Resumo: Objetiva o presente articulado traçar, de início, a cronologia histórica que levou à previsão em âmbito legislativo do acordo de não persecução penal, instituto de justiça criminal negociada que, com base em critérios de discricionariedade regrada, busca conferir maior efetividade à persecução criminal em sentido amplo, de modo a demonstrar sua a viabilidade jurídico-constitucional.
Palavras-chave: Acordo de não persecução penal. Discricionariedade regrada. Efetividade.
Abstract: The purpose of the present article is to trace, at the outset, the historical chronology that led to the provision, in the legislative sphere, of the non-prosecution agreement, an institute of negotiated criminal justice that, based on criteria of regulated discretion, seeks to give greater effectiveness to criminal prosecution, in order to demonstrate its legal-constitutional feasibility.
Keywords: Non-prosecution agreement. Regulated discretion. Effectiveness.
Resumen: El presente artículo tiene por objeto trazar, desde un inicio, la cronología histórica que condujo a la disposición en el ámbito legislativo del pacto de no enjuiciamiento, instituto de justicia penal negociada que, con base en criterios de discrecionalidad regulada, pretende dar mayor efectividad a la persecución penal en un sentido amplio, a fin de demostrar su viabilidad jurídico-constitucional.
Palabras clave: Acuerdo de no enjuiciamiento. Discreción reglada. Eficacia.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 DO PROTAGONISMO MINISTERIAL. 3 ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL E MINISTÉRIO PÚBLICO. 4 DO DIREITO ALIENÍGENA. 5 DA LEGISLAÇÃO PÁTRIA. 6 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
1 Introdução
Prefacialmente, cumpre destacar que toda e qualquer discussão acerca do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) resvala na análise da concessão, pela normativa jurídico-constitucional, à luz do sistema acusatório e ainda que por via transversa, da atribuição de investigação criminal ao Ministério Público.
Isto porque a admissão de atuação mais proativa do titular da ação penal na fase pré-processual é, pois, ponto fulcral no exame do desenvolvimento de novas formas de intervenção do Estado-Juiz face ao cometimento de infrações criminais, estando ligada de modo direto à ideia de justiça penal consensuada que, no ordenamento brasileiro, passou historicamente a ter maior relevo a partir da Lei 9.099/95 e dos institutos da transação e da suspensão condicional do processo ali previstos.
Em filiação à segunda velocidade do direito penal, na transação penal e no sursis processual se aceita, em homenagem à proporcionalidade, a flexibilização de determinadas garantias processuais e em contraponto se admitem, enquanto pena, medidas alternativas à privação de liberdade, em juízo de ponderação de valores voltado à efetividade do sistema criminal.
Uma primeira velocidade, representada pelo Direito Penal “da prisão”, na qual haver-se-iam de manter rigidamente os princípios político-criminais clássicos, as regras de imputação e os princípios processuais; e uma segunda velocidade, para os casos em que, por não se tratar já de prisão, senão de penas de privação de direitos ou pecuniárias, aqueles princípios e regras poderiam experimentar uma flexibilização proporcional à menor intensidade da sanção[1].
Apesar de, sob certo viés, importarem em alguma alteração (mas jamais supressão) do paradigma tradicional do sistema acusatório constitucionalmente previsto, os referidos institutos, aliados à atribuição de poderes investigatórios ao Ministério Público e, por extensão, ao novel ANPP, vão ao encontro da finalidade maior – também com espeque constitucional – de fomentar a racionalidade da atuação estatal no tratamento do fenômeno criminológico, abrindo espaço para outras formas de concretização da justiça que, de outro modo, ver-se-iam impossibilitadas.
2 Do protagonismo ministerial
Ao se falar em novas concepções de intervenção estatal no que toca à prática de delitos, sobreleva-se a importância do órgão ministerial, ocupante da posição de dominus litis da persecução do Estado. Enquanto titular da ação penal, a atribuição de diferentes formas de protagonismo à instituição guarda a lógica do sistema e, assim, termina por fortalecer a efetividade do próprio princípio acusatório.
Com efeito, as alterações promovidas pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), se por um lado aumentaram o protagonismo do Parquet, por outro reduziram de modo considerável a atuação do juiz na fase pré-processual, o que evidentemente confere concreção ao viés acusatório da persecução penal e, por conseguinte, afasta os resquícios da inquisitividade que, antes da CF/88, vigorava na normativa pátria.
Tem-se, assim, que não há como fazerem nascer outras formas de o Estado lidar com a prática dos variados tipos penais (que, por conseguinte, tutelam bens jurídicos de também variada relevância) sem modificar, mesmo que de forma direcionada e não radical, o papel em vigência dos atores estatais.
Destarte, apesar da existência de correntes em sentido contrário, para as quais a acumulação pelo MP das funções de órgão-acusador e de órgão-investigador configura verdadeiro desvirtuamento do modelo acusatório, razão pela qual a CF teria atribuído o poder de investigação criminal apenas e tão somente à autoridade policial, em sede de repercussão geral o STF, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 593727, admitiu de forma expressa que o constituinte de 1988 conferiu ao Parquet também o poder de investigar a prática de ilícitos cuja prática, caso comprovada, levará ao oferecimento de denúncia justamente por membros da instituição ministerial.
Assim é que, com base na teoria dos poderes implícitos (implied powers theory, originária da Suprema Corte dos Estados Unidos), o Pretório Excelso estatuiu que o texto constitucional, ao no inciso I de seu art. 129 conceder ao MP a função de privativamente promover a ação penal pública, também lhe atribuiu o poder de investigar a prática de crimes.
Para o Supremo, resta implícito na CF que igualmente cabe ao Ministério Público a função investigatório-criminal, pois se trata de traço indispensável à regular consecução de sua função de dominus litis. Consoante definido no RE 593727, entender em sentido diverso seria admitir que o texto constitucional não confere ao órgão acusador as condições necessárias ao desempenho de sua finalidade institucional por excelência, em redução da eficácia normativa da Carta Magna que, por si só, apresenta-se como evidente contrassenso lógico-jurídico.
Na realidade, mesmo antes do quanto decidido pelo STF havia, no ordenamento jurídico, vários indicativos da inexistência de óbices à instauração de investigações pelo Parquet.
Cite-se, por exemplo, o art. 4º, parágrafo único, do Código de Processo Penal, que prevê de forma expressa que a atribuição investigatória da qual se acha investida a autoridade policial não exclui a de outras autoridades atribuída, em igual sentido, pela legislação. De igual sorte, prevê o entendimento sumular n. 234 do Superior Tribunal de Justiça que o fato de o membro do Ministério Público ter participado da anterior investigação criminal não acarreta suspeição ou impedimento para oferecimento da correspondente inicial acusatória.
Assim é que, em juízos de proporcionalidade e ponderação, resta claro que eventual transformação do papel desempenhado pelo Estado-acusador e pelo Estado-juiz no âmbito processual penal não só não leva necessariamente à deturpação da natureza democrática da persecutio criminis in judicio, mas funciona, em verdade, como instrumento de fortalecimento do sistema acusatório, desde que – como é intuitivo – sejam fixadas determinadas balizas para tanto.
Assim, com fundamento na teoria dos poderes implícitos o Pretório Excelso definiu que o MP pode investigar a ocorrência de infrações penais caso observados os seguintes requisitos, verdadeiros balizadores da atuação ministerial: a) observância de prazo razoável para a conclusão da investigação; b) respeito aos direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado; c) observância das matérias sujeitas à reserva constitucional de jurisdição; d) garantia das prerrogativas profissionais da advocacia; e) possibilidade de controle jurisdicional dos atos; f) necessária documentação dos atos de investigação; g) condução por membros do MP, não por servidores; f) observância da Súmula Vinculante n. 14[2].
Tal linha de raciocínio, calcada na possibilidade de, desde que com base em balizas pré-definidas, inovar-se o quadro do sistema como forma de fortalecer o próprio modelo acusatório, é abraçada pelo art. 28-A do Código de Processo Penal, que, como será melhor detalhado adiante, dispõe sobre o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP).
3 Acordo de não persecução penal e Ministério Público
Destarte, para que o ANPP seja firmado é imprescindível que sejam irrestritamente cumpridos os requisitos fixados em sede legislativa para tanto. Trata-se de requisitos que, tais quais os definidos pelo Supremo para a investigação a cargo do MP, funcionam como demarcadores democrático-constitucionais e, por conseguinte, da observância do sistema acusatório.
Imperioso destacar, nesse toar, que a outra face dos institutos de despenalização, ao conferir maiores poderes ao Estado-acusador, é a redução da participação do juiz na fase anterior ao início do processo penal propriamente dito.
É dizer: o fortalecimento do MP, com vista a assegurar a efetividade da persecução criminal, é uma via de mão dupla que se, por um lado, aumenta as possibilidades de intervenção ministerial concreta, por outro reforça sobremaneira a imparcialidade do Estado-juiz, o qual atuará somente, e se, após o Parquet se desincumbir do ônus probatório que lhe compete. Nesse sentido, prevê o art. 3º-A do CPP que o processo penal “terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.
O movimento de reforço do caráter decisivo da atuação ministerial no bojo de toda a persecução penal é reforçado, ainda, pelo entendimento cristalizado na súmula 696 do STF, aplicável igualmente para os casos de transação, segundo a qual, na hipótese de o magistrado discordar, por entender presentes os requisitos previstos na lei, da recusa do membro do MP em oferecer proposta de sursis processual, deve ser aplicado por analogia o art. 28 do CPP, concentrando na figura do Procurador-Geral de Justiça, ou seja, na instituição do Ministério Público, o poder de fundamentadamente decidir se, mesmo preenchidos os pressupostos legais, deve ou não ao acusado ser ofertada a proposta de suspensão do processo.
Nessa mesma linha de intelecção, assim prevê o Enunciado 86 do Fórum Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE), in litteris:
Em caso de não oferecimento de proposta de transação penal ou de suspensão condicional do processo pelo Ministério Público, aplica-se, por analogia, o disposto no art. 28 do CPP (XXI Encontro – Vitória/ES).
Resta pacífico, portanto, que ao órgão-acusatório por excelência é conferido o poder de por autoridade própria, independentemente de eventual discordância do Poder Judiciário, decidir se mesmo quando preenchidos os pressupostos legais a aplicação de institutos despenalizadores – em regra mais benéficos ao réu – é justificável ou não no caso concreto, em juízo que, embora baseado em espécie de discricionariedade fundamentada, importa alguma flexibilização do dogma acusatório.
Conferir ao Ministério Público a atribuição de oferecer o acordo ora em análise, ademais, vai ao encontro da própria lógica do sistema instituído pelo CPP, uma vez que seu art. 385 prevê de forma expressa a possibilidade de o Parquet, apesar de ter anteriormente denunciado o réu, ao final requerer sua absolvição.
Ora, se, enquanto guardião dos valores constitucionais e dos direitos individuais indisponíveis, o MP possui ampla liberdade de atuação durante o processo, é coerente que, antes mesmo do início da persecutio em juízo, seja-lhe facultado analisar se, no caso concreto, a movimentação da máquina judicial é a medida mais adequada para a “necessária e suficiente” reprovação e prevenção do crime, ex vi do art. 28-A do Códex Processual Penal.
Assim, vê-se que o ANPP é apenas mais um instrumento da persecução criminal que, com fundamento direto no texto constitucional e na efetividade que se busca conferir à tutela jurisdicional, chancela a histórica opção do legislador de transferir maiores poderes ao titular da ação penal, o que em nada afeta a higidez do art. 129, I, da Constituição Federal.
4 Do direito alienígena
No plano do direito comparado, o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), tal qual a transação[3], tem origens que remontam ao direito anglo-saxônico, em especial à experiência jurídica norte-americana, de tradição do commom law, na qual boa parte dos litígios criminais é resolvida através dos institutos do plea barganing e do guilty plea.
Calcado na admissão de culpa em troca do recebimento, no lugar, de um benefício de diminuição de pena, v.g., na lição de Renato Brasileiro de Lima, o guilty plea “consiste numa forma de defesa perante o juízo em que o imputado admite que cometeu o fato a ele atribuído”[4].
Lado outro, no plea bargaining, novamente consoante a doutrina de Renato Brasileiro de Lima, “o imputado manifesta perante o Ministério Público sua decisão de declarar-se culpado, aceitando as imputações acordadas, assim como a pena pactuada, ao mesmo tempo em que renuncia a certas garantias processuais”[5].
Destarte, o ANPP se junta à transação penal e à suspensão condicional do processo como instituto que visa dar concretude à justiça penal negociada no Brasil, cuja tradição jurídica é historicamente vinculada ao civil law. Busca-se superar o dogma da adversidade como requisito inafastável da resolução de litígios criminais e, com isso, aproximar a cultura do consenso da normativa pátria.
Trata-se, em verdade, de alteração paradigmática na qual, por opção político-criminal, o que se objetiva é conferir efetividade à persecução penal, mudança que, longe de banalizá-la, otimiza-a com direto supedâneo na Constituição Federal, reservando-se o exercício da jurisdição criminal a casos de delitos de natureza especialmente grave.
Sobre o tema, eis os ensinamentos de Renee do Ó Souza, in verbis:
A regulamentação em que se incorpora o acordo de não persecução guarda compatibilidade com o princípio da juridicidade porque, efetivamente, mantém conformidade substancial com os objetivos constitucionais do Ministério Público, servindo ainda de instrumento inserido em um estratégico programa de sistematicidade de política criminal, pautado em critérios decisórios bem ordenados que procuram enfrentar, com realismo, o inchaço do poder judiciário e o aumento da criminalidade.[6]
Todavia, em que pese a busca de aproximação com as figuras do plea bargaining e do guilty plea, no Brasil nenhum dos referidos institutos com elas se confunde.
Isto porque, no que toca em específico ao objeto de análise do presente articulado, o ANPP se diferencia dos institutos norte-americanos em virtude sobretudo (mas não somente) da desnecessidade de assunção de culpa por parte do acusado.
A legislação pátria, com efeito, impõe como requisito apenas que haja a formal e circunstanciada confissão acerca da prática da infração penal, o que, atente-se, não se confunde com a declaração judicial acerca da autoria do delito. Houvesse a assunção de culpa, a necessária consequência seria o cumprimento de pena e a incidência dos consectários legais decorrentes, medidas que em momento algum encontram previsão na normativa brasileira, como será detalhado adiante.
Ademais, apesar de também ser forma de modelo negocial de resolução de conflitos criminais, a aplicação do ANPP é cingida a crimes de média gravidade (“sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos”, na dicção do caput do art. 28-A do CPP), enquanto, no direito norte-americano, não há limitação semelha na aplicação do plea bargaining e do guilty plea[7].
Reforce-se, assim, que uma das diferenças fundamentais entre os institutos se encontra em seus efeitos, tendo em vista que no ANPP o cumprimento das condições ali fixadas leva à extinção da punibilidade e nos multicitados acordos anglo-saxônicos, como há a imposição de pena, todos os consectários legais devem ter incidência, do que é exemplo a reincidência.
5 Da legislação pátria
No que pertine à legislação brasileira, o ANPP, inserido no Código de Processo Penal, como visto, através da Lei nº 13.964/2019, é instituto primeiramente previsto na Resolução n. 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), mais precisamente em seu art. 18.
Desde a edição da citada resolução, no entanto, o ANPP suscitou intensas controvérsias na doutrina, sobretudo na parcela para a qual o instituto representaria violação da competência privativa da União para legislar sobre direito processual (art. 22, I, da Constituição Federal) e, ainda, ofensa ao sistema acusatório-constitucional.
De qualquer sorte, com o advento da Lei nº 13.964/2019, resta claro que a discussão acerca da violação ao art. 22, I, da CF/88 está superada, muito embora mereça registro a existência de forte corrente doutrinária que entendia pela inexistência de ofensa à competência privativa de União.
Todavia, subsiste a discussão acerca da conformação do ANPP ao sistema acusatório, sobretudo quando se tem em mente que se trata de instituto que, sem dúvidas, confere ao Ministério Público maior protagonismo no sistema do processo penal brasileiro.
Impende registrar de forma particularizada, assim, que o modelo acusatório é em essência caracterizado pela separação da atuação dos atores processuais. É dizer, reserva-se ao magistrado o julgamento da demanda, ao Ministério Público a função de acusar e, ao defensor, a defesa do réu, em posições equidistantes que garantem, assim, a paridade de armas, o contraditório e a ampla defesa e, no que toca sobretudo ao julgador, a necessária imparcialidade.
Quanto às características do sistema acusatório, entende a doutrina, in verbis:
(...) a separação entre os órgãos de acusação, defesa e julgamento; há a adoção do princípio da publicidade no procedimento investigatório, o procedimento é oral e tem caráter contraditório, vige a igualdade entre juiz, defesa e acusação e a liberdade do réu é a regra até sentença condenatória irrevogável. O sistema acusatório acabou por adotar o princípio da acusação penal ex officio, entretanto, o órgão responsável pela acusação não é o juiz, e nunca o Judiciário. Atualmente, esse órgão é o Ministério Público, criado originariamente na França e exportado para outras nações.[8]
Dessa forma, por conceito o processo penal acusatório é verdadeiro actum trium personarum, no qual há três personagens que, ao exercerem cada qual de modo separado e independente suas funções processuais, levam a jurisdição a seu exercício regular.
Sobre o tema, eis o escólio de Paulo Rangel:
“O sistema acusatório, antítese do inquisitivo, tem nítida separação de funções, ou seja, o juiz é órgão imparcial de aplicação da lei, que somente se manifesta quando devidamente provocado; o autor é quem faz a acusação (imputação penal + pedido), assumindo, segundo nossa posição (cf. item 1 .7, supra), todo o ônus da acusação, e o réu exerce todos os direitos inerentes à sua personalidade, devendo defender-se utilizando todos os meios e recursos inerentes à sua defesa. Assim, no sistema acusatório, cria-se o actum trium personarum, ou seja, o ato de três personagens: juiz, autor e réu. No sistema acusatório, o juiz não mais inicia, ex officio, a persecução penal in iudicium. Há um órgão próprio, criado pelo Estado, para propositura da ação. Na França, em fins do século XIV, surgiram les procureurs du roi (os procuradores do rei), dando origem ao Ministério Público. Assim, o titular da ação penal pública passou a ser o Ministério Público, afastando, por completo, o juiz da persecução penal”[9].
Evidencia-se, destarte, que o debate sobre o ANPP violar ou não o sistema acusatório perpassa necessariamente pelo exame da atuação do Ministério Público, analisando-se, em específico, se as possibilidades abertas pelo art. 28-A do CPP transferem ao órgão acusatório o poder de, na prática, julgar aquele ao qual se imputa o cometimento de certa infração penal.
Assim prevê o citado dispositivo do Códex Processual Penal:
Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: (...)
À semelhança daquilo que hodiernamente entendem jurisprudência e doutrina majoritárias no que toca à suspensão condicional do processo e à transação penal, inexiste direito subjetivo ao oferecimento do ANPP, tratando-se de faculdade ou – no máximo – de poder-dever do órgão ministerial, o que por si só serve de forte indicativo de que, tal qual os demais institutos despenalizadores citados em tópicos precedentes, o acordo do art. 28-A o MP não realiza qualquer julgamento da imputação penal, não havendo de se falar em concentração das funções de acusar e de julgar. A rigor, sequer há, ainda, acusação formal.
Cite-se, nessa linha, o Enunciado 19 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM), segundo o qual, in verbis:
O acordo de não persecução penal é faculdade do Ministério Público, que avaliará, inclusive em última análise (§ 14), se o instrumento é necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime no caso concreto.
Em verdade, o que há no ANPP é o dever funcional do Ministério Público de selecionar, com base na lei, os casos de maior gravidade que, por consequência, justificam a movimentação do aparato jurisdicional. Trata-se, portanto, de opção político-criminal do legislador.
Ademais, como visto, para que se possa falar em julgamento é imprescindível que o ato decisório daí emanado tenha capacidade de gerar os efeitos penais que lhe são inerentes, a exemplo da configuração da reincidência. O parágrafo 12 do multicitado dispositivo do CPP, no entanto, prevê de forma expressa que o cumprimento do ANPP não constará de certidão de antecedentes criminais, em mais um reforço de que, apesar de implicar a ampliação das atribuições ministeriais, o instituto em análise não viola o modelo acusatório e sua indissociável separação das funções dos atores processuais.
Na lição de Pedro de Oliveira Magalhães, tendo em vista que o Ministério Público, ao oferecer o acordo, encontra-se vinculado às condições legalmente fixadas para tanto, em sua atuação o que há, no máximo, é espécie de “discricionariedade regrada”, funcionando o ANPP como instrumento de formalização da seletividade protetiva de bens jurídicos no âmbito do sistema de justiça criminal, extraindo-se a legitimidade ministerial diretamente do texto constitucional[10].
Demais disso, a desnecessidade de admissão de culpa reforça que não há, tecnicamente, qualquer espécie de julgamento antecipado. Uma vez formada a culpa do investigado, exigir-se-ia a aplicação de pena propriamente dita, o que demandaria o exercício da jurisdição.
Ao impor como condição não se tratar de hipótese de arquivamento da investigação criminal, o caput do art. 28-A do CPP deixa claro que ao Parquet somente é aberta a possibilidade de acordo quando presentes os elementos indiciários que autorizam o oferecimento de denúncia. Necessário, pois, que o MP já tenha formada sua opinio delicti sobre o caso, o que funciona como controle de eventual excesso de acusação.
Em verdade, o que percebe é que o oferecimento de proposta de ANPP mais se aproxima do ato acusatório em si do que do julgamento da demanda, pois em ambos, ANPP e oferecimento de denúncia, reserva-se ao Ministério Público, com base na prova dos autos e em observância dos requisitos legalmente fixados para tanto, a atribuição de intervir diretamente na persecução criminal.
Nesse novo arranjo da estrutura acusatória, a lição de Vladimir Aras sobre a atuação do órgão ministerial na salvaguarda do interesse público na persecução criminal é lapidar:
(...) o Ministério Público é, assim, um promotor da política criminal do Estado. Não é mero espectador, não é autômato da lei penal. Na condição de agente político do Estado, tem o dever de discernir a presença, ou não, do interesse público na persecução criminal em juízo, ou se, diante da franquia do art. 129, I, da Constituição, combinado com o art. 28 do CPP, deixará de proceder à ação penal, para encaminhar a causa penal a soluções alternativas, não judicializando a pretensão punitiva. Entre as soluções estão a opção pela Justiça Restaurativa ou pelos acordos penais[11].
Além disso, não fosse conferida ao MP a atribuição de oferecer a proposta de firmatura de ANPP, a aplicação do instituto fatalmente restaria obstada, pois a nenhum dos demais personagens da persecução criminal seria possível outorgar tal poder, seja ao defensor, por questão de lógica, seja ao juiz, em atenção à preservação da imparcialidade e ao necessário afastamento de resquícios do velho inquisitismo.
Frise-se ainda que, devidamente assistido por advogado, não há qualquer obrigatoriedade de o investigado aceitar a proposta de acordo, podendo livremente optar pelo regular andamento da persecução para ao final, após a devida instrução probatória, demonstrar a insubsistência das alegações constantes da denúncia. Caso opte pela celebração, o cumprimento integral do ANPP gera a extinção da punibilidade, consequência claramente mais benéfica do que os efeitos decorrentes do eventual cumprimento de pena.
Em acréscimo, merece destaque que o ANPP é submetido ao crivo do Judiciário, pois, após a firmatura, há sua submissão ao magistrado competente, que analisará a voluntariedade e legalidade do ato e, então, proferirá ou não juízo homologatório, em evidência clara de que não há de se falar de concentração do poder de acusar e julgar em um só personagem da relação processual.
Com efeito, uma vez demonstrada sua adequação ao sistema pátrio, o instituto de justiça negociada ora em análise vai ao encontro da Resolução n. 45/1990 da Assembleia Geral das Nações Unidas (Regras de Tóquio), que, em seu item 5.1, recomenda expressamente que:
Quando tal for adequado e compatível com o sistema jurídico do país em causa, a polícia, o Ministério Público ou outros serviços encarregados da justiça penal devem dispor de competência para arquivar os processos instaurados contra o delinquente se considerarem que não é necessário prosseguir com o caso para efeitos de protecção da sociedade, prevenção do crime ou promoção do respeito pela lei ou pelos direitos das vítimas. Para decidir sobre a adequação do arquivamento ou decisão do processo, será estabelecido um conjunto de critérios em cada sistema jurídico. No caso de infracções menores, o Ministério Público pode impor, sendo caso disso, medidas não privativas de liberdade adequadas.
6 Conclusão
Face ao exposto, conclui-se que o Acordo de Não Persecução Penal, longe de significar ofensa ou, mesmo, enfraquecimento da estrutura do sistema acusatório preconizado pela Constituição Federal, em verdade – através da atualização de seus dogmas, de modo a tornar a persecução penal mais célere e efetiva – o reafirma como modelo democrático-persecutório por excelência.
Sem solapar direitos e garantias fundamentais, é através da releitura do sistema acusatório, portanto, que a persecutio criminis in judicio encontra caminho aberto para a modernização dogmática, concentrando-se no Ministério Público, com legitimidade extraível de sua função de titular da ação penal, a atribuição de em concreto selecionar as condutas cuja prática, apesar de formalmente típica, não justifica a movimentação do aparato judiciário para prevenção e repressão do crime.
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[1] SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2002. p. 148.
[2] STF. Plenário. RE 593727/MG, red. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, julgado em 14/5/2015.
[3] ESTRADA, Rafael Luiz Duque. Transação Penal no Brasil e nos Estados Unidos. Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: < https://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/trabalhos_conclusao/2semestre2009/trabalhos_22009/RafaelLuizDuqueEstrada.pdf>. Acesso em: 11,10/2021, 18:52:04.
[4] LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação especial criminal comentada. Volume único. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 629.
[5] Idem, p. 629.
[6] SOUZA, Renee do Ó. A opção político-criminal do Acordo de Não Persecução Penal como instrumento de segurança jurídica. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro nº 74, out./dez. 2019, pg. 179. Disponível em: < https://www.mprj.mp.br/documents/20184/1506380/Renee+do+%C3%93+Souza.pdf>. Acesso em: 10/10/2021, 19:38:10.
[7] Idem.
[8] BRITO, Alexis Couto de; FABRETTI, Humberto Barrionuevo; LIMA, Marco Antônio Ferreira. Processo Penal Brasileiro. 3. ed. – São Paulo: Atlas, 2015, p. 27.
[9] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 23. ed. – São Paulo: Atlas, 2015, p. 49.
[10] MAGALHÃES, Pedro de Oliveira. Breves considerações sobre o acordo de não persecução penal. Disponível em: < https://s3.meusitejuridico.com.br/2018/03/9275c5b7-acordo-de-nao-persecucao-penal-pedro-de-oliveira-magalhaes.pdf>. Acesso em: 15/11/2021, 08:12:00.
[11] ARAS, Vladimir. Acordos penais no Brasil: uma análise à luz do direito comparado. In: Cunha, Rogério Sanches et al. (coord.). Acordo de não persecução penal. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 263.
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Sergipe e especialista em Ciências Criminais pela Faculdade Guanambi/BA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOTERO, Victor Figueiredo. Acordo de não persecução penal e viabilidade constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 maio 2022, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58278/acordo-de-no-persecuo-penal-e-viabilidade-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
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