionalmente habitantes do delta do rio Orinoco (Venezuela), são um grupo étnico bastante diverso no que tange a suas formas de organização social e costumes, compartilhando uma língua comum, também chamada Warao, e totalizando, atualmente, cerca de 49 mil indivíduos. No Brasil, há registros de sua presença migratória desde pelo menos 2014, tendo esta se intensificado em anos recentes. Pela localização geográfica da Venezuela, os primeiros locais de migração para terras brasileiras se deram no Norte do país (Roraima, Amazonas, Pará). Tal fluxo logo se expandiu para outras capitais, já no Nordeste, como as do estado do Maranhão, Piauí e Ceará, e mais recentemente Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. No Rio Grande do Norte, no primeiro semestre de 2020, estima-se a presença de cerca de 40 famílias da etnia, tanto em Natal quanto em Mossoró (DURAZZO, 2020, p.1). Grifo nosso.
Ainda nessa perspectiva, a respeito dos indígenas Warao, o Ministério Público Federal (2017, p. 8) possui um parecer antropológico minucioso que buscou estudar as peculiaridades desse povo, a saber: “Na atual conjuntura econômica venezuelana, o deslocamento de indígenas Warao para as cidades brasileiras é motivado fundamentalmente pela busca de alimentos, trabalho fixo ou temporário e dinheiro, além do acesso à saúde”.
Em acréscimo, segundo a literatura estrangeira especializada de Yamada e Torelly (2018, p 65): “A heterogeneidade cultural dos Warao, advinda da multiplicidade de povos no período pré‐colonial no Delta do Rio Orinoco e suas adjacências e reunida em torno de uma unidade linguística, são características marcantes deste povo indígena”.
Por conseguinte, como levantado no bojo da petição inicial da Ação Civil Pública de processo nº 1002493-31.2021.4.01.4300 (2019), que tramita na 3ª Vara Federal, do TRF-1, SJ/TO, o município de Palmas, capital do Estado do Tocantins, foi uma das localidades que passaram a receber os referidos imigrantes, situação em que foi evidenciada a ausência de políticas públicas e de preparo dos dois Entes supracitados, o que culminou em uma ação multifacetada dos órgãos e entidades competentes, a exemplo das Defensorias Públicas Estadual e Federal, além de representantes do Poder Público das respectivas áreas, a fim de que melhor se compreendesse a conjuntura.
Inclusive, de forma a evidenciar a atualidade do celeuma, alguns veículos de imprensa locais buscaram tratar do assunto, devido ao fato de que os refugiados em questão se encontravam em situação de rua, insistindo em doações e “esmolas” e, infelizmente, valendo-se da condição manifestamente desumana e indigna (TV ANHANGUERA, 2019) ; (JORNAL GAZETA DO CERRADO, 2021); (FRANÇA, 2021).
3. ÓRGÃOS (LATU SENSU) ENVOLVIDOS NA TUTELA JURISDICIONAL DOS REFUGIADOS WARAO, EM PALMAS/TO
Nos ensinamentos de Bobbio (1997), em virtude de o direito programático “frio” - aquele que é previsto unicamente na norma - não ter a capacidade de se materializar no campo dos fatos, é natural que o Estado, enquanto entidade, busque criar mecanismos para que se eventuais direitos se tornem uma realidade, no plano concreto.
No caso do sistema jurídico-administrativo brasileiro, a repartição de competências ou atribuições se dá pela Administração Pública Direta e Indireta, bem como pelos seus respectivos agentes públicos, no exercício da função (PIETRO, 1993).
Dessa forma, conforme será explanado a seguir, a articulação de diferentes órgãos, no sentido genérico, se dá de maneira peculiar, a depender do caso concreto, uma vez que determinadas diretrizes normativas precisam ser observadas, a fim de que se atinja a adequada assistência estatal.
3. 1 Fundação Nacional do Índio - FUNAI
A Fundação Nacional do Índio (FUNAI), segundo sua página oficial virtual (BRASIL, 2020) é pessoa jurídica de direito público interno, na modalidade de autarquia federal de regime especial (PIETRO, 1993), sendo o órgão indigenista oficial do Estado Brasileiro. Foi criada por meio da Lei nº 5.371/1967 (BRASIL, 1967), vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, é a coordenadora e principal executora da política indigenista do Governo Federal. Segundo a própria autarquia:
Cabe à Funai promover estudos de identificação e delimitação (...). A Funai também coordena e implementa as políticas de proteção aos povos isolados e recém-contatados. A atuação da Funai está orientada por diversos princípios, dentre os quais se destaca o reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas, buscando o alcance da plena autonomia e autodeterminação dos povos indígenas no Brasil, contribuindo para a consolidação do Estado democrático e pluriétnico (BRASIL, 2020). Grifo nosso.
Contudo, ainda que de certa forma atípico, a FUNAI, em tese, deve ser contatada nos casos de quaisquer ocorrências concernentes a assuntos essencialmente indígenas e, em havendo ações judiciais, deve ser citada para integrar como parte legítima.
Não obstante, é dever da entidade estabelecer a articulação interinstitucional voltada à garantia do acesso diferenciado aos direitos sociais (latu sensu) e de cidadania aos povos indígenas, através da execução de políticas voltadas à seguridade social e educação escolar indígena, bem como promover o fomento e apoio aos processos educativos comunitários tradicionais e de participação e controle social.
Nessa ótica, segundo jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça (STJ), é imperioso ressaltar que a Funai é, sim, parte legítima processual nas causas que digam respeito a povos indígenas estrangeiros que se encontram no Brasil, desde que concernente ao interesse indígena.
A título de exemplo, fixa-se a decisão do referido Egrégio Tribunal Superior, sobre uma ação de reintegração de posse:
ADMINISTRATIVO. TERRAS INDÍGENAS. DEMARCAÇÃO. ART. 63 DA LEI Nº 6.001/73. NECESSÁRIA OITIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. O art. 63 da Lei nº 6.001/73 determina que "nenhuma medida judicial será concedida liminarmente em causas que envolvam interesse de silvícolas ou do Patrimônio indígena, sem prévia audiência da União e do órgão de proteção ao índio". Assim, deve ser anulada a decisão que concedeu liminar de reintegração de posse de terras em processo de demarcação sem atentar para a regra insculpida nesse dispositivo legal. 2. Prejudicada a análise do mérito da liminar concedida. 3. Recurso especial provido. (REsp 840.150/BA, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 10/04/2007, DJ 23/04/2007, p. 246) BRASIL, 2007, p.1). Grifo nosso.
Frisa-se que, apesar de não ser uma ação idêntica, há perfeita correlação com o objeto do presente trabalho, no que diz respeito à mera legitimidade da autarquia de regime especial em análise. Em conseguinte, o Relator e Ministro do STJ Castro Meira melhor explora essa questão, ao decidir que:
Malgrado as ponderações deduzidas no julgado, não há dúvida de que se impõe ao julgador as oitivas obrigatórias da União e da Funai em causas de interesse dos índios, o que grava de nulidade insanável a decisão de primeiro grau que deferiu a medida acautelatória. (REsp 840.150/BA, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 10/04/2007, DJ 23/04/2007, p. 246) BRASIL 2007, p.1). Grifo nosso.
Não obstante, por força do Estatuto dos Refugiados (Lei n. 9.474/97) e da Lei de Migração (Lei n. 13.445/2017), há o reforço normativo no que diz respeito à garantia de acesso aos serviços públicos essenciais de saúde sem qualquer discriminação entre nacionais e estrangeiros, ficando a Funai, igualmente, vedada de conceber tratamento discriminatório aos refugiados e migrantes. Facilita-se, assim, o acesso à justiça àqueles que mais precisam.
Por fim, no caso concreto que é objeto do presente trabalho, decidiu o Juiz Federal competente que a Funai, a contar da Decisão Interlocutória, passasse a acompanhar a situação enfrentada pelos Waraos, de modo a prestar todo e qualquer suporte técnico que se fizesse necessário, indicando, inclusive, políticas públicas que estão, ou não, sendo aplicadas.
3.2 União, Estados e Municípios
A Carta Magna, em seu Artigo 23, é precisa em elencar o rol de competências comuns dos entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), principalmente no que diz respeito à concretização de certos direitos fundamentais. Por “competência comum”, ensina a Doutrina de José Afonso da Silva (2014) que diz respeito a atribuições administrativas e de cunho programático, a exemplo de políticas públicas, não podendo se confundir com a competência concorrente, uma vez que esta mais se relaciona à matéria sujeita à deliberação legislativa.
Conforme o exposto, preceitua o referido dispositivo:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação;
IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;
X - combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos (BRASIL, 1988). Grifo nosso.
Destarte, também prevê o Artigo 196, da Constituição Federal, que a saúde é direito de todos - inclusive povos indígenas - e dever do Estado, sendo de atribuição deste a viabilização de políticas sociais que venham a concretizar o referido direito.
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1988).
Em consonância, na decisão do Sr. Ministro Celso de Melo, referente ao Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada 175/CE, julgado em 17/03/2010, ficou demonstrado que eventual alegação da cláusula da reserva do possível - o que ocorreu na Contestação da presente ACP em análise - não afasta o dever legal do ente indicado como responsável pela CRFB/88.
O Sr. Ministro, atuando junto ao STF, assim decidiu:
É destacado o fato de que a responsabilidade estatal de efetivação dos direitos fundamentais de caráter social se expressa como determinante limitação à discricionariedade da Administração. Portanto, não é justificável a invocação da cláusula da reserva do possível pelo Estado para se desobrigar, de forma dolosa, do adimplemento de seus deveres constitucionais, a não ser quando houver motivação justificada.
A decisão alocativa é caracterizadamente um dilema, que se evidencia no conflito dialético entre o dever estatal de concreção e realização da saúde em favor da população e, do outro, as dificuldades enfrentadas pelo governo para que seja possível adimplir com esses deveres em virtude da escassez de recursos.
Mesmo que se reconheça o caráter programático da norma do art. 196 da Constituição, esta não pode ser vista como uma promessa irrelevante. A atuação judicante – de confirmação do direito na jurisprudência – é fundamentada principalmente no desempenho de sua função precípua que é assegurar a prevalência da Lei Maior que, em diversas ocasiões, fora violada por omissões do ente público; daí decorre a necessidade institucional de colmatação dessas omissões institucionais em âmbito jurisdicional. Ademais, reitera-se o princípio da proibição do retrocesso, cujo conteúdo impossibilita o regresso (o desfazimento) de conquistas já realizadas pelo cidadão ou grupo social que integra; desse modo, não há margem para que sejam desfeitas ou diminuídas, a não ser em situações de políticas compensatórias. (STA 175-AgR/CE. Rel. MINISTRO CELSO DE MELO. Julgado em 17/03/2010) (BRASIL, 2010, p.1) Grifo nosso.
Nesse sentido, na Decisão Interlocutória do órgão jurisdicional de primeiro grau responsável pelo julgamento da ACP em apreço, foi determinado que a União, o Estado do Tocantins e o Município de Palmas, todos estes, tomassem as medidas cabíveis à tutela dos Waraos, a exemplo da garantia de alimentação, acolhimento e inscrição e verificação de cadastro no programa Bolsa Família.
Vislumbra-se, assim, a concretização da supracitada competência comum, no caso concreto.
3.3 Secretaria de Habitação do Estado do Tocantins e Conselho Estadual do Conselho de Habitação
No âmbito do Direito Estadual Tocantinense, com fulcro na Lei Estadual 2.674/97 (TOCANTINS, 1997), existe a previsão de um instrumento denominado “Programa Aluguel Social”, que é definido logo em seu Artigo 1º:
Art. 1º É instituído o Programa Aluguel Social, gerido pela Secretaria da Habitação, com finalidade de custear, integral ou parcialmente, a locação de imóveis residenciais em caráter de emergência e por tempo determinado (TOCANTINS, 1997). Grifo nosso.
Quanto aos sujeitos passivos desse programa, é importante pontuar que há perfeita correlação dos indígenas Waraos com aquilo que é previsto pela Lei, em seu Artigos 3º, o que evidencia a situação deplorável na qual eles se encontravam. Em destaque, tendo por análise o incico I, percebe-se que a pandemia do Covid-19 restou por preencher a condição de “calamidade pública ou situação de emergência”, visto que, à época, sequer era a vacinação uma realidade fática. O referido Artigo prevê, in verbis:
Art. 3º Tem direito à concessão do benefício o grupo familiar que:
I - esteja em perigo, decorrente de calamidade pública ou situação de emergência;
II - necessite desocupar imóvel em estado de risco estrutural declarado pelos órgãos competentes;
III - tenha comprovada situação de alta vulnerabilidade social;
IV - não tenha possibilidade de acomodação em casas de parentes (TOCANTINS, 1997). Grifo nosso.
Quanto aos requisitos a serem preenchidos para a concessão do benefício, estes se encontram no rol cumulativo do Artigo 4º. Nota-se que os Waraos se enquadram em todos eles, inclusive o previsto no inciso IV, que é o de estar na situação excepcional de estarem alojamento-abrigo provisório.
Nesse sentido, como será posteriormente demonstrado, os Waraos tiveram um abrigo cedido por uma igreja local que, contudo, não poderia conceder o uso do imóvel para sempre, por limitação temporal e assistencial próprias. Além disso, a família não possuía qualquer fonte de renda, vivendo, no máximo, de doações e “esmolas”, como já dito anteriormente. Tampouco possuíam imóvel, pois estavam em situação de rua.
Quanto ao cadastro no Cadúnico, ainda que os indígenas ainda não estivessem inscritos, determinou a Justiça Federal que os entes federativos competentes procedessem, com urgência, à sua inscrição. Dessa forma, finalmente, viabilizaria o Aluguel Social.
Art. 4º São requisitos, para adesão do grupo familiar, ao Programa Aluguel Social, cumulativamente:
I - residir no município há pelo menos dois anos, ou excepcionalmente, estar em alojamento-abrigo provisório por interferência de programas públicos;
II - ter renda familiar de até três salários mínimos;
III - não possuir outro imóvel;
IV - ser cadastrado no Cadastro Único para Programas Sociais - CadÚnico
(TOCANTINS, 1997, p.1). Grifo nosso.
Não obstante, os sucintos Artigos 11 e 12 acabam por estabelecer as atribuições da Secretaria da Habitação e do Conselho Estadual de Assistência Social - CEAS-TO, que podem ser resumidas em ações que viabilizem a devida execução do supracitado programa.
Art. 11. Cumpre à Secretaria da Habitação: I - celebrar convênios e outros instrumentos congêneres com vistas à implementação do Programa Aluguel Social; II - baixar os regulamentos complementares para o cumprimento desta Lei.
Art. 12. Incumbe ao Conselho Estadual de Assistência Social - CEAS-TO acompanhar a realização do Programa Aluguel Social (TOCANTINS, 1997, p.1)
Por fim, cabe ressaltar que a DPU - Defensoria Pública da União expressamente requereu ao Judiciário pela concessão do auxílio, em virtude da delicadíssima situação pela qual os Waraos estavam enfrentando, o que foi, posteriormente, concedido na Decisão Interlocutória.
4. ANÁLISE PROCESSUAL DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE N° 1002493-31.2021.4.01.4300 QUANTO AOS PRECEITOS LEGAIS E À TUTELA JURÍDICA DO POVO EM ESTUDO
Inicialmente, é imperioso pontuar que o caso em apreço envolve fortemente, sobretudo, três áreas didáticas do Direito, quais sejam: Constitucional, Internacional e Processual Civil, interdependentes entre si, o que apenas denota a complexidade e interdisciplinaridade da causa.
Ademais, o presente trabalho terá por objetivo a análise processual da ACP em estudo, de modo que serão estudados os aspectos concernentes ao processo em si, proposta perante à Justiça Federal.
Dessa forma, serão feitos comentários acerca de alguns institutos jurídicos pleiteados, os quais se destacam a) a adequação do procedimento da ACP; b) o preenchimento das condições da ação; c) a possibilidade e legalidade da concessão de tutela provisória de urgência para o amparo dos Waraos em Palmas, Tocantins.
4.1 A adequação do procedimento da ACP
A Ação Civil Pública (ACP) é disciplinada na Lei n.º 7.347/85 (BRASIL, 1985) e constitui um instrumento processual especial, de natureza não criminal, que visa tutelar interesses metaindividuais, podendo ser proposta, apenas, por aqueles legitimados em seu rol. É nesse sentido que esclarece Mazzilli (2014), inclusive pontuando a referida ação independe do nome atribuído à peça processual proposta:
Sob o enfoque puramente legal, será ação civil pública qualquer ação movida com base na Lei 7.347/85, para a defesa de interesses transindividuais, ainda que seu autor seja uma associação civil, um ente estatal, o próprio Ministério Público, ou qualquer outro colegitimado; será ação coletiva qualquer ação fundada no artigo 81 e s. do CDC, que verse a defesa de direitos transindividuais (MAZZILLI, 2014). Grifo nosso.
Destarte, a ACP é aplicada de maneira harmônica com CPC, observada a subsidiariedade deste último, conforme a redação do Artigo 19 da Lei da ACP: “Aplica-se à ação civil pública, prevista nesta Lei, o Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº. 5.869, de 11 de janeiro de 1973, naquilo em que não contrarie suas disposições”. Grifo nosso.
Contudo, ao artigo supramencionado, apenas deve ser feita a breve observação de que a dinâmica processual civil hoje vigente é regida pelo NCPC, previsto na Lei 13.105/15 (BRASIL, 2015).
Não obstante, a referida Lei, logo em seu Artigo 1º, elege as matérias que podem ser pleiteadas via ACP, sendo que, no infeliz caso dos indígenas refugiados em apreço, nota-se perfeita correlação ao inciso VII, ora transcrito:
Art. 1º. Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:
VII – à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos (BRASIL, 1985, p.1). Grifo nosso.
Conforme já explanado nos capítulos iniciais, a situação de hipervulnerabilidade social, causada pelo completo desamparo dos Waraos, que estavam sem quaisquer recursos, inclusive saúde, alimentação e habitação, por si só, já ensejaria à utilização da ACP. Tanto é verdade que a própria Justiça Federal conheceu da ação, procedendo à intimação das partes - o que será estudado em seguida.
4. 2 O preenchimento das condições da ação
O NCPC, por mais que não faça menção expressa às condições da ação, disciplina em seu Artigo 17 que é imprescindível a demonstração do interesse de agir, bem como da legitimidade para o ajuizamento da ação. Nesse sentido, segundo os ensinamentos de Didier (2021) a legitimidade ad causam diz respeito às pessoas ou sujeitos que podem ser parte do processo, podendo ser subdividida em ativa (aquele que propõe a ação, sendo autor) ou passiva (aquele contra quem a ação é proposta, figurando como réu).
Por outro lado, também segundo o referido Professor, o interesse de agir está relacionado ao binômio necessidade/adequação. Assim, a necessidade reflete a impossibilidade do conflito ser solucionado por outros meios senão pelo Poder Judiciário, enquanto que, a adequação diz respeito à proporcionalidade, exigindo que a tutela jurisdicional pleiteada e, eventualmente, concedida pelo Estado-juiz, a fim de que se solucione o dano arguido, não seja excessiva.
Não obstante, quanto ao pedido da ação, observa-se que foi, sim, proporcional, uma vez que a DPU apenas pleiteou pelo amparo completamente justificado dos Waraos, dando o valor à causa de R$20.000,00 (vinte mil reais).
Destarte, de acordo com o explicado anteriormente, o CPC será aplicado subsidiariamente à Lei da ACP, naquilo que não houver contradição com esta. Nessa ótica, a Lei 9.437/85 (BRASIL, 1985), no Artigo 5º, inciso II, expressamente prevê que a Defensoria Pública tem legitimidade para propor a ação civil pública, seja em seu pedido principal, seja em sede de ação cautelar.
Frisa-se, ainda, que, conforme o parágrafo 1º, do referido Artigo, o “Ministério Público, se não intervier no processo como parte, atuará obrigatoriamente como fiscal da lei”, o que também foi concretizado no caso concreto, o que permitiu, inclusive, que o Ministério Público Federal (MPF) juntasse valiosos documentos sociológicos referentes aos Waraos.
Ademais, a respeito da competência dos juízes federais, de modo a elucidar a cristalina competência federal do processo ora estudado (o que, por consequência, acarreta em causa a ser proposta pela Defensoria Pública da União, e não do Estado), preceitua o Artigo 109, da Carta Magna, em seus incisos correlatos, que:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho
II - as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional;
V-A as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo
XI - a disputa sobre direitos indígenas (BRASIL, 1988, p.1). Grifo nosso.
Dessa forma, percebe-se que, sim, estão atendidos as condições da ação, de maneira que a propositura desta se encontrou em perfeita observância aos moldes normais e constitucionais ora vigentes. Não por outro motivo, o juiz federal competente conheceu da ação, como já dito, sem suscitar quaisquer vícios da petição inicial.
4.3 A possibilidade e legalidade da concessão de tutela provisória de urgência para o amparo dos Warao, em Palmas, Tocantins
A tutela jurisdicional, em regra, é concedida em sede definitiva, por meio do ato judicial denominado Sentença. Contudo, excepcionalmente, é cabível o instituto denominado tutela provisória (gênero) - prevista nos Artigos 294 a 311, do NCPC - sendo aquela decidida de modo preliminar, sem que o processo tenha passado por toda a instrução. Conforme ensina Marinoni (2015, p.195), trata-se da “adequada distribuição do ônus do tempo no processo”.
Não obstante, nas preciosas lições do Professor Didier (2021), a tutela provisória possui três características essenciais, quais sejam a sumariedade da cognição, a precariedade e a impossibilidade de se tornar discutível por meio da coisa julgada. Em síntese, essas características apenas denotam uma decisão mais célere que, contudo, não tem os mesmos efeitos que uma sentença condenatória de mérito, de modo que possa ser alterada a qualquer momento.
Isto é, trata-se de uma causa que, se apenas fosse decidida após o exaurimento do contraditório, acarretaria em danos profundos e até mesmo irreparáveis, o que deixaria por deficiente a ação do Poder Judiciário, no caso concreto.
Nesse sentido, a tutela provisória se divide em algumas espécies e subespécies, quais sejam: cautelar ou satisfativa; de urgência ou de evidência; ou antecedente ou incidente. O presente trabalho, no entanto, foca-se no estudo da tutela provisória satisfativa de urgência, por ser o que se verificou no caso concreto da ACP em análise.
Destarte, quanto ao elemento satisfativo, apenas quer dizer que se pleiteia perante o Judiciário uma conduta ativa (ação), geralmente por meio de uma obrigação de fazer; enquanto que, no tangente ao elemento de urgência, analisa-se a existência dos requisitos do “fumus boni iuris” (fumaça do bom direito) e do “periculum in mora” (perigo da demora), de modo a evidenciar que os direitos arguidos são urgentes e não podem aguardar o contraditório usual.
Ora, conforme amplamente demonstrado na petição inicial proposta pela DPU, o Poder Público, em absolutamente todas as esferas competentes, se demonstrou omisso em um nível preocupante, visto que a Defensoria tentou todas as vias extrajudiciais, até seu exaurimento, de modo que, infelizmente, não se obteve resposta razoável.
A título de exemplo, cita-se a instauração do PROPAC/DPETO Nº PA000155/2020 (DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO TOCANTINS, 2020a), em 20 de novembro de 2020, pela instituição da Defensoria Pública do Estado do Tocantins (DPE-TO), sendo um ato administrativo que demonstra a tomada de conhecimento da situação indígena ora estudada.
Desta sorte, o Núcleo Especializado da Saúde (NUSA/DPE-TO), vinculado à Defensoria do Estado, oficiou à Secretaria Municipal de Saúde de Palmas, através dos Ofícios 282/2020 (DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO TOCANTINS, 2020b) e Ofício/CAS/DPTO nº 008/2021 (DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO TOCANTINS, 2021a). Em resposta, o referida Secretaria constatou que:
“a equipe do consultório na rua tem acompanhado e abordado as necessidades dos mesmos [indígenas refugiados]”.
A Secretaria Municipal de Palmas tem ofertado cuidado em saúde a este público [indígenas refugiados], de acordo com suas necessidades (...).
Em meados de novembro de 2019 foi elaborado o Plano integrado de ações de saúde e assistência social para o acolhimento das pessoas em situação de migração e refúgio no município de Palmas, e este vem sendo aplicado em parceria intersetorial”. PALMAS, 16 de Março de 2021 (DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO TOCANTINS, 2021a, p.1).
Contudo, após atendimento jurídico realizado pelo Núcleo Especializado de Defesa dos Direitos Humanos (NDDH/DPE-TO), vinculado à Defensoria Pública do Estado do Tocantins, o representante da comunidade indígena noticiou o infeliz agravamento da situação, alegando, dentre outras situações, que:
“Estão numa situação muito difícil; que se trata de grupo de 12 adultos, 2 adolescentes e 12 crianças.
Disse ainda que o grupo de venezuelanos estava pedindo dinheiro da rua para custear a diária do hotel, que é de R$ 100,00 por família, e tudo que apuravam na rua era usado para pagar a diária, não sobrando dinheiro para as famílias fazerem, ao menos, três alimentações diárias; que a Prefeitura de Palmas nunca custeou o hotel; Que um deles conseguiu entrar em contato com a assistente social da Prefeitura, e a servidora conversou com eles e orientou que “a Prefeitura não ajudaria em nada”, e que a ordem era para que eles “pegassem as coisas deles e irem embora”.
(...) muitos tem formação superior, são professores universitários (formados em educação física); Que o grupo vem sofrendo ataques racistas e xenofóbicos nos sinaleiros em que pedem dinheiro, pois os carros passam os chamando de “macacos” e os mandando “retornar para a Venezuela” (DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO TOCANTINS, 2021b, p,1). Grifo nosso.
Por fim, nota-se que foi com sabedoria e razão que a DPU ajuizou a ação já requerendo tutela provisória, pois, a situação, que já era de natureza indígena, tornou-se, também, urgente, de modo a preencher todos os requisitos explicados no início do presente item.
Ademais, o Juiz Federal do caso, em sede de Decisão Interlocutória, deferiu a tutela de urgência, fixando a multa diária no valor de R$50.000,00 (cinquenta mil reais) caso a série de exigências não fossem cumpridas de modo justificado, a exemplo da concessão imediata de moradia, alimentos e testes periódicos da COVID-19.
Acerca da pesquisa realizada, pôde-se concluir que a Defensoria Pública da União, em consonância aos seus princípios institucionais, atuou de modo exímio na causa analisada, pois antes mesmo da propositura da ação - que atendeu a absolutamente todos os requisitos processuais -, tentou de todos os modos extrajudiciais garantir os direitos básicos dos Waraos, o que não fora atendido de pronto pelos órgãos competentes.
Ademais, frisa-se que os órgãos e entidades foram corretamente elencadas na ACP, de acordo com a legislação federal, estadual e municipal vigentes, de modo que a DPU apenas exigiu respostas e atitudes daqueles que têm obrigações legais de os prestar.
Outrossim, a respeito da atuação do Poder Judiciário, é inegável que o Juiz Federal competente decidiu, ainda que em sede de tutela provisória, no sentido de garantir, sim, a eficácia de todo o ordenamento jurídico interno e externo, de maneira a aplicar os entendimentos dos Tribunais Superiores e da Lei, não deixando margem para que as omissões continuassem a existir e, por consequência, a ferir os direitos humanos dos indígenas.
Nesse mesmo sentido, é interessante mencionar que, em outras localidades que também testemunharam a propositura de ações judiciais sobre os Waraos, a exemplo do Município de Araguaína, Tocantins, o Poder Judiciário vem entendendo no sentido de, igualmente, garantir os direitos fundamentais e sociais desses povos, como a obrigação de o Município empregar esses povos. Ora, apenas fica mais uma vez evidenciado que é importante a aplicação de medidas similares no âmbito do Município de Palmas, Tocantins.
Finalmente, em virtude dos fatos recentíssimos que deram embasamento para este artigo, é de se pontuar que outros trabalhos poderão ser redigidos a fim de melhor compreender e estudar a matéria de direito relacionada - que sequer consta de decisão judicial transitada em julgado -, uma vez que muito provavelmente terá manifestação específica dos Tribunais sobre o assunto, a fim de que se mitiguem os danos causados.
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 840.150-BA. Administrativo. Terras indígenas. Demarcação. Art. 63 da lei n.º 6.001/73. Necessária oitiva do Ministério Público. 1. O art. 63 da Lei nº 6.001/73 determina que “nenhuma medida judicial será concedida liminarmente em causas que envolvam interesse de silvícolas ou do Patrimônio indígena, sem prévia audiência da União e do órgão de proteção ao índio”. Assim, deve ser anulada a decisão que concedeu liminar de reintegração de posse de terras em processo de demarcação sem atentar para a regra insculpida nesse dispositivo legal. 2. Prejudicada a análise do mérito da liminar concedida. 3. Recurso especial provido. Recurso Especial n.º 840.150-BA (2006/0085285-4). Relator: 325 Ministro Castro Meira. Julgamento: 10 abr. 2007. DJ, 23 abr. 2007a. Disponível em: https://goo.gl/fyQnvN. Acesso em: out. 2021.
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Graduando em Direito pela Universidade Federal do Tocantins – Campus Universitário de Palmas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PIRES, Vinicius Renato de Paula. Análise da atuação da Defensoria Pública da União na garantia dos direitos sociais dos indígenas refugiados da etnia Warao no município de Palmas, Tocantins Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 jan 2022, 04:29. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58008/anlise-da-atuao-da-defensoria-pblica-da-unio-na-garantia-dos-direitos-sociais-dos-indgenas-refugiados-da-etnia-warao-no-municpio-de-palmas-tocantins. Acesso em: 23 dez 2024.
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