RESUMO: Objetiva o presente articulado traçar, de modo conciso porém eficiente, o panorama atual do sistema de precedentes na legislação processual brasileira, mormente após as alterações promovidas nas disposições adjetivas através da Lei n. 13.105/2015, que inovou no ordenamento nacional ao revogar integralmente a codificação anterior, substituindo-a pelo novo Código de Processo Civil, de modo a demonstrar que, para a aplicação adequada das novidades legislativas, faz-se imprescindível a correta compreensão conceitual dos institutos correlatos.
PALAVRAS-CHAVE: Precedentes. Institutos. Técnicas de distinção e superação.
ABSTRACT: The present article aims, in an efficient concise way, the current panorama of the system of precedents of the Brazilian procedural legislation, especially after the changes tested in the adjective provisions through Law n. 13.105/2015, which innovated in the national order by revoking the verification of a previous codification, replacing it with the new Civil Procedure Code, as well as, without adapting to the approved legislation, if necessary for the correct understanding of the related institutes.
KEYWORDS: Precedents. Institutes. Distinction and overcoming techniques.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 ORIGEM HISTÓRICA. 3 PRECEDENTES, JURISPRUDÊNCIA E SÚMULAS: DIFERENCIAÇÃO CONCEITUAL. 4 ESTABILIDADE, INTEGRIDADE E COERÊNCIA: CARACTERÍSTICAS DA JURISPRUDÊNCIA NO SISTEMA DE PRECEDENTES. 5 ESPÉCIES DE PRECEDENTES. 6 TÉCNICAS DE NÃO APLICAÇÃO JUSTIFICADA. 7 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
1 INTRODUÇÃO
De início, necessário destacar que a lógica de um sistema processual de precedentes judiciais não remonta, de modo absoluto e indissociável, à tradição jurídica do common law e, portanto, não guarda distanciamento ínsito aos ordenamentos tradicionalmente vinculados à civil law, como o brasileiro.
Se é verdade que, com vista a assegurar estabilidade e coerência, na lógica do direito anglo-saxão a construção da normatividade passa ordinariamente pela observância de decisões anteriores, dando-se papel de relevo aos costumes da comunidade jurídica, não é menos preciso afirmar que nos países de tradição romano-germânica, a exemplo do Brasil, tornar a jurisprudência estável, íntegra e coerente sempre foi em maior ou menor medida algo buscado pelo legislador, pela doutrina e pelos operadores do Direito como um todo.
Tanto é assim que no final do século XIX, com a Proclamação da República, o ordenamento nacional passou a admitir de forma expressa a existência do controle difuso de constitucionalidade, na década de 60 passaram a ser editados entendimentos sumulares e, ainda, agora mais recentemente, em 2004 se passou a admitir a figura da súmula vinculante, todas essas inovações que buscaram conferir maiores racionalidade e segurança à atividade judicante.
Sobre o tema, buscando demonstrar que a adesão brasileira à lógica dos precedentes tem acontecido de forma progressiva já há bastante tempo, veja-se a lição de Fredie Didier, Paulo Sarno e Rafael de Alexandria Oliveira, antes mesmo das alterações legislativas do ano de 2015:
No Brasil, há algumas hipóteses em que os precedentes têm força vinculante - é dizer, em que a ratio decidendi contida na fundamentação de um julgado tem força vinculante: (i) a "súmula vinculante" em matéria constitucional, editada pelo Supremo Tribunal Federal na forma do art. 103-A, da Constituição Federal, e da Lei Federal 11.417/2006, tem eficácia vinculante em relação ao próprio STF, a todos os demais órgãos jurisdicionais do país e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal; [...] (ii) o entendimento consolidado na súmula de cada um dos tribunais tem força vinculante em relação ao próprio tribunal; (iii) em função da "objetivação" do controle difuso de constitucionalidade, pensamos que os precedentes oriundos do Pleno do Supremo Tribunal Federal, em matéria de controle difuso de constitucionalidade, ainda que não submetidos ao procedimento de consolidação em súmula vinculante, têm força vinculante em relação ao próprio STF e a todos os demais órgãos jurisdicionais do país; (iv) decisão que fixa a tese para os recursos extraordinários ou especiais repetitivos (arts. 543-B e 543-C, CPC).[1]
Em âmbito doutrinário, pode-se ainda citar a Teoria do Romance em Cadeia, do americano Ronald Dworkin – de ampla aceitação em terras nacionais –, como parte desse processo de busca de aplicação do Direito de forma íntegra, o que caminha ao lado da concepção desse autor de “direito como integridade”.
O advento do Código de Processo Civil de 2015, destarte, representou a consolidação de movimento que, embora lento, remonta a várias décadas de evolução normativa, motivo pelo qual eventual ideia de que os institutos positivados pela Lei n. 13.105/2015 representam a assimilação direta e acrítica de preceitos do common law não corresponde à realidade.
Nessa linha é que, para fins de compreensão precisa do fenômeno em estudo, é dever que os diversos conceitos que circundam um sistema de precedentes sejam adequadamente explanados, de modo a possibilitar que sem dificuldades seja possível diferenciar, por exemplo, precedente, jurisprudência e súmula, bem como que as formas de superação dos precedentes, tais como o distinguishing, o overrulling, o overriding e suas subespécies, sejam aplicadas do modo devido. Trata-se, todos, de conceitos intimamente ligados e que, no entanto, não se confundem.
A importância da tarefa a que se propõe o presente artigo é, pois, evidente: com o correto entendimento dos conceitos e institutos que integram o sistema brasileiro de precedentes, assegura-se que o ordenamento seja aplicado de modo estável, íntegro e coerente, em efetiva concretização dos objetivos de movimento que, como visto, remonta ao final do século XIX.
2 ORIGEM HISTÓRICA
Apesar de inexistir precisão em vincular o sistema dos precedentes, de modo insofismável, apenas e tão somente aos ordenamentos cuja tradição remonta ao common law, é inegável que em termos estritamente históricos sua origem se encontra conectada ao direito anglo-saxão e, de forma mais específica, à teoria do stare decisis.
Para tal teoria, o direito encontra sua integridade e assegura a segurança jurídica que dele se espera quando há vinculação entre o decidido por Cortes Superiores e julgadores que, no plano hierárquico-funcional, são-lhes inferiores (perspectiva vertical), lógica que, todavia, não se limita a esse contexto e se aplica inclusive para os demais membros da Corte de origem (perspectiva horizontal).
Sobre o tema, ensina o ilustre Luiz Guilherme Marinoni:
“o stare decisis, portanto, mostra-se como uma forma distinta de restrição por precedente. Sob a a doutrina do stare decisis, uma Corte deve decidir as questões da mesma forma que ela decidiu no passado, mesmo que membros da Corte tenham mudado, ou ainda que os mesmos membros tenham mudado de ideia. Tanto quanto o precedente vertical, o stare decisis – precedente horizontal – trata de seguir as decisões de outros.”[2]
Em complemento, eis o que explana José Rogério Cruz e Tucci, in verbis:
“o fundamento desta teoria impõe aos juízes o dever funcional de seguir, nos casos sucessivos, os julgados já proferidos em situações análogos. Não é suficiente que o órgão jurisdicional encarregado de proferir a decisão examine os precedentes como subsídio persuasivo relevante, a considerar no momento de construir a sentença. Estes precedentes, na verdade, são vinculantes, mesmo que exista apenas um único pronunciamento pertinente (precedent in point) de uma Corte de hierarquia superior.”[3]
Há, portanto, imbricada relação de origem entre a doutrina do stare decisis e a lógica dos sistemas de precedentes que, ao final, terminaram por influenciar sobremaneira diversas alterações jurisprudenciais e, sobretudo, legislativas promovidas no direito brasileiro há mais de cem anos.
3 PRECEDENTES, JURISPRUDÊNCIA E SÚMULAS: DIFERENCIAÇÃO CONCEITUAL
Com a finalidade de conferir maior racionalidade à atividade judicante, o Código de Processo Civil de 2015 criou um sistema obrigatório de precedentes, de modo a potencializar os princípios da confiança (enquanto faceta objetiva da segurança jurídica), da isonomia, da celeridade e da previsibilidade processuais e, assim, arrefecer o caráter voluntarista e discricionário que, por vezes e sem respaldo na normatividade, envolve as decisões judiciais.
A função do processo, destarte, passou a ser dúplice: busca-se resolver a lide posta a julgamento e igualmente criar precedente que, com base na fundamentação desenvolvida e desde que presentes similitudes de ordem fática e jurídica, possa servir de norte a decisões posteriores.
O precedente judicial tem como elementos estruturais o caso concreto, a argumentação correspondente e, ao final, a norma jurídica geral que resulta da convergência de ambos, em construção que necessariamente passa pelo juízo dialético promovido pelo magistrado.
A normatividade do precedente, assim, repousa na norma geral criada pela relação entre o caso concreto e a argumentação jurídica em relação a ele desenvolvida, que em campo doutrinário e jurisprudencial, frise-se, é conhecida como ratio decidendi ou “razão de decidir”.
As razões de decidir funcionam, portanto, como o núcleo dos precedentes (holding, na expressão do direito norte-americano). É a partir delas que os operadores do direito analisam ser cabível ou não a extensão do quanto decidido na lide primeira a casos outros, funcionando como verdadeiras balizas das coerência, estabilidade e integridade das decisões judiciais.
É dizer: se foi decidido em certo sentido em virtude do cotejo entre a situação posta à análise do Judiciário e aquilo que, consoante fundamentos do decisum, previa a legislação, tem-se a construção de norma que, apesar de a princípio individualizada e aplicável apenas àquele caso, é potencialmente universalizável.
De mais a mais, com a formação do precedente, tem-se a possibilidade de criação de jurisprudência sobre o quanto decidido.
Isto porque, por definição, jurisprudência é a aplicação da ratio decidendi do precedente a outros casos análogos, em expansão por similitude da atividade judicante anteriormente realizada, de modo que não há jurisprudência sem precedente, mas há precedente sem jurisprudência.
Já a súmula, por seu turno, corresponde à expressão textual das razões de decidir que, na forma de jurisprudência, têm sido adotadas pelos tribunais de modo iterativo. Há, portanto, manifesta vinculação entre o contexto fático-jurídico de criação do precedente e a súmula que lhe procede, motivo pelo qual os §§1º e 2º do art. 926 do Código de Processo Civil assim dispõe, in verbis:
Art. 926 (...)
§ 1o Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
§ 2o Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.
4 ESTABILIDADE, INTEGRIDADE E COERÊNCIA: CARACTERÍSTICAS DA JURISPRUDÊNCIA NO SISTEMA DE PRECEDENTES
Prevê o caput do citado art. 926 do CPC:
Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
Trata-se das características que a jurisprudência pátria, seja vinculante ou não, deve necessariamente ter, funcionando como forma de assegurar a segurança jurídica como valor máximo e, por conseguinte, a confiança que os jurisdicionados têm no exercício da jurisdição.
No que toca à estabilidade, trata-se do dever imposto aos tribunais de se absterem de alterar ou de não aplicar a jurisprudência consolidada sem que haja, no plano concreto-normativo, justificativas suficientes para tanto.
À luz do dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais (art. 93, IX, da CF/88), do princípio da isonomia e da indispensabilidade de observância da ratio decidendi do precedente de origem, há para os julgadores a obrigação de, na eventualidade de entender que a posição já consolidada quanto a determinado tema não deve ser aplicada em virtude de particularidades fáticas ou de mudanças de ordem normativa, expor justificativas específicas para tanto, sendo-lhe vedado simplesmente ignorar a existência do precedente jurisprudencial.
Destarte, liga-se a estabilidade às amarras que, ao exigirem fundamentação clara e particularizada para a não aplicação de entendimento consolidado, obstam que seja a jurisprudência, à mercê de voluntarismos de ocasião, frequentemente modificada.
Tanto é assim que o art. 927, §4º, do CPC estatui:
§ 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
Já a integridade, por seu turno, volta-se à necessidade de serem observadas as decisões anteriores que, em termos históricos, levaram à formação do entendimento.
Isto porque, como visto, somente há propriamente jurisprudência quando a razão de decidir de um precedente passa a orientar reiteradas decisões judiciais que lhe são posteriores. É imperativo lógico, portanto, que os fundamentos das decisões que, somadas, levaram à consolidação do entendimento sejam levados em consideração quando da aplicação jurisprudencial, incluindo-se inclusive os argumentos rejeitados – os quais, apesar dessa condição, integram o decisum, do que exsurge a necessidade de constar o voto vencido no corpo do julgado.
Mostra-se importante, assim, que haja clareza na definição do modo de deliberação das Cortes Superiores, de modo a possibilitar aos jurisdicionados o exame de sua performance deliberativa com base no princípio da colegialidade e, sobretudo, na possibilidade ou não de análise de eventuais divergências na construção da decisão colegiada.
Isto porque os tribunais podem adotar ou o modelo de decisão per curiam (unitário) ou o modelo per seriatim (plural), onde, no primeiro, o decisum representa a posição que após deliberação colegiada optaram os integrantes da corte por adotar enquanto representação do entendimento da instituição como um todo, de modo uno, e o segundo corresponde à soma serial da decisão individual de cada membro julgador para, ao final, apontar-se a posição vencedora.
Sobre o tema, veja-se o escólio de Patrícia Perrone Campos Mello:
A decisão per curiam se consubstancia em um arrazoado único, que expressa o entendimento da corte como instituição. Nas cortes que adotam esse modelo é rara a apresentação de um voto vencido. O tribunal fala por uma voz única. Em razão dessa característica, as teses e os entendimentos adotados como fundamento para decidir tendem a ser mais facilmente identificáveis. Trata-se, por essa razão, de uma forma de expressar a decisão que permite o desempenho eficaz no papel da Corte de Precedentes. A clareza dos posicionamentos adotados oferece uma orientação segura aos juízos vinculados.
Nos modelos de decisão em série (seriatim), ao contrário, cada membro do colegiado produz o seu próprio voto e, ao proferi-lo, fala por si e não em nome da corte. Nessas condições, a identificação da tese que serviu de base ao julgamento passa a depender do exame detido da fundamentação de todos os votos e da identificação de um eventual entendimento comum, que tenha sido chancelado pela maioria. Há menos clareza e mais margem para imprecisões na definição do alcance do precedente produzido pela corte. A dificuldade de compreensão do entendimento adotado pela maioria pode frustrar o desempenho da função de Corte de Precedentes. Afinal, as instâncias inferiores só podem aplicar um entendimento se compreende, com precisão, seu alcance.[4]
Nessa lógica de ideias, é através do cotejo do histórico que se faz possível a utilização das técnicas de superação (overrulling e overriding) e de distinção (distinguishing), explanadas em detalhes nos tópicos subsequentes.
Lado outro, o dever de coerência consiste na imprescindibilidade de aplicar a jurisprudência consolidada, em atenção uma vez mais à isonomia, a casos que sejam análogos aos que levaram, em origem, à sua formação.
Como instrumento de reforço da confiança no sistema, trata-se de característica que, por conceito, busca evitar seja dado tratamento diferente a jurisdicionado que se encontrem em situações jurídicas similares.
Trilhando esse raciocínio, voltado sobretudo a assegurar a igualdade em sua faceta material, eis o que ensina Ronaldo Dworkin ao tratar de sua concepção de “direito como integridade”, in verbis:
“O direito como integridade nega que as manifestações do direito sejam relatos factuais do convencionalismo, voltados para o passado, ou programas instrumentais do pragmatismo jurídico, voltados para o futuro. Insiste em que as afirmações jurídicas são opiniões interpretativas que, por esse motivo, combinam elementos que se voltam tanto para o passado quanto para o futuro; interpretam a prática jurídica contemporânea como uma política em processo de desenvolvimento. Assim, o direito como integridade rejeita, por considerar inútil, a questão de se os juízes descobrem ou inventam o direito; sugere que só entendemos o raciocínio jurídico tendo em vista que os juízes fazem as duas coisas e nenhuma delas.”[5]
Tem-se, aí, a concepção dworkiana de “romance em cadeia”, segundo a qual o desenvolvimento jurisprudencial ocorre em cadeia. Explica-se: tal como uma novela, a jurisprudência é formada por capítulos (rectius: decisões) que devem necessariamente observar aquilo que foi exposto no capítulo (rectius: decisão) anterior, de modo a manter a coerência lógica da novela, em manifesto e permanente dever de autorreferência que deve estar presente inclusive quando da eventual superação de entendimentos consolidados.
5 ESPÉCIES DE PRECEDENTES
Preceitua a doutrina que os precedentes podem ser de duas espécies: vinculantes (binding precedentes) e persuasivos (persuasive precedents).
São vinculantes aqueles cuja observância é obrigatória por todos os julgadores que estão inseridos no mesmo plano de exercício jurisdicional, não podendo, em regra, haver inobservância do quanto definido pelo tribunal que lhes é hierarquicamente superior. Cite-se, a título de exemplo, o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), previsto no art. 976 do CPC.
Já os persuasivos são, por seu turno, os precedentes em relação aos quais não há a referida obrigatoriedade, muito embora a lógica do ordenamento exija que, mesmo aí, haja manifestação fundamentada acerca do porquê de não ser observado julgado anterior que trate da mesma questão jurídica.
Assim ensina Daniel Amorim Assumpção Neves:
Nem todo precedente é vinculante – obrigatório – já que continuam a existir no sistema processual brasileiro julgamentos proferidos em processo subjetivo que não decidem casos repetitivos e nem o incidente de assunção de competência, e que poderão servir como fundamento de decidir de outros julgamentos a serem proferidos supervenientemente. Tem-se, portanto, um tratamento diferente de formação de precedente a depender de sua eficácia vinculante (binding precedentes) e de sua eficácia persuasiva (persuasive precedentes). Enquanto os precedentes vinculantes são julgamentos que já nascem precedentes, os precedentes persuasivos se tornam precedentes a partir do momento em que são utilizados para fundamentar outros julgamentos.[6]
Evidencia-se, assim, que no sistema brasileiro os precedentes (sejam vinculantes, sejam persuasivos) exercem verdadeira função nomofilácica, é dizer, funcionam como instrumento de proteção da lei enquanto expressão do ordenamento jurídico como um todo e, sobretudo, do dever de uniformização e de racionalidade que lhe são inerentes.
É justamente para garantir a regular concretização da função em referência que impõe o Código de Processo Civil, também com inspiração na doutrina norte-americana, a observância irrestrita de técnicas específicas, a exemplo da distinção e da superação, para possibilitar a eventual não aplicação de precedentes.
6 TÉCNICAS DE NÃO APLICAÇÃO JUSTIFICADA
No que toca às técnicas desenvolvidas pela doutrina voltadas à regular, pois fundamentada, não aplicação dos precedentes, admissíveis em todas as suas subespécies e notadamente naqueles de natureza obrigatória, tem-se dois grupos: as técnicas de distinção e as de superação, que, por sua vez, também se dividem em espécies.
Quanto à distinção (distinguishing), trata-se do meio a ser utilizado pelo julgador para fins de demonstrar que, seja no plano dos fatos, seja no campo jurídico, há especificidades que afastam a aparente similitude com o quanto decidido no precedente e sua correspondente “razão de decidir”, o que por lógica autoriza – impõe, em verdade – a não aplicação do entendimento consolidado.
São vários os dispositivos da legislação adjetiva que apontam, com clareza, a necessidade de se adotar a técnica em comento. A título de exemplo:
Art. 1.037 (...)
§ 9º Demonstrando distinção entre a questão a ser decidida no processo e aquela a ser julgada no recurso especial ou extraordinário afetado, a parte poderá requerer o prosseguimento do seu processo.
§ 12. Reconhecida a distinção no caso: I - dos incisos I, II e IV do § 10, o próprio juiz ou relator dará prosseguimento ao processo; II - do inciso III do § 10, o relator comunicará a decisão ao presidente ou ao vice-presidente que houver determinado o sobrestamento, para que o recurso especial ou o recurso extraordinário seja encaminhado ao respectivo tribunal superior, na forma do art. 1.030, parágrafo único.
Art. 489 (...)
§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
(...)
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
No que se refere ao tema, eis, uma vez mais, as lições de Fredie Didier:
Fala-se em distinguishing (ou distinguish) quando houver distinção entre o caso concreto (em julgamento) e o paradigma, seja porque não há coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base à ratio decidendi (tese jurídica) constante no precedente, seja porque, a despeito de existir uma aproximação entre eles, alguma peculiaridade no caso em julgamento afasta a aplicação do precedente. (...) Notando, pois, o magistrado que há distinção (distinguishing) entre o caso sub judice e aquele que ensejou o precedente, pode seguir um desses caminhos: (i) dar à ratio decidendi uma interpretação restritiva, por entender que peculiaridades do caso concreto impedem a aplicação da mesma tese jurídica outrora firmada (restrictive distinguishing), caso em que julgará o processo livremente, sem vinculação ao precedente, nos termos do art. 489, §1º, VI, e 927, §1º, CPC; (ii) ou estender ao caso a mesma solução conferida aos casos anteriores, por entender que, a despeito das peculiaridades concretas, aquela tese jurídica lhe é aplicável (ampliative distinguishing), justificando-se nos moldes do art. 489, §1º, V, e 927, §1º, CPC.[7]
Do excerto doutrinário acima transcrito podem ser extraídas duas formas de distinção: o restrictive distinguishing e o ampliative distinguishing.
Enquanto a primeira ocorre quando o julgador identifica particularidades no caso em análise que o tornam diferente do precedente e, em virtude disso, dele o afasta, na segunda há a subversão da lógica distintiva, haja vista ter lugar quando se entende que particularidades efetivamente constatadas não são capazes de afastar a incidência do precedente, o qual passa a ter a aplicação ampliada a hipóteses outras que, em princípio, a ele não se amoldariam (há distinção e, no entanto, aplicação).
Aponta a doutrina, ainda, a existência do inconsistent distinguishing, que se verifica quando o julgador, utilizando a técnica da distinção de modo incorreto, afasta a aplicação do precedente a caso ao qual ele se amolda à perfeição. É dizer, vê-se distinção onde, em verdade, há clara identidade.
No que pertine ao inconsistent distinguishing, explica Ravi Peixoto, in verbis:
“quando ocorre a distinção inconsistente, tem-se uma deturpação da técnica da distinção, mediante um discurso da Corte de que há fatos relevantes que sustentam a criação de uma nova norma judicial, mesmo quando eles inexistam. Ou seja, há um discurso de que há distinção, mas ele é injustificado.”[8]
Já entre as técnicas de superação dos precedentes, ganham destaque o overrulling e o overriding, ambas calcadas na ideia de que a característica da estabilidade não transforma a jurisprudência em algo estanque e imutável.
Desde que com base em fundamentação específica e adequada, é inclusive salutar que de tempos em tempos haja alteração de entendimentos anteriormente consolidados, uma vez que o fenômeno de construção da juridicidade não raro se confunde com as relações sociais que visa tutelar e, por conseguinte, deve estar sempre em movimento.
Tanto é assim que o parágrafo 4º do art. 927 do CPC assim dispõe:
Art. 927 (...)
§ 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
Especificamente quanto ao overrulling, trata-se da técnica através da qual o precedente é superado de modo integral, havendo a sua substituição por outro que, em seu lugar, passará a produzir força vinculante. Extingue-se o precedente anterior com o fim de, de pronto, sucedê-lo por outro.
Na doutrina norte-americana, tal superação pode ser promovida de modo expresso (express overrulling) ou implícito (implied overrulling). No Brasil, todavia, por força do que prevê o supratranscrito art. 927, §4º, do CPC, apenas se admite a superação expressa do precedente, devendo o julgador indicar de modo pormenorizado as razões que o fizeram não mais aplicá-lo.
Merecem menção, ademais, o overruling prospectivo, que produz efeitos apenas para casos ulteriores (ex nunc) e o retrospectivo, que retroage para fins de alcançar situações anteriores (ex tunc), bem como a superação difusa, que tem lugar em todo e qualquer caso posto ao exame do Judiciário, e a concentrada, desenvolvida pelas pelos tribunais responsáveis pela criação do precedente, a exemplo do que preceitua o art. 986 do CPC em relação ao IRDR e do procedimento de revisão das súmulas de caráter vinculante disciplinado na Lei n. 11.417/2006.
Há quem registre, ainda, que essa forma de superação pode ocorrer por meio do “implied overruling ao quadrado” ou “transformation”, onde o magistrado implicitamente deixa de aplicar o precedente e passa, então, a buscar compatibilizá-lo com o que foi criado em seu lugar.
A superação, frise-se, pode também ser parcial, hipótese em que se tem a técnica do overriding.
No overriding, inexiste alteração substitutiva do núcleo do precedente (a ratio decidendi, como visto em tópico antecedente), mas sim sua releitura redutiva, diminuindo-se seu âmbito de incidência em virtude da superveniência de fatores fático-jurídico que assim justifiquem.
Tem-se, aí, sua principal diferença para o overrulling: enquanto neste é a própria razão de decidir que é substituída, no overriding o que há é apenas a redução de suas hipóteses fáticas sem, em contrapartida, extinguir o precedente do mundo jurídico.
7 CONCLUSÃO
Face ao exposto, é imperioso concluir que as alterações promovidas na legislação adjetiva não só confirmaram movimento que lhe precede na adoção de um sistema de precedentes, mas reforçaram sobremaneira o intento de racionalizar o processo de construção de entendimentos vinculantes e persuasivos.
A garantia de manutenção da jurisprudência estável, íntegra e coerente cumpre papel de relevo nesse objetivo, razão pela qual a correta compreensão dos conceitos afetos ao tema, a exemplo da doutrina do stare decisis, do precedente, da jurisprudência e dos entendimentos sumulados, mostra-se imprescindível.
De igual sorte, para além de sua adequada conceituação, as técnicas de distinção e de superação dos precedentes funcionam como meios de assegurar que, em observância irrestrita do que dispõe a legislação de regência, eventuais voluntarismos judiciais ver-se-ão tolhidos ou, ao menos, minorados, em manifesta salvaguarda dos princípios da isonomia substancial, da celeridade e da segurança jurídica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; Oliveira, Rafael de Alexandria. Curso de Direito Processual Civil. Volume 2. 8ª ed. São Paulo: Juspodium. 2013. P.443.
[2] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 87.
[3] TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004, p. 12.
[4] MELLO, Patrícia Perrone Campos. O Supremo Tribunal Federal: um Tribunal de Teses. Disponível em: < https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista_v21_n3/tomo2/revista_v21_n3_tomo2_443.pdf >. Acesso em: 04/02/2022, 07:05:58.
[5] DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Trad. de Jefferson Ruiz Camargo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 271.
[6] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Código de Processo Civil Comentado. Editora Juspodivm, 6ª Edição, 2021, pág. 1609.
[7] DIDIER, Fredie. Curso de Direito Processual Civil, Vol. 2. Editora Juspodivm, 16ª Edição, 2021, pág. 620
[8] PEIXOTO, Ravi. O sistema de precedentes desenvolvido pelo CPC/2015: uma análise sobre a adaptabilidade da distinção (distinguishing) e da distinção inconsistente (inconsistent distinguishing). Revista de Processo. São Paulo: RT, 2015, volume 248, página 348.
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Sergipe e especialista em Ciências Criminais pela Faculdade Guanambi/BA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOTERO, Victor Figueiredo. Precedentes judiciais: conceitos, institutos e técnicas correlatas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 maio 2022, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58293/precedentes-judiciais-conceitos-institutos-e-tcnicas-correlatas. Acesso em: 23 dez 2024.
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