PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN[1]
(coautor)
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo principal a análise da atuação do Supremo Tribunal Federal com base nos preceitos estabelecidos na Teoria dos Sistemas, proposta por Niklas Luhmann. Utilizando-se do método de pesquisa bibliográfica, buscou-se traçar um paralelo entre os preceitos da referida teoria e o posicionamento atual da Corte Constitucional, considerando pontos como o ativismo judicial hoje em voga. Com base na teoria luhmanniana, a sociedade moderna é composta por subsistemas autopoiéticos — dentre eles, o Direito. Nesse contexto, a atuação do Judiciário, principalmente do Supremo Tribunal Federal, é de extrema relevância, uma vez que possui a difícil tarefa e responsabilidade de interpretar as normas constitucionais e aplica-las nos casos concretos - considerando, ainda, as influências dos outros ramos como a economia e a política, mas sem se olvidar dos parâmetros legais e posicionamentos já sedimentados. Assim, necessária uma reflexão sobre o tema, à luz da teoria dos sistemas.
Palavras-chave: Teoria dos Sistemas; Juiz Constitucional.
ABSTRACT: The main goal of this article is to analyze the role of the Supreme Court based on the precepts established in the Systems Theory, proposed by Niklas Luhmann. Using the bibliographic research method, the idea was to draw a parallel between the precepts of that theory and the position of the Constitutional Court, considering concepts like the “judicial activism”, well-known and used nowadays. Based on the Luhmann’s social theory, the modern society is composed by autopoietic subsystems, like the “Law System”. In this scenario, the performance of the Judiciary, especially the Supreme Court, is extremely relevant, once it has a difficult responsibility to interpret constitutional rules, considering the influences of the environment, incorporating them, but without forgetting the legal parameters already established. Therefore, a reflection of the theme, based on the Systems Theory, is necessary.
Keywords: Systems Theory; Constitutional Judge.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Breve explicação e contextualização da teoria dos sistemas. 3. A Figura do Juiz Constitucional. 4. A Atuação do Supremo Tribunal Federal à luz da teoria dos sistemas. 5. Conclusão
1.INTRODUÇÃO
A teoria dos sistemas, elaborada pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann, compreende a sociedade moderna como um sistema universal, formado por subsistemas diferenciados funcionalmente, que desempenham determinadas funções específicas – dentre eles, figuram a economia, a política, a religião, a educação e o direito.
Tais sistemas se organizam de forma autônoma; operam com critérios internos e autopoiéticos, ou seja, se autorreproduzem a partir de elementos internos; possuem suas funções e códigos próprios, mas ao mesmo tempo, são influenciados e “irritados” uns pelos outros e pelo ambiente como um todo.
Em outras palavras – e no autorizado magistério de Gianpaolo Poggio Smanio e Humberto Barrionuevo Fabretti[2] – o direito é dinâmico e não estático, configurando um sistema aberto e não fechado. Dessa forma, ele deve estar aberto às mudanças sociais e ao avanço científico. Trata-se, portanto, na teoria luhmanniana, de um sistema autopoiético, vale dizer, ele produz, em constante mutação, sua própria estrutura e todos os elementos que o compõem.
Como salienta Caroline de Morais Kinzler[3], o sistema deve se adaptar a uma dupla complexidade: a do ambiente e a dele mesmo. Se o sistema não se preocupasse em diminuir a complexidade do ambiente, selecionando elementos, e a sua própria, auto diferenciando-se, seria diluído pelo caos, por não conseguir lidar com o excesso de possibilidades. Se selecionasse tudo, não seria diferente do ambiente. Deixaria de ser sistema. O sistema deve constantemente estar afirmando-se como um sistema diferente, para não ser confundido com o ambiente. A diferença entre sistema e ambiente é uma condição lógica para a autorreferência, porque não se poderia falar em um “si mesmo” se não existisse nada mais além deste si mesmo.
Assim, tem-se que, conforme supra exposto, o sistema jurídico (ou o Direito) é considerado, por essa teoria sistêmica, um subsistema dentro do todo e a análise deste foi considerada como o foco do presente artigo.
Nesse contexto, pretendeu-se, em síntese, sob o enfoque da teoria dos sistemas, analisar a atuação da Corte Suprema no Brasil, isto é, do Supremo Tribunal Federal, com ênfase na questão do juiz constitucional e do ativismo judicial, fenômeno este de extrema relevância e aplicação na atualidade e que, bem por isso, precisa ser estudado.
Para isso, fez-se uma breve conceituação e contextualização sobre a teoria dos sistemas; sobre a ideia do juiz constitucional, bem como uma análise dos conceitos de ativismo judicial e da posição do Supremo Tribunal Federal nesse contexto para que, ao fim, fosse possível provocar a reflexão sobre a relação entre todas essas questões.
2.BREVE EXPLICAÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO DA TEORIA DOS SISTEMAS
O responsável pela criação da chamada Teoria dos Sistemas, uma das teorias sociais mais importantes do século XX, foi o sociólogo alemão Niklas Luhmann. Suas ideias, que foram estudadas e aprofundadas por outros sociólogos, também muito renomados e em diversos países, como Raffaele de Giorgi na Itália, permanecem vigentes e igualmente relevantes até hoje, mostrando-se de extrema valia para diversas áreas do conhecimento, principalmente para o direito e a sociologia.
Segundo a teoria em questão, pautada na ideia principal de diferenciação funcional, a sociedade moderna tem como sua característica principal a sua formação como um sistema global complexo, formado por subsistemas, que se diferenciam funcionalmente – entre eles, destacam-se a política, a ciência, a educação, o direito e a economia.
Cada uma dessas esferas é, simultânea e paradoxalmente, operativamente fechada e cognitivamente aberta. Isso significa que, embora esses sistemas se auto-organizem e funcionem por si sós, cada qual com sua função e seus objetivos, todos são, também, influenciados e “irritados” pelos outros subsistemas e pelos demais componentes da sociedade.
Para Niklas Luhmann, todavia, não há hierarquia entre quaisquer dos sistemas, sendo certo que a diferença entre eles consiste, exatamente, nos seus funcionamentos, nas suas formas de comunicação e de organização, além das próprias estruturas e instituições inerentes a cada um desses sistemas.
Ademais, tais sistemas devem ser considerados, segundo Luhmann, como fechados operacionalmente e abertos cognitivamente – isso se dá com base na ideia de que todo processo de comunicação envolve um jogo de reciprocidade de expectativas; esse processo social caracteriza a sociedade, a comunicação, e é marcado por estruturas que facilitem esse jogo de expectativas. Uma situação comunicativa envolve um jogo de expectativas e há estruturas que estabilizam esse jogo.
O direito, nesse contexto, pode ser definido como um sistema comunicativo autopoiético - porque se auto reproduz a partir de elementos internos ao próprio sistema jurídico -, que serve para o controle da complexidade e da contingência da sociedade de risco, por meio da estabilização das expectativas normativas do comportamento humano.
Nesse sentido, segundo Maria da Conceição Ferreira da Cunha, as teorias social-sistêmicas:
[...] vêem a sociedade como um complexo sistema de interações, competindo ao Direito conferir-lhes estabilidade e, assim, garantir a funcionalidade do sistema. Para tal, o Direito distribui funções, gerando expectativas e, quando estas são violadas, reafirma-as através da sanção, para que deste modo se mantenha a imprescindível confiança na funcionalidade do sistema.[4]
Em outras palavras, a função do direito, de modo genérico, seria a de promover a generalização congruente de expectativas normativas, o que somente é possível por meio da comunicação jurídica.
A partir de tal conclusão, tem-se que a função do direito e o código comunicacional por trás deste são os mecanismos comunicativos que garantem o monopólio exercido pela comunicação jurídica.
A função e o código do direito são, então, exclusivos e ambos se mobilizam para resolver um problema social específico; solucionar uma indagação pontual, que consiste em saber se algo está ou não em conformidade com o direito – ou seja, se é lícito ou ilícito.
Desse modo, afirmar o direito de alguém é, simultaneamente, afirmar o não direito do outro, o que expressa mais um paradoxo, dentre tantos existentes na teoria dos sistemas. Do mesmo modo, estabelecer que alguém deve indenizar o outro, em razão de ato ilícito ou não conforme com o direito, significa dizer que a parte que pleiteou a indenização tem direito e, aquele que restou vencido, não o tem.
Nessa toada, bem explica Ricardo Maurício Freire Soares:
O sistema jurídico tornou-se, assim, um subsistema social funcionalmente diferenciado graças ao desenvolvimento de um código binário próprio (legal/ilegal), que, operando como centro de gravidade de uma rede circular e fechada de operações sistêmicas, garante a originária autorreprodução recursiva de seus elementos básicos e a sua autonomia em face dos restantes subsistemas que perfazem a rede comunicativa da sociedade humana.[5]
Assim, tem-se que cada subsistema possui a sua função e o seu código, que exercem a mesma função principal, qual seja, a de conferir fechamento operativo ao sistema e conferir a limitação do subsistema – o código binário no sistema político é, por exemplo, o paradoxo poder/não poder, enquanto que na economia, vigora a ideia do possuir/não possuir.
Convém ressaltar, nesse ponto, a ideia de que um sistema não desempenha uma função para ele próprio, mas sim para a sociedade como um todo, na medida em que trata de um problema desta, e por isso é influenciado pelos demais subsistemas sociais, sendo que todos eles compõem um sistema global.
Outro motivo pelo qual há essa “influência mútua” consiste justamente na transformação da sociedade, suas adaptações e mudanças constantes, sendo que a comunicação, elemento inerente àquela, exerce um papel essencial nessa dinâmica. Como já exposto, cada sistema possui a sua própria forma de comunicação, seja interna ou externa, também.
Aliada a esses pontos, outra ideia importante a ser explorada com base na teoria dos sistemas – e de extrema relevância, principalmente, para o desenvolvimento da ideia do presente artigo – é o papel das constituições nesse contexto.
Considerando que os subsistemas operam com critérios fechados, mas são cognitivamente abertos, como já exposto, a constituição funciona, segundo a teoria dos sistemas, como um mecanismo de acoplamento estrutural, principalmente entre o sistema jurídico e o político. É, assim, uma espécie de instrumento de aproximação, de conexão, entre ambos. Ao mesmo tempo que possui referido papel, a constituição serve, também, para manter a integridade, a unidade, o fechamento operacional de cada um dos sistemas, fazendo com que um não se confunda com o outro.
As constituições modernas, então, têm a função de atrair o direito para a política – no que for pertinente, por óbvio - e, ao mesmo tempo, elencar critérios para separá-los. Sendo assim, estas criam limites ao sistema político e, simultaneamente, também para o sistema jurídico, delimitando as possibilidades existentes e plausíveis dentro do universo normativo.
Como bem explica Raffaele de Giorgi:
A constituição, então, é um texto jurídico que fixa e textualiza questões políticas: ela trata juridicamente de problemas políticos, determina a ordem política como ordem jurídica. Na constituição, então, em sua estrutura autológica, opera-se uma referência externa em relação a qual, não obstante, a constituição como texto jurídico se considera imunizada em relação ao direito, justo porque a constituição determina os limites e fixa as barreiras ao tratamento jurídico dos problemas políticos que não são relativos às mesmas condições do atuar político como atuar diferenciado comparado ao atuar jurídico. A constituição, logo, opera como memória da unidade da diferença entre política e direito. Memória que não significa recordação. Memória é uma função sempre presente em todas as vezes que se reatualiza o sentido através do texto. Memória não é reatualização do passado, operação impossível; ela é a função que permite construir sentido no presente e atribuir este sentido à presença do texto.[6]
Considerando, então, a ideia de funcionamento da sociedade à luz da teoria dos sistemas, as mudanças operadas diariamente naquela, bem como a função das constituições dentro desse contexto, passa-se à análise da figura que é responsável pela interpretação da constituição – o chamado juiz constitucional - e como sua atuação se dá na realidade brasileira.
3.A FIGURA DO JUIZ CONSTITUCIONAL
Conforme já expresso, o sistema jurídico é autopoiético, o que significa afirmar que o direito cria o próprio direito, o aplica e, a princípio, também o interpreta. Nesse sentido, a constituição se mostra, também, como um diploma autológico, na medida em que fala de si e, “refletindo-se como autológica, a constituição apresenta-se como o início: o início do tempo do direito e o início do tempo da política. A constituição é a memória desta temporalidade”.[7]
A constituição, então, descreve a realidade que enxerga, as mudanças nela contidas, interpretando o que vê e imputando sentido às suas disposições, com base nisso. Nas palavras de Raffaele de Giorgi[8]:
(a constituição) é sempre o resultado de um ato fundador. Um texto que é um instrumento para abrir o futuro. Ela, com efeito, é um instrumento jurídico para o disciplinamento da política e ao mesmo tempo é um instrumento político para a construção de formas de realidade, de comportamentos, de eventos. Na constituição, conserva-se, esconde-se, subtrai-se do olhar a unidade da diferença de direito e política.
Simultaneamente, o direito continua sendo o subsistema responsável pela promoção da generalização congruente de expectativas normais, ideia esta que também é abrangida nas constituições, como os diplomas de maior importância dentro do ordenamento jurídico e tem relação intrínseca com o próprio preceito de segurança jurídica.
Conforme é cediço, as mudanças sociais acontecem diariamente, e o direito, por muitas vezes, não consegue acompanhá-las – isso ocorre, principalmente, mas não apenas, no âmbito criminal – e é exatamente por essa razão que a figura e atuação do Poder Judiciário se mostra tão importante.
Cabe aos membros do referido poder a realização da adequação, da coadunação e da conciliação entre os fatos concretos e o direito, considerando os parâmetros legais, o ordenamento jurídico como um todo, os precedentes já estabelecidos, não se olvidando, todavia, das necessidades de cada caso concreto e, também, as necessidades sociais que imperam.
Nesse sentido, na atuação jurisdicional, tem-se que, muitas vezes, não são considerados apenas componentes, elementos, do próprio sistema jurídico – como as leis e diplomas legais diversos -, dada a insuficiência, em alguns casos, de soluções “estritamente jurídicas” que satisfaçam as partes ou que promovam justiça de forma efetiva.
Em diversos momentos, aspectos sociais intrínsecos a outras esferas e subsistemas, principalmente os da economia e da política, interferem na realidade de uma sociedade e, consequentemente, também o fazem no direito e na atuação do magistrado.
Considerando, ainda, que os subsistemas sociais são dotados de instrumentos de atualização – quais sejam, os acoplamentos estruturais que realizam a ligação entre estes, mas que ao mesmo tempo impõe limites à essa união –, os tribunais se apresentam como os responsáveis pela atualização do sistema jurídico, por meio dos entendimentos que ali são proferidos e posteriormente sedimentados.
Ao interpretarem as normas, os tribunais acabam por criar o Direito, ainda que no caso concreto e, para isso, consideram também as informações e necessidades presentes na sociedade, além das irritações provocadas pelos demais subsistemas. Ao mesmo tempo, os julgadores tentam garantir uma determinada expectativa normativa e estabelecer vínculos à sua própria atuação, por meio de precedentes, que não podem ser alterados a qualquer tempo e/ou de qualquer modo.
Nesse cenário, o juiz constitucional, integrante dos tribunais constitucionais (tais como o Supremo Tribunal Federal, no Brasil), possui como função primordial “reativar continuamente este processo de construção da realidade. O juiz interpreta interpretações, redescreve descrições, reabre começos, reencerra circularidades.”[9]. Cabe ao magistrado, então, a construção e a reconstrução dos sentidos, dos entendimentos, considerando os diversos aspectos já citados.
A questão que surge, então, é como adequar o ordenamento jurídico, positivado e bem estruturado, às transformações e reivindicações sociais diárias de modo coerente e justo sem, ainda, culminar na tão temida insegurança jurídica? Ao que parece, este é o maior desafio do magistrado da sociedade moderna, principalmente no contexto jurídico-social brasileiro.
Primeiramente, o juiz constitucional precisa ir além da aplicação literal das normas jurídicas, uma vez que estas, quando aplicadas ao caso concreto, nem sempre se mostram suficientes ou culminam em um resultado justo para as partes. Ao mesmo tempo, o Judiciário não pode inventar soluções criativas e individualizadas que não tenham qualquer respaldo jurídico e/ou careçam de critérios racionais e razoáveis. Não se pode depender de um suposto “bom senso” ou padrão de atuação dos magistrados apenas conforme as suas convicções internas.
Nesse contexto, o Estado Democrático de Direito Brasileiro e os preceitos elencados na própria Constituição Federal parecem estabelecer alguns parâmetros que, embora nem sempre sejam considerados na prática, podem – e deveriam - servir como uma espécie de moldura, de respaldo ético e jurídico para a atuação dos juízes em todas as instâncias judiciais.
Assim, princípios e preceitos constitucionalmente consagrados como, principalmente, o princípio da dignidade humana (fundamento da nossa República Federativa do Brasil), o princípio da proporcionalidade, a regra da razoabilidade, o princípio da humanidade e a própria necessidade de motivação e fundamentação das decisões judiciais, elencada no artigo 93, inciso IX da Constituição Federal[10], parecem ser parâmetros que, se bem utilizados, podem auxiliar e servir de baliza para uma atuação judicial coerente, preocupada com o contexto social e jurídico como um todo, além do caso concreto.
De todo modo, essas “molduras” legais se mostram, por vezes, vagas, insuficientes e até paradoxais, podendo ser interpretadas de formas distintas em cada caso concreto, a depender de quem as interpreta e de que modo isso é aplicado pelos magistrados.
4.A ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL À LUZ DA TEORIA DOS SISTEMAS
Nesse contexto, tem-se o Supremo Tribunal Federal como o órgão da cúpula do Judiciário Brasileiro. Considerado o “guardião da Constituição Federal”, o STF possui como responsabilidade e objetivos principais a interpretação e aplicação daquilo que é previsto na Carta Magna, em casos concretos cuja repercussão é notória e relevante, de modo que, como é provocada, a Corte tem o dever de agir e se posicionar sobre determinados temas.
Segundo a teoria dos sistemas, então, como intérpretes da Constituição, os ministros redescrevem, de modo contínuo, a realidade da Carta Magna e dos preceitos ali consagrados, reestabelecendo os espaços da forma da diferenciação social e construindo uma “mudança na orientação da justiça constitucional”.[11]
A Constituição, então, não se mostra isolada da esfera do Direito – pelo contrário. Conforme já mencionado, embora “fale de si” e do Direito, o referido diploma reflete os anseios e necessidades sociais, que ultrapassam a esfera jurídica e incorporam diversos preceitos e ideias de ramos e subsistemas diferentes, como, principalmente, a política e a economia.
O mesmo se dá quando se fala sobre o juiz constitucional. Isso porque, ao interpretar as normas e aplicar os preceitos estabelecidos na Carta Magna, o magistrado não pode – e nem conseguiria, se assim desejasse -, se distanciar totalmente da sociedade em que está inserido. Não há, assim, a possibilidade de desconsiderar os fatos sociais e eventuais repercussões econômicas e políticas que podem advir de uma decisão judicial, tampouco aquelas que já interferem de antemão na própria consciência do juiz e, claro, nas suas decisões, ainda que intrinsecamente.
A realidade atual brasileira, por sua vez, demonstra com nitidez que, atualmente, o Poder Judiciário está no foco de diversas questões. Por exemplo, nunca se falou tanto nas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nos ministros que o compõem, suas opiniões e a repercussão de tudo isso - não apenas entre os juristas, mas sim em todo o cenário social, político e econômico.
A mídia é uma das principais responsáveis por isso, uma vez que atua de modo extremamente relevante nesse contexto, já que é a responsável por disseminar os resultados dos julgamentos e diversas outras questões referentes à Corte Constitucional. Ressalta-se, porém, que embora esse seja o papel midiático, por muitas vezes os personagens que integram referida área acabam por analisar e emitir opiniões equivocadas ou, pelo menos, eivadas de parcialidade e que, por vezes, carecem de uma análise pormenorizada e pautada, essencialmente, no aspecto jurídico.
Essa dinâmica intensa de atuação do Supremo Tribunal Federal acaba, também, por interferir nos outros subsistemas e, com isso, na própria atuação dos Poderes Executivo e Legislativo, além de impactar ativamente na sociedade como um todo.
Dada essa maior exposição e até difusão ampliada do que se decide, diariamente, na referida Corte, os membros da sociedade civil acabam por se ver no direito de também pressionar os ministros, analisar suas posturas e, claro, julgá-los como juízes e como pessoas, ainda que de modo superficial.
Decorre, de todo o exposto, a noção de que há uma dificuldade relevante na delimitação da função e do papel de cada sistema – político, econômico e jurídico – e qual é o âmbito de atuação e interferência destes.
A pressão midiática, social e dos outros subsistemas acaba por, como decorrência lógica, “empoderar” o subsistema do Direito de modo exagerado e fragiliza, em verdade, a atuação de cada um destes como entidade autônoma.
Não por acaso, a ideia de ativismo judicial surge exatamente nesse cenário. Tal conceito consiste, basicamente, em uma participação mais ativa e ampla do Judiciário, com o fim de concretizar valores e objetivos constitucionais, interferindo de forma relevante na atuação dos outros poderes.
Segundo Luís Roberto Barroso, um dos principais nomes de referência no tema:
A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas.[12]
Assim, tem-se que embora o ativismo judicial não seja um fenômeno exclusivamente brasileiro, o que se observa, atualmente, é que a atuação do Judiciário, principalmente do Supremo Tribunal Federal, pautada nessa ideia, muitas vezes ultrapassa a mera interpretação das normas jurídicas e da Constituição Federal, solucionando problemas de forma criativa e, por vezes, causando surpresa.
Importante consignar que uma postura pró ativa por parte dos Tribunais, não se mostra, a princípio, de todo negativa. Afinal, resultados importantes e mais justos podem ser alcançados com essa forma de atuação.
Porém, a mesma atitude (ativista), quando exagerada e desprovida de fundamentos jurídicos, pode transcender os limites estabelecidos pela própria Constituição Federal, possibilitando julgamentos e considerando condutas que sequer são previstos (ou admitidos) em/por lei.
Como um exemplo muito ilustrativo da postura ativista do Supremo Tribunal Federal - não necessariamente negativa, conforme supra mencionado - destaca-se a tese firmada na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26[13], do Distrito Federal.
De forma sintética, na ação em questão, o Partido Popular Socialista, ora impetrante, pleiteou o fim da situação de inércia do Estado em relação à edição de diplomas legislativos que previssem a punição dos atos de discriminação praticados em razão da orientação sexual ou da identidade de gênero da vítima.
Diante do pleito em apreço, o Supremo Tribunal Federal decidiu, então, que:
Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989. [14]
Embora necessária e louvável, do ponto de vista ético e moral, a “criminalização” de atos transfóbicos e correlatos, fato é que o Supremo Tribunal Federal, ao decidir equiparar condutas ao racismo, muito embora o tenha feito com cautela, de forma extremamente fundamentada e com o objetivo de conferir maior proteção à uma grande parcela da população, pode ter ultrapassado as molduras da atuação judicial – pelo menos, considerando uma atuação mais tradicional.
Isso porque, apesar de o órgão ser competente tecnicamente para julgar ações como esta e buscar a preservação dos direitos fundamentais e humanos, o Tribunal fez uma interpretação, no mínimo, arriscada (sem a abordagem específica, ainda, da repercussão da decisão no âmbito penal e os questionamentos quanto ao uso da analogia na referida esfera).
Convém destacar, ainda, a regra prevista ao artigo 103, §2º da Constituição Federal, que estabelece que, na medida em que declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente (legislativo) para que este tome as providências necessárias.
Sendo assim, embora tenha havido demora dos órgãos legislativos para o tratamento da questão da transfobia e demais correlatas, a postura do Supremo Tribunal Federal pode ser questionada quanto à sua legalidade e, principalmente, quanto ao respeito à separação de poderes e, ainda como consequência, à delimitação dos subsistemas presentes na nossa sociedade. Nesse sentido:
A existência e manutenção do sistema jurídico pressupõe sua capacidade de autoimunização contra “pressões ambientais”. Por outros termos: é óbvio que eventualmente um juiz possa tomar em consideração a opinião pública ou aquela publicada para formular seu juízo. Elaborará, no entanto, sua sentença com “argumentos jurídicos”, ocultando sua “fonte de livre convencimento”. Se essa exceção, contudo, se torna predominante, ocorre a 47 extrapolação dos confins do direito, porque os códigos com os quais opera lhes são absolutamente impróprios – no caso do exemplo, os códigos da política (familiar/não familiar, maioria/minoria, amigo/inimigo) ou da moral (bom/mau) –, e dessa forma podem cancelar a diferenciação que existe entre o sistema jurídico e seu ambiente.[15]
Desse modo, reitera-se que o ativismo judicial, assim, provoca a reestruturação do subsistema do direito, baseada no código binário direito/não direito incorporando informações do ambiente – e dos demais subsistemas - para o subsistema jurídico, que as absorve, de forma intencional ou, por vezes, sem intenção.
No caso da decisão proferida na ADO 26/DF, ao mesmo tempo em que esta trouxe uma satisfação social muito relevante e uma proteção de direitos humanos e garantias fundamentais, surge a reflexão: o que teria ocorrido se esse posicionamento judicial não obtivesse uma repercussão social e midiática favorável? Qual seria a repercussão na sociedade, diante de uma atuação extremamente ativista e, principalmente, qual o resultado, a longo prazo, dessa interferência mútua entre os poderes, dessa conexão – que pode ser demasiada - entre os subsistemas, no caso, político e jurídico?
Não se sabe. O que se pode entender, todavia, é que houve uma interferência clara das outras esferas sociais no Poder Judiciário – o que, mais uma vez, não se mostra absolutamente negativo, mas exige cautela e atenção.
Todavia, é necessária a reflexão sobre até que ponto o subsistema jurídico pode criar e recriar entendimentos sem que isso culmine em insegurança jurídica – o que, por óbvio, já existe no âmbito do Direito Brasileiro e é, frequentemente, reforçado pelo nosso Judiciário, nas diferentes instâncias.
5.CONCLUSÃO
Desse modo, ante todas as ideias acima expostas, tem-se que, conforme já supra mencionado, a teoria dos sistemas consiste, basicamente, na ideia de que a sociedade moderna é formada por diversos subsistemas autopoiéticos, que se irritam e influenciam mutuamente, por meio da comunicação, sendo que cada um deles tem a sua própria dinâmica.
No caso do direito, o subsistema jurídico constrói o que ele mesmo irá utilizar como realidade, interpreta o que enxerga e, assim, cria o ordenamento que produz consequências internas e externas que atingem a sociedade como um todo.
Nesse cenário, o papel do magistrado e dos tribunais é de grande relevância e deve, exatamente por isso, ser exercido de forma cautelosa. As informações e transformações do mundo devem – e são - incorporadas ao sistema, uma vez que o direito não pode ser estático e ignorar a realidade social.
Porém, tal necessidade não implica na conclusão de que o ambiente e as decisões de outras esferas sociais podem influenciar de forma exagerada, sem quaisquer restrições ou limites nas decisões judiciais e em todo o funcionamento do Judiciário.
Em outras palavras, aspectos políticos, econômicos e sociais não podem preponderar sobre as normas jurídicas e precedentes já sedimentados. Atualizar o Direito é algo importante, mas não a todo e qualquer custo, sob pena das consequências atingirem a sociedade de forma generalizada.
Cabe ao magistrado, portanto, sopesar as necessidades do caso concreto e o que se considera justo neste, sempre com respaldo na legislação e nas ideias gerais propagadas pelo Direito e pelos próprios princípios consagrados constitucionalmente, que bem atuam como formas de embasar e emoldurar a atividade jurídica como um todo.
Tem-se, assim, que o mundo atual exibe novos paradoxos, novos desafios, com os quais o juiz constitucional e os tribunais se deparam diariamente.
O ativismo judicial pode ser um instrumento, um mecanismo para enfrentá-los, desde que utilizado com racionalidade e balizado pelo próprio ordenamento jurídico e os princípios ora estabelecidos (intrínsecos ou extrínsecos), considerando sempre os riscos que as decisões tomadas envolvem e a sua possível interferência e repercussão na sociedade.
O direito é um subsistema dinâmico, não podendo se manter estático ou imutável. Conforme acima exposto, é um sistema cognitivamente aberto e operativamente fechado. Dessa forma, ele deve estar aberto às mudanças sociais e ao avanço científico. Trata-se, portanto, na teoria luhmanniana, de um sistema autopoiético, vale dizer, ele produz, em constante mutação, sua própria estrutura e todos os elementos que o compõem.
Nesse sentido, a teoria dos sistemas, com toda sua complexidade e os pressupostos nela contidos, pode – e deve – ser mais estudada, aprofundada e, quando cabível, aplicada pelo Tribunais e magistrados brasileiros.
Ainda nessa toada, a atuação dos juízes constitucionais, embora seja uma tarefa árdua, pode (e deve) ser fundamentada e bem equilibrada pelos conceitos sistêmicos, o que se mostra como uma medida benéfica para a sociedade como um todo.
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[1] Procurador de Justiça Criminal no Ministério Público do Estado de São Paulo. Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2001). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1997). Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (1985). Professor Concursado Assistente-Doutor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Concursado no Programa de Pós-graduação stricto sensu da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na sub-área de Processo Penal.
[2] FABRETTI, Humberto Barrionuevo; SMANIO, Gianpaolo Poggio. Introdução ao Direito Penal: Criminologia, Princípio e Cidadania. São Paulo: Atlas, 2010, p. 119.
[3] KINZLER, Caroline de Moraes. A Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann. Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 9, n. 16, p. 123-136, 2004.
[4] CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da. Constituição e Crime: uma perspectiva da criminalização e da descriminalização. Porto/PT: Universidade Católica Portuguesa, 1995, p. 91.
[5] SOARES, Ricardo Maurício Freire. Sociologia e Antropologia do Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 2019. Disponível em: <https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788553612826/>. Acesso em: 30/11/2020.
[6] DE GIORGI, Raffaele. O desafio do juiz constitucional. Revista Campo Jurídico, Bahia, v. 3, n. 2, p. 107/120, 2015. Disponível em: <http://www.fasb.edu.br/revista/index.php/campojuridico/article/view/76/75>. Acesso em 28/10/2020.
[7] DE GIORGI, Raffaele, op. cit., p. 116.
[8] Ibid, p. 116.
[9] DE GIORGI, Raffaele, op. cit., p. 117.
[10] BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm>. Acesso em: 05/12/2020.
[11] DE GIORGI, Raffaele, op. cit., p. 118.
[12] BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Revista do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará. Fortaleza, v. 5, n. 8, p. 11-22, 2009. Disponível em: <https://www.direitofranca.br/direitonovo/FKCEimagens/file/ArtigoBarroso_para_Selecao.pdf>. Acesso em 04/12/2020.
[13] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26/DF. Relator: Ministro Celso de Mello, 06 de outubro de 2020. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15344606459&ext=.pdf:>. Acesso em 05/12/2020.
[14] BRASIL, op. cit., p. 5, grifo nosso.
[15] VASCONCELOS, Diego de Paiva. O que garante(m) as garantias?: A formação do conceito de garantias fundamentais no constitucionalismo moderno. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.
Advogada criminalista, formada na PUC-SP; mestranda em Direito Processual Penal na PUC-SP. Assistente acadêmica voluntária também na PUC-SP.
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