RESUMO: A posse em usucapião individual é forma aquisitiva do direito de propriedade protegida legalmente. A atuação da Defensoria Pública, nas ações possessórias, é constante e volumosa, visto que há uma quantidade grande de bens imóveis que a população hipossuficiente reside e decorreu de ocupação. A usucapião tem como principais finalidades: a função social da propriedade e ter a propriedade assegurada legalmente. Isso é uma decorrência lógica da dignidade da pessoa humana. Neste sentido, o estudo de cada uma das modalidades, características e pontos polêmicos da usucapião são importantes para a atuação da defensoria.
PALAVRAS CHAVES: Usucapião. Modalidades. Características. Posse prolongada. Tempo. Prescrição aquisitiva. Função social da propriedade. Direito à moradia. Justiça Social. Defensoria Pública.
ABSTRACT: Possession in individual adverse possession is a form of acquisition of the legally protected property right. The role of the Public Defender's Office in possessory actions is constant and voluminous, since a large amount of real estate that the low-income population resides resulted from occupation. The adverse possession has as main purposes: the social function of the property and having the property legally guaranteed is a logical consequence of the dignity of the human person. In this sense, the study of each of the modalities, characteristics and controversial points of adverse possession are important for the defense action.
Keywords: Usucapion. Modalities. Characteristics. Prolonged possession. Time. Acquisition prescription. Social function of property. Right to housing. Social justice. Public defense.
Sumário: 1. INTRODUÇÃO 2. USUCAPIÃO INDIVIDUAL DE BEM IMÓVEL 2.1 Conceituação e características 2.2 Modalidades de usucapião individual 2.2.1 Usucapião ordinária 2.2.2 Usucapião extraordinária 2.2.3 Usucapião constitucional ou especial rural 2.2.4 Usucapião constitucional ou especial urbana 2.2.5 Usucapião especial indígena 2.3 Distribuição do ônus da prova na ação de Usucapião 2.4 Implemento da condição temporal da usucapião no curso do processo 2.5 Usucapião e direito intertemporal no Código Civil 2.6 Usucapião de bem objeto de herança por co herdeiro ou terceiro 2.7 Usucapião de bens públicos 3. CONCLUSÃO 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 INTRODUÇÃO
O Direito Civil brasileiro tem como origem o Direito Romano. O Direito das Coisas é uma modalidade do Direito Civil, diferente de outra modalidade dos Direitos Pessoais. O Direito das Coisas tem por conteúdo relações jurídicas estabelecidas entre pessoas e coisas determinadas ou determináveis. Os Direitos Reais são o conjunto de categorias jurídicas relacionadas à propriedade. Assim, os Direitos Reais formam o conteúdo principal do Direito das Coisas.
Os Direitos Reais giram em torno do conceito de propriedade, apresentando características próprias que os distinguem dos Direitos Pessoais de cunho patrimonial. A doutrina mais moderna encabeçada por Maria Helena Diniz aponta as principais características dos Direitos Reais.
Tais características são a oponibilidade erga omnes[1], ou seja, contra todos os membros da coletividade. Existe um direito de sequela, segue a coisa. Previsão de um direito de preferência. Possibilidade de abandono dos Direitos Reais, de renúncia a tais direitos. Viabilidade de incorporação da coisa por meio da posse. Previsão de Usucapião como um dos meios de sua aquisição. Obediência a rol taxativo previsto em lei, que consagra o princípio da tipicidade dos Direitos Reais. Princípio da publicidade dos atos, tradição e registro para os bens móveis.
Portanto, os Direitos Reais são absolutos, trazem efeitos contra todos, o que a doutrina chama de princípio do absolutismo.
O conceito de posse para a doutrina civilista majoritária é que a mesma constitui um direito, portanto sua natureza jurídica de direito real e não pessoal. Significa dizer que, na posse, a sujeição da coisa à coisa é direta e imediata. O direito do possuidor exerce erga omnes.
O Código Civil adotou a teoria objetivista de Lhering, que consta no art. 1.196 do diploma legal que: “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. Portanto, é exigido apenas um dos atributos do domínio para que a pessoa seja considerada possuidora.
Ocorre que, atualmente, o conceito de posse sofre grande influência do princípio constitucional da função social da posse. Assim, o ex-Defensor Público e atual Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Marco Aurélio Bezerra de Melo (2007, p. 23-24) discorre, acerca da posse e sua interpretação pelo operador do direito.
“A densidade axiológica da posse, mormente em uma sociedade que oscila entre a pobreza e a miséria e que adota como modelo tradicional para aquisição de bens a compra e venda e o direito hereditário, a posse deve ser respeitada pelos operadores do direito como uma situação jurídica eficaz e permitir o acesso à utilização dos bens de raiz, fato visceralmente ligado à dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, da CRFB) e ao direito constitucionalmente assegurado à moradia (art. 6° da CRFB). Importa, por assim dizer, que ao lado do direito de propriedade, se reconheça a importância social e econômica do instituto”.
A valorização da função social da posse representa o rompimento do formalismo individualista diante das demandas sociais. As ações de direito de posse de Usucapião acompanhadas pela Defensoria Pública nada mais são do que o efetivo cumprimento de diversos direitos constitucionalmente previstos, tais como o acesso à justiça e a promoção de direitos socialmente previstos na Constituição e replicados na legislação civil.
O direito à moradia é um direito fundamental, assegurando a efetividade plena desse preceito, a posse de usucapião é uma decorrência lógica dessa garantia constitucional.
A construção de uma sociedade mais igualitária passa não somente na garantia do acesso à justiça, mas também na defesa da posse da usucapião pela Defensoria Pública. Cabe ao Poder Judiciário, detentor estatal, da tutela jurídica de estabilizar as demandas, conflitos, garantido os direitos sociais previstos constitucionalmente. A realidade é que a grande maioria das demandas de usucapião individual e até mesmo as coletivas, não objeto deste estudo, passam pela população menos favorecida que adentraram em processos de ocupação de terrenos ou imóveis desocupados, portanto sem estarem cumprido a função social da propriedade.
Na prática forense, as demandas de ações possessórias de usucapião de bem imóvel são uma realidade constante e volumosa. Aos Defensores Públicos, que atuam nestas demandas, são exigidos, além da atenção sociológica visto ser um fato social estando expressos em regras, valores e normas sociais que obrigam os indivíduos a agirem de acordo com os padrões culturais. A posse de usucapião requer também o estudo aprofundado teórico jurídico para melhor representação da demanda perante o judiciário.
2 USUCAPIÃO INDIVIDUAL DE BEM IMÓVEL
2.1 Conceituação e características
A usucapião é o instituto jurídico por meio do qual a pessoa que fica na posse de um bem (móvel ou imóvel) por determinados anos agindo como se fosse dono, adquire a propriedade deste bem ou outros direitos reais a ele relacionados (exs: usufruto, servidão), desde que cumpridos os requisitos legais.
A propriedade admite formas de aquisição originárias e derivadas. Nas formas originárias, há um contato direto da pessoa com a coisa, sem qualquer intermediação pessoal. Nas formas derivadas, há intermediação subjetiva. Na prática, a distinção entre as formas originárias e derivadas é que, nestas, a propriedade faz com que tenha as características anteriores do anterior ou anteriores proprietários. Já nas formas originárias de aquisição da propriedade a mesma inicia do zero.
A usucapião é uma forma original de aquisição da propriedade pela posse prolongada. Assim, a lei permite que determinada situação de fato alongada por certo intervalo de tempo se transforme em uma situação jurídica. Portanto, a usucapião garante a estabilidade da propriedade, fixando um prazo, além do qual não se pode mais levantar dúvidas. De certo modo, a função social da propriedade acaba sendo atendida por meio de usucapião.
Tenha-se presente que a usucapião é o meio de aquisição originária de propriedade. Neste contexto, independente de quem seja o proprietário anterior, é possível a usucapião do imóvel, bastando que restam caracterizados os elementos: posse mansa e pacífica com animus domini, por um determinado período de tempo, sem oposição.
Para fins do reconhecimento da usucapião, tem-se a necessidade de comprovação dos seguintes requisitos: a) posse mansa e pacífica; b) período; c) boa-fé; d) ânimo de dono.
Nesse sentido, a doutrina, ao caracterizar a posse na usucapião, disciplina:
"Posse ad usucapionem. É aquela que enseja a aquisição da propriedade por meio de usucapião. Não é mera detenção. Não é posse exercida em nome de outrem. É posse de quem tem a coisa como sua e se apresenta como se fosse dono, ou seja, com animus domini. A posse ad usucapionem há de ser pública (os atos por meio dos quais a posse se manifesta não são ocultos, secretos, clandestinos); contínua (a continuidade se verifica pela ausência de interrupção - CC 1238 a 1240, 1242, 1260 e 1379; CC/1916 550 e 618; 551 e 698); incontestada (sem oposição, passividade geral de terceiros); pacífica (não violenta ou, se maculada na sua origem pela violência, que essa tenha cessado - CC 1208; CC/1916 497); inequívoca (os fatos invocados pelo possuidor ressaltam de maneira clara, não duvidosa, que ele possuiu a coisa de maneira exclusiva, ousadamente e com autoridade e não a obteve de forma precária, ou seja, para mera detenção)." (NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 12 ed. Editora RT, 2017. Versão ebook, Art. 1.196).
Em uma breve análise, discorre-se acerca das características que devem ter a posse de usucapião.
A primeira característica é que, na posse, deve haver o animus domini. Essa intenção de dono não está presente, em regra, em casos envolvendo vigência de contratos, como nas hipóteses de locação, comodato e depósito. Todavia, é possível a alteração na causa da posse, admitindo-se a usucapião em casos excepcionais.
A segunda característica da usucapião é ser mansa e pacífica, exercida sem qualquer manifestação em contrário de quem tenha legítimo interesse, ou seja, sem oposição do proprietário do bem. Se algum momento houver contestação por parte do suposto proprietário do bem, desaparece o requisito da mansidão.
Terceira característica é que a posse de usucapião seja contínua e duradoura, ou seja, com determinado lapso temporal, sem intervalos, sem interrupção. Admite-se exceção no art. 1.243, do Código Civil que admite soma de posses sucessivas ou acessio possessionis. De acordo com a correspondente modalidade de usucapião, a lei estabelece o prazo.
Outra característica exigida para se configurar a usucapião é a posse justa, isto é, apresentar sem vícios, que significa sem violência, clandestinidade ou precariedade. Enquanto houver tais atos desta natureza, não induzirá a posse.
Por fim, a usucapião exige que a posse seja exercida de boa fé e com justo título, em regra, no caso da usucapião ordinária já para outras modalidades de usucapião, tais requisitos são até dispensáveis, por haver presunção absoluta de sua presença, como será visto quando forem analisadas as modalidades de usucapião.
Portanto, a demanda de usucapião tem por finalidade a promoção da regularização do domínio do possuidor sobre o imóvel usucapiendo, bem como garantir a abertura de matrícula e ou averbação no cartório competente do registro da usucapião na matrícula originária do imóvel.
2.2 Modalidades de usucapião individual
O sujeito possuidor do bem imóvel, não tendo título de domínio e hipossuficiente[2], deve procurar, por meio da Defensoria Pública, o ajuizamento de ação de Usucapião. Conforme as características dessa posse e se preenchendo os requisitos legais, será ajuizada a demanda da respectiva usucapião, a qual o possuidor terá direito, ou em matéria de defesa na contestação, reconvenção ou em pedido contraposto.
2.2.1 Usucapião ordinária
É a prevista no art. 1242, do Código Civil, possuindo duas modalidades de usucapião ordinária.
Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.
Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.
Concebida como usucapião ordinária regular ou comum, possui os seguintes requisitos: posse mansa, pacífica e ininterrupta com animus domini por dez anos, justo título e a boa-fé. Reduz-se para cinco se o imóvel tiver posse qualificada pelo cumprimento de uma função social.
O requisito, com base no registro constante do respectivo cartório, é denominado como usucapião tabular. Porém, parte da doutrina entende ser desnecessária, quando houver a posse-trabalho, este sim, o elemento fundamental para caracterização dessa forma de usucapião ordinária. O que deve ser prevalecido é a função social da posse, que inclusive cai pela metade o prazo de prescrição aquisitiva da propriedade.
2.2.2 Usucapião extraordinária
Da mesma forma que acontece com a usucapião ordinária, há usucapião extraordinária regular comum, caput, do art. 1.238 e a usucapião extraordinária por posse trabalho, parágrafo único, do art. 1.238 do Código Civil.
Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.
Com efeito, a teor do art. 1238, do Código Civil, o exercício da posse para aquisição da propriedade pela usucapião extraordinária está condicionada a um lapso temporal de quinze anos, quando o possuidor estiver em uma posse mansa e pacífica, ininterrupta, com animus domini e sem nenhuma oposição. Reduz-se para dez anos se tiver cumprido função social da posse, sendo esta estabelecida pela presença da posse de trabalho.
Em ambas, não há necessidade de se provar a boa-fé ou justo título. Há uma presunção absoluta da presença desses elementos.
Posiciona-se a jurisprudência nacional, acerca da usucapião extraordinária, in verbis:
USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA – Na usucapião extraordinária, havendo o animus domini, basta comprovação de dois requisitos: o tempo contínuo e a posse mansa e pacífica, independentemente de título e boa-fé. (TJ-SP 00084597120128260292 SP 0008459-71.2012.8.26.0292, Relator: Alcides Leopoldo e Silva Júnior, Data de Julgamento: 17/01/2018, 2ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/01/2018).
2.2.3 Usucapião constitucional ou especial rural
É a prevista no art. 191 da Constituição Federal; “Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.”
Nesta modalidade de usucapião não se exige o justo título e a boa-fé, pois tais elementos se presumem de forma absoluta pela destinação da função social dada ao imóvel. O imóvel deve ser utilizado para a subsistência ou trabalho, podendo ser na agricultura, na pecuária, no extrativismo ou em atividade similar. O fator essencial é que a pessoa ou a família esteja tornando produtiva a terra, por força do seu trabalho.
Quanto à questão de fixação de área para fins da usucapião especial, a jurisprudência tem relativizado levando em consideração o módulo rural e a atividade agrária regionalizada, tudo no sentido de prestigiar o princípio constitucional da função social da propriedade. Assim, tal área deve ser capaz de gerar subsistência e progresso social e econômico ao agricultor e sua família, mediante exploração direta e pessoal, eventualmente com ajuda de terceiros.
2.2.4 Usucapião constitucional ou especial urbana
Também chamada usucapião pro misero, tem seu regulamento inicial no art. 183 da Constituição Federal, sendo também prevista no art. 1.240 do Código Civil, no art. 9° da Lei n° 10.257/2001 e por fim houve a inclusão pela Lei n° 12.424/2011 ao art. 1240-A do Código Civil, chamada usucapião especial urbana por abandono do lar. Assim a Constituição Federal prevê:
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
O direito à usucapião especial urbana não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez, dado que deve se atender ao requisito do direito mínimo à moradia, pro misero. Não há menção quanto ao justo título e à boa-fé presunção absoluta ou iure et de iure.
A área de 250 metros que é considerada para usucapião é a autônoma ou individual e não deve ser computado fração de área comum. Assim, a usucapião especial urbana de apartamentos em condomínio edifício.
A Lei n° 12.424/2011 inclui a usucapião especial urbana por abandono do lar. Assim, dispõe o art. 1.240-A, do Código Civil
Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011)
§ 1o O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
É a usucapião com menor prazo previsto entre todas as modalidades, haja vista que o prazo é de apenas dois anos. O abandono do lar é a principal característica, somado ao estabelecimento da moradia como posse direta. Tal comando pode atingir cônjuges ou companheiros, inclusive homoafetivos, diante do amplo reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, equiparada à união estável. Tem, portanto, incidência específica aos componentes da entidade familiar.
Havendo disputa, judicial ou extrajudicial, relativa ao imóvel, não ficará caracterizada a posse de usucapião. Eventual cônjuge ou companheiro que abandonou o lar pode notificar o ex-consorte, para demonstrar o impasse relativo ao bem, afastando o cômputo do prazo.
A jurisprudência é bem cautelosa acerca do requisito de abandono de lar, devendo haver descumprimentos simultâneos, tais como assistência material e o dever de sustento do lar, onerando desigualmente aquele que se manteve na residência familiar, e que se responsabilizou de forma sozinha com as despesas oriundas da manutenção da família e do próprio imóvel. Como consequência, tem-se a perda da propriedade do imóvel e até a alteração do regime de bens quanto ao imóvel objeto da usucapião.
É a ausência da tutela da família por parte do consorte que saiu do imóvel. Não importa a análise de culpa pelo fim do casamento ou da união estável. Também, não é requisito indispensável para a nova usucapião o divórcio ou a dissolução da união estável, bastando a mera separação de fato. A doutrina e jurisprudência entendem que um filho pode requerer usucapião contra genitor ou genitora que abandonou o lar.
2.2.5 Usucapião especial indígena
Estando prevista no Estatuto do Índio, Lei n° 6.001/1973, em seu art. 33, “O índio, integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trecho de terra inferior a cinquenta hectares, adquirir-lhe-á a propriedade plena”.
Os requisitos desta usucapião são área de no máximo cinquenta hectares e a posse mansa e pacífica por dez anos, exercida por indígena.
2.3 Distribuição do ônus da prova na ação de Usucapião
Tenha-se presente que o art. 373 do CPC estabelece as regras acerca do ônus da prova no Processo Civil:
Art. 373. O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
Ao autor tem, portanto, o dever de provar mediante documentação prova testemunhal, ou até confissão da parte adversa, como já, na prática civil, chega-se a presenciar em audiência de instrução de processo de Usucapião, os requisitos necessários ao reconhecimento do direito à usucapião: posse mansa e pacífica, lapso temporal e animus domni.
O judiciário, no momento da sentença, deve considerar se a defesa em sua contestação, ou no decorrer da instrução processual, trouxe algum fato impeditivo, modificativo ou extintivo ao fato pré-produzido pelo autor, o produzido na instrução. Assim, o ônus da prova não é somente ao autor imputado, mas também ao réu que não se desincumbe pois de apresentar prova nos autos capaz de convencer o juiz da improcedência da demanda.
Deve haver regular citação das fazendas públicas: União, Estado e o Município onde o imóvel está localizado, e ambos devem se manifestar não se opondo a usucapião do bem pretendido. Assim, como deve haver a regular citação dos confinantes, pelo juízo, dos quais nenhum deve se opor no processo.
O art. 1.071 do Código de Processo Civil incluiu o art. 216-A na Lei de Registros Públicos, Lei n° 6.015/1973, ampliando a possibilidade da usucapião extrajudicial ou administrativa, que pode ser aplicada a qualquer uma das modalidades de usucapião sobre bens imóveis. Assim, sem prejuízo da via judicial, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório de registro de imóveis da Comarca em que se situa o imóvel.
2.4 Implemento da condição temporal da usucapião no curso do processo
Conforme o STJ ficou estabelecido a viabilidade do implemento da condição temporal da usucapião mesmo durante o transcurso da demanda: “É possível o reconhecimento da usucapião de bem imóvel com a implementação do requisito temporal no curso da demanda. STJ. 3ª Turma. REsp 1.361.226-MG, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 05/06/2018 (Info 630).”
É possível complementar o prazo de usucapião no curso do processo, tendo em vista que o CPC autoriza que o magistrado examine e leve em consideração, na sentença, fatos ocorridos após a instauração da demanda:
Art. 493. Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a decisão.
Parágrafo único. Se constatar de ofício o fato novo, o juiz ouvirá as partes sobre ele antes de decidir.
Imperioso registrar que o Superior Tribunal de Justiça entende que a contestação apresentada pelo réu não impede, por si só, o transcurso do lapso temporal. Essa peça defensiva não tem a capacidade de exprimir a resistência do demandado à posse exercida pelo autor, mas apenas a sua discordância com a aquisição do imóvel pela usucapião: […] A contestação apresentada na ação de usucapião não é apta a interromper o prazo da prescrição aquisitiva e nem consubstancia resistência ao afastamento da mansidão da posse. […] STJ. 4ª Turma. AgRg no AREsp 180.559/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 17/12/2013.
2.5 Usucapião e direito intertemporal no Código Civil
O Código Civil trouxe disposições acerca dos conflitos decorrentes de normas no tempo. Assim, o art. 2.028 do Código Civil, dispõe que: “serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada.”
Já o art. 2.029, do Código Civil estabelece que: “Até dois anos após a entrada em vigor deste Código, os prazos estabelecidos no parágrafo único do art. 1.238 e no parágrafo único do art. 1.242 serão acrescidos de dois anos, qualquer que seja o tempo transcorrido na vigência do anterior”.
Essa disposição é aplicável à usucapião extraordinária e ordinária, em que os prazos são reduzidos de dez e cinco anos, respectivamente, diante da presença de posse de trabalho.
2.6 Usucapião de bem objeto de herança por co herdeiro ou terceiro
O direito hereditário ou sucessão constitui a forma de transmissão derivada da propriedade que se dá por ato mortis causa, em que o herdeiro legítimo ou testamentário ocupa lugar do falecido em todos os seus direitos e deveres.
É importante assinalar que o Superior Tribunal de Justiça já chegou a reconhecer a possibilidade de usucapião de imóvel objeto de herança por um dos co-herdeiros:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 282/STF. HERDEIRA. IMÓVEL OBJETO DE HERANÇA. POSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO POR CONDÔMINO SE HOUVER POSSE EXCLUSIVA. 1. Ação ajuizada 16/12/2011. Recurso especial concluso ao gabinete em 26/08/2016. Julgamento: CPC/73. 2. O propósito recursal é definir acerca da possibilidade de usucapião de imóvel objeto de herança, ocupado exclusivamente por um dos herdeiros. 3. A ausência de decisão acerca dos dispositivos legais indicados como violados impede o conhecimento do recurso especial. 4. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários (art. 1.784 do CC/02). 5. A partir dessa transmissão, cria-se um condomínio pro indiviso sobre o acervo hereditário, regendo-se o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, pelas normas relativas ao condomínio, como mesmo disposto no art. 1.791, parágrafo único, do CC/02. 6. O condômino tem legitimidade para usucapir em nome próprio, desde que exerça a posse por si mesmo, ou seja, desde que comprovados os requisitos legais atinentes à usucapião, bem como tenha sido exercida posse exclusiva com efetivo animus domini pelo prazo determinado em lei, sem qualquer oposição dos demais proprietários. 7. Sob essa ótica, tem-se, assim, que é possível à recorrente pleitear a declaração da prescrição aquisitiva em desfavor de seu irmão - o outro herdeiro/condômino, desde que, obviamente, observados os requisitos para a configuração da usucapião extraordinária, previstos no art. 1.238 do CC/02, quais sejam, lapso temporal de 15 (quinze) anos cumulado com a posse exclusiva, ininterrupta e sem oposição do bem. 8. A presente ação de usucapião ajuizada pela recorrente não deveria ter sido extinta, sem resolução do mérito, devendo os autos retornar à origem a fim de que a esta seja conferida a necessária dilação probatória para a comprovação da exclusividade de sua posse, bem como dos demais requisitos da usucapião extraordinária. 9. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, provido. (STJ - REsp: 1631859 SP 2016/0072937-5, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 22/05/2018, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/05/2018).
Acerca da possibilidade de usucapião de imóvel objeto de herança por terceiro, o seguinte julgado.
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. IMÓVEL REGISTRADO EM NOME DA TERRACAP. PROMESSA DE COMPRA E VENDA EM NOME DE TERCEIRO. QUITAÇÃO. ESCRITURA PÚBLICA NÃO LAVRADA. BEM QUE NÃO MAIS PERTENCE AO DOMÍNIO PÚBLICO. AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE POR MEIO DA USUCAPIÃO. POSSIBILIDADE. IMÓVEL PROVENIENTE DA HERANÇA. REQUISITOS DA USUCAPIÃO PREENCHIDOS. SENTENÇA MANTIDA. 1. Em razão da aquisição, por particular, de imóvel anteriormente pertencente à TERRACAP, mediante promessa de compra e venda registrada em cartório de imóveis, o bem deixou a esfera pública, permitindo a aquisição originária da propriedade por meio da usucapião. 2. O fato de o imóvel ser proveniente de herança não impede que seja usucapido, desde que presentes os requisitos da usucapião. 3. Nos termos da jurisprudência da Corte Superior de Justiça, o condômino tem legitimidade para usucapir em nome próprio, desde que exerça a posse por si mesmo, ou seja, desde que comprovados os requisitos legais atinentes à usucapião, bem como tenha sido exercida posse exclusiva com efetivo animus domini pelo prazo determinado em lei, sem qualquer oposição dos demais proprietários.? (REsp 1631859/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI). 4. A usucapião é modalidade de aquisição originária da propriedade e decorre do exercício do jus possessionis. Para a procedência do pedido de usucapião a parte autora deve comprovar posse mansa, pacífica e ininterrupta no imóvel pelo prazo legal, além da intenção de possuir o bem como se proprietário fosse (animus domini). 5. Apelação conhecida, mas não provida. Unânime. (TJ-DF 00248233820158070003 DF 0024823-38.2015.8.07.0003, Relator: FÁTIMA RAFAEL, Data de Julgamento: 03/04/2020, 3ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no PJe: 25/04/2020. Pág.: Sem Página Cadastrada.)
2.7 Usucapião de bens públicos
A Constituição Federal de 1988 proíbe expressamente a usucapião de bens imóveis públicos, sejam urbanos ou rurais.
Apesar de disposição constitucional vedando tal usucapião, há parte da doutrina que entende caber usucapião de bens públicos. Silvio Rodrigues (2002) sustenta tal possibilidade quando se refere aos bens públicos dominicais, caso das terras devolutas. Tal defesa se dá porque tais bens são inalienáveis, portanto devem ser prescritos susceptíveis de usucapião. Cristiano Chaves Farias e Nelson Rosenvald (2016) também possuem o mesmo entendimento.
Existem inclusive julgados recentes admitindo a usucapião das terras devolutas, exatamente para não se perder a função social da posse, princípio e norma, também constitucional. Tem-se que existe o direito fundamental difuso à função social.
3 CONCLUSÃO
Após a análise teórica jurídica das modalidades, classificações e características do direito de posse da usucapião de bens imóveis individuais, ficam descritos de maneira sucinta e objetiva os requisitos exigidos pela Constituição Federal e a legislação ordinária. Tais requisitos passam por aspectos temporais, já que cada modalidade tem seu prazo prescricional definido legalmente e, além disso, outros requisitos objetivos e subjetivos.
Da conjuntura das ações de posse de usucapião de bem imóvel individual, devem ser retiradas várias conclusões. A primeira delas é de que houve um avanço na Constituição Federal de 1988 e nas legislações ordinárias posteriores. Essa evolução, para proteção da posse de usucapião, é considerada além do direito de propriedade, é a garantia do direito social a moradia direito fundamental previsto na Constituição Federal de 1988. Os fatores sociais são levados em consideração não só para os dispositivos legais, mas também a doutrina civilista e a jurisprudência que evoluem na interpretação da posse de usucapião.
Deixou-se de apenas olhar os aspectos individuais do direito de propriedade, e se começa a tutelar os aspectos sociais que são os desdobramentos da posse de usucapião. No campo prático, quando o Defensor Público analisa a função social da propriedade e a expõe à tutela jurisdicional, não se está somente interpretando aspectos teóricos jurídicos. Estes são importantes para a pretensão ser efetivada, mas acima de tudo devem promover à justiça social distributiva. Dar o acesso à justiça a quem mais necessita e que é excluído do sistema socioeconômico é outro aspecto teórico prático realizado pela Defensoria Pública nas ações de posse de usucapião.
Somos uma nação ainda em processo de desenvolvimento com bastante desigualdade social. Há distribuição da riqueza econômica que não passa somente em programas de distribuição de renda, de melhoria na educação, qualificação profissional ou na promoção de outras políticas públicas afirmativas.
Por não ter o cidadão, na sua maioria, como adquirir um imóvel da forma convencional, contrato de compra e venda ou de financiamento, e às vezes não ter renda suficiente para pagar um aluguel mensal, é que ocupações e invasões de espaços ocorrem há décadas no Brasil. No Maranhão, a realidade que a Defensoria Pública atua não é diferente. Na capital, em São Luís, existem grandes bairros que foram formados por ocupações irregulares, e que, com o decorrer do tempo, o cidadão tem o direito à regularização imobiliária e fundiária do seu bem imóvel.
São através das ações possessórias de usucapião de bem imóvel e até outras possessórias, não abordadas neste trabalho, que a Defensoria Pública garante o acesso à justiça. E além disso, cabe ao cidadão a oportunidade de efetivar o seu patrimônio mínimo ou inicial, ou seja, assegurar a sua casa própria ou seu sítio produtivo. Superam as ações de usucapião de bem imóvel a efetivação do princípio da função social da propriedade, que garantem também a proteção à dignidade da pessoa humana, e se efetivam direitos individuais e sociais.
4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Código Civil (2002). Lei n° 11.406/2002. Brasília, DF: Presidência da República, 2002. Disponível em<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em: 09 Janeiro. 2022.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 10 de Janeiro. 2022.
BRASIL. STJ. Superior Tribunal de Justiça. (Terceira e Quarta Turma). Jurisprudência. Brasília, DF: STJ. Disponível em:<https://scon.stj.jus.br/SCON/>. Acesso: 11 Janeiro. 2022.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. Direito das Coisas. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
GOMES, Orlando. Direitos Reais. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil. Parte Geral. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
[1] contra todos os membros da coletividade.
[2] Critério de hipossuficiência a ser demonstrado pelo assistido sua situação socioeconômica para poder ter a representação processual pela Defensoria Pública do Maranhão, conforme preconiza a Lei Complementar Estadual nº 19 de 11 de janeiro de 1994. Valerá como comprovação, para os efeitos do parágrafo anterior, a prova de uma das seguintes condições: a) ter renda pessoal inferior a três salários mínimos mensais, ou; b) pertencer a entidade familiar, cuja média da renda per capita mensal não ultrapasse a metade do valor referido na alínea anterior.
Defensor Público do Estado do Maranhão desde 2011, titular no 4° Ofício Núcleo Forense Cível e Fazenda Pública.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PINHEIRO, RODRIGO GOMES DE FREITAS. Estudo teórico e prático da usucapião individual de bem imóvel e atuação da Defensoria Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 mar 2022, 04:53. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58135/estudo-terico-e-prtico-da-usucapio-individual-de-bem-imvel-e-atuao-da-defensoria-pblica. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: MARIANA BRITO CASTELO BRANCO
Por: Jorge Hilton Vieira Lima
Por: isabella maria rabelo gontijo
Por: Sandra Karla Silva de Castro
Por: MARIA CLARA MADUREIRO QUEIROZ NETO
Precisa estar logado para fazer comentários.