ENAN AUGUSTO FERNANDES PIERAÇO[1]
(coautor)
RESUMO: Os atuais trabalhos remotos justificam o necessário estudo sobre a limitação das horas de trabalho. Nesse sentido, a legislação brasileira positivou em 2017 o teletrabalho como modalidade sem controle de jornada. Assim, por via do método dedutivo e pesquisa bibliográfica, o estudo objetiva verificar se aos trabalhadores da modalidade de teletrabalho impõem-se a ausência de controle. Concluiu-se pela necessidade de aplicação de forma restritiva do artigo 62, inciso III, Consolidação das Leis Trabalhistas, de forma a considerá-lo válido apenas quando identificada a real impossibilidade de que a jornada de trabalho seja controlada.
Palavras-chave: Jornada de Trabalho. Teletrabalho. Desconexão ao trabalho. Inconstitucionalidade.
Sumário: 1. Introdução – 2. Globalização e as transformações do trabalho. - 3. O teletrabalho com a reforma trabalhista e o controle de jornada - 4. Inconstitucionalidade da ausência de controle no teletrabalho e o direito à desconexão - 5. Conclusão - 6. Referências
1. INTRODUÇÃO
As novas tecnologias impulsionaram as atuais formas de organização do trabalho, permitindo que os trabalhadores mudassem de uma produção direta para novos tipos de atividades econômicas. Isso fez com que mais serviços fossem especializados e passassem a atender uma demanda cada vez mais diversa. Essa situação decorre do fato de que a tecnologia é capaz de transformar o modo como os indivíduos se relacionam e se organizam, ainda que não seja, por si só, responsável por criar ou reduzir postos de trabalho. Diante dessas formas de trabalho diversificadas, necessário se faz flexibilizar questões contratuais, em vistas de atender à demanda social e o momento histórico da sociedade.
Com base nessa perspectiva, o legislador infraconstitucional positivou em 2017 a modalidade do teletrabalho nas normas trabalhistas. Apesar dessa forma de prestação de serviços já existir anteriormente, apenas nesse momento foi devidamente regulamentada. De acordo com a previsão legal, o teletrabalho é a modalidade de prestação de serviços realizada preponderantemente fora do ambiente empresarial. Isso permite que o indivíduo realize suas funções em qualquer local e ainda compareça eventualmente na empresa.
Apesar de possuir todos os requisitos de uma regular relação de emprego, o teletrabalho tem a subordinação fixada por meio de instrumentos telemáticos. A partir de aplicativos, sistemas e ferramentas que se valem da internet, o empregador exercita o seu poder diretivo e de fiscalização. Apesar da clara possibilidade de se verificar as atividades que estão sendo desenvolvidas, entendeu o legislador que esse indivíduo não fazia jus ao controle de jornada. Por essa razão, inseriu o teletrabalhador no rol do artigo 62 da Consolidação das Leis Trabalhistas, o qual prevê que os trabalhadores não possuem quaisquer direitos pertinentes à jornada de trabalho.
Por via do método dedutivo e da pesquisa bibliográfica, o estudo pretende verificar se a previsão legal está compatível com o texto constitucional. Isso decorre do fato de que o artigo 7º da Constituição da República Federativa do Brasil estabelece que são direitos dos trabalhadores, urbanos e rurais, além de outros, jornada máxima diária de oito horas e semanal de quarenta e quatro, hora noturna com valor superior à diurna e hora extra. Não houve, por parte do poder constituinte originário, a exclusão de nenhum trabalhador. Nesse cenário, questiona-se se caberia ao legislador infraconstitucional fazer de forma taxativa essa limitação de direitos. Apresenta-se como hipótese a interpretação restritiva do artigo 62 da Consolidação das Leis Trabalhistas, de forma a aplicá-lo apenas quando houver total impossibilidade de controle de jornada.
2. GLOBALIZAÇÃO E AS TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO
A Revolução Industrial (séc. XVIII e XIX) abriu espaços para a substituição da manufatura para produção em massa, acarretando, de forma consequente, a transição da vida rural para as grandes cidades. De modo concomitante, o capitalismo ganhou força, aumentando o abismo entre a classe econômica burguesa e o proletariado. Em vistas do próprio sustento e submetido aos interesses de lucratividade e produtividade, esse último submetia-se a condições indignas de trabalho e vida. Nota-se assim que o início das relações de emprego é firmado em um trabalhador à disposição do empregador pelo tempo necessário para garantir a sua subsistência e de sua família, jornadas de trabalho prolongadas e um empresariado despreocupado com a qualidade de vida de seus empregados.
Com esse tipo de proveito em massa dos trabalhadores, a partir de requisições dessa classe, surgem os direitos trabalhistas para regular institutos como a jornada de trabalho, questões de higiene, saúde e descanso. O Estado liberal presente no início da formação dessa relação jurídica se torna insuficiente, sendo necessário o desenvolvimento de um Estado social capaz de intervir a fim de deixar mais justa a relação entre o trabalhador e o empregador. Nessa mesma toada, o empresariado passa a procurar maneiras mais eficientes de utilizar o tempo de prestação de serviços de um funcionário, já que, em regra, aumentam as leis e, em consequência, as proteções. Logo, surgem formas de trabalho pautadas nos ideais do taylorismo e fordismo (séc. XX), que visam, em essência, trazer eficiência para dentro das indústrias. O assalariado passa a produzir mais em menos tempo, gerando aumento do capital (FERREIRA; CAVALCANTE, p. 69-72).
A partir desse momento, com modelos de produções altamente rentáveis, as indústrias começam a produzir com maior fluidez, fazendo com que as empresas conseguissem suprir não somente seu mercado interno como o externo. Com o fluxo de capital circulando dentre vários países, a globalização fica acentuada, trazendo evoluções em vários ramos, principalmente na parte de comunicação e informática. A era da informação, que ocorre aproximadamente a partir da década 1950, inicia-se com grandes mudanças em vários setores e inaugura uma revolução da informação. Por essa razão, inúmeras alterações puderam ser vistas no mercado de trabalho, como o aumento da força de trabalho feminina, crescimento generalizado do setor de serviços e introdução de novas formas de trabalho (RODRIGUES, 2011, p. 15-19).
As alterações promovidas na vida fática geraram a imprescindibilidade de se adaptar a demanda e a legislação trabalhista, em destaque para essa pesquisa a Consolidação das Leis Trabalhistas. O arcabouço legislativo admite os mais variados tipos de ofícios, com uma demanda histórica de favorecer o trabalhador tendo em vista ser este o lado mais fraco da relação de emprego, que se baseia na subordinação (LEITE, 2019, p. 541). Os vários modelos de trabalhos são remodelações que aconteceram com o tempo para atender a necessidade de uma legislação específica diante das alterações dos setores econômicos e manutenção desses indivíduos na formalidade.
A prestação de atividade formal é o exercício de um ofício de acordo com a previsão do ordenamento jurídico, podendo ser empresas e seus funcionários, profissionais liberais e até mesmo autônomos (FERRARI; NASCIMENTO, 2011, p. 59). Quando se revestem do contrato de emprego, tais pessoas físicas são protegidas pela legislação trabalhista, passando a ter direitos como fundo de garantia por tempo de serviço, recolhimento previdenciário, horas extras e as demais tutelas da legislação. A caracterização da formalidade, por via da formação do contrato de emprego e do registro do trabalhador gera, todavia, um custo significativo para a empresa, fazendo com que muitas optem, em vista do lucro, a manter tais indivíduos na informalidade.
A informalidade, entretanto, representa um prejuízo para o Estado, já que o valor do trabalho não é revertido para a sociedade em forma de impostos e mesmo de números de indivíduos empregados. À vista disso, questiona-se a necessidade de redução de custos para o empregador e, ao mesmo tempo, adequação a realidade dos trabalhos atuais, onde a tecnologia é uma realidade que trouxe mudanças significativas no modo de fazer as tarefas do cotidiano. Em vistas de ajustar a prestação de serviços ao novo formato do capitalismo, necessário se faz uma adequação da forma como se trabalha. Esse ajuste tem sido encontrado, por exemplo, nas novas leis que visam a diminuição de custo para o empregador e a flexibilização das relações de trabalho, como se pode verificar no trabalho temporário, trabalho intermitente e no trabalho à distância.
O contrato de trabalho temporário se trata de um negócio jurídico entre duas empresas em que uma delas fornece o serviço temporário para a execução no estabelecimento da outra. A empresa que disponibiliza o serviço contrata o empregado a fim deste prestar serviços para a empresa tomadora desses serviços de forma transitória ou para complementar a demanda (LEITE, 2019, p. 295). As mudanças recentes na legislação do temporário demonstram a necessidade de trabalhos de caráter passageiro, rápido e flexível, ainda que essa atividade se insira no objeto central da empresa.
Positivado pela Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017, o trabalho intermitente foi introduzido ao ordenamento jurídico brasileiro com intuito semelhante ao trabalho temporário: criar relações empregatícias flexíveis. Trata-se de um contrato de trabalho onde a prestação de serviços não é feita de forma contínua, já que há uma alternância entre períodos de atividade e inatividade, independe de tipo de atividade laboral. Nesse caso, o empregado não fica necessariamente sujeito a somente um contrato de trabalho, podendo exercer esta ou outras modalidades de contrato de trabalho (FERREIRA; CAVALCANTE, 2019, p. 1303). Nesse caso, buscou-se regulamentar os trabalhos realizados esporadicamente, em que o trabalhador, para angariar rendimentos extras, efetuava serviços que não tinham regularidade.
Ainda com o propósito mencionado, o teletrabalho foi também regulamentado pela legislação trabalhista em 2017. O trabalho à distância encaixa-se no rol de atividades externas, que são atividades laborais efetuadas fora dos estabelecimentos empresariais. Desse modo, como se trata de ofício executado longe da supervisão direta dos superiores hierárquicos, esses trabalhadores recebem um tratamento diferenciado pela lei e acabam por ter, por exemplo, um controle flexível quanto a jornada de trabalho. Dentre as possibilidades, estão os trabalhos com horário fixo, por demanda, metas ou outra forma de ajuste entre as partes. Dentre as formas de trabalho a distância, a pesquisa em destaque realizou um recorte temático para tratar do trabalho em domicílio e o teletrabalho.
Como mencionado, existem funções externas que não se adequam ao controle da jornada de trabalho e dentre elas entendeu o legislador que está o trabalho em domicílio, já que o trabalhador labora em sua própria residência. Presumiu-se que por trabalhar fora da supervisão da empresa, não haveria como ter um controle de jornada eficaz. Esse modelo é comum a certas profissões como aquelas que trabalham com costura e alimentos (DELGADO, 2019, p. 1068). Esse contrato de trabalho, tem como controle de produção à demanda, portanto o empregador define previamente uma quantidade de tarefas a serem realizadas em um determinado período de tempo. Por consequência, de acordo com a produção desse trabalhador, há uma presunção da jornada de trabalho dele, que seria o mesmo controle efetuado em uma fábrica.
Essa presunção de jornada pode ser elidida pelas atuais formas de controle tecnológicos. Isso porque o que antes se presumia como tempo gasto para realização de determinada atividade pode, por via do controle à distância, ser efetivamente controlado. Com a evolução tecnológica aparecem novos meios de comunicação e controle para trabalhos à distância, como em profissões como caminhoneiros, onde há um controle de jornada via Global Positioning System (GPS). Ao mesmo tempo que mudam as formas de trabalhar, também mudam as formas de fiscalizar, tornando possível por via de celulares, computadores ou sistemas de ponto controlar o tempo de trabalho eficientemente, mesmo fora da supervisão pessoal e direta dos empregadores.
O teletrabalho, diferente do trabalho em domicílio, não se limita a residência do trabalhador, podendo ser exercido em qualquer lugar, pois, como é cediço, se trata de atividades laborais exercidas em contexto virtual, ou seja, em computadores, laptop, celulares e afins (LEITE, 2019, p. 334). O novo trabalho a domicílio e o teletrabalho podem ser baseados no uso de tecnologia da informação, sendo efetuados sem limitações de locais específicos. Ambos são expressos no ordenamento jurídico e de acordo com a previsão do artigo 62, inciso III, da Consolidação das Leis Trabalhistas, não implicam controle de jornada (DELGADO, 2019, p. 1068).
Como exposto, a modernidade capitalista e globalizada acarretou grandes mudanças nas limitações da capacidade do ser humano, principalmente em razão das inovações nos meios de comunicação. Os mais sofisticados mecanismos de interação, como celulares e internet, permitiram transcender as barreiras físicas impostas pela natureza e distância. Com a evolução, as mudanças relativas a como se deve exercer as profissões mudaram drasticamente. A informação ao alcance de qualquer tela de celular permitiu que as empresas se tornassem mais exigentes para suprir a demanda e competir com outras, que deixaram de ser locais e passaram a se inserir globalmente.
Diante desse cenário, os empregadores passaram a exigir novas formas de trabalho para se adequarem a uma concorrência em nível mundial, bem como a necessitar de formas de trabalhos mais ágeis, eficientes, eficazes com uma redução de custo para se tornarem competitivos. A mudança de local e regime de trabalho, todavia, geram questionamentos sobre os direitos que eventualmente possam ser suprimidos. É indagado, de forma específica no estudo, se existe uma alteração em todos os aspectos quanto ao controle de jornada de trabalho, que, conforme recente mudança da lei, trouxe o teletrabalho como função incompatível com a fixação de horário. Diante dos possíveis prejuízos que essa previsão pode vir a acarretar ao trabalhador, necessário se faz verificar a sua compatibilidade com o texto constitucional e se efetivamente o teletrabalhador se enquadra dentre aqueles que tem total impossibilidade de controle de jornada.
3. O TELETRABALHO COM A REFORMA TRABALHISTA E O CONTROLE DE JORNADA
O teletrabalho é um contrato de trabalho moderno e flexível, afinal, o trabalhador pode efetuar suas atividades laborais em qualquer ambiente, bastando apenas um aparelho eletrônico e, na maior parte das vezes, acesso à internet. Apesar disso, mesmo com o avanço da tecnologia, concluiu o legislador, conforme previsão da norma do artigo 62, introduzido na Consolidação das Leis do Trabalho pela Lei n. 13.467/2017, que esse contrato de trabalho não terá controle de jornada. Tal previsão, conforme se verá na pesquisa, pode gerar abusos com relação ao tempo de trabalho dessa relação de emprego.
O teletrabalho é uma forma versátil de trabalho, podendo ser aplicada em uma vasta dimensão de atividades laborativas. Consiste na possibilidade de efetuar esta função fora do lugar onde encontra-se a empresa. É efetuado de forma telemática, em outras palavras, com o auxílio de telecomunicações para o contato entre empregado e empregador. Conforme conceituação, o empregado no teletrabalho, por ser realizado preponderantemente fora do estabelecimento empresarial, traz vantagens no que diz respeito à economia de tempo de deslocamento até a empresa e flexibilidade quanto ao horário para desenvolvimento das atividades. Essa flexibilidade de horários, contudo, pode causar uma falta de disciplina com o emprego (RODRIGUES, 2011, p. 33,71-73).
Conforme previsão da Lei n. 13.467/2017, que acrescentou na Consolidação das Leis Trabalhistas as normas que versam sobre o teletrabalho, há a necessidade de que essa modalidade seja estabelecida em um contrato individual de trabalho que defina as exatas atividades laborais que serão realizadas. É possível ainda que esse regime de prestação de serviços seja estipulado e depois seja convertido em presencial, bem como que a mudança ocorra entre o regime presencial para o teletrabalho.
Com relação à aquisição de equipamentos e infraestrutura, de acordo com a previsão legal, há a necessidade de instrução do funcionário quanto precauções a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho. Nesse sentido, por meio de termo de responsabilidade, o empregador se isenta de responsabilidade quanto a uma eventual doença, como a lesão por esforço repetitivo, que venha a ser ocasionada pelo próprio trabalho. No que tange aos equipamentos de trabalho, cabe crítica diante da possibilidade legal de que a responsabilidade quanto aquisição e gastos desses sejam transferidas para o empregado. Isso se dá pela clara contrariedade com a norma do artigo 2º da Consolidação da Leis Trabalhistas, que prevê que a responsabilidade da atividade econômica cabe ao empregador (LEITE, 2019, p. 333-336).
Essa modalidade de trabalho enquadra-se como relação de emprego, já que cumpre todos os requisitos pertinentes a essa. A configuração da relação de emprego é essencial para a regularização dessa relação jurídica, que se documenta por via do contrato de trabalho. Para haver a caracterização da relação empregatícia é necessário que alguns elementos sejam verificados, quais sejam, não eventualidade, subordinação, onerosidade, pessoalidade e que o trabalho seja prestado por uma pessoa física. Segundo a legislação atual, essas características estão previstas nos artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis Trabalhistas (DELGADO, 2019, p. 336-339).
A não eventualidade ou habitualidade, significa dizer que o contrato de trabalho deve ser constante, não devendo ser esporádico. Essa característica passa a noção de permanência, de que durante determinado período de tempo o empregado terá atividades laborais inclinadas a serem demandadas por um período de tempo habitual e constante (LEITE, 2019, p. 249). A subordinação, por sua vez, indica que o empregador está diretamente dando ordens para o empregado ou indicando os objetivos empresariais ao empregado que se submete a atendê-los (FERREIRA; CAVALCANTE, 2019, p. 382-383).
A onerosidade salienta que a relação empregatícia é, em sua essência, econômica. Esta característica manifesta-se pelo pagamento feito pelo empregador, ou ao menos a intenção de fazê-lo (DELGADO, 2019, p. 346-347). A pessoalidade demonstra que a relação de emprego tem caráter personalíssimo, ou seja, não é admissível que o empregado se faça substituir por outro durante o contrato de trabalho. Por fim, entende-se que somente é possível empregar o ser humano, não sendo possível que animais ou pessoas jurídicas façam parte de um dos polos dessa relação (FERREIRA; CAVALCANTE, 2019, p. 373).
É importante enfatizar que a relação de emprego não se baseia somente em documentos, mas também em fatos. Isso é evidenciado pelo princípio da primazia da realidade sobre a forma, que preconiza que independentemente do que está declarado no contrato de trabalho, a prática concreta, ou seja, o que é efetivamente realizado durante o percurso do tempo é que é contabilizado para a verificação da relação de emprego. Assim, desde que tenha, em regra, todos os elementos da relação de emprego, mesmo que documentos provem o contrário, a prática concreta dessa relação pode ser caracterizada (DELGADO, 2019, p. 244).
Diante das premissas do teletrabalho, percebe-se que essa modalidade possui todos os elementos constantes da relação de emprego, já que é efetuado de forma pessoal, por pessoa física, o empregado que fica sobre a supervisão do tomador de serviços, recebe remuneração e não pode ser fazer substituir. Existente a relação de emprego, o trabalhador tem garantido os direitos previstos no ordenamento jurídico, tanto na Constituição Federal quanto na Consolidação das Leis Trabalhistas. A relação firmada sob a égide do teletrabalho é claramente subordinada, ainda que o controle ocorra por via remota. Inclusive, de acordo com a norma do artigo 6º e seu parágrafo único, da Consolidação das Leis Trabalhistas, a subordinação realizada por via dos novos meios de comunicação se equipara a subordinação direta, ou seja, não há diferença quanto a subordinação clássica quando se fala em teletrabalho.
Como os demais trabalhadores, o teletrabalhador faz jus aos direitos pertinentes ao contrato de trabalho e, especificamente discutido nessa pesquisa, aqueles relativos à jornada de trabalho. Em regra, as jornadas de trabalho são controladas, não sendo necessário o controle apenas quando se trata de pequenas empresas com até 20 trabalhadores ou quando a atividade desempenhada pelo trabalhador impede por completo qualquer tipo de controle. Apesar disso, conforme o princípio da primazia da realidade, mesmo que não seja feito o controle dessa jornada, o elemento fático-jurídico ou a concretização dessa jornada de trabalho deverá ser controlada para atender aos demais direitos do trabalhador. Se o trabalhador presta atividades para além do limite constitucional pode haver consequências jurídicas para o empregador que utiliza da lei para abusar da jornada e não paga horas extras ao empregado (DELGADO, 2019, p. 1064-1070).
A previsão constitucional com relação aos limites de tempo da jornada de trabalho não foi prevista, pelo constituinte originário, apenas para alguns trabalhadores. Conforme nota-se no caput do artigo 7º e o inciso XIII da Constituição, todos os trabalhadores, urbanos e rurais, fazem jus a uma jornada de trabalho plausível. Isso decorre da necessidade de que o trabalho esteja intimamente relacionado com a garantia de outros direitos, como o descanso, lazer e convivência familiar e comunitária. Assim, questiona-se a constitucionalidade da previsão do artigo 62, inciso III da Consolidação das Leis do trabalho, já que ele prevê que teletrabalhadores não possuem controle de jornada e consequentemente os direitos pertinentes a essa. Em havendo possibilidade de que, por meios telemáticos, a fiscalização seja feita de forma eficaz, torna-se inaplicável e abusa a previsão legislativa.
4. INCONSTITUCIONALIDADE DA AUSÊNCIA DE CONTROLE NO TELETRABALHO E O DIREITO À DESCONEXÃO
A desnecessidade de controlar a jornada de trabalho em empresas pequenas e em algumas funções não indica a possibilidade de que o trabalhador labore para além dos limites constitucionais. Isso indica que ainda assim há a necessidade de limitar a jornada, já que a norma constitucional se refere à proteção da saúde do trabalhador. Nesse viés, a pesquisa questiona a constitucionalidade da previsão legal referente ao teletrabalho que o excluí das jornadas controladas. Conforme acréscimo da Lei 13.467/2017 no artigo 62, inciso III, na Consolidação das Leis do Trabalho os empregados que estão em regime de teletrabalho estão excluídos do regime de limitação de duração de jornada de trabalho.
A análise da norma indica que o legislador entende que o trabalhador à distância não tem possibilidade de ter sua jornada de trabalho controlada. Ocorre que, caso seja possível o controle de jornada, essa disposição legal não deve ser aplicada (LEITE, 2019, p. 848-849). Nesse sentido, o enunciado número 17 da 1ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho (Brasília-DF, novembro/2007), consolida o entendimento que o artigo 62 da Consolidação das Leis Trabalhistas é inconstitucional, já que fere a proteção da jornada de trabalho prevista no artigo 7º, incisos XIII e XV, da Constituição Federal.
É assertivo dizer que “o principal objetivo dos dispositivos legais foi afastar o direito às horas extras, sob a premissa de que a atividade ocorre fora das vistas do empregador” (SILVA, 2019, p. 73-74). Ocorre que essa previsão gera inúmeras consequências, como a supressão do adicional noturno e intervalo intrajornada, direitos estes previsto no artigo 7ª da Constituição Federal. Para esses trabalhadores, no que diz respeito à jornada, seria garantido apenas descanso semanal remunerado.
A inconstitucionalidade pode ser vista não apenas sob a ótica do inciso III do artigo 62, mas sim de todo dispositivo. Isso porque os empregados gestores são os que de fato mais realizam horas extras devido ao acúmulo de funções. A não razoabilidade do inciso existe porque fere outros diversos institutos, como o direito a desconexão do trabalho e do direito ao lazer. Logo, baseado na premissa do direito da dignidade da pessoa humana, artigo 1º, inciso III, junto ao artigo 7º, incisos XIII e XVI todos da Constituição Federal, nota-se que as exceções do artigo 62 da Consolidação das Leis do Trabalho em seu todo continuam inconstitucionais (MEDEIROS, 2019, p. 110-111).
Vale destacar que é possível mensurar o tempo gasto para o teletrabalho já que o empregador detém o conhecimento do negócio e, de modo semelhante ao trabalho manual, pode ser feito o controle da jornada por unidade de produção. Nesse viés, somente algumas exceções não se encaixariam nesse modelo, como atividades que incluam criatividade e produção artística. Por esta razão é que os artigos 62, III e 75-A da Consolidação das Leis Trabalhistas merecem uma interpretação restritiva, ou seja, somente utilizar quando a jornada não pode ser controlada de forma efetiva por unidade de produção, fiscalização direta ou por meios eletrônicos (SILVA, 2019, 74-75).
Uma sugestão para alteração do dispositivo seria a modificação no corpo do artigo 62, inciso III, CLT para estabelecer que se considerariam excluídos da proteção da jornada de trabalho somente quando certificado que não existe nenhuma forma de controle de jornada do teletrabalhador. Assim, somente se enquadrariam nesse dispositivo os teletrabalhadores que a empresa confirmasse a impossibilidade de controle de jornada perante a órgão reguladores do trabalho. Nesse caso, a exceção passaria ser a regra (MELO, 2017).
É clara a inconstitucionalidade do artigo 62 da legislação trabalhista porque a norma acaba por desrespeitar direitos fundamentais a pessoa humana. O direito de jornada se trata de uma conquista histórica do trabalhador porque se relaciona diretamente com outros direitos, como o descanso, lazer e convivência familiar e comunitária. Diante desse cenário o Tribunal Superior do Trabalho editou a súmula 428 que assegura que, em caso de ofensa à desconexão do trabalho e o direito ao lazer, o pagamento de horas de sobreaviso se faz necessário (LEITE, 2019, p. 334).
O direito à desconexão relaciona-se diretamente com a jornada de trabalho e o seu controle, pois apregoa que o trabalhador tem direito de se desconectar da sua atividade profissional. Devido a evolução tecnológica, essa desconexão é facilmente prejudicada, pois com apenas uma mensagem em uma rede social ou de um aplicativo de mensagens via telefone celular, já se consegue a comunicação direta com o trabalhador. Tal fato pode gerar uma expectativa no empregado da necessidade de estar à disposição do empregador.
A Constituição Federal tem garantias de forma a separar o trabalho do lazer. Esses direitos são interrupções necessárias para o reestabelecimento do ânimo, para a recuperação biológica e fisiológica da pessoa e inclusive para estar com disposição para voltar as atividades laborativas. As garantias elencadas são, dentre outras, a duração da jornada, repouso semanal, horas extras, as férias. A proteção constitucional foi construída a partir de um contexto histórico para garantir o não retrocesso das garantias trabalhistas, ou seja, ela entende a indispensabilidade de garantir para o empregado o tempo desvinculado ao trabalho para aproveitar o momento de lazer sem ter quer estar preocupado com a função.
Como reforça Dutra e Villatore (2014, p. 146-147), a desconexão do trabalho deveria ser um direito positivado, seria uma garantia assegurada principalmente aos teletrabalhadores pela peculiaridade da modalidade. Isso porque a tecnologia atual permite a conexão online durante todo o dia, possibilitando que os trabalhadores possam ser requisitados a qualquer tempo como se estivessem o tempo todo a disposição do empregador. Logo, acaba por causar uma tensão ao trabalhador, que encontrar-se-á sempre atento, resultando em uma disposição ao empregador em tempo integral prejudicando o seu tempo de lazer e possivelmente até sua saúde.
No contrato de trabalho o trabalhador vende o seu tempo, já que como assalariado vende suas energias, tanto a mental, muscular, física e psíquica, por um tempo determinado. Por consequência, percebe que uma jornada de trabalho onde o empregado está disposto ao empregador em integral se assemelha a uma condição análoga à escravidão. Isso decorre do fato da formação de uma inquietação permanente de perder o emprego. Para alguns isso pode até mesmo representar temor com relação à própria vida, já que o trabalho garante a subsistência (AMADO, 2018, p. 255-256). Em vista disso, a decisão do indivíduo de desligar o celular pode representar também um desligamento da empresa. Esse temor de ocorrer eventualmente uma rescisão contratual ou de perder uma progressão na carreira por falta de atenção ao trabalho fora do horário laboral causa o esgotamento do trabalhador.
Assim sendo, para um equilíbrio na relação de emprego, tanto o empregado quanto o empregador devem saber os limites desse vínculo e quais são os direitos e deveres das partes para não haver o desgaste da relação (DUTRA; VILLATORE, 2014, p. 148). Por isso existem separações da vida profissional para a vida cotidiana, e é de suma importância o respeito do espaço privado do indivíduo para respeitar a sua dignidade enquanto humano. A abusividade da relação pode resultar em consequências como um possível assédio moral.
Como ressaltado, a situação de conexão em tempo integral permitida por todos os aparatos tecnológicos atuais e principalmente pelos aparelhos celulares pode configurar um excesso de cobranças constantes ao trabalhador. Sempre com o caráter de urgência, perguntas frequentes, relatórios complexos em prazos curtos sem adiamentos, disto pode resultar em um assédio moral (AMADO, 2018, p. 264-265). Visto que o abuso de metas e até mesmo a negação de folgas pode caracterizar a prática de assédio moral pelo empregador.
Dessa forma, é claro que a não desvinculação do emprego, ou seja, a carência do direito a desconexão ao trabalho pode causar ao empregado, que pelo ponto de vista do assédio moral é a vítima, tensões e desequilíbrios emocionais. Posto isto, o prejuízo emocional, podendo ser intencional ou não, pode gerar responsabilização do empregador. Em sendo o teletrabalho uma modalidade com mais propensão a essa cobrança excessiva, a ausência de controle de jornada impacta diretamente no direito à desconexão.
5. CONCLUSÃO
A relação do emprego é composta por duas partes em situação assimétrica. Isso justifica a necessária intromissão do Estado nessa relação jurídica em vistas de produzir normas tendentes a reduzir abusos. É percebível que com a pressão dos trabalhadores no século XX, as empresas se readaptaram e conseguiram evoluir os métodos de prestação de serviços, por consequência, sem a devida limitação do legislador a esse vínculo empregatício, é possível se verificar malefícios ao trabalhador.
A modernidade contribuiu para a introdução de novas modalidades de trabalhos, sendo necessárias adaptações da legislação. Assim surgiu o teletrabalho, e como a regularização era imprescindível para tirar da informalidade uma modalidade do trabalho que está em alta no mundo, o legislador infraconstitucional o introduziu na Consolidação das Leis do Trabalho. Porém, se esperava do legislador uma defesa assídua ao trabalhador desta modalidade, visto que o princípio da proteção entoa a necessidade de proteger a parte mais fraca dessa relação.
Com o advento da reforma trabalhista de 2017 e a regularização do teletrabalho, notou-se um descompasso da atuação legislativa com o princípio mencionado bem como com a Constituição Federal. É possível identificar tal situação quando colocou essa modalidade no capítulo da duração da jornada de trabalho como uma exceção, isto é, previu que não existe a necessidade de efetuar controle de jornada na modalidade de teletrabalho.
Há clara afronta do artigo a respeito da jornada de trabalho em face da Constituição Federal, o que permite a discussão da inconstitucionalidade do dispositivo. Tendo em vista que o limite de tempo da jornada de trabalho é garantido a todos os trabalhadores, fraca é a suposição do legislador acerca da impossibilidade de um controle nesse caso. O mero fato de o indivíduo estar fora do alcance da supervisão direta do empregador não é justificativa plausível para a exclusão desse direito, principalmente em considerando todas as tecnologias atuais.
A abusividade no uso desse dispositivo, com a imposição, por exemplo, de metas excessivas, pode acarretar ofensa à desconexão ao trabalho. Ademais, é possível que se fira o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos constitucionais como a jornada limitada de trabalho, horas extras e adicional noturno. Em vistas de uma solução para o impasse, a pesquisa concluiu pela necessidade de uma interpretação restritiva do artigo 62, inciso III, da Consolidação das Leis Trabalhistas. Dessa forma, o trabalhador só seria submetido a exclusão do controle da jornada de trabalho quando nenhuma das formas clássicas, como por meta, unidade de produção, e as atuais como câmera e softwares pudesse efetivamente ser utilizada. Dessa forma, caberia a empresa a comprovação da necessidade da aplicação do inciso ao contrato de trabalho do teletrabalhador.
6. REFERÊNCIAS
AMADO, João Leal. Tempo de trabalho e tempo de vida: sobre o direito à desconexão profissional - Work time and life time: on the right to professional disconnection. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Campinas, SP, n. 52, p. 255-268, jan/jun. 2018. Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12178/141951. Acesso em 20 de julho de 2020.
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019.
DUTRA, Silvia Regina Bandeira; VILLATORE, Marco Antônio César. Teletrabalho e o direito à desconexão. Revista eletrônica do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Curitiba, PR, v. 3, n. 33, p. 142-149, set. 2014. Disponível em: https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/93957. Acesso em 20 de julho de 2020.
FERREIRA, Jorge Neto Francisco; CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Direito do trabalho. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2019.
FERRARI, Irany; NASCIMENTO, Amauri Mascaro. História do trabalho, do direito do trabalho e da justiça do trabalho. 3.ed. São Paulo: LTr, 2011.
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Advogada. Graduação pela Universidade Estadual de Londrina. Pós Graduanda em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Damásio de Jesus e em Direito Constitucional pela LFG.
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