Resumo: O presente artigo fará um apanhado das alterações promovidas no artigo 50 do Código Civil, que dispõe sobre a desconsideração da personalidade jurídica, em razão da Lei n° 13.874/19 (“Lei da Liberdade Econômica”), indicando as lacunas que eram vislumbradas na redação anterior, e quais avanços poderão ser alcançados, ou não, a partir de tais alterações, levando em conta a interpretação sistemática e as dificuldades anteriormente encontradas pela jurisprudência nacional.
Palavras-chave: Lei da Liberdade Econômica. Pessoa Jurídica. Desconsideração da Personalidade Jurídica. Artigo 50 do Código Civil.
Sumário: 1. Introdução. 2. Propósitos gerais da Lei da Liberdade Econômica e sua relação com a Desconsideração da Personalidade Jurídica. 3. Alterações no caput do artigo 50 do Código Civil. 4. Inserção do §1º do artigo 50 do Código Civil. 5. Inserção do §2º do artigo 50 do Código Civil. 6. Inserção do §3º do artigo 50 do Código Civil. 7. Inserção do §4º do artigo 50 do Código Civil. 8. Inserção do §5º do artigo 50 do Código Civil. 9.Considerações Finais. 10. Referências.
1. Introdução.
A despeito das discussões doutrinárias quanto à sua natureza, fato é que as pessoas jurídicas devidamente constituídas adquirem personalidade jurídica própria e, assim, se tornam titulares de direitos e obrigações, de forma separada e independente de seus integrantes. Por conseguinte, em regra, a pessoa jurídica responde com o seu próprio patrimônio pelas dívidas que constituir, resguardando-se o patrimônio de seus sócios, conforme preceitua o chamado princípio da autonomia patrimonial.[1]
O instituto da desconsideração da personalidade jurídica surge, portanto, como uma exceção ao princípio da autonomia, de modo que, frente a determinadas condições, será desconsiderada a separação entre a pessoa jurídica e seus sócios, de modo que o patrimônio ambos responderão pelas dívidas da pessoa jurídica.
Este instituto teve origem na Inglaterra, em 1929, quando foi previsto na seção 279 do Companies Act, com aplicabilidade restrita às hipóteses de liquidação de sociedades. Conforme a referida previsão, se restasse comprovado que a liquidação da sociedade se deu com objetivo de fraudar credores ou terceiros, a Corte, a pedidos, poderia determinar o alcance ilimitado ao patrimônio dos sócios que estivessem envolvidos na fraude.
O precedente mais relevante que deu origem a essa previsão foi o do caso Salomon V. Salomon Co., em 1897, no qual se discutiu a possibilidade de ser alcançado o patrimônio dos sócios da companhia Aron Salomon Ltda., que teria sido constituída e liquidada com fim de fraudar seus credores.
A análise do referido caso partiu da premissa de que a constituição da sociedade importa a existência de um “véu da corporação” (“corporate veil”), o qual poderia, em situações excepcionais, ser levantado (“lift of the corporate veil”).
A partir de então, o instituto foi desenvolvido pela jurisprudência e pela legislação anglo-saxônicas e passou a ser adotado pelas cortes norte-americanas e inglesas, que mencionam o “lifting of the corporate veil”, “piercing of the corporate veil”, ou “disregard of the Legal Entity”, como sinônimos, quando há atuação fraudulenta dos sócios na condução da sociedade, com prejuízo a terceiros, de modo a possibilitar o alcance de seus patrimônios pessoais.
No Brasil, a desconsideração da personalidade jurídica foi mencionada pela primeira vez em 1969, por Rubens Requião em uma conferência chamada “Abuso de Direito e Fraude através da Personalidade Jurídica", na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. O doutrinador defendeu a tese de que os efeitos da personalização deveriam ser relativos, de modo que, se a pessoa jurídica fosse utilizada com fraude ou abuso de direito, seria admissível desconsiderar a sua autonomia patrimonial.[2]
A ideia foi desenvolvida, em seguida, por Lamartine Corrêa de Oliveira, um dos principais juristas relacionados à temática. O autor defende que a realidade deve prevalecer sobre a aparência da personalidade jurídica, sempre quando a pessoa jurídica for utilizada de forma desviada de seu objetivo, para servir de escudo aos seus sócios, em prejuízo a terceiros. [3]
Até 1990, não havia, no Brasil, um dispositivo legal a esse respeito, de modo que a desconsideração da personalidade jurídica se desenvolveu como um desdobramento do conceito de abuso de direito. Naquele ano, o panorama foi alterado pelo advento do Código do Consumidor, cujo artigo 28 permitiu a desconsideração da personalidade jurídica, em relações consumeristas, sempre que houvesse estado de insolvência da pessoa jurídica, de modo que o consumidor encontre dificuldades para solver o seu crédito.[4]
Em 2002, a redação originária do artigo 50 do Código Civil[5] esclareceu que essa amplitude não deveria atingir as relações civis, nas quais, para que houvesse a desconsideração da personalidade jurídica, deveria ser constatado abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo seu desvio de finalidade ou confusão patrimonial com os sócios.
O que se verifica, de qualquer forma, é que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica não se opõe ao princípio da autonomia patrimonial, mas sim busca garantir o devido cumprimento da autonomia da pessoa jurídica de forma geral, posto que impede que esta seja utilizada de forma desvirtuada, como instrumento para prática de atos em prejuízo a terceiros.
Em outras palavras, a desconsideração da personalidade jurídica, ao estabelecer a possibilidade de ser excepcionada a autonomia patrimonial, se destina a impedir que a pessoa jurídica seja utilizada de maneira disfuncional, como escudo de proteção de seus sócios contra credores. Não se trata de uma despersonificação ou despersonalização da pessoa jurídica, de forma definitiva, mas sim de um afastamento dos efeitos da autonomia patrimonial, frente a certos requisitos, de maneira específica e em uma relação jurídica pré-determinada.
A jurisprudência nacional, todavia, encontrou dificuldades para definir as situações que autorizariam a desconsideração da personalidade jurídica nas relações civis, ensejando interpretações diversas e decisões díspares para situações equivalentes. Com intuito de sanar tais circunstância e prover maior segurança jurídica, a Medida Provisória n° 881 de 2019 (“MP 881”) trouxe alterações na redação do artigo 50 do Código Civil, cujo estudo se pretende no presente artigo.
2. Propósitos gerais da Lei da Liberdade Econômica e sua relação com a Desconsideração da Personalidade Jurídica.
Em sua exposição de motivos, a MP 881, posteriormente convertida na Lei n° 13.874/19 (“Lei da Liberdade Econômica”), esclarece os seus objetivos principais de instituir a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e estabelecer garantias de livre mercado, bem como proporcionar maior segurança jurídica a partir da edição de determinados dispositivos legais.[6]
A referida exposição também aponta o momento de crise econômica em que o país se encontra, e destaca ter sido cientificamente possível concluir que a liberdade econômica e a proteção ao patrimônio individual são fatores necessários e preponderantes para o desenvolvimento e crescimento econômico de um país, bem como para o bem-estar de sua população.[7]
Assim, como princípios norteadores da referida lei, seu artigo 2º elenca: (i) a liberdade como garantia no exercício de atividades econômica; (ii) a presunção de boa-fé do particular perante o poder público; (iii) o caráter excepcional da intervenção do Estado sobre o exercício de atividades econômicas; e (iv) o reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado.[8]
Seguindo essas diretrizes, dentre outras edições, a Lei da Liberdade Econômica, por meio de seu artigo 7º, alterou a redação do artigo 50 do Código Civil, de modo a aprofundar as questões relacionadas à desconsideração da personalidade jurídica nas relações civis, buscando conferir maior transparência, exatidão e simetria na aplicação do instituto.
A nova redação, como analisar-se-á a seguir, privilegiou a proteção ao patrimônio individual e a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, ao restringir e especificar as hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, bem como limitar a responsabilidade dos sócios ao seu efetivo benefício na desconformidade de direcionamento da pessoa jurídica.
O que se buscou como consequência final, em consonância com o objetivo geral das disposições da Lei da Liberdade Econômica, foi limitar as intervenções estatais e uniformizar o entendimento jurisprudencial quanto à extensão da autonomia patrimonial, de modo a garantir maior segurança jurídica às relações de mercado que, dessa forma, tendem a se tornar mais livres e atrativas a investidores.
3. Alterações no caput do artigo 50 do Código Civil.
O caput do artigo 50 do Código Civil, em momento anterior à reforma promovida pela Lei da Liberdade Econômica, determinava que os bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica poderiam ser alcançados, por determinação judicial, para a satisfação de obrigações desta, “em caso de abuso de personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial”.
A simplicidade da referida disposição, que não detém maiores esclarecimentos quanto ao nexo causal que originaria a responsabilização dos sócios, quanto à extensão do alcance do patrimônio pessoal, ou quanto aos conceitos de desvio de finalidade ou confusão patrimonial, deu margem a interpretações distintas e, por conseguinte, a aplicações diversificadas do instituto da desconsideração da personalidade jurídica pela jurisprudência.
O artigo 7º da Lei da Liberdade Econômica, para além de inserir parágrafos ao referido artigo 50, no intuito de melhor definir os conceitos e hipóteses de desvio de finalidade e confusão patrimonial, também alterou a redação de seu caput, ao inserir neste a expressão “beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”, para caracterizar os sócios ou administradores que poderão ter seus patrimônios alcançados pela desconsideração:
CC, Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
Por meio desta alteração, a desconsideração da personalidade jurídica foi expressamente condicionada à existência (i) de um efetivo benefício, direto ou indireto, auferido pelos seus sócios ou administradores, e (ii) de um nexo causal entre o abuso da personalidade jurídica, causado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, e tal benefício.
Positivou-se, assim, o entendimento já existente do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que o afastamento da autonomia patrimonial da pessoa jurídica é restrito às hipóteses de abuso em que houver benefício aos seus sócios ou administradores, e de que somente devem ser alcançados os patrimônios das pessoas físicas que efetivamente auferirem tal benefício (de forma direta ou indireta).[9]
Apesar de não haver limitação expressa, fortaleceu-se, também, o entendimento de que o alcance do patrimônio dos sócios ou administradores se limita ao benefício auferido, sendo incabível a extensão ao seu patrimônio como um todo. Assim demonstram trechos do recente acórdão do Agravo de Instrumento nº 2078990-10.2019.8.26.0000, da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, do Tribunal de Justiça de São Paulo.[10]
A título de exemplo do avanço conquistado nesse sentido, um sócio detentor de participação societária reduzida, que não tenha concorrido para o uso indevido da personalidade jurídica da sociedade que integra, mas que tenha auferidos benefícios indiretos mínimos inerentes ao aumento de seus dividendos, não correrá o risco de ter todo o seu patrimônio alcançado por dívidas de grande monta da sociedade.
A alteração do caput do artigo do Código Civil, portanto, apesar de advir da simples inclusão da expressão “beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”, configura a positivação e o fortalecimento de posicionamentos jurisprudenciais restritivos já existentes, cuja aplicação correta e uniforme terá extrema relevância para garantir maior segurança às relações de mercado.
4. Inserção do §1º do artigo 50 do Código Civil.
A inserção do parágrafo primeiro no artigo 50 do Código Civil se deu sob o intuito de esclarecer o conceito do desvio de finalidade, apto a configurar o abuso da personalidade jurídica. Nos termos do referido dispositivo, “desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza”:
“CC, Art. 50 § 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.”
Se, mesmo nas relações cíveis, já houve precedentes de aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica para casos de simples insuficiência de recursos frente a credores, ou encerramento irregular de pessoas jurídicas, espera-se que a definição do conceito de desvio de finalidade oriente a jurisprudência a consolidar-se em sentido inverso.
Conforme aduz o referido parágrafo, a desconsideração da personalidade jurídica sob a alegação de abuso decorrente de desvio de finalidade somente poderá ocorrer quando a pessoa jurídica for utilizada indevidamente, de forma desvirtuada de suas funções sociais, como instrumento para viabilizar a prática de atos ilícitos, ou com o propósito de lesar credores.
Apesar de ter sido alterada a redação inicialmente pretendida para o dispositivo, segundo a qual o desvio de finalidade seria “a utilização dolosa da pessoa jurídica (...)”, a manutenção da expressão “com o propósito” ainda deixa evidente que a caracterização do desvio de finalidade depende de ato intencional dos sócios ou administradores da pessoa jurídica, para lhe direcionar indevidamente.
A inclusão do referido parágrafo primeiro também representou a positivação de um entendimento já existente do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de o desvio de finalidade da pessoa jurídica se configurar apenas quando houver ação dolosa de seus sócios ou administradores, com intuito de lesar credores ou terceiros.[11]
A aplicação desse entendimento, agora positivado, é de suma importância, para que o desvio de finalidade deixe de ser utilizado em decisões judiciais como fundamento genérico a permitir o afastamento da autonomia patrimonial da personalidade jurídica, que deve ser compreendido como medida excepcional.
No recente acórdão do Agravo de Instrumento nº 2255086-74.2019.8.26.0000, proferido pela 38ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, verifica-se a sua adequada aplicação, posto que foi indeferida a desconsideração da personalidade jurídica pleiteada por suposto desvio de finalidade, ante à inexistência de dolo dos acionistas da sociedade. No caso, ainda, foi destacado que o ônus de provar a existência de dolo das pessoas físicas cujo patrimônio se pretende alcançar é da parte autora, que pleiteia a concessão de tal medida.[12]
5. Inserção do §2º do artigo 50 do Código Civil.
Em paralelo ao parágrafo primeiro, o parágrafo segundo foi inserido ao artigo 50 do Código Civil com o objetivo de conceituar a confusão patrimonial capaz de configurar abuso de personalidade jurídica, a ensejar a sua desconsideração. Segundo aduz o dispositivo, a confusão patrimonial se caracteriza pela “ausência de separação de fato entre os patrimônios” da pessoa jurídica e das pessoas físicas que a integram.
Os incisos I e II do dispositivo completam a previsão, elencando duas situações em que essa ausência de separação patrimonial seria verificada, quais sejam, o “cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa”, e a “transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante”.
A exclusão de transferência de ativos ou passivos de valores proporcionalmente insignificantes possui um caráter restritivo muito relevante, uma vez que tais transferências, bastante comuns, por não serem capazes de reduzir a pessoa jurídica à insolvência, também não poderão servir de argumento único capaz de ensejar o excepcional alcance ao patrimônio de seus sócios ou administradores.
Apesar de as situações dos incisos I e II parecerem suficientemente definidas, o inciso III do referido dispositivo as complementou com a afirmação genérica de que também configurarão a confusão patrimonial “outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial”:
CC, Art. 50 § 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:
I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e
III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
Dessa forma, o rol dos incisos do parágrafo segundo assumiu um caráter meramente exemplificativo, que pouco restringe a liberdade interpretativa da jurisprudência.
Por óbvio, a inserção do parágrafo segundo conferiu algum suporte conceitual à definição de confusão patrimonial, em avanço ao panorama anterior, onde este conceito era absolutamente indefinido. Todavia, a redação do inciso III deixa aberta a possibilidade de os magistrados utilizarem a sua liberdade criativa para reconhecerem as mais diversas situações de suposta confusão patrimonial, de modo que a segurança jurídica pretendida pela Lei da Liberdade Econômica, nesse ponto, provavelmente não será alcançada.
Não obstante, as disposições dos incisos I e II têm sido devida e beneficamente aplicadas pela jurisprudência, como demonstra o acórdão do Agravo de Instrumento nº 2240254-36.2019.8.26.0000, da 19 ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo. No caso, além de ter sido corretamente analisada a questão da insignificância de valores, também foi aplicada a restrição de alcance somente aos patrimônios dos sócios e administradores beneficiados, em acertada interpretação analógica ao parágrafo primeiro do mesmo artigo 50.[13]
6. Inserção do §3º do artigo 50 do Código Civil.
O Código de Processo Civil de 2015, em seu artigo 133, parágrafos primeiro e segundo, possui previsões expressas que instrumentalizam a chamada desconsideração inversa da personalidade jurídica, mediante a qual o patrimônio da pessoa jurídica pode ser alcançado para cumprir as obrigações de seus sócios ou administradores, em situações de abuso da personalidade jurídica.[14]
Antes mesmo da referida previsão processual, a desconsideração inversa da personalidade jurídica já era um instrumento bastante utilizado, de forma consolidada pela jurisprudência, sob a análise dos mesmos requisitos necessários para a desconsideração “direta” ou “comum”.[15]
Nesse diapasão, a inclusão do parágrafo terceiro no artigo 50 do Código Civil apenas positivou o entendimento jurisprudencial pacífico, no sentido de autorizar a desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo que as dívidas dos sócios podem alcançar os patrimônios de suas sociedades, se houver desvio de finalidade dessas ou confusão patrimonial entre ambos:
“CC, Art. 50. § 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.”
Positivou-se, portanto, mais uma forma de impedir que as pessoas físicas se utilizem das pessoas jurídicas de maneira indevida, como instrumento de blindagem ao seu patrimônio pessoal, visando inadimplir suas próprias obrigações, em benefício próprio e em prejuízo a credores e terceiros.
A título de exemplo, um sócio que transmitir todo seu patrimônio pessoal para a pessoa jurídica da qual faz parte, com objetivo de não ser atingido pelo seu credor, de quem tomou crédito na pessoa física, poderá dar ensejo à desconsideração inversa da personalidade jurídica, para que o patrimônio da sociedade também responda por tais obrigações.
Todas as dúvidas aplicáveis aos conceitos de desvio de finalidade ou confusão patrimonial, já analisados, aqui também se aplicam, haja vista a aplicabilidade desses mesmos requisitos. Não há, contudo, novas controvérsias ou questões que mereçam análise aprofundada.
Por tratar-se uma questão consolidada e pacífica perante a jurisprudência, também não se acredita que serão promovidas alterações jurisprudenciais significativas com base no parágrafo terceiro do artigo 50 do Código Civil.
7. Inserção do §4º do artigo 50 do Código Civil.
Enquanto os parágrafos primeiro e segundo conceituaram o desvio de finalidade e a confusão patrimonial, e o parágrafo terceiro trouxe previsão material quanto ao instrumento da desconsideração inversa da personalidade jurídica, os parágrafos quarto e quinto, inseridos no artigo 50 do Código Civil pelo artigo 7º da Lei da Liberdade Econômica, cuidaram de esclarecer hipóteses em que a desconsideração da personalidade jurídica não será aplicável.
Conforme aduz o parágrafo quarto, o afastamento da autonomia patrimonial não será autorizado pela mera existência de grupo econômico, sem que seja constatado o abuso da personalidade jurídica, por meio de desvio de finalidade ou confusão patrimonial:
“CC, Art. 50 § 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.”
Apesar de o dispositivo não distinguir, é cediço que os grupos econômicos se diferenciam em grupos de direito e de fato, sendo estes últimos os que prevalecem na prática econômica brasileira.
Os de direito são os grupos econômicos constituídos mediante convenção de um grupo de sociedades e formalizados pela legislação societária, para consecução de um objetivo único. E os de fato são os grupos econômicos decorrentes de uma análise fática, da qual se verifique que o poder de decisão e o poder econômico de várias sociedades está centralizado em apenas uma pessoa física ou jurídica.
Ambas as espécies de grupos econômicos são capazes de ensejar a desconsideração da personalidade jurídica, mas não pela sua mera existência, e sim desde que também sejam caracterizados o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial. Assim já entendia a jurisprudência brasileira,[16] de modo que o parágrafo quarto também foi inserido no artigo 50 como forma de positivar um entendimento jurisprudencial.
Todavia, observa-se que a jurisprudência sempre encontrou dificuldades em diferenciar quais requisitos caracterizam um grupo econômico e quais são aptos a caracterizar o efetivo abuso da personalidade jurídica, de modo que, por muitas vezes, o mero reconhecimento da existência do grupo econômico, na prática, foi suficiente para que houvesse o deferimento da desconsideração da personalidade jurídica.
A título de exemplo, no julgamento do Agravo de Instrumento nº 906.667-7, em 2012, o Tribunal de Justiça do Paraná reconheceu que a simples existência de grupo econômico não seria apta a ensejar a desconsideração da personalidade jurídica. Contudo, a medida excepcional foi deferida, com argumentos relacionados apenas à própria existência do referido grupo, e não a um efetivo abuso, como a similitude das atividades sociais, sócios, administradores e endereços.[17]
Outra dificuldade encontrada pela jurisprudência reside na confusão entre a desconsideração da personalidade jurídica em grupos econômicos e a aplicação da teoria da aparência, cujos efeitos são de extensão da responsabilização. A teoria da aparência se aplica quando as pessoas jurídicas se apresentam a terceiros como se uma só fossem, de modo a causar legítima dúvida, a justificar que a responsabilidade de uma alcance as demais, de forma extensiva.
Essa imprecisão pode ser verificada, por exemplo, no julgamento do Recurso Especial nº 1404366/RS, do ano de 2014, no qual o Superior Tribunal de Justiça, apesar de afirmar que a desconsideração da personalidade jurídica não poderia ocorrer com base na simples existência de grupo econômico, relaciona a aplicação do instituto à teoria da aparência, como se fossem conceitos estritamente relacionados.[18]
O que se entende, portanto, é que a inserção do parágrafo quarto fez bem em consolidar o entendimento jurisprudencial quanto ao fato de a mera existência de grupo econômico não ensejar a desconsideração da personalidade jurídica. Todavia, como não houve maior profundidade da disposição quanto aos mencionados aspectos controvertidos, não se espera que a orientação jurisprudencial seja alterada significativamente a esse respeito.
Assim, ainda se faz necessário muito cuidado para que, na análise casuística dos grupos econômicos, principalmente os de fato, não se considere que as suas características já seriam suficientes a configurar a confusão patrimonial ou, ainda, ensejar automaticamente a aplicação da teoria da aparência. Caso contrário, restará esvaziada a previsão do parágrafo quarto.
8. Inserção do §5º do artigo 50 do Código Civil.
Na mesma linha do parágrafo quarto, o parágrafo quinto foi inserido ao artigo 50 do Código Civil com o intuito de esclarecer que uma hipótese específica, sobre a qual pairavam dúvidas, não é capaz de caracterizar abuso da personalidade jurídica. Nesse caso, restou definido que a mera alteração da finalidade original da atividade econômica da pessoa jurídica não constitui desvio de sua finalidade:
“CC, Art. 50 § 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.”
Assim, se anteriormente houve decisões judiciais que permitiram a desconsideração da personalidade jurídica apenas em razão da alteração do objeto social da sociedade, o referido parágrafo trouxe uma restrição benéfica, ao pontuar que esta alteração, sozinha, não tem o condão de configurar um desvio de finalidade, apto a ensejar a aplicação de tal medida excepcional.
O doutrinador José Roberto de Castro Neves, todavia, aponta para a necessidade de uma interpretação cuidadosa a esse respeito, à medida que a alteração da finalidade da pessoa jurídica que modificar substancialmente o risco da atividade não será uma “mera alteração”, pois terá desdobramentos sobre os credores sociais anteriores.
Dessa maneira, segundo o referido doutrinador, o ideal seria aplicar a regra literal do parágrafo quinto somente para as alterações que não modificassem sobremaneira o risco da atividade, mas admitindo-se a possibilidade de desconsideração com esse fundamento, quando houvesse aumento do risco empresarial, que subvertesse as legítimas expectativas dos credores.[19]
Ilustrando esse argumento, se uma pessoa realizar investimentos em uma sociedade cujo objeto social é a exploração de uma rede hoteleira mas, em momento seguinte, esse objeto for radicalmente alterado para o ramo de floricultura, Castro Neves afirma que seria justo que o investidor, se prejudicado, pudesse pedir a desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que foram assumidos riscos totalmente diferentes daqueles com os quais ele havia concordado.
Esse parece um entendimento razoável, mas que também poderia conferir uma margem indesejada à interpretação jurisprudencial, posto que os magistrados poderiam livremente definir, sem quaisquer parâmetros legais objetivos, em quais hipóteses teria havido, ou não, o efetivo aumento do risco empresarial da atividade, em prejuízo aos credores.
De toda forma, a jurisprudência tem se utilizado corretamente da restrição trazida pela inserção do parágrafo quinto ao artigo 50 do Código Civil, como se pode observar do recente acórdão do Agravo de Instrumento nº 2164780-59.2019.8.26.0000, no qual a 12ª Câmara de Direito Privado esclarece que a simples alteração da atividade econômica não dá ensejo à desconsideração da personalidade jurídica, principalmente no caso em questão, em que tal alteração não causou nenhum impacto para a cobrança pretendida pelo credor. [20]
9. Considerações finais.
A alteração do caput e a inserção dos parágrafos no artigo 50 do Código Civil, pelo artigo 7º da Lei da Liberdade Econômica, foram bastante importantes para esclarecer pontos de dúvida em aberto e para positivar posicionamentos jurisprudenciais que já eram majoritários há muito tempo.
Nesse sentido, em consonância aos objetivos principais da Lei da Liberdade Econômica, foram restringidas as hipóteses que permitem a desconsideração da personalidade jurídica, em prol da autonomia patrimonial, e de forma a garantir maior segurança jurídica às relações econômicas.
Acredita-se que, assim, serão (ao menos parcialmente) alcançados os objetivos socioeconômicos da Lei da Liberdade Econômica, no sentido de criar-se um cenário de maior liberdade e segurança, que incentive a atividade das pessoas jurídicas e a realização de investimentos nacionais e internacionais na economia brasileira.
Faz-se, contudo, a ressalva de que existem algumas pontas soltas, como: (i) a indefinição dos casos de confusão patrimonial, decorrente da previsão genérica do inciso III do parágrafo segundo; (ii) a ausência de maiores esclarecimentos quanto às diferenças entre a caracterização de grupos econômicos e de efetiva confusão patrimonial; e (iii) a não unificação dos requisitos da desconsideração da personalidade jurídica para todos os sistemas, posto que as relações consumeristas, trabalhistas e tributárias ainda permitem a aplicação do instituto mediante requisitos muito mais simplificados.
Tais pontas soltas são capazes de criar insegurança quanto aos parâmetros para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, mas essa insegurança é certamente reduzida em comparação àquela existente quando da redação original do artigo 50 do Código Civil.
Em outras palavras, mesmo que permaneçam algumas brechas legislativas, o contexto geral das alterações promovidas pelo artigo 7º da Lei da Liberdade Econômica parece ter alcançado resultados muito benéficos para alterações que eram necessárias no âmbito das relações econômicas.
10. Referências.
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SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. São Paulo: LTR, 1999.
[1] Em regra, os sócios não devem responder, com seu patrimônio pessoal, pelas dívidas da sociedade. Esta, por ser pessoa jurídica a quem o ordenamento jurídico confere existência própria, possui, em consequência, responsabilidade patrimonial própria. Trata-se do chamado princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas. (SANTA CRUZ, André. DIREITO EMPRESARIAL: volume único. 9. ed. Rio de Janeiro: 2019, p. 358).
[2] REQUIÃO, Rubens. Abuso e fraude através da personalidade jurídica. In: Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, dez./1969, vol. 410, p. 15.
[3] “Os problemas ditos de desconsideração envolvem frequentemente um problema de imputação. O que importa basicamente é a verificação da resposta adequada à seguinte pergunta: no caso em exame, foi realmente a pessoa jurídica que agiu, ou foi ela mero instrumento nas mãos de outras pessoas, físicas ou jurídicas? É exatamente porque nossa conclusão quanto à essência da pessoa jurídica se dirige a uma postura de realismo moderado – repudiados os normativismos, os ficcionismos, os nominalismos – que essa pergunta tem sentido. Se é em verdade uma outra pessoa que está a agir, utilizando a pessoa jurídica como escudo, e se é essa utilização da pessoa jurídica, fora de sua função, que está tornando possível o resultado contrário à lei, ao contrato, ou às coordenadas axiológicas fundamentais da ordem jurídica (bons costumes, ordem pública), é necessário fazer com que a imputação se faça com o predomínio da realidade sobre a aparência” (OLIVEIRA, José Lamartine Correia de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva. 1979, p. 613)
[4] CDC, “Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.”
[5] CC, “Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica." (redação original).
[6] “Excelentíssimo Senhor Presidente da República, 1. Submetemos à apreciação de Vossa Excelência, proposta de Medida Provisória que visa instituir a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e estabelecer garantias de livre mercado, conforme determina o art. 170 da Constituição Federal. (...)
14. Nas Disposições Finais, esta proposta tomou uma série de edições com o intuito de, em caráter emergencial, proporcionar um estado de maior segurança jurídica no País.
15. A mais prestigiada e segura conceituação dos requisitos de desconsideração da personalidade jurídica, conforme amplo estudo da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, e em alinhamento com pareceres da Receita Federal, é anotada em parágrafos no art. 50 do Código Civil, de maneira a garantir que aqueles empreendedores que não possuem condições muitas vezes de litigar até as instâncias superiores possam também estar protegidos contra decisões que não reflitam o mais consolidado entendimento.” (Exm-MP-881-19. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Exm/Exm-MP-881-19.pdf. Acesso em 09.09.2021, às 22h50.)
[7] “Após a análise de dezenas de estudos empíricos, todos devidamente especificados nas Notas Técnicas, incluindo os dedicados à América Latina, conclui-se que a liberdade econômica é cientificamente um fator necessário e preponderante para o desenvolvimento e crescimento econômico de um país. Mais do que isso, é uma medida efetiva, apoiada no mandato popular desta gestão, para sairmos da grave crise em que o País se encontra. (...)
Um estudo específico, que reanalisou o histórico de várias pesquises empíricas realizadas desde a década de 80, reconfirmou a conclusão científica de que a liberdade econômica, e especialmente proteção à propriedade privada, é mais determinante para o bem-estar da população do que, por exemplo, as características regionais e demográficas de um país.” (Exm-MP-881-19. Op. Cit).
[8] “Art. 2º São princípios que norteiam o disposto nesta Lei:
I - a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas;
II - a boa-fé do particular perante o poder público;
III - a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas; e
IV - o reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado.”
[9] “(...) mesmo nas situações em que se verifique o preenchimento desses requisitos legais [do art. 50, do CC], os efeitos da desconsideração deve[m] alcançar apenas aqueles sócios ou diretores que efetivamente participaram ou se beneficiaram com o ato ilícito ou abusivo. Isso porque a teoria da desconsideração da personalidade não é instituto que impõe a solidariedade do sócio em relação à sociedade, tampouco o responsabiliza de forma objetiva por atos ilícitos.” (REsp n. 1.325.663/SP, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 11.06.2013, DJe de 24.06.2013) (g.m.).
“[A] desconsideração não é regra de responsabilidade civil, não depende de prova da culpa, deve ser reconhecida nos autos da execução, individual ou coletiva, e, por fim, atinge aqueles indivíduos que foram efetivamente beneficiados com o abuso da personalidade jurídica, sejam eles sócios ou meramente administradores. [...] A desconsideração exige benefício daquele que será chamado a responder.” (REsp n. 1.036.398/RS, Relatora: Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, Data de Julgamento: 16.12.2008) (g.m.).
[10] “O atrelamento da desconsideração da personalidade jurídica ao benefício experimentado em decorrência da confusão patrimonial e/ou do desvio de finalidade corrobora a tese de que a responsabilização, nessa hipótese, está limitada ao benefício, direto ou indireto, comprovadamente experimentado pelo sócio ou administrador a quem se dirige o pedido de desconsideração.” (TJ-SP - AI: 2078990-10.2019.8.26.0000, Relator: Grava Brazil, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Julgamento: 10/09/2019,) (g.m.).
[11] “O encerramento das atividades da sociedade ou sua dissolução, ainda que irregulares, não são causas, por si sós, para a desconsideração da personalidade jurídica a que se refere o art. 50 do CC. Para a aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade social - adotada pelo CC -, exige-se o dolo das pessoas naturais que estão por trás da sociedade, desvirtuando-lhe os fins institucionais e servindo-se os sócios ou administradores desta para lesar credores ou terceiros.” (3 STJ, Informativo nº 0554, Período: 25 de fevereiro de 2015.) (g.m.).
[12] Trecho da ementa: “Inatividade ou eventual encerramento irregular das atividades, sem o prévio procedimento de liquidação e de baixa na Junta Comercial, ou a não localização de bens penhoráveis em seu nome, não são causas suficientes para a desconsideração da personalidade jurídica – Dolo dos acionistas não demonstrado – Meras suposições desacompanhadas de evidências – Precedentes do STJ e deste E. Tribunal – RATIFICAÇÃO DA DECISÃO – Hipótese em que a interlocutória avaliou corretamente os elementos fáticos e jurídicos apresentados pela parte, dando ao incidente o justo deslinde necessário – Aplicação do art. 252, do RITJSP – Decisão mantida – RECURSO NÃO PROVIDO.” (g.m.)
Trecho do inteiro teor: “As demais alegações trazidas nas razões recursais, na verdade, podem ser entendidas como reiteração daquelas matérias de direito e/ou de fato arguidas no incidente e já resolvidas. Em verdade, a agravante não apresentou indícios suficientes para desconsiderar a personalidade jurídica da devedora, baseando seu pleito em presunções, sem provar que houve dolo dos acionistas.” (TJ-SP - AI: 2255086-74.2019.8.26.0000, Relator: Spencer Almeida Ferreira, 38ª Câmara de Direito Privado, Data de Julgamento: 27/02/2020) (g.m.)
[13] “Por sua vez, a confusão patrimonial vem tipificada no artigo § 2º do referido dispositivo [art. 50], como sendo a ausência de separação dos bens, configurada, no inciso II, pela transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante, exatamente a conduta verificada nos autos. O agravante alega que a inadimplência desde 2013 decorre da absoluta falta de recurso, sendo que, em 2017, por falta de pagamento dos aluguéis, foi decretado o despejo. Além disso, a pessoa jurídica não apresenta balanço patrimonial desde 2013. Entretanto, em 2016, ou seja, muito tempo após o vencimento da dívida em discussão, quando a executada sequer apresentava balanço patrimonial, ela repassou ao sócio, ora agravante, o valor de R$ 51.000,00 a título de pró-labore (fl. 281), fato não impugnado nas razões recursais. Dessa forma, restou nítida a confusão patrimonial com o repasse de valores quando o agravante alega que a pessoa jurídica não estava atuando por falta de recursos, pois desde 2013 não mais apresentava balanço patrimonial. Ainda que fosse considerado que em 2016 o valor repassado pela pessoa jurídica seria para a subsistência do sócio, vez que o recebimento de sua aposentadoria se iniciou em 19/01/2017 (fl. 392), ainda assim o recebimento de valores em 2017 e 2018, quando a empresa alega não possuir recursos desde 2013, evidencia a transferência irregular de valores ao sócio. Diante desse cenário, ficou caracterizada a fraude decorrente do desvio de bens da executada diretamente para seu sócio que continua a receber nos anos seguintes, 2017 e 2018, o valor de R$ 15.600,00 (fl. 285) e de R$ 12.000,00 (fl. 291), respectivamente. Assim, a declaração do sócio de que recebeu valores quando a pessoa jurídica aparentava estar inativa, demonstra o nexo causal entre a conduta fraudenta e seu favorecimento, liame necessário para a responsabilização do agravante. Nessa direção, é possível a desconsideração da personalidade jurídica no caso concreto, pois há nítida confusão entre o patrimônio dos envolvidos, ensejando a responsabilização do sócio que se beneficiou do abuso” (TJSP- AI: 2240254-36.2019.8.26.0000; Relatora: Daniela Menegatti Milano; 19ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 17.2.2020) (g.m.).
[14] CPC, Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.
§ 1º O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.
§ 2º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
[15] Vd. 1. “Presentes os elementos de convicção dos pressupostos do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor e do art. 50 do Código Civil de 2002, é aplicável a despersonalização da pessoa jurídica inversa para alcançar os bens sociais ou particulares dos administradores ou sócios que a integram” (TJ-SP - AI: 990100749242 SP, Relator: Norival Oliva, 26ª Câmara de Direito Privado, Data de Julgamento: 10/08/2010) 2. “AGRAVO DE INSTRUMENTO. LOCAÇÃO, EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. POSSIBILIDADE. A desconsideração inversa da personalidade jurídica, medida excepcional que é, tem cabimento quando o sócio administrador atuar com abuso, caracterizado pelo desvio da finalidade, ou pela confusão patrimonial. Inteligência do art. 50 do Código Civil. Caso em que demonstrada a ocorrência dos requisitos legais previstos, a possibilitar a inclusão das empresas administradas pelos devedores, no pólo passivo da lide executiva. RECURSO PROVIDO. (TJRS- AI Nº 70052162468, 16ª Câmara Cível, Relator: Catarina Rita Krieger Martins, Data de Julgamento: 21/12/2012)
[16] Vd. 1. Trecho da ementa: “Não configuração dos requisitos para desconsideração inversa da personalidade jurídica. Inteligência do artigo 50 do Código Civil. Ausência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial entre as empresas do mesmo grupo econômico. Desconsideração da personalidade jurídica da ré afastada. Bem imóvel que já era do patrimônio da ré antes do crédito dos autores. Ausência de confusão patrimonial entre a ré e a devedora dos autores que afasta a possibilidade de fraude contra credores. Sentença reformada, pela improcedência dos pedidos dos autores. Sucumbência integral dos autores. Recurso das rés provido e recurso dos autores desprovido.(TJ-SP - 0021629-34.2004.8.26.0602, Relator: Carlos Alberto de Salles, 3ª Câmara de Direito Privado, Data de Julgamento: 30/08/2016) (g.m.) 2. Trecho da ementa: “A desconsideração da pessoa jurídica, mesmo no caso de grupos econômicos, deve ser procedida somente em situações excepcionais, quando verificado que a empresa devedora pertence a grupo de sociedades sob o mesmo controle e com estrutura meramente formal, o que ocorre quando diversas pessoas jurídicas do grupo exercem suas atividades sob unidade gerencial, laboral e patrimonial, e, ainda, quando se visualizar a confusão de patrimônio, fraudes, abuso de direito e má-fé com prejuízo a credores. Ausente a presença de tais requisitos a manutenção da decisão que indeferiu a inclusão das demais empresas é medida que se impera.” (TJ-MG - AI: 10024120902713001 MG, Relator: Otávio Portes,16ª Câmara Cível, Data de Julgamento: 30/08/2017) (g.m.).
[17] Trecho de ementa: “De acordo com a teoria maior, adotada pelo ordenamento civil (art. 50), a desconsideração da personalidade jurídica em desfavor do patrimônio dos sócios ou das sociedades empresárias participantes do mesmo grupo econômico somente se mostra possível quando vislumbrada a confusão patrimonial entre sócios e a empresa devedora ou entre estas e outras conglomeradas; senão, quando a pessoa jurídica, mediante atos abusivos, se desvirtuar de suas finalidades.”
Trecho do inteiro teor: “(...) Tais empresas possuem similitude quanto às suas atividades sociais, relacionadas à construção de edifícios e à locação, incorporação e compra e venda de imóveis, além da gestão e administração de propriedade imobiliária, tratando-se, ao que tudo indica, de empresas pertencentes ao mesmo grupo econômico imobiliário, que exercem suas atividades sob unidade gerencial. Verifica-se, a propósito, que o Sr. Nelson Batista Torres Galvão foi dotado de procuração para gerir, administrar ou praticar atos, sozinho ou em conjunto, relativamente às seguintes pessoas jurídicas: Comissária Galvão S/A, Galvão Administradora de Bens Ltda, Galvão Vendas de Imóveis Ltda, Centro Século XXI S/A e Mercantil de Imóveis Ltda; sendo ademais investido em funções de administração ou gerência na Comissária Galvão S/A, na Ródano Participações S/A e na Mercantil de Imóveis Ltda. (...) No particular, como visto, há em relação à maioria das pessoas jurídicas referenciadas, identidade de sócios, administrador, endereço e até mesmo de objetivos sociais, sem contar a incorporação de uma das empresas coligadas por outra, estando configurada a confusão entre os sujeitos de responsabilidade.” (TJ-PR - Agravo de Instrumento nº 906.667-7, Relator Lauri Caetano da Silva, DJe: 5.12.2012)
[18] Trecho da ementa: “2. As sociedades empresárias, ainda que integrantes de um mesmo grupo econômico, quando não figurem como parte no título executivo extrajudicial, não estão legitimadas a integrar o polo passivo da execução. 3. Tratando-se de sociedades distintas, com razões sociais, objetos e patrimônios próprios, o simples fato de pertencerem ao mesmo grupo de empresas não as torna solidárias nas respectivas obrigações, sendo descabida a aplicação da teoria da aparência para, com isso, ampliar-se a legitimação no polo passivo de ação executiva. 4. Cada pessoa jurídica tem personalidade e patrimônio próprios, distintos, justamente para assegurar-se a autonomia das relações e atividades de cada sociedade empresária, ainda que integrantes de um mesmo grupo econômico. Do contrário, a legislação faria a equivalência aplicada equivocadamente no v. acórdão recorrido ou até vedaria a formação de grupos econômicos pela inutilidade da medida. Somente em casos excepcionais essas distinções podem ser superadas, motivadamente (Código Civil, art. 50). 5. Recurso especial conhecido e provido.” (STJ - REsp nº 1404366/RS; Relator: Min. Raul Araújo; Quarta Turma; Data de Julgamento 23.10.2014( (g.m.)
[19] NEVES, José Roberto de Castro, A Desconsideração da Personalidade Jurídica - O Avesso do Avesso. In: Lei da Liberdade Econômica e seus impactos no Direito brasileiro/Luis Felipe Salomão, Ricardo Villas Bôas Cueva, Ana Frazão, coordenação., 1ª ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 461-462.
[20] “Ação monitória em fase de cumprimento de sentença. Pretensão de desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária devedora. Acolhimento do incidente. Reforma. Ausência de elementos que demonstrem a utilização da pessoa jurídica como instrumento para a realização de atos fraudulentos. No caso concreto, o pedido de desconsideração da personalidade jurídica está lastreado na falta de localização de bens da sociedade coexecutada e na alteração do seu objeto social, sem que antes a mesma tenha liquidado todas suas dívidas anteriores à referida modificação. Ocorre que a mera ausência de bens passíveis de penhora não constitui motivo suficiente para a desconsideração da personalidade jurídica. E não foi produzido nem um mínimo de prova da suposta confusão patrimonial; nem, tampouco, de comportamento fraudulento dos executados. Por outro lado, compete anotar que a mera alteração do objeto social da empresa também não caracteriza desvio de sua finalidade, consistente na utilização da pessoa jurídica para fins espúrios, como em casos de blindagem patrimonial de sócios, cabendo acrescentar que, no caso concreto, a referida alteração não ocasionou nenhum impacto ao prosseguimento da cobrança do título judicial e, tampouco, consistiu em qualquer causa modificativa ou extintiva do débito nele estampado. Assim, sem a comprovação de que tais alterações foram feitas para permitir a prática de atos ilícitos, não há que se falar, no presente caso, em desvio de finalidade, ainda que tal providência tenha sido realizada sem o adimplemento das dívidas assumidas anteriormente ao referido ato. Agravo provido.” (TJ-SP - AI: 2164780-59.2019.8.26.0000, Relator: Sandra Galhardo Esteves, 12ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 24.10.2019) (g.m.).
Mestranda em Direito Comercial na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP, ingresso em 2021), Especialista em Direito Societário (INSPER-SP, 2021) Especialista em Arbitragem (PUC-SP, 2020), Advogada associada do BVZ Advogados da área de contencioso, arbitragem e insolvências.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARCONI, Marcela Vieira. Requisitos da Desconsideração da Personalidade Jurídica decorrentes das alterações promovidas pela Lei da Liberdade Econômica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 mar 2022, 04:26. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58112/requisitos-da-desconsiderao-da-personalidade-jurdica-decorrentes-das-alteraes-promovidas-pela-lei-da-liberdade-econmica. Acesso em: 23 dez 2024.
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