Resumo: O texto trata do caráter dirigente da constituição federativa brasileira, percorrendo fundamentação teórica que dá suporte a esse atributo, problematizando a questão da eficiência desse dirigismo no tocante a direitos sociais fundamentais. Contextualiza-se esse dirigismo e suas vicissitudes ante a liquidez dos tempos atuais e à luz do influxo neoliberalizante. Por fim, busca-se entender como o terceiro setor se situa nesse contexto, analisando criticamente qual papel nele exerce e qual deveria exercer em ordem a se acoplar ao dirigismo constitucional.
Abstract: This article aims to depict how and why Brazilian constitution must impose programmatic goals and tasks towards the transformation of reality on social and fundamental rights. It tries to show how efficient is this endeavour in confrontation with neoliberal thinking. In the end, it is shown the third sector interaction with that constitutional paradigm, analysing its role and goals.
Keywords: Constitutionalism. Neoliberalism. Fundamental rights. Third Sector. Third way Effectiviness of Brazilian constitution of 1988.
Sumário: 1.O problema do dirigismo constitucional eficiente. 2. Dirigismo e terceiro setor na atualidade- uma visão crítica. 3.Conclusão.
1.O problema do dirigismo constitucional eficiente .
Um problema que permanece atual e digno de observação refere-se ao dirigismo constitucional. Não há dúvidas quanto ao caráter dirigente da Constituição brasileira (vide arts. 1º, 3º e art. 170 da Constituição Federal Brasileira) . Ao enfeixar inúmeros princípios e normas relativos à ordem econômica e social, põe-se então a questão de como concretizar os direitos erigidos a partir dessa direção normativa.
Na atualidade, questiona-se de que forma o Estado pode instrumentalizar a declarada força normativa. Discute-se um suposto esvaziamento dessa força normativa.
Em paralelo, há outro fenômeno: o fortalecimento do terceiro setor, como alternativa de governança. O presente artigo pretende seaterno papel no terceiro setor e em sua relação com o dirigismo constitucional.
É preciso, de logo, observar que a Constituição não constitui nada por si só, segundo o ensinamento de Härbele (HARBELE, 1997), no contexto de sua teoria cognominada “sociedade aberta da constituição“. A constituição se funda, pois, na memória do passado, abrindo-se para o presente e tendo como horizonte as promessas do porvir.
O parâmetro atual de constitucionalidade transpõe os limites do que se convencionou chamar “Law in the books”, passando a problematizar a concretização dos direitos traçados nos escritos normativos. Seria o “Law in the action” em contraposição às meras vontades político-partidárias, a Lex mercatória e outros padrões sectários.
Não se deixa de reconhecerque esse dirigismo se mostra por vezes insuficiente. Contudo, mais do que uma observação do presente , o dirigismo se mostra necessário na medida em que a constituição tem como finalidade inerente a construção de uma sociedade solidária, livre e justa.
Sem uma força normativa conducente à concretização de direitos fundamentais, a leitura constitucional se resume a uma novela excessivamente analítica nos dizeres de Giovanni Sartori (SARTORI, 1996). É o que postula o paradigma de Dworkin (DWORKIN, 1984, P. 153), quando afirma que os direitos fundamentais são otrunfo com maior potencial libertário e transformador.
Loweinstein (LOWEINSTEIN, 1976), de seu turno, aponta para as consequências de um abismo entre texto e realidade. Para ele tal descompasso gera alijamento da comunidade. O sentido constitucional, que também foi adotado no Brasil, é de que deve haver uma interpretação aberta plural, através da qual a sociedade se compreenda na constituição. É irrefragável que essa perspectiva abre veredas para o reconhecimento do protagonismo do terceiro setor na persecução de valores constitucionalmente garantidos.
O que se observa do referido dirigismo - em diálogo com a teoria de Haberle – é que existe uma pretensão de eficácia diretiva, ainda que haja o reconhecimento de seus limites fáticos. Essa busca pela concretização normativa se afirmaria sobre vontade do poder. É importante pontuar que Hesse veio a concordar com Lassale num ponto: deve haver a necessária compatibilidade da regra fundamental com a natureza do presente.
Extrai-se do contexto histórico-teórico que haveria uma vontade da constituição. Ela que se desdobraria no seguinte: 1) Necessidade /valor de uma norma superior contra o arbítrio; 2) Constante processo de legitimação; 3) Eficácia SÓ com concurso da vontade humana.
A par dos referidos caracteres, haveria a necessidade de internalizar o valor de efetividade ao texto constitucional. Para tanto, Lowenstein usa a eficaz metáfora da roupa. É preciso “vestir a roupa constitucional”, o que também se convencionou chamar sentimento constitucional.
Dessa linha, se cunhou a seguinte classificação: 1) constituição normativa, que seria aquela em simbiose com a comunidade; 2) constituição semântica, a qual apenas formalizaria poder arbitrário e autoritário e 3) constituição nominal, sendo aquela que, por muito avançada, não éde facto praticada.
Segundo entendimento majoritário, a constituição brasileira se encaixaria nessa ideia de constituição nominal, daí porque remanesce a problemática de concretização das normas lá previstas. Especialmente permanece a questão de como realmente converter a extração danorma constitucional em politicas públicas.
Para Miguel Calmon Dantas (DANTAS, 2009) a constituição brasileira é deveras tardia. Questionamos se realmente seria tardia a constituição ou o chamado “direito pressuposto“. (GRAU, 2000) O direito pressuposto, como conjunto de princípios gerais de cada Direito, é construído historicamente em cada sociedade e compondo cada sistema.
Dirley Cunha (CUNHA JÚNIOR, 2004) afirma que haveria duas dimensões em relação a esse dever jurídico: 1) subjetiva ,consistente numa pretensão jurídica em face do Estado e 2) objetiva, consistente num deverque pauta a própria atuação estado. Conquanto estes fundamentos sejam amplamente aceitos, o que se observa no presente é na verdade uma perdada ideia do porvir. Ou seja, perde-se o alcance e a confiança de que há a luz no fim do túnel, a ser atingido mediante a direção dada pela constituição.
Bauman (BAUMAN, 2007a) fez a leitura de que a base para todas as escolhas se tornou líquida. Formas fluidas, múltiplas identidades, derretimento de parâmetros que se expandem para todos os microcosmos. Isto é espelhado na preferencia pelo trabalho especializado e instituições fragmentadas.Nesse contexto que o terceiro setor passa a ser parte relevante da questão normativa constitucional.
Como se verá adiante, questionada a amplitude e importância do Estado, atrai-se para o campo constitucional a analise do papel do terceiro setor. Esse momento se identifica com a reforma do Estado proposta por Bresser Pereira no inicio da década de 90(BRESSER PEREIRA, 1995).
2.Dirigismo constitucional no contexto atual.
O fato é que o dirigismo constitucional sofreu pressão. Era de se esperar que esse paradigma visse suas bases enfraquecidas, na medida em que o projeto de direção constitucional se fundou intensamente na atividade estatal.
No livro fruta proibida, Juan Ramon Capella (CAPELLA, 2006) defende que o poder viveria um deslocamento da esfera estatal – dos estados países – para um Soberano Privado difuso, em que um grupo não centralizado, não formalmente estabelecido, centralizaria o poder, controlando politicamente os estados devedores através do seu poder econômico. Em paralelo, o tempose mostrainstantâneo – vide internet – e a globalização praticamente abole as distâncias, permitindo que essa esfera de poder se consolide.
Piketty (PIKETTY, 2014) observa que a Europa está pesadamente endividada e empobrecida, enquanto os ricos desses mesmos países são seus credores, obtendo crescente fortuna e capilarizando seu poder político. Ventila Capella(2006) que estaríamos vivenciando uma Terceira revolução industrial por intermédio de fenômenos como: 1) - outsource, que seria a prática, pelas grandes corporações, de turismo laboral pra regiões onde as condições de mão de obra são ais favoráveis ao negócio; 2) a financeirização da economia, fazendo migrar o investimento de atividades produtivas para ativos financeiros; 3) intensa computação-robotização e 4) imaterialidade de produtos, sendo esta a valorização da produtividade criativa, da elaboração de marcas acompanhada de terceirização das linhas de produção.
Nesse contexto, haveria uma mundializaçao da pobreza, que teria alçado o neoliberalismo à condição desolução única, com todo seu pacto de austeridade, especialmente no tocante à restrição da máquina administrativa estatal. Nas relações de trabalho vigeria o regime “salve-se quem puder”, conduzido pelo sentido de liquidez.
Haveria o surgimento de movimentos temáticos fragmentados. Neste ponto, observa-se que o terceiro setor é guindado a ator central do atual quadro politico social. Torna-se comum ONGs de abrangência internacional, atuando em diferentes frentes espalhadas no globo, problematizando especificamente questões relativas ao seu objeto e, por vezes, sendo acusadas de serem veículos sub-reptícios de interferência estatal externa. Por tal motivo, há certa percepção de que ele integra a construção de um modelo de governança mais voltado para austeridade neoliberal.
Sua atuação estaria intimamente ligada à construção privada de politicas publicas com estimulo e chancela do Estado, mais se aproximando da lógica privada, da Lex mercatória. Ou seja, apareceria num contexto de desoficialização de políticas públicas, de “derecho deprimido” no vocábulo de Capella.
Não se quer dizer que o terceiro setor já não tivesse atuação relevante, mas cumpre situar que muito de seu atual protagonismo vem da crescente função que lhe é atribuída: a de materializar preceitos dirigidos constitucionalmente.
Nesse ambiente globalizado,há uma preferência pelo direito contratual procedimental, assim como pelo direito de engenharia financeira. Essas balizas guardam interação com o intuito de implantar a austeridade financeira, guindando essa prática à condição de valor primordial. Não só isso, expressa a crença num automático ganho de efetividade com a promoção de direitos através de relações negociais com o terceiro setor. Toma-se isto como premissa para a finalidade primordial, que seria otimização de performance na implementação de políticas.
A transformação se completa num controle de fora para dentro do Estado, o qual operaria das seguintes formas: 1) austeridade de cunho liberal passa a influenciar a oferta e operacionalização daspolíticas públicas; 2) regras internacionais e de propriedade imaterial passam a limitar e balizar as políticas internas; 3) normalização técnica (internacional) passa a ter eficácia prescritiva em grau equivalente ao direito interno; 4) há acordo de repartição de mercados, influenciando a atuação do terceiro setor no passo em que se considera mais eficiente lhe atribuiratividades antes exclusivamente estatais; 5) entende-se que sistemas auto reguláveis –como no caso da cibernética – são mais eficazes.
Observa-se um forte movimento no sentido de negar a política à exemplo do que ocorreu na ultima eleição americana e que vem ocorrendo no Brasil. Há aguda critica de Morin (MORIN, 1997) a essa despolitização, sob o entendimento de que a constituição é uma Carta política, por isso tem um sentido inerente de escolha política.
A negação da politica perpassaria a negação de que há escolhas quanto ao que vai ser praticado pelo Estado. Essa negação importaria em negar as próprias escolhas das politicas públicas e, em seguida, nega-las elas próprias. Por fim, se estaria negando o próprio contrato social ínsito à relação Estado - sociedade.
Feito esse preambulo teórico, cabe afunilar o estudo em torno do protagonismo do terceiro setor, especialmente daquela parcela ligada às empresas, ou seja, vinculada à lógica e organização mercantil.
3.Dirigismo e terceiro setor na atualidade- uma visão crítica.
Hodiernamente, ao se debruçar sobre as politicas publicas e à governança pública, tem-se o terceiro setor como um dos principais atores . Há toda uma teorização em redor do papel exercido por essa classe de atores. Do que se falou na primeira parte deste texto, já se observa que esse protagonismo envereda por vieses distintos.
Esboça-se que o “terceiro setor” funcionaria como alternativa a uma constatação apriorística de que o Estado não detém todos meios para concretizar direitos e princípios previstos na constitucional. Há idéias contra hegemônicas à realidade neoliberal que, nos dizeres de Maria Paoli (SANTOS et alli, 2002), traçam “possibilidades para criação de espaço filantrópico organizado por empresários nacionais e multinacionais,como ação civil voluntaria referenciada a uma nova percepção de responsabilidade social diante das múltiplas carências da imensa e ampliada população pobre do pais”.
Hannah Arendt (ARENDT, 1998)identifica que esse tipo de ação se fundaria num sentido público para um mundo comum, mais do que na simples virtuosidade dessas instituições e das pessoas a elas ligadas. Este sentido público surgiria de noções mais fortalecidas de cidadania e direitos, criando uma “esfera de todos“ apartada de decisões particularistas. A isto, Emir Sader deu o nome “esfera pública”.
Surgiria a idéia emergente de uma “sociedade civil” com novos compromissos partilhados entre cidadãos, governo e organizações. Este seria o contexto e inserção da empresa.É interessante a explanação de Paoli, já que muito do protagonismo do terceiro setor é explicado como um “artefato neoliberalizante” no sentido da auto desresponsabilização estatal.
A grande virtude de o terceiro setor ocupar esse espaço, antes estatal, seria a resolução de problemas baseada na generalização de competências civis descentralizadas. Ou seja, significaria a busca de soluções através do ativismo civil voluntario em localidades especificas.Neste ponto de partida, já se antevê fortes críticas. Primeiramente, já se põe em questão o problema de escala. Num pais como o Brasil, com um passivo de problemas sociais de dimensão continental e de acúmulo histórico, é muito difícil acreditar que a soma descoordenada de esforços locais é capaz de demonstrar transformações reais.
Há quem diga que esse ativismo social não passaria de “Wishfulthinking”, por se tratar duma ideia dissociada de nossa tradição cultural. A crítica parte da compreensão que nosso contexto sócio-polític odifere em alto grau dos antecedentes de outros países como EUA e Grã Bretanha, onde se formulou uma teoria do terceiro setor.
De fato, no Brasil, é historicamente problemática a proposição de modelos estrangeiros sem a crítica e adaptação necessárias. Em nosso ordenamento e nos modelos de gestão é cediço identificar a deturpação de modelos bem sucedidos alhures, os quais- aqui-tendemao insucesso debitado a uma suposta má aplicação.
Não se ouviu falar, por exemplo, que Reagan seriamente tenha proposto a privatização integral do ensino fundamental e médio nos EUA. No Brasil, a educação é um direito de extração constitucional, mas apenas engatinha para uma eficácia ampla qualitativa.
Bresser acaba por elaborar uma adaptação da teoria de Giddens em face da ausência de identidade entre países, quando conceitua a ação do terceiro setor da seguinte forma: ação solidária privada para “execução de serviços sociais” ou “compromisso com igualdade social possível“. Observa-se que reforma de Bresser Pereira acabou, focando na diminuição dos custos máquina estatal, daí inclusive ter sido apelidada de “desmantelamento do estado”.
Para se entender, então, a participação do terceiro setor no dirigismo constitucional é precisodivisar alguns aspectos de sua evolução no Brasil. As chamadasações sociais responsáveis, quando eficientes, são muitas vezes propostas pelos programas de solidariedade social empresarial, o queaponta para tensões e ambivalências, já que a finalidade primária da empresas apoiadoras não é necessariamente garantir direitos fundamentais .
Em contrapartida, a evolução do terceiro setor desvela a aproximação da velha filantropia, por vezes puramente prestacional, à noção de cidadania, de interação “solidária”. Essa “consciência de cidadania” significaria uma maior responsabilidade sobre a base social da vida pública.É oportuno observar que as ações de terceiro setor, apoiadas por empresas ensejam certa adaptação às formas do lucro empresarial, provocando um emparelhamento com discurso neoliberal de iniciativa individual, eficiência privada e burocratismo estatal.
Será que essa lógica seria suficiente para abarcar todo bloco de constitucionalidadeque se pretende ver dirigindo as relações sociais ? Como conciliar a feição conciliatória da constituição a esse predomínio de paradigma? O mínimo existencial direito à saúde com a necessidade de ordenar custos e garantir excedente?
A desigualdade precedente no Brasil cria a tendência ao Apartheid social, o que Paoli chama de “dessocialização da economia”, sem possibilidade de participação efetiva de todos os setores da coletividade. Essa abordagem é interessante porque pari passu a esta proposta de “Privatização da esfera pública” tomou corpo, desde a década de 90 do século XX,a publicização dos interesses privados no sentido de ressignificar todo e qualquer direito à luz da Constituição.
Esse protagonismo do terceiro setor, como explana Paoli (SANTOS et alli, 2002), estaria baseado na “Criatividade social dos atingidos” e na “cultura do altruísmo” apoiada no modelo de gestão empresarial. Essa acepção não fica imune à desconfiança quanto à capacidade de tais atingidos encontrarem “soluções”, assim comohá dúvidas se as pessoas e ,sobretudo as empresas,tendem realmente a essa cultura do altruísmo.
De fato, há uma aparente contradição em assumir que o terceiro setor será capaz de fomentar uma cultura do altruísmo e, no mesmo tempo, concretizar políticas públicas com eficiência “empresarial”, utilizando padrões individualistas. A ideia talvez é que o modo fosse “empresarial“, no sentido de ser eficiente e o fim fosse o beneficio da coletividade ao invés do lucro.Contudo, essa explicação também não parece ultrapassar a ambiguidade.
Há talvez um aspecto que explique melhor o protagonismo do terceiro setor, que é a capacidade de atrair investimentos privados sob a contrapartida de transferência duma imagem institucional positiva. Talvez seja este o ponto de toque, ao se levar em conta que a maioria das entidades bem sucedidas foi criada por empresas. Exemplo disso é a Fundação Odebretch.
O fundamento base seria a vantagem de um capitalismo civilizado. Este capitalismo repaginado teria uma especial instrumentalidade para controle do espaço mercantil e social, através de signos valorativos da ética da doação. Um exemplo desse fenômeno seria a chegada de uma multinacional para competir no mercado interno. Seu apoio ao terceiro setor removeria objeções e limites à entrada competitiva. Igualmente proporcionaria serviços sociais voltados a direitos constitucionais.
Outro ponto seria a agregação de valor à marca. O valor agregado em razão do estimulo ao terceiro setor se revestiria em verdadeiros produtos paralelos para acionistas e consumidores. Isso se evidencia a partir da observação de que as empresas apoiadoras costumam alocar esses custos no seu orçamento de marketing (sob a rubrica “Marketing social“) quando não institui fundação própria.
Muito embora o investimento privado seja a maior das promessas ao desenvolvimento do terceiro setor , há ainda o argumento de que a lógica da eficiência privada criaria uma “tecnologia da cidadania”. Paoli (SANTOS et alli, 2002) relata esse aspecto. O terceiro setor progressivamente se coordena, tendo já formulado indicadores para ganho e acreditação de qualidade[i]1. A idéia subjacente é que um terceiro setor altamente especializado poderia gerar maiores ganhos de eficiência, que sendo mais flexível que o Estado em termos de gestão, poderia alcançar melhores resultados até mesmo no tocante a bens e direitos primariamente atribuídos ao ente estatal. A vantagem comparativa haveria de ser esta.
A mera descentralização de atividades estatais,as deslocando para o terceiro setor, por si só não apresenta ganho de resultados. Exatamente por isso, a criação dos contratos de gestão para serviços públicos2 chegou a ser duramente criticada no Brasil, oportunidade em que se apontou que sua serventia única seria diminuir controles sobre dinheiro público transferido a Organizações Sociais e OSCIPs 3 .
Esta crítica resta reforçada quando as tais “tecnologias de gestão empresarial“, que seriam o trunfo do terceiro setor, não se mostram garantidoras da acreditação conferida. Paoli reporta o caso do selo “Abrinq”, que na prática não se mostrou suficiente a garantir o compromisso contra a escravidão infantil. Neste ponto avulta o imediatismo empresarial que demonstra certa limitação do terceiro setor na concretização de interesses públicos de extração constitucional, quando encampados em parceria coma Adminsitração pública.
Na participação do terceiro setor, em muitos casos faltaria uma exigibilidade mais densa. Não há uma obrigação legal de constituir uma ONG para tratar de determinada demanda de saúde constitucionalmente garantida.No caso do Estado, dele é exigível inclusive pela via judicial determinado tratamento necessário. Não se quer aqui discutir a judicialização dos direitos, que merece estudo próprio, mas é de se perguntar até que ponto o protagonismo do setor terceiro lhe transfere essa exigibilidade típica ao Estado.
É preciso ter em conta que o Espaço público no qual se baseia a atividade das ONGs e afins só se forma quando socialmente desiguais se encontram como atores equivalentes, ainda que assimétricos, para reflexões, deliberações e debates.
Uma excessiva submissão da lógica de gestão privada rompe com a correlação necessidade–direito pode afastar o cidadão participativo. De outro lado, se a participação do terceiro setor funcionar como catalisador dessa participação projeta-se resultados relevantes. Necessariamente o que será interessante a uma empresa apoiar não será o que determinada parcela da coletividade precisa. Eventualmente não haverá interesse na criação de ONGs especializadas em atividades de cujas parcerias o Estado é carente. No âmbito privado não é possível deixar de contemplar a liberdade de associação e atividade.
É importante, ademais, que o conceito de “Sociedade civil” não se confunda com a forma de ONGs, como vem acontecendo. Isto reduz por demais o conceito de sociedade civil, haja vista que não necessariamente as ONGs contam com ampla legitimidade. Em alguns casos, pelo contrário, podem serinstrumentalizadas para politicas excludentes, quando não utilizada para fins desviantes. (2002).
A projeção excessiva do terceiro setor, como resposta à ineficiência das políticas estatais, tende a restringir alternativas para concretização dos direitos fundamentais objetivados. Esse tipo de projeção enfraquece a discussão politizadora que aproxime as pessoas (voluntários) das ações governamentais e das políticas públicas (dispowerment). Em certa medida afasta importante parcela da esfera pública, desmobilizando contingente participativo que poderia contribuir para o próprio terceiro setor.
Não se pode esperar que a ação empresarial se modifique, de um dia para o outro,em relação ao Estado. Continuará a laborar no aspecto do lobby de interesses financeiros e econômicos, e isso necessariamente não é daninho, diga-se de passagem. Tampouco parece proveitoso mitigar a importância do Estado na formulação de políticas, exacerbando o argumento da eficiência privada. A não ser que o discurso de terceira via apenas se preste a reforçar a austeridade pouco reflexiva.
Decerto que as politicas públicas praticadas pelo terceiro setor são criticadas com menos virulência, na medida em que são entendidas como liberalidades, mesmo quando feitas em parceria com Estado. Em contrapartida, nos últimos anos, observou-se em relação às politicas públicas estatais uma avaliação muito mais rígida- muitas vezes exagerada - no tocante à sua pertinência,eficiência, economicidade. Temos como exemplo programas sociais como “Bolsa família”, “Minha casa minha vida”, dentre outros.
Aparentemente, isto já revela adesão um tanto exagerada a valores empresarias numa seara regida por inúmeros outros princípios de igual ou maior relevância. Esse entendimento acaba se transpondo para a esfera pública de forma um tanto desajeitada.
Conforme a metáfora de Lowenstein, é como se a “roupa não caísse bem” , não se adequasse à feição da escolha política constitucional.
3.Conclusão
Por fim, respondendo os questionamentos acima tracejados, temos que o dirigismo pode e deve se concretizar por intermédio do terceiro setor. Trata-se de uma realidade alvissareira que, apesar das desconfianças e ambiguidades,atinge em boa parte o quanto vaticinado por Giddens. Quando se diz parcialmente é porque seu papel não pode ser outro senão o de complementar a atuação estatal. A forma como vem sendo concebida a atuação do terceiro setor parece conduzir ao falso entendimento de que ele “É”a solução para os problemas contemporâneos do Estado. É a leitura que fazemos à luz dos acontecimentos históricos que antecedem e rodeiam essa atuação.
A atuação do terceiro setor haveria de ser conciliatória com a atuação do Estado para se adequar ao sentimento constitucional da carta federal de 88 e lhe dar máxima efetividade. O dirigismo é preceito fundamental da constituição brasileira e a escolha deve ser garantida sem sofrer “by-passes”. Nesse sentido, é preciso entender que para dar cabo da missão constitucional, o protagonismo do terceiro setor deve estar auto limitado pelo signo da complementariedade.
Não só enquanto captador de apoio privado, mas também como entidade parceira do Estado, deve o terceiro setor acompanhar a publicização do direito privado, na mesma proporção em que enfeixa o modus operandi empresarial. Ainda que se valha de técnicas empresariais voltadas à maior eficiência,não pode perder de vista o significado constitucional-público que é sua razão de existir. É justamente essa notação que lhe confere natureza jurídica distinta. Repita-se que a grande virtude de o terceiro setor ocupar esse espaço, antes privativamente estatal, seria a busca de soluções através do ativismo civil voluntario em localidades especificas, o que se mantem ativo com o signo da complementariedade. Com tudo isso, não se quer dizer que o papel atual do Estado não mereça reflexões. Todavia, esse é outro assunto a merecer novos debates.
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Procurador do Estado. Mestre em Direito, Governança e Politicas Públicas
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALEXANDRE DE SOUZA ARAúJO, . O papel do Terceiro setor no caráter dirigente da Constituição brasileira Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 mar 2022, 04:35. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58110/o-papel-do-terceiro-setor-no-carter-dirigente-da-constituio-brasileira. Acesso em: 23 dez 2024.
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