FRANCISCO DE SOUSA VIEIRA FILHO
. ADAUTO DE GALIZA DANTAS FILHO
(orientadores)
RESUMO: Este trabalho teve por objetivo fazer uma análise da (im)possibilidade do exercício dos direitos civis pelos apátridas no Brasil. Isso porque o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR – ONU, 2014) estima que existam mais de 12 milhões de apátridas no mundo. Negar a nacionalidade a uma pessoa é negar a possibilidade de exercício dos direitos civis mais básicos que um ser humano deve ter. Por conta disso, no presente trabalho analisou-se os critérios de aquisição da nacionalidade adotado pela maioria dos países, inclusivo o Brasil; o conceito, os tipos, as causas e as consequências da apatridia; a situação jurídica dos apátridas em uma perspectiva positivista e jusnaturalista; abordou a legislação aplicável aos apátridas no âmbito internacional; e verificou o tratamento jurídico dado aos apátridas no Brasil. Para tanto, adotou-se uma metodologia de pesquisa de natureza qualitativa com o procedimento técnico de pesquisa bibliográfica. Ao final constatou-se que a ausência de nacionalidade não impossibilita os apátridas de exercer os direitos civis previstos no ordenamento jurídico brasileiro.
Palavras-Chave: Apátridas. Direitos Civis. Nacionalidade.
ABSTRACT: The presented study aims to do an analysis on the (im)possibility of exercise of civil rights by stateless people in Brazil. That is because the Office of the United Nations High Commissioner for Refugees (UNHCR – UN, 2014) estimates the existence of more than 12 million stateless people in the world. To deny the nationality of a person is to deny the possibility of exercising the simplest civil rights that a human being should have. Therefore, in this academic paper we analyzed the criteria for acquiring nationality followed by the majority of countries, including Brazil; the concept, types, causes and consequences of statelessness; the juridical situation of stateless people through the perspective of positivism and natural law; tackled the applicable legislation to stateless people in the international scope; and verified the juridical treatment given to them in Brazil. To do so, we adopted a research methodology of qualitative nature with the technical procedure of bibliographical research. In the end, we noted the absence of nationality does not imply in the impossibility of exercise of civil rights stated in Brazilian juridical system.
Keywords: Stateless people. Civil Rights. Nationality.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 CRITÉRIOS UTILIZADOS PARA DEFINIÇÃO DA NACIONALIDADE. 2.1 CRITÉRIOS DEFINIDORES DA NACIONALIDADE NO BRASIL. 3 CONCEITOS, CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS DA APATRIDIA. 3.1 CONCEITO DE APATRIDIA. 3.1.1 Tipos de Apatridia. 3.1.2 Diferença entre Imigrante, Apátrida, Refugiado e Asilado. 3.2 CAUSAS DA APATRIDIA. 3.3 CONSEQUÊNCIAS DA APATRIDIA. 4 SITUAÇÃO JURÍDICA DOS APÁTRIDAS EM UMA PERSPECTIVA POSITIVISTA E JUSNATURALISTA. 5 LEGISLAÇÃO APLICÁVEL AOS APÁTRIDAS NO ÂMBITO INTERNACIONAL. 6 TRATAMENTO JURÍDICO DADO AOS APÁTRIDAS NO BRASIL. 7 A (IM)POSSIBILIDADE DO EXERCÍCIO DOS DIREITOS CIVIS PELOS APÁTRIDAS. 7.1 OS PRIMEIROS CASOS DE APATRIDIA RECONHECIDOS E CONCESSÃO DE NACIONALIDADE SIMPLIFICADA À APÁTRIDAS PELO BRASIL. 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS. 9 REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
Nos sistemas jurídicos predominantes pelo mundo a nacionalidade é o pilar fundante para o exercício dos direitos humanos e fundamentais reconhecidos por cada estado. Cada país, em seu sistema jurídico, estabelece os critérios para o reconhecimento e aquisição da nacionalidade.
Ocorre que os critérios estabelecidos pelos países para o reconhecimento da nacionalidade muitas vezes fazem com que determinadas pessoas não sejam reconhecidas como nacionais, ou seja, as pessoas ficam sem nacionalidade tornando-se um apátrida. Os movimentos migratórios provocados pelas duas grandes guerras mundiais e os conflitos internos e a delimitações de fronteiras de cada estado acentuaram o crescimento do número de pessoas consideradas apátridas, pessoas sem nacionalidade.
Paralelamente ao crescimento do número de pessoas consideradas apátridas, o constitucionalismo e a comunidade internacional evoluíram no reconhecimento de direitos ao homem, em especial a dignidade da pessoa humana. Mas a problemática dos apátridas ainda persiste.
A apatridia é uma das piores formas de violência contra o ser humano, pois pode impossibilitar o exercício dos direitos humanos e fundamentais mais básicos que devem ser reconhecidos a qualquer ser humano. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR – ONU, 2014) estima que existam mais de 12 milhões de apátridas no mundo. Negar a nacionalidade a uma pessoa é negar a possibilidade de exercício dos direitos civis mais básicos que um ser humano deve ter.
A impossibilidade do exercício dos direitos mais básicos de uma pessoa acarreta a impossibilidade de uma existência digna, ferindo de morte a dignidade da pessoa humana. Sendo assim, é de fundamental importância a abordagem da situação jurídica dos apátridas para a construção de conhecimento para fomentar o debate e embasar uma possível resolutividade do problema.
Diante da situação jurídica dos apátridas, o foco norteador do presente trabalho é questionar sobre a (im)possibilidade do exercício dos direitos civis pelos apátridas, além de verificar se a ausência de uma nacionalidade é um impeditivo para o exercício pleno dos direitos civis.
A problemática do trabalho em questão pode ser resumida da seguinte forma: existe a (im)possibilidade do exercício dos direitos civis pelos apátridas no Brasil?
O objetivo geral do trabalho é fazer uma abordagem da situação jurídica dos apátridas abordando o regramento legal aplicável em relação a (im)possibilidade do exercício dos direitos civis. Os objetivos específicos são: analisar os critérios de aquisição da nacionalidade adotado pela maioria dos países, inclusivo o Brasil; analisar o conceito, os tipos, as causas e as consequências da apatridia; analisar a situação jurídica dos apátridas em uma perspectiva positivista e jusnaturalista; abordar a legislação aplicável aos apátridas no âmbito internacional; e verificar o tratamento jurídico dado aos apátridas no Brasil.
A relevância do tema e os motivos que o justificam é a existência de pessoas apátridas que podem ficar sem proteção jurídica. A impossibilidade do exercício dos direitos mais básicos de uma pessoa acarreta a impossibilidade de uma existência digna, ferindo de morte a dignidade da pessoa humana. Sendo assim, é de fundamental importância a abordagem da situação dos apátridas para a construção de conhecimento para embasar uma possível resolutividade do problema.
Diante de todo esse panorama, a academia, sendo um ambiente de discursão e produção de conhecimento, não pode ficar de fora e deixar de debater um tema tão importante que afeta a dignidade da pessoa humana. Assim, a importância da pesquisa desse tema está no fato de discutir a problemática dos apátridas e a (im)possibilidade do exercício dos direitos civis pelos apátridas, produzindo conhecimento e buscando caminhos mais adequados para lidar com esse problema.
Para tanto, o presente trabalho é dividido da seguinte forma: primeiramente serão abordados os critérios de aquisição da nacionalidade originária e derivada adotado pela maioria dos países, bem como os critérios adotados pelo Brasil. Em um segundo momento será abordado o conceito, os tipos, as causas e as consequências nefastas da apatridia. Posteriormente será feita a análise da situação jurídica dos apátridas em uma perspectiva positivista e jusnaturalista e sua relação com o exercício dos direitos fundamentais e direitos humanos. Em seguida será abordada a legislação aplicável aos apátridas no âmbito internacional, em especial as convenções internacionais que tratam do tema. Logo em seguida discorrera-se sobre o tratamento jurídico dado aos apátridas no Brasil, abordando os principais aspectos. Para responder o problema de pesquisa será abordado a (im)possibilidade do exercício dos direitos civis pelos apátridas. Será abordado ainda os primeiros casos de apatridia reconhecidos e concessão de nacionalidade simplificada à apátridas pelo Brasil, para ao final tecer-se as considerações finais.
Como metodologia de pesquisa adotou-se um estudo de natureza qualitativa com o procedimento técnico de pesquisa bibliográfica. Serão utilizadas como fontes da pesquisa bibliográfica a legislação, a doutrina, princípios, relatórios, livros e artigos publicados em revistas científicas e na rede mundial de computadores.
2 CRITÉRIOS UTILIZADOS PARA DEFINIÇÃO DA NACIONALIDADE
A aquisição da nacionalidade de um sujeito vai definir o regime jurídico o qual se submeterá e, consequentemente, os direitos e deveres deste indivíduo perante o regime jurídico. A nacionalidade é o vínculo jurídico entre o ser humano e o Estado ao definir o sistema jurídico de proteção do ser humano, possibilitando-o o exercício dos direitos fundamentais mais básicos. Nesse sentido, Morais (2016, p. 367) explica que a:
Nacionalidade é o vínculo jurídico político que liga um indivíduo a um certo e determinado Estado, fazendo deste indivíduo um componente do povo, da dimensão pessoal deste Estado, capacitando-o a exigir sua proteção e sujeitando-o ao cumprimento de deveres impostos.
Discorrendo ainda sobre a nacionalidade, Tavares (2020) destaca que a nacionalidade é a ligação juridicamente estabelecida entre um indivíduo e determinado Estado, extraindo-se dessa definição a distinção entre nacionais e estrangeiros. Abordando um conceito mais abrangente de nacionalidade Masson (2015, p. 307) destaca que a nacionalidade é o:
Vínculo jurídico-político que liga o indivíduo a um determinado Estado, tornando-o um componente do povo, o que o capacita a exigir a proteção estatal, a fruição de prerrogativas ínsitas à condição de nacional, bem como o sujeita ao cumprimento de deveres. Referida associação - entre indivíduo e Estado - é que determina e permite a identificação dos sujeitos que compõe a dimensão pessoal do Estado, um dos seus elementos constitutivos básicos.
Do conceito de nacionalidade informado acima percebe-se que a nacionalidade é uma das fontes do vínculo jurídico entre o Estado e um indivíduo, sendo que este se torna um dos elementos do Estado (povo) que passar a usufruir de todos os direitos, prerrogativas e deveres previstos no sistema jurídico do Estado. Em outras palavras, ter nacionalidade é ter proteção e garantias do sistema jurídico do Estado.
No âmbito internacional o Artigo XV da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) proclama que “Todo homem tem direito a uma nacionalidade” e destaca ainda que “Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade” (ASSEMBLEIA GERAL DA ONU, 1948).
Nessa perspectiva podemos afirmar que a nacionalidade é um direito humano fundamental inerente a pessoa humana; é o pilar fundante para o exercício dos direitos humanos e fundamentais reconhecidos por cada Estado. Feito essa introdução quanto a conceituação da nacionalidade passamos agora a análise dos critérios utilizados para à aquisição da nacionalidade.
A nacionalidade é adquirida a partir do preenchimento dos critérios estabelecidos por cada país, geralmente previstos nas constituições. A doutrina de Mendes (2013) esclarece que cabe a cada Estado definir os critérios e a forma de aquisição da nacionalidade. Nesse sentido, Lenza (2018, p. 2.058) explica que “a doutrina costuma distinguir a nacionalidade em duas espécies: a) primária ou originária (involuntária); b) secundária ou adquirida (voluntária).”
Discorrendo sobre os critérios para à aquisição da nacionalidade primária/originaria e segundaria/adquirida, Sousa (2017, s/p) explica que:
Quanto aos critérios e regras para sua aquisição, eles são estabelecidos de forma soberana por cada país. Alguns adotam o critério do ius sanguinis, por meio do qual o que define a nacionalidade primária é o sangue, não o local do nascimento. Em outras palavras, usa-se como critério para a nacionalidade a ascendência parental.
O critério do ius sanguinis é normalmente utilizado por países de emigração, a exemplo da maioria dos países europeus, com o intuito de manter os vínculos com os seus descendentes.
O outro critério para definição da nacionalidade primária é o do ius solis, ou critério da territorialidade. Neste critério, o que importa é o local do nascimento, e em geral é utilizado em países de imigração. Dessa forma, os descendentes dos imigrantes são considerados nacionais do país em que se encontram, não do país de origem dos pais, diferentemente do critério do ius sanguinis.
A outra espécie de nacionalidade é a secundária, ou adquirida, que é obtida por vontade própria, depois do nascimento, normalmente pelo processo de naturalização. A nacionalidade secundária pode ser requerida tanto por estrangeiros quanto por apátridas.
Além dos critérios de aquisição da nacionalidade originária demonstrados acima, ius sanguinis (origem sanguínea) e ius solis (origem territorial, do solo), existe um terceiro critério chamado de misto. Tal critério nada mais é do que a junção do ius sanguinis e ius solis, ou seja, para aquisição da nacionalidade por esse critério é necessário que os pais sejam nacionais do país e que a criança nasça no território do país. Vale destacar que existem outros critérios definidores da nacionalidade menos usuais.
2.1 CRITÉRIOS DEFINIDORES DA NACIONALIDADE NO BRASIL
A aquisição da nacionalidade brasileira é disciplinada no art. 12 da CF/88 (BRASIL, 1988). No referido dispositivo, o Brasil adota tanta o critério da nacionalidade primária ou originária (involuntária) como a secundária ou adquirida (voluntária).
No Brasil para aquisição da nacionalidade originária é utilizado tanto critério do ius sanguinis (origem sanguínea, como exceção) como do ius solis (origem territorial, como regra), nesse sentido art. 12, I, da CF/88, estabelece que:
Art. 12. São brasileiros:
I - natos:
a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país;
b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil;
c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 54, de 2007) (BRASIL, 1988)
Dos dispositivos citados acima percebe-se quatro hipóteses de aquisição da nacionalidade brasileira nata, quais sejam: 1- nascer em território brasileiro (critério ius solis), ressalvados os casos em que os genitores estejam a serviço do seu país de origem (alínea a); 2- nascidos no estrangeiro filho de brasileiro a serviço do Brasil (critério ius sanguinis, alínea b); 3- nascidos no estrangeiro de pai ou mãe brasileiro, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente (critério ius sanguinis, alínea c); e 4- nascidos no estrangeiro de pai ou mãe brasileiro que venha residir no brasil, a qualquer tempo, e depois de atingido a maioridade civil opte pela nacionalidade brasileira competente (critério ius sanguinis, alínea c).
Além disso, o inciso II do art. 12, da CF/88, traz os critérios para a aquisição da nacionalidade segundaria ou adquirida (naturalização), nos seguintes termos:
II - naturalizados:
a) os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas aos originários de países de língua portuguesa apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral;
b) os estrangeiros de qualquer nacionalidade, residentes na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira. (Redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 3, de 1994) (BRASIL, 1988).
Das alíneas indicadas acima podemos dividir a naturalização em ordinária (alínea a) e extraordinária (alínea b). Quanto a naturalização extraordinária o próprio texto constitucional traz os requisitos exigidos. Já em relação a naturalização ordinária os requisitos estão previstos na Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração), que também traz outros tipos de naturalização, quais sejam: 1- naturalização ordinária propriamente dita prevista nos arts. 65 e 66; 2- naturalização especial prevista nos arts. 68 e 69; e 3- naturalização provisória prevista no art. 70 (BRASIL, 2017).
Embora a Constituição Federal de 1988 vede a distinção entre brasileiros natos e naturalizados (art. 12, § 2º da CF/88), o próprio texto constitucional traz cargos e prerrogativas que só podem ser exercidos por brasileiros natos. Além disso, percebe-se que o Brasil adota critérios bastantes amplos de aquisição de nacionalidade, isso se deve ao fato do Brasil ser uma país formado por imigrantes e também para evitar os efeitos nefastos da apatridia.
As distinções indicadas acima dos critérios definidores da nacionalidade e as formas de aquisição da nacionalidade, brasileiros natos e naturalizados, é importante para podermos compreender a situação dos apátridas. Feito essas distinções, passamos agora análise do conceito de “apátrida”, abordando a situação dos mesmos, buscando quantifica-los e qualifica-los.
3 CONCEITOS, CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS DA APATRIDIA
Neste capítulo será abordado o conceito e tipos de apatridia; a distinção entre Imigrante, Apátrida, Refugiado e Asilado; as causas que levam a apatridia e as consequências da apatridia.
Apátrida ou heimatlos é o termo para designar um indivíduo sem pátria, sem nacionalidade. A doutrina afirma que em relação aos apátridas há um conflito negativo de nacionalidade, pois nenhum país reconhece aquele indivíduo como sendo nacional de seu país. Por outro lado, os indivíduos que tem duas ou mais nacionalidades podem ser designados como polipátridas ou multinacionalidade. De forma magistral Masson (2015, p. 308) traz o conceito de apátrida nos seguintes termos:
Os apátridas, também identificados como heimatlos, são aqueles desprovidos de pátria; não detêm com nenhum Estado o vínculo jurídico-político que os converteria em nacionais, uma vez que não se enquadram nos critérios de aquisição de nacionalidade de Estado algum.
Do conceito mencionado acima percebe-se que a situação de apatridia não decorre de um ato voluntário do indivíduo e sim da ação dos países ao estabelecer critérios de aquisição da nacionalidade.
Sendo assim, quando uma pessoa nasce em um país em que não preencha os critérios de aquisição da nacionalidade primária/originaria ou segundaria essa pessoa se torna um apátrida, pessoa sem nacionalidade. No âmbito internacional, conceitualmente, o art. 1º da Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 define o termo “apátrida” como sendo “toda a pessoa que não seja considerada por qualquer Estado, segundo a sua legislação, como seu nacional” (ONU, 1954). No mesmo sentido, a legislação brasileira no art. 1º, § 1.º, VI, da Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração) define o termo “apátrida” como sendo:
[...]
VI - apátrida: pessoa que não seja considerada como nacional por nenhum Estado, segundo a sua legislação, nos termos da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, de 1954, promulgada pelo Decreto nº 4.246, de 22 de maio de 2002, ou assim reconhecida pelo Estado brasileiro. (BRASIL, 2017)
Note que o conceito de apátrida trazida pela Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração) tem como base é fundamento a Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954. Isso demonstra que o Brasil está alinhado com a Organização das Nações Unidas (ONU) na problemática dos apátridas. Depois de conceituar apatridia passamos agora para uma breve análise dos tipos de apatridia.
A doutrina diferencia os apátridas em dois tipos, nesse sentido Barbosa (2015) explica que: “apátridas de jure, jurídicos ou de direito e os apátridas de fato ou de facto.” Nesse sentido Reis (2016, p. 28) explica que os apátridas de jure, jurídicos ou de direito “são os indivíduos cuja carência de nacionalidade deriva de um conflito negativo de ordens jurídicas”, ou seja, é o tipo de apatridia reconhecida pelo o art. 1º da Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 e pelo art. 1º, § 1.º, VI, da Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração).
Por outro lado, os apátridas de fato ou de facto são considerados nacionais de determinado país, ou seja, tem uma nacionalidade, mas por questões diversas o indivíduo não consegue exercer os direitos e prerrogativas decorrente da nacionalidade. Sendo assim, é como se o indivíduo não tivesse uma nacionalidade, pois de nada lhe serve o reconhecimento de uma nacionalidade se não pode exercer os direitos e prerrogativas decorrente dela. Nesse sentido, Barbosa (2015, p. 145) explica que:
Sobre os apátridas de fato, pode-se dizer que são aqueles que por insuficiência da máquina administrativa de seu Estado de origem, ou por situações peculiares que lá ocorrem como guerras civis ou tragédias humanitárias, como ações da natureza, pobreza extrema e epidemias, ou até tudo isto combinado com muitos outros aspectos, não conseguem exercer de forma efetiva seu direitos, liberdades e bens oriundos de sua nacionalidade, seja no seu próprio país de origem ou em outro Estado estrangeiro. Assim, são as pessoas, que apesar de oficialmente possuírem uma nacionalidade e um Estado para se amparar quando houver necessidade, não exercem tais pressupostos de forma plena, já que seu Estado de origem se faz omisso, insuficiente nas políticas públicas ou até negligente no devido socorrer aos seus cidadãos, tanto em seu próprio território ou no de outros países. Deste modo, tornam-se apátridas na prática, de fato, e na realidade do dia a dia, visto que a própria concepção de nacionalidade denota uma assistência estatal de proteção política, jurídica e diplomática por trás de seus nacionais como alicerce da soberania, e no caso dos apátridas de facto, essa assistência se mostra falha, omissa ou mesmo inexistente. E em matéria de nacionalidade, um título de cidadão nacional de determinado Estado de nada adianta se o exercício e gozo da acepção de nacionalidade se mostra impossível, inconsistente e irreal, e de nada diferencia em termos práticos, de quem sequer o possui.
No mesmo sentido Reis (2016, pp. 30-31) destaca que:
os apátridas de facto não possuem conceituação normativa ou mesmo são protegidos por qualquer instrumento internacional. Consistem eles nos indivíduos que, embora formalmente devessem gozar de uma nacionalidade pelo enquadramento nos critérios jus soli ou jus sanguinis, não têm êxito em receber a proteção de nenhum Estado por razões comumente afetas a perseguições políticas, práticas discriminatórias etc. O vínculo de nacionalidade destas pessoas, apesar de existir no campo formal, não tem efetividade.
A apatridia de fato ou de facto por não ser uma negativa do reconhecimento da nacionalidade não está amparado pelos sistemas normativos que protegem os apátridas de jure, jurídicos ou de direito. Pois o que ocorre na apatridia de fato ou de facto é a insuficiência da atuação estatal na promoção dos direitos e prerrogativas decorrentes do reconhecimento da nacionalidade. A apatridia de fato ou de facto não é tão distante da realidade do Brasil, pois existem estimativas que o Brasil tem mais de três milhões de brasileiros sem sequer ter o registro de nascimento.
3.1.2 Diferença entre Imigrante, Apátrida, Refugiado e Asilado
Embora os termos imigrante, apátrida, refugiado e asilado possam ter pontos em comum, tais institutos são diferentes. Destaca-se de início que o imigrante é uma “pessoa nacional de outro país ou apátrida que trabalha ou reside e se estabelece temporária ou definitivamente no Brasil”, nos termos do art. 1º, § 1.º, II, da Lei nº 13.445/2017 - Lei de Migração (BRASIL, 2017). O termo imigrante pode abranger tanto o apátrida como o refugiado.
O conceito de apátrida, conforme já visto acima, pode ser definido como “toda a pessoa que não seja considerada por qualquer Estado, segundo a sua legislação, como seu nacional” (ONU, 1954).
Já o refugiado, que pode ser um imigrante e/ou apátrida, é todo indivíduo que por motivos de perseguição “de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país” ou ainda por “grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país”, nos termos dos incisos I e II do art. 1º da Lei 9.474/1997 (BRASIL, 1997).
O asilado é o indivíduo que sofre perseguição política em seu país de origem e solicita o asilo político em outro país. O asilo político tem assento constitucional (art. 4º, X, da CF/88) constituído um dos princípios que regem as relações do Brasil com os outros países. Feito esta diferenciação entre imigrante, apátrida, refugiado e asilado, adiante discorremos sobre as causas da apatridia.
3.2 CAUSAS DA APATRIDIA
De início é importante destacar que a apatridia é provocada por diversos motivos, sendo assim, adiante discorremos sobre os mais importantes. Um dos aspectos negativos das duas grandes Guerras Mundiais foi o grande volume de deslocamentos forçados das pessoas de sua terra natal, milhões de pessoas foram obrigadas a deixarem seus países em decorrência da guerra. Além disso, outros conflitos internos em diversos países provocaram grandes movimentos migratórios, nesse sentido Barbosa (2015, pp. 120-121) destaca:
Todavia, já no século XX, com o desencadear das duas Guerras Mundiais, principalmente da Segunda Guerra Mundial, e posteriormente, com a bipolarização do mundo em capitalismo e socialismo durante a Guerra Fria, a situação se agravou ainda mais, ganhando proporções mundiais, já que os sistemas políticos, culturais, jurídicos e nacionais apresentados durante esses conflitos, como o nazismo alemão, o fascismo italiano e o comunismo soviético previam a perda da nacionalidade e a total inoperância e falta de proteção estatal para aqueles que fugissem e desertassem dos ideais políticos apresentados e sustentados pelos respectivos regimes. A partir daí, com a intensa instabilidade política e institucional na África, e o surgimento de inúmeros conflitos no Oriente, sobretudo na Ásia, fez a problemática virar uma bola de neve, e hoje a apatridia apresenta-se como uma questão a nível global, já que não constitui-se num desafio de apenas um único país, mas do ser humano em si na luta pelos seus direitos, igualdades e liberdades fundamentais.
Outro motivo que pode ensejar a apatridia bastante comum nos países do oriente médio é a própria escolha do país por definição de critérios de aquisição de nacionalidade restritivo por motivos religiosos. Tratando dessa causa de apatridia Reis (2016, pp. 30-31) informa que:
Muitos países, especialmente localizados no Oriente Médio (p. ex., Kuwait, Bahrein, Líbano, Omã, Arábia Saudita etc.), possuem legislações discriminatórias que, até hoje, proíbem as mulheres de, ao casarem-se, transmitirem a sua nacionalidade aos seus maridos. Se uma nacional destes Estados porventura tiver um filho com um estrangeiro, a criança não terá direito a receber o vínculo jurídico-político estatal, uma vez que os seus ordenamentos jurídicos somente aceitam tal transmissão pela ascendência paterna.
O cancelamento da nacionalidade é uma outra causa de apatridia. Tal situação ocorre mais em países ditatoriais como forma de perseguição política. Anexação ou desmembramentos de países ou territórios pode também ocasionar apatridia, principalmente de minorias étnicas e religiosas. Sintetizando, todas as causas de apatridia tem em comum o conflito negativo de nacionalidade, nesse sentido Masson (2015, pp. 308-309) explica:
A condição de apátrida deriva, principalmente, de um conflito negativo de nacionalidade, no qual não há nenhum Estado interessado em proclamar o indivíduo como seu nacional. Este ocorre, por exemplo, quando nasce uma criança nos domínios geográficos do Estado "A", que reconhece exclusivamente o sistema jus sanguinis (baseado na ascendência) como critério de concessão de nacionalidade, filha de pais nacionais do Estado "B", que adota, de modo exclusivo, o critério territorial (jus soli) - ou seja, que concede nacionalidade apenas aquele que nascer em seu território. Esta criança não adquirirá a nacionalidade dos pais, haja vista não ter nascido no território do Estado "B", do qual eles são nacionais, tampouco ganhará a nacionalidade do Estado "A", em cujo território nasceu, por não serem seus pais nacionais dali. Como conclusão, será apátrida.O fenômeno da apatridia se origina, também, de circunstância na qual o indivíduo se naturaliza e, em razão disso, perde a nacionalidade de origem, vindo depois a ter cancelada a sua naturalização. Como se desvinculou da nacionalidade originária para se naturalizar e, posteriormente, perdeu a nacionalidade secundária adquirida, torna-se apátrida.
Pela própria dinâmica da sociedade e as relações entre os países com o seu sistema normativo, as causas da apatridia deixam de existir ou passam existir de acordo com os critérios estabelecidos para aquisição da nacionalidade, ou seja, o surgimento e o desparecimento da apatridia depende da vontade política e social de cada país. A Organização das Nações Unidas atenta a essa situação se mobiliza para evitar as causas da apatridia (ONU, 2018).
3.3 CONSEQUÊNCIAS DA APATRIDIA
A O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR – ONU, 2018) estima que existam mais de 12 milhões de apátridas no mundo. É uma situação alarmante, visto que se não forem adotadas medidas eficazes para reduzir o número de pessoas sem nacionalidade a tendência é que este número cresça cada vez mais.
A apatridia é a causa de diversas consequências nefastas que recaem sobre os apátridas. A primeira consequência é que ao nascer o individuo não vai ser considerado nacional de qualquer país, ou seja, não terá a nacionalidade. Não tendo nacionalidade, o indivíduo não poderá usufruir dos direitos e prerrogativas mais básicos e essenciais do ser humano, saúde, educação, trabalho, participação política etc. Ao nascer o apátrida não poderá fazer o seu registro de nascimento e consequentemente não poderá retirar demais documentos que possibilitam o indivíduo exercer seus direitos. Nesse sentido Wentzel (2018, s/p) explica que:
Esses indivíduos não têm certidão de nascimento e, portanto, não existem enquanto cidadãos. Consequentemente, os apátridas não conseguem obter outros documentos de identificação e sofrem inúmeras dificuldades para ter acesso a direitos fundamentais. Para muitos, por exemplo, é impossível frequentar uma escola, consultar um médico da rede pública, trabalhar com carteira assinada ou até mesmo abrir uma conta bancária.
O apátrida é excluído da sociedade passando a viver a margem da sociedade em situações deploráveis sem o mínimo existencial de dignidade. Os estrangeiros gozam de mais direitos do que os apátridas, pois estes sequer “existem” juridicamente. Nesse sentido Maha Mamo (ex-apatrida) relata que (2018, s/p):
Eu vivi 26 anos no Líbano sem documentos, sem nada, sem existir. Sem direito à nacionalidade você não existe no mundo, é apenas uma sombra que está andando. [...] Entendo bem que a apatridia não é uma questão religiosa nem política, mas humanitária. A pessoa não escolhe onde vai nascer nem quem são seus pais, simplesmente nasce.
Sempre sentia que tinha algo errado, que eu era menor do que as outras pessoas. Minha vida sempre foi acordar e pensar: ‘E hoje? Será que vou sobreviver?
Outra consequência nefasta da apatridia é que os filhos dos apátridas podem se tornar apátridas também se o país onde eles nascerem não adotar o critério do ius solis de aquisição da nacionalidade, isso pode se tornar um processo cíclico aumentado cada vez mais o número de pessoas apátridas.
Como os apátridas geralmente não tem a proteção do sistema normativo do país onde está termina por contribuir com os processos migratórios, deslocamento de pessoas. Isso pode provocar a desagregação familiar, a perda de costumes e valores históricos e culturais inestimáveis, além de deixar mais precário a situação do atendimento dos países que recebem imigrantes.
A apatridia pode gerar ainda perseguição e discriminação de ordem religiosa, política e social. A apatridia pode influenciar a saúde física e mental dos apátridas, pois estes vivem em condições precárias. Sob todas as óticas da vida do ser humano a apatridia só traz consequências negativas. Além das consequências deletérias mencionadas acimas existem outras.
4 SITUAÇÃO JURÍDICA DOS APÁTRIDAS EM UMA PERSPECTIVA POSITIVISTA E JUSNATURALISTA
O Positivismo e o Jusnaturalismo são correntes jurídicas que abordam temas sensíveis a Ciência do Direito, como por exemplo a origem e o fundamento do Direito e do Estado, a noção de justiça, dentre outros temas importantíssimos. As diversas perspectivas do Positivismo e do Jusnaturalismo foram apresentadas por pensadores dos mais diversos ramos do conhecimento humano como a filosofia, a sociologia, a teologia, a história, a político e ciências naturais e do direito, nesse sentido Reale (2012, p. 221) destaca que:
A ideia de um Direito Natural, distinto do Direito Positivo, é muito antiga. Nós a encontramos nas manifestações mais remotas da civilização ocidental a respeito do problema da lei e da justiça, o mesmo ocorrendo na cultura do Oriente.
O Jusnaturalismo ou o direito natural tem como características a universalidade e imutabilidade e seu fundamento transcende a ideia de Estado, nesse sentido Vanin (2015, s/p) explica que:
O jusnaturalismo também denominado direito natural é universal, imutável e inviolável, é a lei imposta pela natureza a todos aqueles que se encontram em um estado de natureza. A Corrente do Jusnaturalismo defende que o direito é independente da vontade humana, ele existe antes mesmo do homem e acima das leis do homem, para os jusnaturalistas o direito é algo natural e tem como pressupostos os valores do ser humano, e busca sempre um ideal de justiça.
Percebe-se que o direito natural, ao contrario do direito positivo, não retira o seu fundamento de validade do Estado e sim do estado de natureza do ser humano em que esses direitos naturais são inerentes ao ser humano. Destacando a vertente de diversidade de correntes do direito natural, Garcia (2015, p. 20) informa que:
O Jusnaturalismo (ou Escola do Direito Natural) abrange diversas vertentes que, embora apresentem certas peculiaridades próprias, envolvem aspectos essenciais em comum, defendendo a existência de leis naturais, imutáveis e universais quanto aos seus primeiros princípios (como “o bem deve ser feito”), asseverando que o Direito Natural antecede ao Direito positivo, sendo inerente à natureza humana.
Destaca-se que o Jusnaturalismo com os contratualistas Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau “foi, quase sempre, um instrumento jusnaturalista para justificar racionalmente a existência do direito e do Estado” (OLIVEIRA, 2012, p. 38).
O direito natural ou jusnaturalismo não se contenta com a norma posta pelo Estado, o direito como ele é, pois, a norma editada pelo Estado tem que está de acordo com os valores universais para ser considerada justa, o direito como ele deve ser, tendo como norte o ideal de justiça.
Por outro lado, o Positivismo buscando dar um maior rigor cientifico ao Direito se despe de juízos valorativos de outros ramos do conhecimento, nesse sentido Garcia (2015, p. 20) destaca que:
O Positivismo Jurídico (ou Escola do Direito Positivo) procura afastar a Ciência do Direito de valores morais, políticos, religiosos, filosóficos (como o relativo à justiça), bem como do Direito natural, defendendo a neutralidade do conteúdo do Direito, o qual passa a ser visto como o conjunto de normas (sistema normativo, ordenamento jurídico), cabendo à ciência do Direito o conhecimento e a descrição das normas jurídicas. Um de seus principais representantes é Kelsen.
No mesmo sentido o saudoso e eterno Bobbio (1995, p. 135) explica que:
O positivismo jurídico nasce do esforço de transformar o estudo do direito numa verdadeira e adequada ciência que tivesse as mesmas características das ciências físico-matemáticas, naturais e sociais. Ora, a característica fundamental da ciência consiste em sua avaloratividade, isto é, na distinção entre juízos de fato e juízos de valor e na rigorosa exclusão destes últimos do campo científico: a ciência consiste somente em juízos de fato. O motivo dessa distinção e dessa exclusão reside na natureza diversa desses dois tipos de juízo: o juízo de fato representa uma tomada de conhecimento da realidade, visto que a formulação de tal juízo tem apenas a finalidade de informar, de comunicar a um outro a minha constatação; o juízo de valor representa, ao contrário, uma tomada de posição frente à realidade, visto que sua formulação possui a finalidade não de informar, mas de influir sobre o outro, isto é, de fazer com que o outro realize uma escolha igual à minha e, eventualmente, siga certas prescrições minhas. (Por exemplo, diante do céu rubro do pôr-do-sol, se eu digo: “o céu é rubro”, formulo um juízo de fato; se digo “este céu rubro é belo”, formulo um juízo de valor.)
Dos trechos indicados acima percebe-se que o Positivismo jurídico busca o rigor cientifico estatelando preceitos que vão de encontro dos estabelecido pelo Jusnaturalismo. Para o Positivismo a norma é fruto da vontade política do Estado devendo ser observada, nesse sentido Vanin (2015, s/p) observa que o:
Juspositivismo, positivismo ou positivismo jurídico é uma corrente de filósofos que utilizam do método empírico (científico) para adequar o direito apenas em seu direito positivo (leis), ou seja, apenas será trabalhado as questões positivadas. Essas normas positivadas são feitas pelo poder político do Estado, e assim são aplicadas pelas autoridades efetivamente competentes. O direito positivo é aquele que o Estado impõe à coletividade, e que deve estar adaptado aos princípios fundamentais do direito natural. Portanto, a norma tem natureza formal, independem de critérios externos ao direito, como exemplo: moral, ética e política. Definido por elementos empíricos e mutáveis (fator social), onde a sociedade está em constante mutação. Ao contrário do que defende a corrente jusnaturalista (jusnaturalismo), a Corrente Juspositivista (juspositivismo) acredita que só pode existir o direito e consequentemente a justiça através de normas positivadas, ou seja, normas emanadas pelo Estado com poder coercivo, podemos dizer que são todas as normas escritas, criadas pelos homens por intermédio do Estado.
Traçando um paralelo entre o Jusnaturalismo e Positivismo jurídico com os Direitos Humanos e Direitos Fundamentais fica evidente que os Direitos Humanos têm forte ligação com o Jusnaturalismo, pois estes são reconhecidos pela ordem jurídica internacional e não dependem de previsão no ordenamento jurídico interno para ter validade, tendo em vista que são inerentes ao ser humano.
Por outro lado, os Direitos Fundamentais têm forte ligação com o Positivismo jurídico, pois os Direitos Fundamentais, em regra, são estabelecidos pelo ordenamento jurídico interno, ou seja, se não estiverem previstos formalmente não tem como evocar tais direitos.
Dessa forma, tendo como base os preceitos do Jusnaturalismo abordada acima, podemos afirmar que os apátridas estariam em gozo pleno de todos os seus direitos Humanos e Fundamentais, independentemente de serem reconhecidos pelos Estados como nacionais, pois sob a ótica Jusnaturalista esses direitos independem do reconhecimento pelo Estado, tendo em vista que são inerentes ao ser humano. Em outras palavras, a nacionalidade não é a fonte do nascedouro dos direitos e sim próprio ser humano, independentemente ter ou não uma nacionalidade.
Por outro lado, com base na corrente Positivista exposta acima, os apátridas não poderiam exercer todos os direitos fundamentais previstos em determinado Estado, pois lhe faltaria a condição jurídica de ser nacional daquele Estado. Mesmo que a legislação positivada determinasse que os apátridas estariam em gozo de todos os direitos reconhecidos aos nacionais de determinado país existiria óbices para o pleno exercício destes direitos por diversos motivos.
Sendo assim, percebe-se que a ausência de uma nacionalidade definida é um óbice para o exercício pleno dos direitos fundamentais e/ou humanos reconhecidos por determinado Estado sob uma ótica Positivista. Por outro lado, o Jusnaturalismo reconhece ao ser humano, independentemente ter ou não uma nacionalidade, o pleno exercício dos direitos fundamentais e/ou humanos.
5 LEGISLAÇÃO APLICÁVEL AOS APÁTRIDAS NO ÂMBITO INTERNACIONAL
No âmbito internacional o principal documento normativo aplicável aos apátridas é a Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 28 de setembro de 1954 adotada pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas que entrou em vigor desde 6 de junho de 1960. Atualmente a Convenção conta com 88 países signatários (ONU, 1954).
A Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 é fruto da preocupação da Organização das Nações Unidas (ONU) com a problemática dos apátridas que se agravou após a Segunda Guerra mundial (ACNUR – ONU, 2014) pelo fato do Estatuto dos Refugiados de 1951 não tratar especificamente da apatridia.
Embora o Brasil tenha assinado a Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 28 de setembro de 1954 nessa mesma data, o processo de internalização desta Convenção só veio ocorrer 48 anos após a sua assinatura por meio do Decreto nº 4.246, de 22 de maio de 2002 (BRASIL, 2002). Nesse sentido, Bichara (2017, p. 244) explica que:
[...] deve-se destacar que a sua força executória decorre do Decreto presidencial n° 4.246, de 22 de maio de 2002, emanado 48 anos após a assinatura da Convenção pelo Brasil, em 28 de setembro de 1954. Tamanho lapso temporal advém do rito constitucional de incorporação (ou internalização) de tratados internacionais (arts. 49, I, e 5º, § 3º, da Constituição Federal de 1988) – que, nesse caso, prolongou-se consideravelmente.
A Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 e bastante ampla quanto a proteção jurídica dos apátridas e traz disposições sobre: Definição do Termo "Apátrida"; disposições de não discriminação dos apátridas; prerrogativas; liberdades; direitos e obrigações; medidas de proteção, documentação e deslocamento dos apátridas; expulsão; naturalização, dentre outras disposições.
O artigo 3º da Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas estabelece que “os Estados Contratantes aplicarão as disposições desta Convenção aos apátridas, sem discriminação por motivos de raça, religião ou país de origem” (ACNUR – ONU, 1954). Além disso, o artigo 4º da Convenção estabelece que os Estados signatários garantirão aos apátridas pelo menos as mesmas liberdades e direitos religiosos garantidos aos seus nacionais.
Um dos dispositivos mais importantes da Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas é o artigo 7º que estabelece que “Ressalvadas as disposições mais favoráveis previstas por esta Convenção, todo Estado Contratante concederá aos apátridas o regime que concede aos estrangeiros em geral” (ACNUR – ONU, 1954). Tal dispositivo garante aos apátridas, que antes poderiam não ter nenhuma proteção jurídica, receberem o tratamento jurídico dado aos estrangeiros. Ressaltando que “O estatuto pessoal de todo apátrida será regido pela lei do país de seu domicílio ou, na falta de domicílio, pela lei do país de sua residência” conforme prevê o artigo 12 da referida convenção (ACNUR – ONU, 1954).
Em diversos outros dispositivos a Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas determina que o Estado signatário aplique aos apátridas o regime jurídico concedido aos estrangeiros ou aos nacionais dos seu país, a depender o direito exercido. Tais previsões são importantes porque retira o apátrida da ausência de proteção jurídico. Além disso, o artigo 32 da Convenção determina que “Os Estados Contratantes facilitarão, na medida do possível, a assimilação e a naturalização dos apátridas” (ACNUR – ONU, 1954), ou seja, essa medida visa acabar com a apatridia.
Outra Convenção muito importante quando o tema é a apatridia é a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia de 30 de agosto de 1961 que atualmente conta com 64 países signatário, dentre os quais está o Brasil (ONU, 1961).
Destaca-se que o Brasil é signatário da Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia de 30 de agosto de 1961, cuja a sua internalização no ordenamento jurídico brasileiro se deu pelo Decreto Legislativo nº 274, de 4 de outubro de 2007 e Decreto nº 8.501, de 18 de agosto de 2015 (BRASIL, 2015).
Se o enfoque da Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas visa principalmente dar garantias, direitos e deveres aos apátridas, a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia visa reduzir os casos de apatridia. Para tanto, a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia tem dois grandes nortes: um é a alteração e/ou unificação de critérios mínimos de aquisição da nacionalidade originária para evitar a ocorrência da apatridia e o segundo é alteração e/ou unificação de critérios mínimos de aquisição da nacionalidade segundaria, naturalização.
A Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia é bastante ambiciosa e abstratamente efetiva do ponto de vista jurídico. Ambiciosa porque determina que os países signatários revejam os critérios de aquisição da nacionalidade originária e derivada para evitar a apatridia, mas toca em pontos sensíveis do ordenamento jurídico interno de cada país, qual seja: os critérios de aquisição da nacionalidade que conforme visto anteriormente são definidos por influencias políticas, culturais, religiosas, históricas, jurídicas dentre outros. Abstratamente efetiva do ponto de vista jurídico porque evita novos casos de apatridia, bem como os casos de apatridia já existentes.
A título de exemplo se um país só adota o critério do ius sanguinis ou ius solis para aquisição da nacionalidade originária, a vanguardista Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia determina que esse país adote os dois critérios (ius sanguinis e ius solis) para evitar a apatridia. Já em relação à aquisição da nacionalidade derivada a Convenção traz disposições e critérios mínimos de facilitação da aquisição da nacionalidade. Em relação as disposições constitucionais da Constituição Federal de 1988 quanto aos critérios de aquisição da nacionalidade originária e derivada estão em consonância com a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia, pois o Brasil adota critérios amplos de aquisição da nacionalidade.
Inobstante a existência da Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 e a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia de 1961, todos os direitos humanos reconhecidos no âmbito internacional são perfeitamente aplicáveis aos apátridas, pois os predicados dos direitos humanos (historicidade, universalidade, indisponibilidade, imprescritibilidade e relatividade) permitem tal aplicação.
Do ponto de vista da proteção jurídica no âmbito internacional, os apátridas têm uma proteção razoável. Mas essa proteção só se torna efetiva se os países subscreverem a Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 e a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia de 1961 e buscarem dar efetividade aos seus dispositivos normativos.
6 TRATAMENTO JURÍDICO DADO AOS APÁTRIDAS NO BRASIL
A legislação aplicada e a proteção jurídica aos apátridas no Brasil seguem uma evolução histórica que será demonstrada adiante. Conforme já mencionado no item anterior, o Brasil é signatário da Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 e a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia de 1961, ambas devidamente internalizadas no ordenamento jurídico Brasileiro pelo Decreto nº 4.246, de 22 de maio de 2002 e Decreto nº 8.501, de 18 de agosto de 2015, respectivamente.
Vale destacar que a Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 e a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia de 1961 entraram no ordenamento jurídico brasileiro com status de legislação ordinária, assumindo o Brasil as obrigações e vedações que constam nessas convenções. Sendo assim, as disposições previstas na Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 e a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia de 1961 são juridicamente válidas e aptas a produzirem efeitos no Brasil.
No plano da Constituição Federal de 1988 o tratamento jurídico dado aos apátridas é o mesmo dado aos estrangeiros. Embora o art. 5º, caput, da CF/88 mencione que os “brasileiros e aos estrangeiros residentes no País” (BRASIL, 1988) são os destinatários dos direitos previsto na Constituição, nada impede que os estrangeiros não residentes e os apátridas sejam destinatário destes direitos, conforme destaca a melhor doutrina e jurisprudência de Masson (2020, p. 249), destacando que alguns direitos exigem a qualidade de brasileiro nato e/ou cidadão para serem exercidos. Ademais, o art. 7º da Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 estabelece que “Ressalvadas as disposições mais favoráveis previstas por esta Convenção, todo Estado Contratante concederá aos apátridas o regime que concede aos estrangeiros em geral” (ONU, 1954, s/p). Além disso a Lei de Migração respalda esse entendimento, conforme será demonstrado adiante.
Dessa forma, tanto da interpretação do art. 5º, caput, da CF/88 como do art. 7º da Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954, percebe-se que os direitos e garantias previstos na Constituição Federal de 1988 são aplicáveis aos apátridas, exceto os direitos que exigem a qualidade de brasileiro nato e/ou cidadão para serem exercidos.
No plano infraconstitucional a alteração legislativa mais recente que trata do tema da apatridia é a Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017 – Lei de Migração (BRASIL, 2017). Tal diploma legislativo veio para substituir a Lei nº 818, de 18 de setembro de 1949 e a Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980 (Estatuto do Estrangeiro).
A Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração) traz disposições sobre os direitos e os deveres do migrante e do visitante, bem como regula a sua entrada e estada no Brasil e a naturalização (BRASIL, 2017). Vários dispositivos legais do referido diploma legal tratam da apatridia, mas especificamente o art. 1º, § 1.º, VI, da Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração) define o conceito de apátrida e a seção II do capítulo III intitulado “Da Proteção do Apátrida e da Redução da Apatridia” traz dispositivos importantíssimos que merecem ser transcritos a seguir:
Art. 26. Regulamento disporá sobre instituto protetivo especial do apátrida, consolidado em processo simplificado de naturalização.
§ 1º O processo de que trata o caput será iniciado tão logo seja reconhecida a situação de apatridia.
§ 2º Durante a tramitação do processo de reconhecimento da condição de apátrida, incidem todas as garantias e mecanismos protetivos e de facilitação da inclusão social relativos à Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954, promulgada pelo Decreto nº 4.246, de 22 de maio de 2002 , à Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, promulgada pelo Decreto nº 50.215, de 28 de janeiro de 1961 , e à Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997 .
§ 3º Aplicam-se ao apátrida residente todos os direitos atribuídos ao migrante relacionados no art. 4º.
§ 4º O reconhecimento da condição de apátrida assegura os direitos e garantias previstos na Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, de 1954, promulgada pelo Decreto nº 4.246, de 22 de maio de 2002 , bem como outros direitos e garantias reconhecidos pelo Brasil.
§ 5º O processo de reconhecimento da condição de apátrida tem como objetivo verificar se o solicitante é considerado nacional pela legislação de algum Estado e poderá considerar informações, documentos e declarações prestadas pelo próprio solicitante e por órgãos e organismos nacionais e internacionais.
§ 6º Reconhecida a condição de apátrida, nos termos do inciso VI do § 1º do art. 1º, o solicitante será consultado sobre o desejo de adquirir a nacionalidade brasileira.
§ 7º Caso o apátrida opte pela naturalização, a decisão sobre o reconhecimento será encaminhada ao órgão competente do Poder Executivo para publicação dos atos necessários à efetivação da naturalização no prazo de 30 (trinta) dias, observado o art. 65.
§ 8º O apátrida reconhecido que não opte pela naturalização imediata terá a autorização de residência outorgada em caráter definitivo.
§ 9º Caberá recurso contra decisão negativa de reconhecimento da condição de apátrida.
§ 10. Subsistindo a denegação do reconhecimento da condição de apátrida, é vedada a devolução do indivíduo para país onde sua vida, integridade pessoal ou liberdade estejam em risco.
§ 11. Será reconhecido o direito de reunião familiar a partir do reconhecimento da condição de apátrida.
§ 12. Implica perda da proteção conferida por esta Lei:
I - a renúncia;
II - a prova da falsidade dos fundamentos invocados para o reconhecimento da condição de apátrida; ou
III - a existência de fatos que, se fossem conhecidos por ocasião do reconhecimento, teriam ensejado decisão negativa. (BRASIL, 2017).
Embora os dispositivos estejam apenas em um artigo são fundamentais para o enfrentamento da problemática da apatridia. Logo no caput do art. 26 é previsto o “instituto protetivo especial do apátrida, consolidado em processo simplificado de naturalização” (BRASIL, 2017). Tal instituto é previsto tanto no Estatuto dos Apátridas de 1954 como na Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia de 1961.
A partir do § 5º do art. 26 da Lei de Migração é previsto o processo de reconhecimento da condição de apátrida. Tal processo de reconhecimento é fundamental para que incida as garantias e os direitos previstos nos diplomas legais já mencionados.
Os parágrafos 2º, 3º e 4º do art. 26 da Lei de Migração elenca diplomas legais e rol de direitos reconhecidos aos apátridas, merecendo destaque o § 3º do art. 26 que faz menção ao rol de direitos previstos no art. 4º da Lei de Migração que estabelece:
Art. 4º Ao migrante é garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como são assegurados:
I - direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicos;
II - direito à liberdade de circulação em território nacional;
III - direito à reunião familiar do migrante com seu cônjuge ou companheiro e seus filhos, familiares e dependentes;
IV - medidas de proteção a vítimas e testemunhas de crimes e de violações de direitos;
V - direito de transferir recursos decorrentes de sua renda e economias pessoais a outro país, observada a legislação aplicável;
VI - direito de reunião para fins pacíficos;
VII - direito de associação, inclusive sindical, para fins lícitos;
VIII - acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência social, nos termos da lei, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória;
IX - amplo acesso à justiça e à assistência jurídica integral gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;
X - direito à educação pública, vedada a discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória;
XI - garantia de cumprimento de obrigações legais e contratuais trabalhistas e de aplicação das normas de proteção ao trabalhador, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória;
XII - isenção das taxas de que trata esta Lei, mediante declaração de hipossuficiência econômica, na forma de regulamento;
XIII - direito de acesso à informação e garantia de confidencialidade quanto aos dados pessoais do migrante, nos termos da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 ;
XIV - direito a abertura de conta bancária;
XV - direito de sair, de permanecer e de reingressar em território nacional, mesmo enquanto pendente pedido de autorização de residência, de prorrogação de estada ou de transformação de visto em autorização de residência; e
XVI - direito do imigrante de ser informado sobre as garantias que lhe são asseguradas para fins de regularização migratória.
§ 1º Os direitos e as garantias previstos nesta Lei serão exercidos em observância ao disposto na Constituição Federal, independentemente da situação migratória, observado o disposto no § 4º deste artigo, e não excluem outros decorrentes de tratado de que o Brasil seja parte. (BRASIL, 2017).
O caput do art. 4º da Lei nº 13.445/2017 menciona os mesmos direitos previstos no caput do art. 5º da CF/88 e o rol dos 16 incisos do art. 4º trazem previsões importantíssimas e estão em consonância com a Constituição Federal de 1988 e as Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 e a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia de 1961.
Apesar da inovação e evolução legislativa importantíssima trazida pela Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração), Bichara (2017 pp. 247-48) faz uma crítica contundente quanto a falta de indicação do órgão competente para operacionalizar administrativamente as disposições da Lei de Migração em relação aos apátridas, nesse sentido ele destaca:
Contudo, como já sinalizado, existem lacunas administrativas quanto à determinação do órgão responsável para atender aos pedidos de apatridia e, eventualmente, encaminhar os pedidos de naturalização em regime simplificado, conforme posto no artigo 26 da Lei. No silêncio da nova Lei de Migração, uma opção possível seria de ampliar o alcance da Lei n° 9.474/97, que poderia precisar o conceito de apátrida e aumentar as competências do CONARE. [...] Na nova Lei de Migração, fica totalmente ausente o órgão competente para atender o tratamento de uma demanda de um apátrida.
Inobstante a crítica mencionada acima e diversamente da solução sugerida, o Ministério da Justiça e Segurança Pública do Brasil editou a Portaria Interministerial nº 5, de 27 de fevereiro de 2018 para estabelecer “procedimentos a serem adotados em relação à tramitação dos requerimentos de reconhecimento da condição de apatridia e do procedimento facilitado de naturalização aos apátridas” (BRASIL, Portaria Interministerial nº 5, 2018, art. 1º). Ademais, a decisão de reconhecimento da condição de apátrida foi delegada ao Secretário Nacional de Justiça conforme prevê o art. 2º da Portaria Interministerial nº 5 de 2018 (BRASIL, 2018).
O processo simplificado de naturalização previsto no caput do art. 26 da Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração) é de competência do Ministério da Justiça e está regulamentado nos arts. 16 ao 21 da Portaria Interministerial nº 5 (BRASIL, 2018), merecendo destaque o art. 16 que assim dispõem:
Art. 16. Aquele que tiver reconhecida sua condição de apatridia poderá requerer a naturalização ordinária, desde que:
I - seja civilmente capaz, segundo a lei brasileira;
II - tenha residência, no mínimo, há dois anos em território nacional, observado o disposto no parágrafo único do art. 99 e no art. 221, do Decreto nº 9.199, de 2017;
III - inexista condenação penal ou haja comprovação de reabilitação, nos termos da legislação vigente; e
IV - tenha capacidade de se comunicar em língua portuguesa, consideradas suas condições, comprovada por meio do Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa (Celpe-Bras), emitido pelo Ministério da Educação, independente do nível alcançado.
§ 1º O pedido de naturalização, endereçado ao Ministério da Justiça, deverá ser apresentado em uma das unidades da Polícia Federal e instruído com os seguintes documentos:
I - requerimento de naturalização ordinária, previsto nos sítios eletrônicos da Polícia Federal e do Ministério da Justiça na internet;
II - carteira de registro nacional migratório emitida pela Polícia Federal, com fundamento na Portaria de reconhecimento de situação de apatridia;
III - comprovante de endereço no Brasil, ou declaração escrita, informando seu atual local de moradia, nos termos do art. 1º da Lei nº 7.115, de 1983;
IV - certidões de antecedentes criminais expedidas pelos Estados da federação onde tenha residido nos últimos dois anos e, se for o caso, certidão de reabilitação;
V - certidão de antecedentes criminais ou documento equivalente emitido pelos países onde residiu nos últimos cinco anos; e
VI - declaração de interesse em traduzir ou adaptar seu nome à língua portuguesa.
§ 2º Sendo impossível apresentar as certidões constantes do inciso V, o requerente deverá apresentar justificativa por escrito contendo as razões de fato e de direito que o impossibilitaram.
§ 3º O documento cuja exigência seja vedada por força do art. 2º do Decreto nº 9.094, de 17 de julho de 2017, poderá ser voluntariamente apresentado pelo requerente a fim de agilizar a análise processual.
§ 4º O prazo de residência mínima previsto no caput será reduzido para um ano, mediante a apresentação de documento que comprove as condições previstas no art. 235 do Decreto nº 9.199, de 2017.
Os dispositivos citados acima operacionalizam a naturalização dos apátridas de forma simplificada para cessar os efeitos nefastos da apatridia concedendo-lhes a nacionalidade brasileira. Ademais, os procedimentos previstos na Portaria Interministerial nº 5 (BRASIL, 2018) estão em consonância com a Constituição Federal de 1988, com a Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração), com a Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 e a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia de 1961.
De todo o regramento jurídico a respeito dos apátridas exposto acima percebe-se que o Brasil demorou a adotar as medidas legislativas cabíveis para o enfrentamento da apatridia, mas o atual sistema jurídico de amparo aos apátridas está em consonância com o fundamento basilar da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana. Ademais, do ponto de vista jurídico, o Brasil cumpre a contento as disposições internacionais para o enfrentamento da apatridia.
7 A (IM)POSSIBILIDADE DO EXERCÍCIO DOS DIREITOS CIVIS PELOS APÁTRIDAS
O presente tópico, diante das informações já apresentadas, tem por finalidade verificar a (im)possibilidade do exercício dos direitos civis pelos apátridas, mas antes disso se faz necessário tecer algumas considerações sobre os direitos civis. Vale destacar que quando for mencionado direitos civis no presente trabalho o seu âmbito de alcance está relacionado estritamente com os direitos disciplinados pelo direito civil e não na acepção mais ampla utilizada pelo direito constitucional.
Nessa perspectiva, o direito civil é o ramo do direito mais presente na vida do ser humano, pois rege as relações pessoais e patrimoniais privadas desde a concepção do indivíduo até depois da morte, nesse sentido Gonçalves (2012 p. 33) ensina que:
Direito civil é o direito comum, o que rege as relações entre os particulares. Disciplina a vida das pessoas desde a concepção — e mesmo antes dela, quando permite que se contemple a prole eventual (CC, art. 1.799, I) e confere relevância ao embrião excedentário (CC, art. 1.597, IV) — até a morte, e ainda depois dela, reconhecendo a eficácia post mortem do testamento (CC, art. 1.857) e exigindo respeito à memória dos mortos (CC, art. 12, parágrafo único). [...] No vasto campo do direito privado destaca-se o direito civil como direito comum a todos os homens, no sentido de disciplinar o modo de ser e de agir das pessoas. Costuma-se dizer que o Código Civil é a Constituição do homem comum, por reger as relações mais simples da vida cotidiana, os direitos e deveres das pessoas, na sua qualidade de esposo ou esposa, pai ou filho, credor ou devedor, alienante ou adquirente, proprietário ou possuidor, condômino ou vizinho, testador ou herdeiro etc. Toda a vida social, como se nota, está impregnada do direito civil, que regula as ocorrências do dia a dia.
Do conceito de direito civil apresentado acima percebe-se que a vida do individuo é permeada pelo direito civil. Nas relações humanas sociais mais simples e básicas até as mais complexas o direito civil está presente, nesse sentido Diniz (2012, p. 61) destaca que:
O direito civil é, pois, o ramo do direito privado destinado a reger relações familiares, patrimoniais e obrigacionais que se formam entre indivíduos encarados como tais, ou seja, enquanto membros da sociedade. É o direito comum a todas as pessoas, por disciplinar o seu modo de ser e de agir, sem quaisquer referencias as condições sociais ou culturais. Rege as relações mais simples da vida cotidiana, atendo-se as pessoas garantidamente situadas, com direitos e deveres, na sua qualidade de marido e mulher, pai ou filho, credor ou devedor, alienante ou adquirente, proprietário ou possuidor, condômino ou vizinho, testador ou herdeiro. Como se vê, toda a vida social está impregnada do direito civil, que regula as ocorrências do dia a dia, pois, como exemplifica Ferrara, a simples aquisição de uma carteira de notas e contrato de compra e venda; a esmola que se dá a um pedinte é doação; o uso de um ônibus é contrato de transporte; o valer-se de restaurante automático no qual se introduz uma moeda para obter alimento e aceitação de oferta ao público.
Do trecho apresentado acima não dar para imaginar uma sociedade minimamente organizada juridicamente sem a presença do direito civil. Assim, o direito civil tem como destinatário as pessoas, seja ela física ou jurídica.
Nesse sentido, o art. 1º do Código Civil Brasileiro (BRASIL, 2002) estabelece que “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.” Veja que o único requisito para ser titular de direitos na ordem civil é ser pessoa, ter personalidade jurídica, não fazendo qualquer distinção entre brasileiros, estrangeiros ou apátridas. Nesse sentido Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 111) informa que a:
Personalidade jurídica, portanto, para a Teoria Geral do Direito Civil, é a aptidão genérica para titularizar direitos e contrair obrigações, ou, em outras palavras, é o atributo necessário para ser sujeito de direito. [...] Essa disposição, como já se infere, permite a ilação de que a personalidade é atributo de toda e qualquer pessoa, seja natural ou jurídica, uma vez que a própria norma civil não faz tal distinção de acepções.
A personalidade jurídica é inerente ao ser humano que nasce com vida, ou seja, para ter personalidade basta que o ser humano exista. Destacando a universalidade da personalidade jurídica inerente ao ser humano Santos e Cascaldi (2015, p. 37) ensinam que:
O simples fato do ser humano existir, de estar vivo, fora do ventre materno, confere-lhe aptidão para contrair direitos e deveres. Essa aptidão genérica para ser titular de direitos e obrigações é inerente a todos os seres humanos e não se admite que exista um único homem ou mulher que não seja considerado pessoa para o Direito.
Feitas essas considerações indaga-se: como os apátridas não tem nacionalidade eles estariam impedidos de exercer os direitos civis? Ter uma nacionalidade é requisito para exercer os direitos civis?
Para responder tais questionamentos devemos analisar a legislação internacional e nacional aplicadas aos apátridas quanto ao exercício dos direitos civis.
Nesse sentido, a Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 no art. 7º estabelece que “Ressalvadas as disposições mais favoráveis previstas por esta Convenção, todo Estado Contratante concederá aos apátridas o regime que concede aos estrangeiros em geral” (ACNUR – ONU, 1954). No mesmo sentido dessa previsão o § 3º do art. 26 da Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017 – Lei de Migração (BRASIL, 2017) determina que se aplica aos apátridas residentes no Brasil o sistema jurídico aplicável aos estrangeiros. Como os estrangeiros residentes no Brasil gozam dos direitos civis (art. 5º, caput, da CF/88 e art. 1º do CC) a conclusão lógica é de que os apátridas também gozam dos direitos civis, ou seja, os apátridas podem exercer os direitos civis previstos no ordenamento jurídico brasileiro.
Entretanto, a resposta não é tão simples assim, isso porque o art. 12 da Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 (ACNUR – ONU, 1954) estabelece que:
Artigo 12 - Estatuto Pessoal:
1. O estatuto pessoal de todo apátrida será regido pela lei do país de seu domicílio ou, na falta de domicílio, pela lei do país de sua residência.
2. Os direitos anteriormente adquiridos pelo apátrida e que decorrem do estatuto pessoal, notadamente os que resultem do casamento, serão respeitados por todo Estado Contratante, ressalvado, se for o caso, o cumprimento das formalidades previstas pela legislação do referido Estado, desde que, todavia, o direito em causa seja daqueles que seriam reconhecidos pela legislação do referido Estado, se o interessado não se houvesse tornado apátrida.
Conforme explica Gagliano e Pamplona Filho (2017, p. 160) o estatuto pessoal é o instituo jurídico pelo qual a “norma de um Estado acompanha seu nacional para regular seus interesses em outro país”. O mesmo instituto do estatuto pessoal é previsto no art. 7º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (BRASIL, 1942) que estabelece que:
Art. 7º A lei do país em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família. [...]
§ 8º Quando a pessoa não tiver domicílio, considerar-se-á domiciliada no lugar de sua residência ou naquele em que se encontre.
Tecendo algumas considerações sobre o estatuto pessoal Gonçalves (2017, p. 88) ensina que:
Denomina-se estatuto pessoal a situação jurídica que rege o estrangeiro pelas leis de seu país de origem. Baseia-se ele na lei da nacionalidade ou na lei do domicílio. [...] Verifica-se que, pela atual Lei de Introdução, o estatuto pessoal funda-se na lei do domicílio, na lei do país onde a pessoa é domiciliada (STF, Súmula 381), ao contrário da anterior, que se baseava na nacionalidade. Em determinados casos, o juiz aplicará o direito alienígena, em vez do direito interno. Por exemplo, se uma brasileira e um estrangeiro residente em seu país pretenderem casar-se no Brasil, tendo ambos vinte anos de idade, e a lei do país de origem do noivo exigir o consentimento dos pais para o casamento de menores de vinte e dois anos, como acontece na Argentina, precisará ele exibir tal autorização, por aplicar-se no Brasil a lei de seu domicílio. No entanto, dispensável será tal autorização se o noivo estrangeiro aqui tiver domicílio. Aplicar-se-á a lei brasileira, porque o casamento realizar-se-á no Brasil e o estrangeiro encontra-se aqui domiciliado.
Percebe-se assim que o estatuto pessoal de um indivíduo engloba direitos como os relacionados a personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família, mas não engloba todos os direitos civis. Ademais, para fins de aplicação do estatuto pessoal utiliza-se a definição de domicílio trazida pelo art. 70 do Código Civil Brasileiro (BRASIL, 2002).
Diante da apresentação do regramento legal aplicado aos apátridas podemos afirmar que a ausência de nacionalidade não os impossibilita de exercer os direitos civis previstos no ordenamento jurídico brasileiro. Entretanto deverá ser observado o instituto do estatuto pessoal, o domicílio do apátrida e qual é o direito civil que se pretende exercer para estabelecer qual regramento jurídico deverá incidir no exercício dos direitos civis pelos apátridas.
7.1 OS PRIMEIROS CASOS DE APATRIDIA RECONHECIDOS E CONCESSÃO DE NACIONALIDADE SIMPLIFICADA À APÁTRIDAS PELO BRASIL
O sistema jurídico de proteção aos apátridas não tem um fim em sim mesmo, pois tão importante quanto a eficácia jurídica, a capacidade da norma de produzir efeitos jurídicos, é a eficácia social da norma, efetivo respeito da norma pelos destinatários concretizando a finalidade da norma.
Como visto anteriormente, embora atualmente o Brasil tenha um sistema capaz de proteger e reduzir os casos de apatridia nem sempre foi assim, pois o sistema de proteção e redução dos casos de apatridia no Brasil é fruto de uma evolução histórica que só recentemente possibilitou a eficácia social do sistema jurídico de proteção dos apátridas. E para exemplificar a eficácia social do sistema jurídico de proteção dos apátridas apresentaremos os dois primeiros casos de reconhecimento de apatridia e naturalização simplificada pelo Brasil em 2018.
Os irmãos Maha Mamo, Souad Mamo e Edward Mamo apátridas chegaram no Brasil em 2014 quando o Brasil começou a receber refugiados Sírios que fugiam da guerra no país (MARQUES, 2018, s/n). Os três irmãos apátridas são filhos de pais Sírios (a Síria adota o critério do ius solis para aquisição da nacionalidade originária) e nasceram no Líbano (que adota o critério do ius sanguinis para aquisição da nacionalidade originária) e por conta disso não conseguiram nacionalidade Libanesa e nem Síria se tornando assim apátridas. Nesse sentido Wentzel (2018, s/p) explica que:
As irmãs Maha e Souad Mamo viviam em um limbo jurídico desde que nasceram. Sem um país para chamar de pátria, elas se encontravam na estranha situação de não possuir documentos. [...]
Os irmãos Mamo - Maha, Souad e Edward - nasceram no Líbano, filhos de pais sírios. Mas, porque o pai Jean Mamo era cristão e a mãe Kifah Nachar era muçulmana, o casamento deles nunca foi registrado na Síria, o que impediu a retirada de certidões de nascimento para os filhos no Líbano. As crianças não puderam ser reconhecidas nem como sírias, nem como libanesas.
Mesmo chegando ao Brasil em 2014 só foi em 2016 que foi concedida a condição refugiados para as irmãs Maha Mamo e Souad Mamo, o Edward Mamo faleceu vítima de um assalto meses antes de ser reconhecido como refugiado (MARQUES, 2018, s/n). Note que mesmo o Brasil tendo internalizado a Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 e a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia de 1961 as irmãs Maha Mamo e Souad Mamo, inicialmente, foram reconhecidas como refugiados e não como apátridas, isso se deu por falta de efetividade social das Convecções e por falta de vontade política para regulamentar e instrumentalizar as disposições das Convenções. Mas tal situação mudou com a entrada em vigor da Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017 – Lei de Migração (BRASIL, 2017) e a Portaria Interministerial nº 5, de 27 de fevereiro de 2018 do Ministério da Justiça.
Com a entrada em vigor da Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017 – Lei de Migração (BRASIL, 2017) e a Portaria Interministerial nº 5, de 27 de fevereiro de 2018 do Ministério da Justiça, as irmãs Maha Mamo e Souad Mamo deram entrada no pedido de reconhecimento da condição de apátrida e em 26/6/2018 tiveram sua condição de apátrida reconhecido pelo estado Brasileiro, ressalta que esse foi o primeiro caso de reconhecimento da apatridia no país (BRASIL, 2018).
Com o reconhecimento da condição de apátrida pelo Brasil as irmãs Maha Mamo e Souad Mamo deram entrada no processo simplificado de naturalização previsto no caput do art. 26 da Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração) e regulamentado nos arts. 16 ao 21 da Portaria Interministerial nº 5 (BRASIL, 2018). Chagas (2018) destaca que em 04/10/2018 na Suíça, durante encontro da Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) o Ministério da Justiça concedeu a naturalização brasileira as irmãs Maha Mamo e Souad Mamo. No ato do recebimento da naturalização brasileira Maha Mamo afirmou que "Agora, é o final feliz de uma da história e o começo da minha vida" (WENTZEL, 2018, s/p).
Do exposto acima percebe-se que embora o Brasil tenha aderido à Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 nesse mesmo ano e ao decorrer dos anos aderiu a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia de 1961 que posteriormente foram internalizadas só em 2018 é os direitos previstos nestas convecções ponderam ganhar eficácia social com a edição da Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração) e com a Portaria Interministerial nº 5 do Ministério da Justiça (BRASIL, 2018).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A definição da nacionalidade de uma pessoa é essencial para verificar qual é o regime jurídico o qual se submeterá e, consequentemente, os direitos e deveres deste indivíduo perante o Estado. A definição dos critérios e a forma de aquisição da nacionalidade cabe a cada Estado que levam vários fatores em consideração. O Brasil adota critérios amplos de aquisição de nacionalidade, isso se deve ao fato do Brasil ser uma país formado por imigrantes e também para evitar os efeitos nefastos da apatridia.
Quando o ser humano não é considerado nacional de nenhum país, ou seja, não tem nacionalidade ele é considerado uma apátrida ou heimatlos. As consequências negativas da apatridia podem privar o ser humano dos direitos mais básicos e essenciais para se viver com o mínimo de dignidade humana.
A apatridia pode provocar a desagregação familiar, a perda de costumes e valores históricos e culturais inestimáveis, além de deixar mais precário a situação do atendimento dos países que recebem imigrantes apátridas. O ponto positivo (ou não) para a redução da apatridia é que ela só depende da vontade política e social dos países.
Em uma perspectiva jurídica da situação dos apátridas sobre a ótica Jusnaturalismo e Positivista percebe-se que a ausência de uma nacionalidade definida é um óbice para o exercício pleno dos direitos fundamentais e/ou humanos reconhecidos por determinado Estado sob uma ótica Positivista. Por outro lado, o Jusnaturalismo reconhece ao ser humano, independentemente de ter ou não uma nacionalidade, o pleno exercício dos direitos fundamentais e/ou humanos. Pois a nacionalidade não é a fonte do nascedouro dos direitos e sim o próprio ser humano, independentemente ter ou não uma nacionalidade.
Quanto a proteção jurídica no âmbito internacional, os apátridas têm uma proteção razoável dada pela Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 e a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia de 1961. Mas essa proteção só se torna efetiva se os países subscreverem a Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 e a Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia de 1961 e buscarem dar efetividade aos seus dispositivos normativos no âmbito interno.
Como o direito civil é o ramo do direito mais presente na vida do ser humano, pois rege as relações pessoais e patrimoniais privadas desde a concepção do indivíduo até depois da morte é que surge a indagação da (im)possibilidade do exercício dos direitos civis pelos apátridas. É dessa amplitude e simbiose do direito civil com a jornada da vida do ser humano que nasceu o problema de pesquisa do presente trabalho, qual seja: a (im)possibilidade do exercício dos direitos civis pelos apátridas e se a inexistência de uma nacionalidade definida seria um óbice ao exercício dos direitos civis.
Nessa perspectiva, da análise da legislação aplicada aos apátridas, em especial o art. 5º, caput, da CF/88; o art. 7º da Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954; o art. 26 da Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração) e o art. 1º do CC/2002 percebe-se que os apátridas residentes no Brasil gozam de todos os direitos civis, ou seja, os apátridas podem exercer os direitos civis previstos no ordenamento jurídico brasileiro, ressalvados as vedações legais.
Entretanto, a resposta não é tão simples assim, isso porque o art. 12 da Convenção Sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 e o art. 7º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro determina que o “estatuto pessoal de todo apátrida é regido pela lei do país de seu domicílio”. Ou seja, os direitos civis que compõem o estatuto pessoal do apátrida são regidos pela lei do domicílio do apátrida.
Sendo assim, diante da apresentação do regramento legal aplicado aos apátridas podemos afirmar que a ausência de nacionalidade não os impossibilita de exercer os direitos civis previstos no ordenamento jurídico brasileiro. Entretanto deverá ser observado o instituto do estatuto pessoal, o domicílio do apátrida e qual é o direito civil que se pretende exercer para estabelecer qual regramento jurídico deverá incidir no exercício dos direitos civis pelos apátridas.
Por fim, no âmbito interno, a proteção jurídica dos apátridas é fruto de uma evolução histórica e legislativa que demonstra que o Brasil demorou à adotar as medidas legislativas cabíveis para o enfrentamento da apatridia, mas o atual sistema jurídico de amparo aos apátridas está em consonância com o fundamento basilar da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana. Prova disso são os dois primeiros casos de reconhecimento de apatridia e naturalização simplificada concedidos pelo Brasil em 2018 às irmãs Maha Mamo e Souad Mamo, demonstrando assim a eficácia social do sistema jurídico de proteção dos apátridas. Ademais, do ponto de vista jurídico, o Brasil cumpre a contento as disposições internacionais para o enfrentamento da apatridia, possibilitando o exercício dos direitos civis.
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VILELA, Pedro Rafael. Brasil reconhece condição de apátrida pela primeira vez na história. Agência Brasil – Brasília, 2018. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-06/brasil-reconhece-condicao-de-apatrida-pela-primeira-vez-na-historia. Acesso em: 21 jul. 2020.
WENTZEL, Marina. Com base em lei pioneira, Brasil concede cidadania a irmãs sem pátria. BBC News Brasil – Suíça, 2018. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45738226. Acesso em: 21 jul. 2020.
Advogado graduado pelo Instituto Camillo Filho (ICF), pós-graduando em Direito Civil e Processo Civil pela Escola do Legislativo da ALEPI, pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Superior de Advocacia (ESA - OAB-PI).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, FRANCULINO JOSÉ DA SILVA. A (im)possibilidade do exercício dos direitos civis pelos apátridas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jun 2022, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58606/a-im-possibilidade-do-exerccio-dos-direitos-civis-pelos-aptridas. Acesso em: 23 dez 2024.
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