DANIEL MAGALHÃES ALBUQUERQUE SILVA[1]
RESUMO: O presente trabalho busca analisar as mudanças paradigmáticas trazidas na sociedade moderna pelo fenômeno da globalização. Diante dos avanços, desenvolvimentos tecnológicos e outros efeitos do mundo globalizado surge a figura do bem jurídico difuso, em contrapartida à concepção clássica do bem jurídico individual. Com isso, emerge-se uma nova espécie de tutela penal a esses bens jurídicos, agindo por prospecção e expandindo a tutela penal, que antes agia após a violação do direito, e agora deve agir antecipadamente, evitando-se danos catastróficos que possam comprometer a sociedade como um todo.
Palavras-chave: Direito penal, Bem jurídico difuso, Globalização, Sociedade de Risco, Mandados de criminalização, Ingerência penal, Política-criminal.
ABSTRACT: The present work seeks to analyze the paradigm shifts brought about in modern society by the phenomenon of globalization. Given the advances, technological developments and other effects of the globalized world, the figure of the diffuse legal asset emerges, in contrast to the classical conception of the individual legal asset. With this, a new kind of penal protection emerges for these legal assets, acting by prospecting and expanding the penal protection, which previously acted after the violation of the law, and now must act in advance, avoiding catastrophic damage that could compromise the society as a whole.
Key words: Criminal Law, Diffuse legal right, Globalization, Risk Society, Criminalization warrants, Criminal interference, Criminal policy.
Sumário: 1. Introdução. 2. Breve abordagem da era da globalização. 3. Mudança paradigmática do direito penal nessa nova era. 4. Criação do risco e da lesão difusa. 5. Conceito de bem jurídico penal e princípios penais clássicos. 6. Mudança de paradigma e ingerência penal para tutela dos bens jurídicos difusos. 7. Considerações finais. 8. Referências bibliográficas.
1. Introdução
O presente trabalho tem como objetivo compreender as mudanças paradigmáticas ocasionadas na sociedade contemporânea pelo fenômeno da globalização. Isto porque, diante dos avanços tecnológicos, supressão de fronteiras, das barreiras entre os países e aprimoramento das comunicações, a sociedade passou a se deparar com uma nova espécie de criminalidade, especializada e sofisticada, caracterizada pela capacidade de organização, pelo poder econômico e de causar dano a um número indeterminado de pessoas.
É sabido que com o advento da terceira geração (dimensão) dos direitos, passou-se a dispensar uma especial relevância aos interesses difusos e coletivos, os quais são de suma importância para preservação dos bens jurídicos individuais e da sociedade como um todo.
Ocorre que, ao se constatar a necessidade de tutela penal aos bens universais, na hipótese de grave violação a eles, surge a problemática atual no campo jurídico, uma vez que o direito penal historicamente se pautou para a uma tutela repressiva, a qual se mostra incapaz de assegurar efetivamente a integridade dos bens universais, exigindo uma atuação preventiva e por prospecção.
Ainda, tradicionalmente, a intervenção da tutela penal se pauta na observância integral aos princípios constitucionais da legalidade, subsidiariedade, intervenção mínima, ofensividade, entre outros, os quais se concentram em especial na tutela de bens individuais e se apresenta mediante tipos penais fechados e tipos de dano.
No entanto, diante da preocupação atual de se proteger os bens jurídicos universais, os quais apresentam características peculiares e que dependem de proteção preventiva, percebe-se a necessidade de readaptação de alguns instrumentos básicos do direito penal para que este se mostre eficaz.
Em decorrência da necessidade de uma nova leitura do direito penal, que importa na flexibilização de alguns postulados tradicionais desta ciência, surgem diversas críticas à aplicação da proteção penal aos bens universais, sendo necessária a adaptação da ciência criminal às novas necessidades da sociedade, criando-se mecanismos distintos daqueles até então empregados no combate à criminalidade tradicional.
2. Breve abordagem da era da globalização
Para compreender a abordagem desse tema no trabalho, é preciso entender primeiramente a globalização além de um mero plano econômico, mas como um novo projeto político, de maneira que, para consolidar suas metas, os novos agentes transnacionais dessa nova era valeram-se de planificações que possibilitaram a transformação de paradigmas como
Boaventura de Sousa Santos define a globalização como um processo complexo que atravessa as mais diversas áreas da vida social: a globalização dos sistemas produtivos e financeiros à revolução nas tecnologias e práticas de informação e de comunicação; da erosão do Estado nacional e redescoberta da sociedade civil ao aumento exponencial das desigualdades sociais; das grandes movimentações transfronteiriças de pessoas ao protagonismo das empresas multinacionais e das instituições financeiras multilaterais; das novas práticas culturais e identitárias aos estilos de consumo globalizado.[2]
Dessa maneira, não seria diferente a adaptação do Direito a esse novo paradigma social, uma vez que este último faz parte da construção cultural da sociedade civil. Tem-se por certo que as tendências sociais, culturais e territoriais sofreriam um intercâmbio muito grande com esse novo fenômeno.
Dentre os vários entraves da democracia liberal capitalista, que por um momento pareceu consensual, operou-se contraditoriamente com intervenções de regimes autoritários nos países periféricos, o que ocasionou uma rejeição contra o fundamentalismo neoliberal.[3] Talvez por isso que a globalização transmita uma ideia de indeterminismo, indisciplina e descentralização.
Zaffaroni explica a globalização por duas perspectivas: como uma ideologia e como uma realidade de poder. Como uma ideologia, identifica-se por meio do mercado mundial, marcado por uma irrestrita eliminação de barreiras e protecionismos, gerando uma aparência de crescimento planetário. Como uma realidade de poder, a globalização se identifica com as seguintes características: a) domínio por meio de medidas e imposições econômicas; b) redução da violência bélica entre as potências líderes e fomento de conflitos entre Estados subalternos; c) perda de poder por parte dos Estados nacionais; d) concentração do poder em poucas corporações transnacionais; e) produção de abandono estrutural; f) população marginalizada; g) produção de vários riscos de catástrofes ecológicas, revoltas sociais e crises financeiras[4].
Desta maneira, no século XXI, as ciências sociais têm o desafio de pensar o mundo como uma sociedade global, devendo as relações, processos, estruturas e funções serem repensadas. Não basta transportar o pensamento científico das ciências sociais pautados no estudo de cada sociedade ou cultura para o estudo unificado da sociedade mundial.
Essa nova sociedade implica em novos desafios empíricos, metodológicos, históricos e teóricos, que exigem novas pesquisas a respeito. Sem maiores delongas em matéria de sociologia mundial, segue o objetivo do presente trabalho em adaptar o Direito a essas novas mudanças.
Como bem aduz José Eduardo Faria[5], qualquer avaliação a respeito da influência da globalização no Direito pode ser precipitada. No entanto, o autor se arrisca ao traçar oito possíveis tendências:
1) Ampliação da incompatibilidade entre o tempo da legislação processual civil e penal e o tempo do processo decisório no âmbito dos mercados transnacionalizados;
2) Expansão hegemônica dos padrões legais anglo-saxônicos, em vista da sua rapidez, pragmatismo e flexibilidade;
3) Progressiva redução do grau de coercibilidade do direito positivo;
4) Tendência à “reprivatização” do Direito, após a expansão do direito público e de suas normas controladoras, reguladoras e diretivas nas décadas de 60 e 70;
5) Enfraquecimento progressivo do direito do trabalho, em vista da exigência de formas mais maleáveis de contratação e formalização das relações trabalhistas;
6) Transformação do direito internacional de caráter público para um direito comunitário, tendendo a ser muito mais complexo e maleável do que o direito interno;
7) Aumento do ritmo de regressão dos direitos humanos e sociais, enfraquecidos pela economia globalizada, como a competitividade e a produtividade levadas ao extremo;
8) Transformação paradigmática do direito penal, tornando-o mais abrangente e mais severo para, sob o pretexto de combater a criminalidade moderna, disseminar o medo e o conformismo no seu público-alvo, os excluídos.
Elencadas tais tendências, com o intuito de compreender a influência da globalização no direito penal contemporâneo, entendemos a globalização não só como um fenômeno econômico, mas principalmente como uma forma de mudança no comportamento social, gerando uma profunda alteração nas estrutura dos Estados (aqui se incluem os sistemas legais) e nas relações internacionais sem que se fizesse perceptível[6]. A única coisa que parece certa é que futuramente essas instituições jurídicas guardarão semelhança com o modelo jurídico atual.
3. Mudança paradigmática do direito penal nessa nova era
Nessa nova era globalizada, a sociedade contemporânea vem passando por umas séries de transformações, as quais vêm a romper com o modelo da sociedade moderna, trazendo por consequência como novo modelo uma sociedade globalizada, que vive permanentemente sob risco. Diferentemente não seria o direito penal, já que este é reflexo da sociedade em que está inserido.
O direito penal clássico prevê como crime uma violação da norma estipulada pelo legislador, sendo este o representante dos interesses dos cidadãos. A violação provém de ações humanas e de acontecimentos naturais, por meio de desvios de conduta percebidos socialmente.
Sem embargos, o direito penal atua dentro de um ataque a um bem relevante à sociedade (princípio da lesividade), quando as outras esferas do Direito não forem suficientes para sancionar (princípio da subsidiariedade). Caracteriza-se essencialmente pela individualização das condutas como critério de aferição da culpa e pela previsão do resultado anteriormente à ocorrência do fato criminoso.
Esse princípio nasceu na época do Iluminismo, sob a égide da construção de Beccaria, que define a grandeza dessa conquista para a sociedade da época:
Ora, o magistrado, que é parte dessa sociedade, não pode com justiça aplicar a outro partícipe dessa sociedade uma pena que não esteja estabelecida em lei; e a partir do momento em que o juiz se faz mais severo do que a lei, ele se torna injusto, pois aumenta um novo castigo ao que já está prefixado. Depreende-se que nenhum magistrado pode, mesmo sob o pretexto do bem público, aumentar a pena pronunciada contra o crime de um cidadão.[7]
O processo globalizador trouxe consigo influências catastróficas para aquele “bem-sucedido” direito penal clássico, sendo imprescindível o destaque da manifestação de José Eduardo Faria a respeito do tema. De forma majestosa, o autor resume e traça os rumos do Direito Penal dessa nova era:
Enquanto no âmbito dos direitos basicamente sociais e econômicos se vive hoje um período de reflexo e flexibilização, no direito penal se tem uma situação diametralmente oposta: veloz e intensa definição de novos tipos penais: crescente jurisdicialização e criminalização de várias atividades em inúmeros setores na vida social; enfraquecimento dos princípios da legalidade e da tipicidade, por meio do recurso a normas com textura aberta; ampliação do rigor de penas já cominadas e de severidade de sanções; encurtamento das fases de investigação criminal e instrução processual, inversão do ônus da prova, passando-se a considerar culpado quem, uma vez acusado, não provar sua inocência.[8]
Apoiado pelos ensinamentos de Silva Sanchez[9] é possível afirmar que o direito penal da globalização será um direito crescentemente unificado, mas também menos garantista, em que se flexibilizarão as regras de imputação e se relativizarão as garantias político-criminais.
Sendo assim, com o surgimento do fenômeno da globalização, a individualidade e a anterioridade da previsão já não bastavam, sendo necessárias novas medidas para que as ações criminosas tivessem uma resposta imediata do Estado. Ocorre que, diante desse dilema, o direito penal acabou invadindo as outras esferas do Direito, acarretando um Estado de insegurança, vivido continuamente em risco.
Diante disso, criou-se hoje, o que os sociólogos denominam como “Sociedade de Risco”[10] em que as ações humanas são anônimas e estão distantes no tempo e espaço e os agentes são difusos e indeterminados. Há a dificuldade de reconhecer os processos causais e delimitar as responsabilidades individuais e, empiricamente falando, tornam-se os danos imprevisíveis e incalculáveis. Há também a dificuldade de estabelecer nexos de causalidade entre o fato criminoso e os agentes físicos responsáveis, o que criou uma demanda de condutas arriscadas, fugindo aos dois princípios acima mencionados.
No que diz respeito ao bem jurídico, no Estado globalizado, houve uma desmaterialização dele, pois o legislador de hoje visa a proteger os bens supraindividuais de conteúdo amplo e impreciso, o que requer uma dificuldade na delimitação do bem, da causalidade e do dano. Assim sendo, a lesão deixa de ser o centro do sistema, exigindo novas estratégias de imputação.
Aplicando-se à legislação brasileira, passa-se a ter uma incriminação dos tipos de mera conduta e de perigo abstrato, além da inversão do ônus da prova, da expansão da autoria e das fórmulas de ausência de distinção entre autoria e participação. Nesses casos pouco importa o resultado, vez que a simples possibilidade mesmo que remota de causar dano a um bem jurídico a tipifica como lei penal.
O direito penal passa então a ser preventivo, estabelecendo patamares de segurança por meio de normas de conduta, criminalizando-o se não cumprido. Passa-se então a ter uma “penalização de condutas administrativas”, na tentativa de ordenar setores de atividades, a partir de uma contemplação geral e estatística de condutas, e como um reforço do direito administrativo[11].
Cria-se assim uma expansão do direito penal, como bem destaca o texto exposto, em que a visão do socialmente inadequado, tem por fim dar a possibilidade futura de ser causado um dano. A prevenção toma o lugar da repressão, dando margem para que na esfera penal exista normas penais em branco e que haja uma flexibilização das regras de causalidade e da individualização clássica.
Em estudo conjunto, Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchinni enumeram as características do Direito Penal na era da globalização[12]:
a) Deliberada política de criminalização, antes da descriminalização – a expansão patológica do Direito Penal começou com a incriminação generalizada das afetações lesivas mínimas, em flagrante menosprezo ao princípio da intervenção mínima (subsidiariedade e fragmentariedade do Direito Penal.
b) Frequentes e parciais alterações pelo legislador da Parte Especial do Código Penal ou a edição de leis especiais – é o efeito contrário à hipertrofia do estado, a superpotência do Direito Penal como política criminal.
c) Aumento dos marcos penais dos delitos clássicos;
d) Proteção institucional dos bens jurídicos – o princípio da proteção dos bens jurídicos deixa de cumprir seu papel limite “negativo” da criminalização para assumir um papel “positivo” na intervenção penal;
e) Ampla utilização da técnica dos delitos de perigo abstrato;
f) Menosprezo patente ao princípio da lesividade ou ofensividade, o que significa a difusão dos delitos de mera desobediência à norma;
g) Erosão do conteúdo da norma de conduta – não cumprimento do princípio da taxatividade; deslocamento dos limites do conteúdo do injusto a difusos setores da administração pública (ex: leis penais em branco);
h) Exacerbada preocupação prevencionista;
i) Transformação funcionalista do Direito Penal – a individualização da pena passa a ser um obstáculo para a nova Política Criminal;
j) Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica;
k) Privatização ou terceirização da Justiça;
l) Alterações na área de processo penal.
Pode-se concluir, portanto, que no atual contexto a supremacia da velocidade e da mobilidade, da universalização e dos riscos, das incertezas e dos medos confronta-se diretamente com os signos de totalidade e projeto de segurança e perenidade que por longo do tempo conferiram sentido às estruturas básicas da sociedade disciplinar da primeira modernidade. No interior deste processo, instituições como Estado-nação, a família, a noção projetiva de emprego e mesmo as formas de controle social sofrem profundas alterações (que ora aparecem em forma de continuidade, ora de ruptura).[13]
4. A criação do risco e da lesão difusa
A tendência a um movimento de flexibilização nas demais áreas do Direito e uma exacerbação da tutela penal, principalmente em razão da atuação elástica da criminalidade econômica e organizada, leva o legislador a crer que a promulgação de normas penais mais rígidas e extensivas traria a solução para este problema.
Como já mencionado, a globalização impõe a primazia do econômico sobre o político, fazendo com que os imperativos do mercado tornem obrigatória a mudança do Direito, valendo-se inclusive da forma mais violenta de resposta, o direito penal. O Direito Administrativo não pode mais sozinho conter a propagação veloz de novos riscos, socorrendo à ajuda de uma forma mais repressora, o Direito Penal.
Na lição de Faria Costa[14], é sabido, mesmo para o mais incipiente dos juristas, que o Direito atua sempre como resposta às solicitações problemáticas que o contexto social lhe impõe. Age, dessa forma, sempre em um momento posterior ao problema. Ao mesmo passo, existe todo um processo de ponderação e de reflexão que, pela própria natureza das coisas, se postula lento, ainda mais quando se está a tratar de uma norma penal incriminadora.
Prossegue o autor dizendo que ninguém desconhece que também o processo legiferante é lento, às vezes penosamente lento. A legitimidade ordinária do ius puniendi está nos parlamentos democraticamente eleitos e as instituições parlamentares têm um nível de produção legislativa que se apresenta demorado, devido aos diferentes momentos na atividade de elaboração de leis.
“E se isto já era compreendido pela comunidade em geral, em face de uma sociedade cada vez mais valoriza o fazer, o movimento, a constante informação em tempo real, a lentidão das instituições democráticas entra em manifesta ruptura com a vertigem da exigência de respostas rápidas e eficientes – e, portanto, também respostas rápidas e eficientes contra a criminalidade – que a mundivivência atual erigiu como modelo de atuação”.
Assim, diante de uma sociedade que vive em iminente risco de que condutas sejam transgredidas, a sociedade se torna menos confiável do ponto de vista da segurança. Somado a um discurso de pânico total presentes nos noticiários, cria-se uma situação em que o direito penal é chamado a agir, ainda que simbolicamente.
Bechara acredita que o paradigma penal dominante na atualidade parece ser o da efetividade na produção de segurança, passando-se da prevenção ao questionável princípio da precaução em defesa da sociedade contra ameaças potenciais advindas de âmbitos pouco conhecidos ou controláveis sob a perspectiva de riscos envolvidos[15].
Imperioso, por isso, reconhecer que a responsabilidade criminal no âmbito das organizações criminosas não pode mais ser cumprida com a concepção do princípio da responsabilidade pessoal nascido no direito penal liberal, concebido nos moldes da Revolução Francesa.
A análise das discussões teóricas acerca das novas tendências do risco no direito penal permite identificar como cerne do problema a contradição entre adaptação do direito penal à sociedade do risco e a ameaça aos princípios clássicos. Nesse intermédio encontra-se o risco da lesão, devendo a análise deste se limitar à possibilidade efetiva de criar um dano a um bem jurídico.
Por um lado, sob o ponto de vista do bem jurídico estritamente individualista, sustenta-se que o direito penal deve dedicar-se, tão-somente à proteção subsidiária e repressiva dos bens jurídicos essenciais ao desenvolvimento do indivíduo, mediante os instrumentos tradicionais de imputação de responsabilidade e segundo os princípios e regras clássicas de garantia.
Partindo da premissa de que o direito penal é, antes de qualquer coisa, um instrumento de utilidade social, a garantia não poderia privar a sanção criminal de sua finalidade de utilidade. Da mesma forma, se a garantia privasse o Direito Penal de punir condutas transgressivas, ela estaria negando a razão da sua própria existência.
Nessa esteira, Assis Machado opina que “a configuração da garantia é sempre o resultado de um difícil equilíbrio entre a racionalidade instrumental da sanção e o respeito aos direitos fundamentais, emerge perniciosa a absolutização das garantias em detrimento da salvaguarda de bens jurídicos coletivos”.[16]
No entanto, ao lado dessa manutenção político criminal, emergem evidentes as sérias limitações do instrumental do direito penal clássico para afrontar a necessidade de segurança, principalmente pelos novos crimes de perigo abstrato e pela extensão da responsabilidade criminal às pessoas jurídicas, inclusive das empresas criminosas.
Completando esse mesmo raciocínio, até Figueiredo Dias, autor considerado moderado, está de acordo sobre esse ponto, quando afirma que, “ao se negar a intervenção penal para os problemas dos novos riscos tecnológicos, está-se, em última instância, invertendo os princípios jurídicos penais da subsidiariedade e da ultima ratio, pois são subtraídas da tutela penal precisamente condutas socialmente tão gravosas que põem simultaneamente em causa a vida planetária e os bens afetos à dignidade dos sujeitos individuais”.[17]
Por conseguinte, sob os influxos de demandas preventivas e desse tipo de formulação teórica acerca da função de governo social do direito penal, a evolução presente da política-criminal aponta para a adequação da racionalidade penal, ansiando por eficácia em face dos novos riscos e impondo a transformação ou mesmo a preterição das características clássicas do direito penal.
Destaque-se que parte da doutrina que critica as formulações do direito penal mínimo, sob a argumentação que, atualmente, a tutela penal é realizada em detrimento dos interesses coletivos agredidos pelos poderosos da economia, pela criminalidade organizada, pelos subversores das instituições democráticas.[18]
Para eles, o direito penal deve corrigir a natural tendência à hipertrofia, mas deve, ao mesmo tempo, realizar uma tutela equilibrada de todos os bens fundamentais, individuais e coletivos. E a doutrina penalista, precisamente no momento que a justiça penal começa a orientar suas atenções também aos grandes da economia e da política, não pode patrocinar um retorno ao passado, que significaria a restauração de um estereótipo de delinquente recortado sobre classes perigosas[19].
De fato, a busca do aparato penal por eficiência no combate aos problemas da sociedade de risco, em detrimento do seu arcabouço principiológico, prova certa deterioração na base de legitimação do discurso penal até então vigente. Esse processo acaba incitando um movimento de recusa das novas tendências e de afirmação do arcabouço axiológico e dos critérios dogmáticos do direito penal tradicional.[20]
Ilustra esse raciocínio a manifestação de Figueiredo Dias, no sentido de que se deve “recusar uma evolução do paradigma penal que passe por pôr em causa a defesa consistente e efetiva dos direitos humanos, o pluralismo ideológico e axiológico, e a securalização. Por isso, numa palavra, deve-se manter a recusa de qualquer concepção penal baseada na extensão da criminalização, onde o direito penal se transforme em instrumento diário de governo da sociedade e em promotor ou propulsor de fins de pura política estadual”.[21]
Dessa forma, parte significativa da doutrina propõe a manutenção do enfoque garantista, defendendo que a aplicação dos instrumentos penais de atribuição de responsabilidades às novas realidades deve se restringir aos casos em que há compatibilidade com seus princípios clássicos.
Esses autores defendem que na complexidade dos fenômenos do risco não poderem ser tratados pelos instrumentos do direito penal, disso não deriva, que o direito penal deva se transformar para absorver essa nova competência. Pelo contrário, esses problemas devem ser resolvidos por meio de outros instrumentos.[22]
Diante desse desafio, poucos se lançam a estabelecer e pesquisar um novo paradigma para o Direito Penal. Parece que realmente a doutrina acorda em trilhar o sentido de uma legitimação processual coletiva, mas sem materializar especificadamente o que seria essa tendência. Para tanto, Jorge Silveira se arrisca e propõe uma solução, resplandecendo como voz pioneira na doutrina brasileira:
“Um primeiro passo já foi dado no que se vislumbra como um futuro, no qual haverá verdadeira simbiose entre coletividade popular e o Estado, entre governante e governado. Nesse sentido, figura caminhar-se para a consagração de uma ação penal popular. Nos dias de hoje, com o atual estágio de desenvolvimento, para a consagração de uma democracia, também no âmbito judicial, uma vez atacado um direito supra-individual, outra não parece ser a alternativa do que a possibilidade de uma participação penal dos entes coletivos”.[23]
Destarte, conforme se observou até aqui, com o advento do mundo globalizado, que fez com que a sociedade passasse por mudanças estruturais, e com o surgimento de uma nova forma de criminalidade, o instrumento repressor do Estado passou a atravessar uma situação de crise existencial.
Em função da criação dos novos riscos, o direito penal se expandiu para alcançar uma nova série de bens jurídicos, sendo que na maioria deles já não é necessário lesionar o do bem jurídico, bastando simplesmente que ofereça qualquer perigo. Além disso, os preceitos penais passaram a trabalhar com cláusulas gerais e imprecisas do que seria o injusto penal, o que ocasionou um intervencionismo penal cada vez mais abrangente e despreparado.
5. Conceito de bem jurídico penal e princípios penais clássicos
A análise do bem jurídico penal difuso e a tutela penal dos interesses difusos demanda uma mudança de paradigma na abordagem do direito penal. Isto porque, a tutela penal se amoldou no modelo clássico, pautado pelo iluminismo e por uma atuação penal retrospectiva, como resposta a violação de uma regra ética.
Não obstante, como visto alhures, com esse espectro de combate, o Direito Penal passou a não mostrar respostas efetivas a algumas formas de criminalidade, em especial no que tange à criminalidade organizada e à lesão ao bem jurídico difuso. Passou-se, então, ao desafio de dar efetividade às normas constitucionais, sem, contudo, abandonar os preceitos e princípios penais limitadores do arbítrio do Estado e de garantias mínimas dos indivíduos.
Como garantias mínimas e irrenunciáveis, a grande contribuição do período iluminista foi a positivação dos princípios penais, pautados pela dignificação da pessoa humana como centro da construção de todo sistema jurídico.
Como primeiro corolário do sistema penal e do próprio conceito de bem jurídico, merece destaque o princípio da legalidade dentro das suas três faces: como fonte da norma penal (reserva legal); como enunciação clara de sua previsão (determinação taxativa); e sua validade no tempo (irretroatividade).
Ainda, o consagrado princípio da culpabilidade, como fundamento da responsabilidade e da medida certa da vontade do agente, assim como medida para aplicação correta da pena. Disto decorre também a individualização da pena, pois a sanção penal não poderá passar da pessoa do indivíduo, devendo ser atribuída na medida de sua culpabilidade.
Um dos princípios emblemáticos do direito penal clássico é o da intervenção mínima, concebendo este como ultima ratio, ou seja, quando não for cabível nenhuma atuação de outra seara do Direito. Desse princípio decorre a subsidiariedade e a fragmentariedade. Diante desta ponderação, tem-se que o bem jurídico apenas será tutelado pela esfera penal quando não puder ser protegido eficientemente por outras áreas do Direito.
Irrenunciável, pois, o princípio da humanidade, o qual coloca o ser humano como centro da construção jurídica, vedando qualquer tratamento penal ou degradante no que concerne à aplicação das penas, como uma das maiores demonstrações do vetor da construção jurídica: a dignidade da pessoa humana.
Pautados por estes princípios mínimos irrenunciáveis e pelo racionalismo do período iluminista, Karl Binding conceitua que “o delito consistia na lesão de um direito subjetivo do Estado, havendo congruência entre a norma e o bem jurídico que era o núcleo do injusto, sendo a norma a única e definitiva fonte de revelação do bem jurídico”[24].
Nessa perspectiva clássica, todos os bens jurídicos são, obrigatoriamente, bens da comunidade, não fazendo, portanto, sentido a distinção entre bens jurídicos individuais ou supraindividuais.
Já para Franz von Liszt, também integrante da Escola Positiva, mas já com uma base naturalística-scociológica, aduz que devem ser “identificados os bens jurídicos a serem penalmente protegidos na sociedade, isto é, identificando-os como consequência das relações sociais. Direito Penal é a proteção dos interesses humanos vitais, os quais são os interesses jurídicos, visto que é este interesse que é reconhecido e tutelado pelo Direito”[25].
Inicia-se aqui um afastamento do pensamento positivista clássico em busca de um novo conceito de bem jurídico, diante da mudança de fenômenos sociais e das perspectivas históricas. Para compreensão do novo conceito de bem jurídico, faz-se imprescindível um escorço histórico da abordagem do instituto e das gerações (dimensões) do Direito Penal para uma melhor compreensão do tema.
Na primeira geração (dimensão) dos direitos, tutela-se os bens jurídicos individuais da pessoa com ênfase à liberdade dos indivíduos. Ao Estado cabia a proteção da liberdade de cada um, de acordo com o respeito à liberdade dos outros. Nessa senda, o Estado atuaria dentro de uma atuação posterior à violação da regra de conduta.
Na segunda geração (dimensão), exige-se uma atuação positiva do Estado para resguardar direitos sociais e coletivos. Assim, o Direito Penal cumpre uma atuação para resguardar esses interesses sociais, de modo que a intervenção penal só se justifica quando é absolutamente necessária para a proteção dos cidadãos.
Já com o advento da terceira geração (dimensão) dos direitos fundamentais, oriundos do pós-guerra, evolui-se para tutela de alguns interesses antes não concebidos, os interesses difusos. Para tratar esses bens, faz-se necessário uma abordagem diferenciada das tutelas jurídicas, inclusive a penal, atuando agora em uma prospecção para que o dano ocorra.
Segundo Ana Claudia Bastos de Pinho, para ser fiel ao modelo constitucionalmente concebido, “todo arcabouço do Direito Penal deve ser construído com base nessa concepção humanitária e garantista”. A dignidade da pessoa humana, assim, funciona como principal vetor na formulação, interpretação e aplicação das normas penais[26].
Dito isso, a Constituição Federal atua como limite negativo do Direito Penal, posto que será admitida toda criminalização que não atente contra o texto constitucional. Para Antonio Carlos da Ponte, a eleição de bens jurídicos passíveis de proteção penal pode ser realizada aleatoriamente, desde que os valores constitucionais tenham sido preservados[27].
Para tanto, deve-se contemplar a ingerência penal para proteção de bens jurídicos universais, o cumprimento de mandados de criminalização e a utilização do princípio da dignidade da pessoa humana como valor fundamental para proteção de determinado bem jurídico.
Pode-se concluir que a proteção de um bem jurídico, ainda que previsto em lei, só encontra respaldo no ordenamento jurídico se pautado pela dignidade da pessoa humana, isso vale dizer: quando imprescindível para assegurar as condições de vida, o desenvolvimento e a paz social, tendo em vista o postulado maior da liberdade – verdadeira presunção de liberdade – e da dignidade da pessoa humana.
6. Mudança de paradigma e ingerência penal para tutela dos bens jurídicos difusos
Parte-se ao questionamento sobre quais bem jurídicos mereceriam a tutela (ingerência) penal do Estado. Em outras palavras, quais bens constitucionais seriam eleitos pelo legislador ordinário como de maior relevância com o fito de receber a tutela do direito penal.
Segundo entendimento de Fabio Roque, “a Constituição Federal tem como principais características ser substancialista, dirigente e vinculante, de forma que existe um catálogo de bens jurídicos lá a serem resguardados, não podendo ficar à mercê da vontade política e da ideologia dos governantes”[28].
Neste sentido, profecia Renato de Mello Jorge Silveira:
“Relevância e necessidade são conceitos sedimentados por um positivismo marcadamente influente em diversas áreas da sociedade. Suas justificativas são de fundamento lógico, entretanto, por vezes, destoadas de uma lógica jurídica mais avançada. É verdade que a atualidade da vida social demonstra a importância dos interesses difusos para o convívio em sociedade. Os novos riscos impostos pela sociedade pós-moderna impõem certo tratamento a estas condutas. Fundando-se nessa necessidade, muitos clamam por uma tutela penal (ainda que nos moldes tradicionais) dos bens jurídicos difusos.”[29]
Há, portanto, a necessidade, dentro de um Estado Democrático de Direito, que determinadas condutas estejam enquadradas como penalmente puníveis, para que se consiga dar efetividade às normas constitucionais. Como exemplo, pode-se citar a corrupção sistemática, a corrupção eleitoral e a criminalidade organizada atuando livremente e sem punição efetiva dentro do Estado, os quais certamente comprometeriam o funcionamento das instituições e a própria ideia de democracia.
Assim, parte da doutrina penal defende a existência de mandados explícitos e implícitos de criminalização como um mínimo a ser previsto pelo Direito Penal. Para Antonio Carlos da Ponte, “não é ditar regras ao legislador, mas fixar e delimitar os espaços mínimos de atuação”.
Segundo a lição do eminente professor: “os mandados de criminalização indicam matérias sobre as quais o legislador ordinário não tem a faculdade de legislar, mas a obrigatoriedade de tratar, protegendo determinados bens ou interesses de forma adequada e, dentro do possível, integral”[30].
Assim, tendo como premissa o garantismo positivista, qual seja, o dever do Estado implementar e proteger direitos sociais, haveria no corpo da Constituição Federal mandados de criminalização explícitos, cabendo ao Poder Legislativo a implementação desses mandados como lei penal incriminadora.
Não se pode, outrossim, negar a necessidade da tutela penal aos bens jurídicos universais, ainda mais quando existem bens dessa natureza previstos em mandados de criminalização, uma vez que nestes casos se verifica uma ordem constitucional impondo tal proteção. Assim, diante da percepção da obrigatoriedade da tutela penal e com base nos valores constitucionais, fica evidente que o direito penal deve atuar de forma apta a proteger os bens em questão, sob pena de não cumprir a determinação constitucional.
De outra banda, além daqueles mandamentos expressos, parte da doutrina defende que haveria outros bens jurídicos que demandariam proteção da lei penal, ainda que não expressamente emanados pelo constituinte.
Segundo a doutrina, os mandados implícitos de criminalização seriam aqueles que, muito embora não estejam claramente expostos, podem ser extraídos da avaliação do corpo constitucional como um todo, ou seja, da avaliação contextual dos valores consubstanciados ao longo do Texto Constitucional.
Imperioso destacar que os mandados de criminalização só podem existir em um ambiente propício, qual seja, o Estado Democrático de Direito, pois estas cláusulas de penalização só se justificam num sistema no qual a supremacia constitucional e a separação de poderes se apresentem de maneira efetiva e não apenas formal, em um regime de normalidade institucional e democrática, nos quais há distinção entre normas constitucionais e leis ordinárias e entre os exercentes dos Poderes Legislativo e Executivo.
Considerando que a Constituição Federal, já no seu artigo 1º, prevê o regime democrático como cláusula pétrea, basilar da construção de toda ordem jurídica, bem como no artigo seguinte prevê a existência dos três poderes independentes e harmônicos entre si, pode-se concluir que o legislador ordinário tem a obrigação de agir positivamente para penalizar algumas condutas.
Contudo, a tutela do bem jurídico penal difuso demanda uma política criminal diferenciada, com a previsão de novos mecanismos de prevenção e punição de condutas, a qual é incomparável com a política criminal até o momento adotado, se mostrando necessário, portanto, novas respostas penais que não as tradicionalmente adotadas.
Para Manoella Guz, “os tipos penais no Direito Penal clássico, em regra, se apresentam de forma fechada, repreendendo condutas através de crimes de dano, ou seja, condutas que geram resultados lesivos aos bens protegidos. Já para a tutela dos bens universais se fará necessária a utilização de tipos penais que sejam aptos a prevenir lesões, ou seja, tipos penais de perigo”[31].
Isto porque, dentro de uma sociedade globalizada, cujos riscos são iminentes, os bens jurídicos universais, por não apresentarem titulares certos e determinados, produzirão danos que embora de grande dimensão por afetarem um número indeterminável de pessoas, de modo que não basta apenas um olhar retrospectivo.
A partir de fenômenos constatados que redundam numa verdadeira expansão do direito penal, o tradicional direito penal já não é o bastante para dar respostas efetivas à criminalidade moderna, devendo-se atuar por antecipação ou prospecção, punindo atos preparatórios desta criminalidade que corrói a democracia e todo tecido social.
Cumpre ao Direito Penal uma atuação prospectiva, atuando dentro de uma representação objetiva de perigo, evitando que a conduta se consume e que o resultado seja irreversível e catastrófico.
Além disso, em razão da tutela dever ser preventiva, não há como se prever taxativamente todas as condutas potencialmente lesivas ao bem jurídico, de forma que não é possível a adoção de tipos penais fechados que estabeleçam condutas certas e determinadas, visto que impossível ao legislador determinar a totalidade destas.
Outra técnica legislativa destacada por Manoella Guz na defesa dos bens universais mostra indispensável a aplicação de novas fórmulas penais, as quais farão com que o Direito Penal se utilize de novas técnicas de imputação, surgindo assim o chamado Direito Penal contemporâneo.
Dentre essas novas técnicas penais verifica-se a mitigação de direitos, garantias e princípios constitucionais, tais como os princípios da ofensividade e da legalidade. Em outras palavras, imprescindível se faz a adoção dos tipos penais de perigo, os abertos e as normas penais abertas, formas aptas a enquadrar as mais diversas situações potencialmente danosas, as quais são inúmeras e indetermináveis, bem como aptas a atualizar o direito penal diante das mudanças e necessidades do mundo contemporâneo, fazendo com que este não se torne inócuo em um curto espaço de tempo[32].
Diante de todo exposto, conclui-se que a abordagem do bem jurídico difuso exige uma tutela diferenciada e preventiva do Direito Penal, compatibilizando os princípios constitucionais clássicos do Direito Penal com as demandas emergentes do Estado Democrático de Direito.
Pode-se mencionar o fato de grande parte da doutrina considerar que a antecipação da tutela penal e o enfrentamento do risco de perigo diante da atuação da criminalidade moderna e dos grandes conglomerados econômicos, assim como a previsão de instrumentos específicos de investigação, são exemplos de que a sociedade está se utilizando de um tratamento penal diferenciado.
Sem sombra de dúvidas, o enfrentamento convincente da criminalidade organizada deve desenvolver política de controle das condutas criminosas mediante instrumentos específicos, abandonando os dogmas do direito penal tradicional. Deve ser priorizado o enfrentamento do perigo, sem esperar a ocorrência do dano. Não se deve esperar passivamente a ofensa a um bem jurídico, já que o maior atentado aos cidadãos e à democracia é uma Justiça que não responde à criminalidade no caso concreto.
Cabe alertar que balizar uma atuação específica e se instrumentalizar contra essas novas modalidades criminosas não justificam nenhum atentado contra os direitos inerentes à pessoa humana, não podendo em nenhuma hipótese negar a condição de cidadão a qualquer ser humano.
Para que se justifique a limitação dos direitos fundamentais é imprescindível que se verifique a eficácia dos meios de coerção na proteção da criminalidade moderna e difusa, pois só assim haveria um equilíbrio. Para que eventual limitação de direitos fundamentais seja plausível, dentro de um ideal de política criminal, faz-se mister uma ponderação de direitos, devendo se visualizar a eficácia das medidas, as quais não se tornariam legítimas sem um resultado prático, posto que as mitigações apenas serviriam para garantir um maior poder ao Estado, sem qualquer contraprestação à sociedade.
Como se observou no presente trabalho, o modelo globalizador de criminalidade da sociedade mundial impôs ao direito penal dos Estados nacionais a árdua tarefa de quebrar o paradigma clássico, contudo, sem que fossem colocadas de lado as garantias fundamentais dos indivíduos.
Os novos conflitos surgidos na sociedade atual em decorrência desse novo fenômeno demonstraram claramente que o Estado já não está mais apto a reprimir a criminalidade moderna. De fato, o direito penal da globalização apresenta falhas instrumentais na repressão de condutas ilícitas, em especial aquelas cometidas por organizações criminosas altamente especializadas, sobretudo quando atuantes por meio de grandes conglomerados econômico.
O direito penal contemporâneo inserido em uma sociedade pós-industrial, dita “de risco” se destaca pela tendência político-criminal de antecipar a intervenção penal para um momento anterior ao que o bem jurídico possa ser lesado ou exposto a um perigo concreto, acabando por punir os atos preparatórios, proliferando os delitos de perigo abstrato, os tipos penais abertos e as normas penais em branco.
Indispensável, pois, que o direito penal seja reinterpretado consoante o garantismo positivo previsto na constituição. Nesse sentido, os mandados de criminalização são ordens constitucionais que impõem a intervenção penal do Estado diante de condutas que afrontem os bens jurídicos neles determinados. Assim, no sistema brasileiro, alguns bens jurídicos são destacados como merecedores de proteção penal, de maneira que não se pode evitar esta tutela.
Por derradeiro, verificada a relevância do bem jurídico eleito como merecedor da proteção penal e constatando-se que a integridade deste não é preservada pelas outras áreas do Direito, resta obrigatória a proteção penal, não cabendo ao legislador ordinário discricionariamente decidir sobre a legitimidade desta intervenção estatal, sobretudo no que tange ao bem jurídico difuso, cuja violação pode acarretar danos catastróficos à toda sociedade.
Concluiu-se, portanto, que diante dessa forma especializada de criminalidade, o direito penal deve atuar não só como ultima ratio, mas como prima ratio na solução de conflitos, com a certeza de que só será merecedor de uma credibilidade social caso se mantenha atento às mudanças paradigmáticas da sociedade.
8. Referências e bibliografia
ASSIS MACHADO, Marta Rodrigues. Sociedade do Risco e Direito Penal: uma avaliação de novas tendências político-criminais. São Paulo: IBCCrim, 2005.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução Torrieri Guimarães. São Paulo: Editora Afiliada, 2003.
BECHARA, Ana Elisa Liberatore. Delitos de acumulação e racionalidade da intervenção penal. São Paulo: Boletim IBCCrim nº 208, ano 17, março de 2010.
BECK, Francis Rafael. Perspectivas de controle ao crime organizado e crítica à flexibilização das garantias. São Paulo: IBCCrim, 2004.
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo. Efd. Paidós. Tradución Jorge Navarro. Barcelona, 1998.
DIX SILVA, Tadeu. Globalização e direito penal brasileiro: acomodação ou indiferença? Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT. ano 6, vol. 23, 1998.
FARIA, José Eduardo. As transformações do Direito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, ano 6, n.22, 1998.
FARIA COSTA. José de. O fenômeno da globalização e o direito penal econômico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, v. 9, n. 34, 2001.
FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. O Direito Penal entre a “sociedade industrial” e a “sociedade do risco”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, ano 9, n.33, 2001.
FREIRE, Christiane Russomano. A violência do Sistema Penitenciário Brasileiro. 9º Concurso de Monografias Jurídicas. São Paulo: IBCCrim 2005.
GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINNI. Alice. Globalização e Direito Penal. In: Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.
GUZ, Manoella. Bem jurídico penal difuso e coletivo. Tese de mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo, 2010.
HOBSBAWM, Eric. O novo século. Tradução: Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
JORGE SILVEIRA, Renato Mello. Direito Penal Supraindividual: Interesses Difusos. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2002.
PINHO. Ana Cláudia Bastos de Pinho. Direito Penal e Estado Democrático de Direito. Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006.
PONTE, Antonio Carlos da. Crimes Eleitorais. 1ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Apud in: DIX SILVA, Tadeu. Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, v.6, n.23, 1998.
SBARDELOTTO, Fábio Roque. Direito Penal no Estado Democrático de Direito. São Paulo: Editora Livraria do Advogado, 2001.
SILVA FRANCO, Alberto. Globalização e Criminalidade dos Poderosos. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, ano 8, n.31, 2000.
SILVA SANCHEZ, Jesus Maria. A Expansão do Direito Penal. Tradução: Luiz Otávio Rocha. Editora. São Paulo: RT, 2002.
ZAFFARONI. Eugenio Raúl. Globalização e sistema penal na América Latina: a legislação brasileira em face do crime organizado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 4, n. 13, jan-mar, 1997.
[1] Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito (FADISP). Mestre em Empreendimentos Econômicos, Processualidade e Relações Jurídicas pela Universidade de Marília. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, exercendo a função de 4º Promotor de Justiça de Osasco. Professor da Universidade Adamantina e da UNIFIEO, e dos cursos de concursos públicos CEI e Vipjus.
[2] SANTOS, Boaventura de Sousa In DIX SILVA, Tadeu. Op.cit, 1998, p. 81-96.
[3] HOBSBAWM, Eric. O novo século. Tradução: Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.80.
[4] ZAFFARONI. Eugenio Raúl. Globalização e sistema penal na América Latina: a legislação brasileira em face do crime organizado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 4, n. 13, jan-mar, 1997, p.17-18.
[5] FARIA, José Eduardo. As transformações do Direito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, ano 6, n.22, 1998. P. 236-239.
[6] Não se trata de uma revolução armada nem de uma aspiração mutatória de uma sociedade. A sociedade global passa por essas mudanças “invisíveis” após a década de 80 com o final da Guerra Fria.
[7] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução Torrieri Guimarães. São Paulo, Editora Afiliada, 2003. P. 20.
[8] FARIA, José Eduardo. As transformações do Direito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, ano 6, n.22, 1998, P. 231-240.
[9] SILVA SANCHEZ, Jesus Maria. A Expansão do Direito Penal. Tradução: Luiz Otávio Rocha. Editora. São Paulo: RT, 2002. P. 64.
[10] BECK, Ulrich. O autor é o pai da teoria da “Sociedade do Risco”.
[11] Vale ressaltar que compartilhamos do entendimento daqueles autores que consideram essa mudança paradigmática está em total consonância com a nossa Constituição. O escopo desse trabalho é primeiramente entender essa mudança como fenômeno sociológico, fruto da sociedade globalizada. Entendemos também ser inevitável para o Direito essa mudança paradigmática.
[12] GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINNI. Alice. Globalização e Direito Penal. In: Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997. P. 93.
[13] FREIRE, Christiane Russomano. A violência do Sistema Penitenciário Brasileiro. 9º Concurso de Monografias Jurídicas. São Paulo: IBCCrim 2005. P. 37.
[14] FARIA COSTA. José de. O fenômeno da globalização e o direito penal econômico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, v. 9, n. 34, 2001. p. 14-15.
[15] BECHARA, Ana Elisa Liberatore. Delitos de acumulação e racionalidade da intervenção penal. São Paulo: Boletim IBCCrim nº 208, ano 17, março de 2010. P. 03
[16] ASSIS MACHADO, Marta Rodrigues. Sociedade do Risco e Direito Penal: uma avaliação de novas tendências político-criminais. São Paulo: IBCCrim , 2005. P. 183.
[17] FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. O Direito Penal entre a Sociedade Industrial e a Sociedade do Risco. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, n. 33, P.51.
[18] ASSIS MACHADO, Marta Rodrigues. Sociedade do Risco e Direito Penal: uma avaliação de novas tendências político-criminais. São Paulo: IBCCrim , 2005. P. 184
[19] BECK, Francis Rafael. Perspectivas de controle ao crime organizado e crítica à flexibilização das garantias. São Paulo: IBCCrim, 2004. P. 41.
[20] ASSIS MACHADO, Marta Rodrigues. Sociedade do Risco e Direito Penal: uma avaliação de novas tendências político-criminais. São Paulo: IBCCrim , 2005. P. 185.
[21] FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. O Direito Penal entre a Sociedade Industrial e a Sociedade do Risco. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, n. 33. P. 51.
[22] ASSIS MACHADO, Marta Rodrigues. Sociedade do Risco e Direito Penal: uma avaliação de novas tendências político-criminais. São Paulo: IBCCrim , 2005P. 187.
[23] O autor adverte que ainda é cedo para previsões quanto a saber como irá se amoldar o Processo Penal aos interesses difusos. Assim, da mesma forma que o Direito Substantivo requer instrumentos processuais modernos e adequados, também o Direito adjetivo há de requerer um Direito Penal coerente, sistêmico e dogmaticamente formatado. JORGE SILVEIRA, Renato Mello. Direito Penal Supraindividual: Interesses Difusos. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2002. P.179-180.
[24] BINDING, Karl. Apud in: GUZ, Manoella. Bem jurídico penal difuso e coletivo. Tese de mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo, 2010. P. 33
[25] VON LISZT, Franz. Apud in: GUZ, Manoella. Bem jurídico penal difuso e coletivo. Tese de mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo, 2010. P. 34.
[26] PINHO. Ana Cláudia Bastos de Pinho. Direito Penal e Estado Democrático de Direito. Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006. P. 64.
[27] PONTE, Antonio Carlos da. Crimes Eleitorais. 1ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2008. P. 164.
[28] SBARDELOTTO, Fábio Roque. Direito Penal no Estado Democrático de Direito. São Paulo: Editora Livraria do Advogado, 2001. P. 89.
[29] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal supra-individual: interesses difusos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 190.
[30] PONTE, Antonio Carlos da. Crimes Eleitorais. 1ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2008. P. 174-175.
[31] GUZ, Manoella. Bem jurídico penal difuso e coletivo. Tese de mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo, 2010. P. 136.
[32] GUZ, Manoella. Bem jurídico penal difuso e coletivo. Tese de mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo, 2010. P. 145.
Mestrando em Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (São Paulo, Capital; Brasil); Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, integrante do Grupo Especial de Combate ao Crime Organizado – GAECO, Núcleo da Capital; Professor do curso Estratégia Carreiras Jurídicas e do Curso de Pós-Graduação em Direito (Unileya). [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ATOJI, JULIANO CARVALHO. Globalização, sociedade de risco e tutela penal do bem jurídico difuso Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 fev 2022, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58085/globalizao-sociedade-de-risco-e-tutela-penal-do-bem-jurdico-difuso. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
Por: Thiago Filipe Consolação
Por: Michel Lima Sleiman Amud
Por: Helena Vaz de Figueiredo
Precisa estar logado para fazer comentários.