Resumo: O presente artigo trata sobre a problematização da universalização do saneamento básico no Brasil, que com da pandemia pelo Covid–19, cientistas alertaram sobre a relação direta da proliferação do novo coronavírus com ausência de saneamento básico. Nesta oportunidade, foi constatado que cem milhões de brasileiros vivem sem rede coletora de esgoto e outros trinta e cinco milhões vivem sem acesso à água potável. A situação viola os direitos humanos na essência da tutela do mínimo existencial para uma vida digna, razão pela qual normas legais foram criadas em busca de diretrizes para melhor cumprimento da implantação do saneamento. Para lidar com essa questão, é fundamental investigar minuciosamente as normas que regem o saneamento básico, o saneamento no Brasil, direitos fundamentais e o poder discricionário, Covid-19 e o saneamento. Os resultados demonstram que o problema não decorre apenas da insuficiência de recursos financeiros, mas principalmente de outros fatores como a falta de vontade política e decisões judiciais vacilantes. De tudo isso há constatação que com a pandemia Covid-19, o caos do saneamento básico no Brasil ficou exposto.
Palavra-chave: Covid-19. Saneamento Básico. Direitos Sociais. Caos.
Abstract: This article deals with the problematization of the universalization of basic sanitation in Brazil, which with the Covid-19 pandemic, scientists warned about the direct relationship of the proliferation of the new coronavirus with the absence of basic sanitation. On this occasion, it was found that one hundred million Brazilians live without a sewage system and another thirty-five million live without access to drinking water. The situation violates human rights in the essence of protecting the existential minimum for a dignified life, which is why legal norms were created in search of guidelines for better compliance with the implementation of sanitation. To deal with this issue, it is essential to thoroughly investigate the rules that govern basic sanitation, sanitation in Brazil, fundamental rights and discretionary power, Covid-19 and sanitation. The results show that the problem does not stem only from insufficient financial resources, but mainly from other factors such as lack of political will and vacillating judicial decisions. From all this, it is clear that with the Covid-19 pandemic, the chaos of basic sanitation in Brazil was exposed.
Keywords: Covid-19. Basic Sanitation. Social rights. Chaos.
Sumário: 1 Introdução. 2 Saneamento Básico no Brasil. 3 Covid 19 e o Saneamento Básico. 4 Direitos Fundamentais e o Poder Discricionário. 5. Conclusão. 6 Referências.
1 Introdução
Diante do cenário que o Brasil atravessou e ainda se encontra em meio à pandemia da Covid-19 (Sars-CoV-2), a universalização dos serviços básicos de saneamento com esgotamento sanitário, abastecimento de água, manejo de resíduos sólidos e drenagem urbana, tem sido alguns dos motivos de grande debate na sociedade em virtude da ausência desses serviços na maioria das cidades do Brasil, mormente nas regiões norte e nordeste e periferias das grandes cidades, pois a expansão do contágio do vírus encontra-se intimamente relacionada à essas condições que não permitem que as pessoas cumpram o mínimo de higienização e que o vírus se propaga em meio ao esgoto a céu aberto e água potável para higienização.
Não por acaso que matérias jornalísticas noticiam que a falta de saneamento dificulta combate à pandemia, dizem especialistas, com os seguintes destaques:
A Covid-19 reforça o que os especialistas já ressaltam há muito tempo. O saneamento básico deve ser prioridade de qualquer nação interessada a reduzir as abissais diferenças entre a população mais abastada e os mais pobres. Portanto, deve ser uma política permanente de Estado, independente do governo de plantão. Os prejuízos causados pela falta de tratamento adequado do esgoto e de abastecimento de água tratada, principalmente com a pandemia desse novo coronavírus, são incalculáveis.
Para alcançar a universalização desses serviços, todas as esferas governamentais têm o desafio de contribuir para um planejamento minucioso, de curto, médio e longo prazo. Ele deve ser capaz de atender às demandas regionais, embasado em informações consistentes dos mais de 5.500 municípios brasileiros. O enfrentamento a pandemia da Covid-19 poderia ser menos traumático se o país contasse com melhores condições de infraestrutura na área de saneamento. Essa é uma lição que não podemos esquecer e precisamos transformar esse aprendizado em política eficaz capaz de reverter os péssimos indicadores que ainda colecionamos na área. (PLADEVALL, 2022).
O novo marco regulatório do saneamento, sancionado pela Lei Federal nº 14.026/2020, com publicação datada em 16 de julho de 2020, com vigência a partir desta data, tem como objetivo atualizar o marco legal do saneamento básico e, entre outras alterações, pretende aprimorar as condições estruturais do saneamento básico no País estabelecidas na Lei nº 11.445/2007 (diretrizes nacionais para o saneamento básico). A lei foi recepcionada com muito gáudio pelos meios políticos e a imprensa em geral, como o grande avanço rumo à universalização e qualidade da prestação dos serviços de saneamento básico, com a meta de se alcançar a universalização até 2033, garantindo que 99% da população brasileira tenha acesso a água potável e 90% do tratamento e a coleta de esgoto, conforme preconiza a lei:
Art. 11-B. Os contratos de prestação dos serviços públicos de saneamento básico deverão definir metas de universalização que garantam o atendimento de 99% (noventa e nove por cento) da população com água potável e de 90% (noventa por cento) da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033, assim como metas quantitativas de não intermitência do abastecimento, de redução de perdas e de melhoria dos processos de tratamento. (BRASIL, 2007).
Todavia, diante da ação governamental em propagar que além de universalizar o saneamento básico no Brasil, o novo marco contribuirá para revitalização de bacias hidrográficas, conservação do meio ambiente, redução de perdas de água e principalmente aquecer a economia e gerar empregos, com a participação da iniciativa privada sem qualquer entrave burocrático, enfim, em meio a essa euforia incontida demonstrada pelo Governo, deve-se analisar com bastante cautela e serenidade a situação quando se tem de um lado um direto fundamental modelado pelo princípio da dignidade humana e de evidente aplicação imediata, hoje, mais do que nunca, premente em razão da pandemia do Covid-19, e do lado oposto, a postergação da efetivação desse direito para o ano de 2033, com possibilidade para 2040[1] (BRASIL, 2007).
O que se pretende no presente artigo perpassa a simples efetividade imediata do saneamento básico em virtude da pandemia do Covid-19, mas também adentrar na situação atual do saneamento básico no Brasil, com a ausência de comprometimento das autoridades na resolutividade imediata do problema, sem deixar de visualizar o atual estágio da pandemia e a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial que é o núcleo da essência que autoriza a exigibilidade deste direito e, por fim, os direitos fundamentais e o poder discricionário do agente político na condução desses direitos ante os efeitos da pandemia da covid-19.
Tudo isso sem esquecer a dicotomia posta ao Judiciário do princípio do mínimo existencial do ser humano para uma vida digna e a teoria da reserva do possível, em virtude dos ínfimos recursos orçamentários disponíveis para se observar se com a pandemia do Covid-19 houve aceleração no.
2 Saneamento Básico no Brasil
O Artigo 23 da Constituição Brasileira, em seu inciso IX, estabelece a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, para promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico, sendo que a regulamentação para gerir o saneamento básico no Brasil encontra-se na Lei 11.445/2007, hoje atualizada pela lei 14.026/2020 (novo marco legal do saneamento básico), onde constam as diretrizes nacionais para o saneamento básico em que todos os entes federativos possuem responsabilidades no trato da universalização do saneamento básico. (BRASIL, 2020).
A Lei 11.445/2007, lei do Saneamento Básico Nacional, que é o marco regulatório, definiu as diretrizes para o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), onde constam os princípios que devem ser seguidos pelos titulares dos serviços, os prestadores de serviços, agência regulatórias na fiscalização dos contratos e da prestação dos serviços de saneamento, o papel dos Municípios, os Estados-membros e a União, entre outros pontos (BRASIL, 2007).
Destarte, a União tem competência para instituir normas de referência para a regulação dos serviços de saneamento, zelando pela uniformidade regulatória, além de estabelecer as diretrizes gerais para as políticas nacionais, a formulação de programas e plano de saneamento em âmbito nacional, entre outras atribuições. Os Estados-membros possuem competência para estabelecer as políticas estaduais, os serviços e as regulamentações, com a novidade de que passaram a ter titularidade dos serviços em conjunto com os Municípios que compartilham efetivamente instalações operacionais integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, instruídas por lei complementar estadual, no caso de interesse comum, entre outras atribuições. Os Municípios e o Distrito Federal, possuem a titularidade dos serviços, no caso de interesse local, e a responsabilidade pela elaboração do plano municipal de saneamento, entre outras atribuições.
Assim, definida legalmente as diretrizes do saneamento entre os entes federativos na consecução da implementação e ampliação do saneamento básico no Brasil, isso desde o advento da Lei 11.445/2007, observa-se que com mais de uma década de vigência da lei, temos em nosso País os seguintes dados extraídos do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS, 2020), com referência à população total no Brasil, somente com relação ao abastecimento de água potável por rede geral e atendimento total com serviço de esgotamento sanitário, com comparativos dos anos de 2014, 2016, 2018 e 2020, a saber:
Índice de Atendimento Total com serviço de abastecimento de água por rede geral de distribuição, em Porcentagem. |
||||
Grandes Regiões |
2014 |
2016 |
2018 |
2020 |
Média do Brasil |
83,01% |
83,3% |
83,6% |
84,1% |
Norte |
54,5% |
55,4% |
57,11% |
58,9% |
Nordeste |
72,9% |
73,6% |
74,2% |
74,9% |
Sudeste |
91,7% |
91,2% |
91,0% |
91,3% |
Sul |
88,2% |
89,4% |
90,2% |
91,0% |
Centro-Oeste |
88,9% |
89,7% |
89,0% |
90,9% |
Fonte: Elaborado pelo autor com base nas informações do SNIS, 2020a
Índice de Atendimento Total com serviço de Esgotamento Sanitário, em Porcentagem. |
||||
Grandes Regiões |
2014 |
2016 |
2018 |
2020 |
Média do Brasil |
49,8% |
51,9% |
53,2% |
55,0% |
Norte |
7,9% |
10,5% |
10,5% |
13,1% |
Nordeste |
23,8% |
26,8% |
28,0% |
30,3% |
Sudeste |
78,3% |
78,6% |
79,2% |
80,5% |
Sul |
38,1% |
42,5% |
45,2% |
47,4% |
Centro-Oeste |
46,9% |
51,5% |
52,9% |
59,5% |
Fonte: Elaborado pelo autor com base nas informações do SNIS, 2020b
Nesse diapasão, os dados mostram que depois de mais de 10 anos da vigência da lei nº 11.445/2007, seu objetivo maior que é a universalização do acesso ao saneamento básico, com equidade, integralidade, disponibilidade em todas as áreas urbanas, mormente quanto ao abastecimento de água e serviço de esgotamento sanitário, não se tem uma resposta satisfatória em algumas regiões do Brasil e as periferias das grandes cidades (BRASIL, 2007).
As alterações trazidas pela Lei 14.026/2020 ( novo marco legal do saneamento básico), entre outras, não buscaram um alternativa concreta e factível com a questão do saneamento básico, concentraram apenas no controle pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) das normas de referências para a regulamentação dos serviços públicos de saneamento básico, zelando pela uniformidade regulatória; ampliaram a titularidade dos serviços de saneamento que agora podem ser exercida também pelos Estados, em conjunto com os municípios que compartilham instalações operacionais, integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, instituídas por lei complementar estadual, no caso de interesse comum; dispensa da obrigatoriedade do plano municipal de saneamento básico, caso o município esteja inserido na prestação regionalizada de serviços de saneamento, onde o respectivo plano regional suprirá o plano municipal; os contratos de programa (uma espécie de modelo de contrato) para prestação dos serviços públicos de saneamento básico existentes na data da publicação desta lei, permanecerão em vigor até o advento do seu termo contratual, não havendo prorrogação, sendo que os contratos de concessão do serviço serão mediante prévia licitação, com participação da iniciativa privada em igualdade de condições com as companhias estatais, ficando expressamente vedada a prorrogação de contratos existentes que eram celebrados em sua maioria mediante contrato de programa (prestam o serviço mas não há contrato firmado com o titular), convênios, termo de parceria e contratos precários (BRASIL, 2020).
Tem-se na realidade que a concessão dos serviços públicos de saneamento básico mediante previa licitação, ou seja, em igualdade de condições para a concorrência licitatória foi o maior avanço introduzido pela Lei 14.026/2020, não pelo fato de que, por si só, haverá um incremento de empresas privadas ou companhias públicas estruturadas interessadas no produto “Saneamento Básico”, mas o processo de contratação ficará mais transparente, inibindo os modelos obscuros de contratação de serviços públicos até então existentes (BRASIL, 2020).
Também, pouco crível que a iniciativa privada participará de investimentos arriscado sem que o poder público não participe do risco, ou melhor, do pouco ou quase inexistente lucro no investimento em saneamento básico, mormente em regiões mais carentes e periferias das cidades.
Sobre o assunto, em comentário ao blog do CEE-Fiocruz, o pesquisador da Fiocruz Léo Heller, relator especial das Nações Unidas para água e saneamento, foi bastante claro ao asseverar:
O risco da privatização ocorre em um ambiente de regulação débil, como é a regulação no Brasil, muito recente. Existem reguladores muito despreparados, tecnicamente frágeis. Trata-se de um ambiente que deixa em aberto às empresas privadas o exercício do que elas têm de mais nítido em seu DNA, que é a produção de lucro. Esses riscos para os Direitos Humanos – ou para sua a violação – se apoiam em três pilares: a premissa da maximização de lucros, que caracteriza a ação das companhias privadas; o entendimento do saneamento como um monopólio natural, existindo, assim, uma enorme dificuldade de regular um prestador único, em ambientes em concorrência e monopolista; e a assimetria de poder, em que muitas vezes as companhias privadas são muito poderosas, ou as empresas nacionais com grande capacidade de lobby, são favorecidas em sua relação com governos geralmente frágeis. Qual é a resultante disso? Mais exclusão, ou a não inclusão daquelas populações que sem acesso aos serviços, além de aumento de tarifas e acessibilidade financeira comprometida. (HELLLER, 2020).
Corroborando com a assertiva de que nem sempre a abertura de investimentos para a iniciativa privada para o trato das políticas sociais é satisfatória, basta lembrar que o modelo empresarial na condução dos serviços de saneamento básico no Brasil há muito vem sendo aplicado, isso desde a época dos Governos Militares, quando foi instituído o Plano Nacional de Saneamento, o conhecido “Planasa”, com financiamento do Fundo de Garantia dos Trabalhadores FGTS, gerido pelo então Banco Nacional de Habitação - BNH , sendo que este sistema criou aportes financeiros para o saneamento, que teve como cerne a criação por parte dos Estados-membros de Companhias estaduais de água e esgoto, que prestariam esses serviços aos municípios e estes, que eram os detentores exclusivos da titularidade dos serviços de saneamento, pela falta de condições de gerir companhias municipais de serviços públicos de água e esgoto, ficavam praticamente sem outra alternativa a não ser aceitar a exploração dos serviços pelas Companhias estaduais. Tinha-se a ideia de que os serviços seriam autossustentáveis, ou seja, a cobrança pelo serviço arrecadaria recursos de maneira tal que desse para pagar a instalação, o funcionamento dos serviços e, também, o capital e os juros do investimento contraído junto ao BNH.
Daí, a intenção de criar esses tipos de companhias estaduais com a lógica empresarial era para torná-las mais atraentes à iniciativa privada, sendo que a primeira normatização para a participação da iniciativa privada foi com o advento da Lei 8.987/1995, chamada Lei das Concessões de serviços públicos às empresas privadas (BRASIL, 1995).
A iniciativa privada foi cada vez mais ampliando sua participação no saneamento, principalmente nos serviços de água e esgoto, em diferentes formas de concessão plena ou de parte do serviço, que se chama de concessão parcial, instituindo-se até a parceria público-privada (PPP), normatizada pela lei federal 11.079/2004, que abriu a possibilidade dessa modalidade de investimento (BRASIL, 2004).
Portanto, como mencionado anteriormente, não há novidade com o chamado “novo marco legal do saneamento básico”, lei nº 14.026/2020, em termos da participação da iniciativa privada, a não ser pelo fato de que agora a concorrência para a prestação do serviço público será em igualdade de condições mediante licitação, o que indica a notória continuidade da desigualdade regional, posto que se anteriormente a iniciativa privada não investia nas regiões mais pobres no Brasil, não seria agora que essa mentalidade iria mudar sem qualquer atrativo de lucro nessas regiões na perspectiva capitalista das empresas privadas (BRASIL, 2020).
Nem mesmo o chamado “subsídio cruzado”, situação em que munícipios cujas as receitas tarifárias não seriam suficientes para cobrir os custos seriam “subsidiados” pelos municipais superavitários deu certo no Brasil, haja vista que este modelo se mostrou inadequado à nossa realidade, pois quase nenhuma Companhia Estadual de Abastecimento é autossustentável via tarifas (CEZARINA, 2015, p. 47).
No próprio SNIS (Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento), de 2020, mostra que a participação das empresas privadas nos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário no Brasil, em porcentagem, encontram-se no patamar de 8,35% e 3,58%, respectivamente (SNIS, 2020).
Ora, fácil fazer a correlação de que a iniciativa privada tem interesse em empreendimentos que são mais rentáveis. Isto é, fazendo a comparação apenas entre abastecimento de água e esgotamento sanitário, onde o abastecimento encontra-se mais consolidado e estruturado que o esgotamento sanitário.
O certo é que o Estado deve assumir os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil estabelecidos no artigo 3º, inciso III, da Carta Constitucional, que tem como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (BRASIL, 1988).
3 Covid 19 e o Saneamento Básico
O Brasil já registrou 30.791.220 de casos de contaminação pelo Covid-19, sendo que desses, 12.613 foram registrados nos sistemas nacionais nas últimas 24 horas. As informações sobre o cenário epidemiológico foram atualizadas às 17h30 deste domingo (22/05/2022), por meio de dados enviados ao Ministério da Saúde pelas Secretarias de Saúde estaduais, municipais e do Distrito Federal, conforme o Ministério da Saúde (BRASIL, 2022).
Na mesma pesquisa do Ministério da Saúde, mais de 163,3 milhões de brasileiros já foram imunizados com duas doses da vacina, com distribuição pelo País de mais de 487,7 milhões de doses de vacina covid-19, dessas 431,4 milhões de doses foram efetivamente aplicadas.
Quanto aos óbitos, o País já alcançou a marca de 665.627 mortos por coronavírus, sendo que a média de mortes por dia vem aumentando, com o registro de 99 mortes nas últimas 24 horas e 3.212 permanecem em investigação “Mortis causa” (BRASIL, 2022)
Evidente que um dos fatores desta média tem a ver com a ausência de saneamento básico em algumas regiões. Na reportagem de Kaynã de Oliveira (2020) no Jornal da USP em que cita o estudo realizado por pesquisadores da USP e veiculado no Le “Monde Diplomatique Brasil”, pela professora Larissa Mies Bombardi, do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e junto a Pablo Luiz Maia Nepomuceno, chegou-se à constatação que a precariedade do saneamento básico pela falta de abastecimento de água adequada e ausência de coleta e tratamento de esgoto está intimamente ligado com o alto número de casos e mortes por covid-19 no País, com destaque nas regiões Norte e Nordeste, especificamente nos Estados do Amazonas e Ceará que com saneamento deficitário, pode ter permitido a proliferação do Covid-19 (BOMBARDI; MAIA apud OLIVEIRA, 2020).
Segundo os pesquisadores, acima citado na reportagem
[...] hipótese se baseia em artigos internacionais que atestam a presença do novo coronavírus nos excrementos humanos, mesmo em casos assintomáticos ou curados e, portanto, o alto número de casos de covid-19 no Amazonas e Ceará pode ter relação com a precariedade do saneamento básico, propiciando a contaminação via oral-fecal das populações que convivem com esgoto a céu aberto ou sem água tratada. (BOMBARDI; MAIA apud OLIVEIRA, 2020).
Pode-se algar que os Estados do sul e sudeste registraram os maiores índices de contaminação confirmados pelo Covid 19, mesmo estando em melhores condições de saneamento básico que os Estados do norte e nordeste. Então, esta relação de precariedade de saneamento com proliferação do vírus não se sustenta. Todavia, a densidade demográfica da região sul e sudeste e bem maior que a do norte e nordeste, bem como por sediarem aeroportos internacionais de grande movimentação, sem qualquer restrição sanitária na maioria dos meses pandêmicos, justificam o maior número de infectados na região sul me sudeste.
E conclui os pesquisadores Bombardi e Maia:
Essa falta de saneamento básico tanto amplifica o número de pessoas infectadas quanto a gravidade dos casos. Acho que tem esses dois elementos juntos. Um que eu chamaria de horizontal e outro que eu chamaria de vertical. O horizontal é esse, esse espraiamento espacial, esse aumento do número de casos, e o vertical é a gravidade da doença em pessoas que estão numa condição ambiental inadequada e vulnerável. (BOMBARDI; MAIA apud OLIVEIRA, 2020).
Não diferente deste entendimento sobre a importância do saneamento básico frente a pandemia, Luís Sérgio Valentim, diretor de Meio Ambiente do Centro de Vigilância Sanitária do Estado de São Paulo, vê o saneamento como ferramenta de saúde preventiva essencial no combate à covid-19 e conta o que espera para o setor no cenário pós-pandemia:
[...] o setor de saneamento ganha um certo protagonismo por conta realmente destas condições e da necessidade de termos acesso à água, serviços de coleta e tratamento de esgoto, drenagem urbana de acordo com a dimensão das nossas cidades, além da coleta e tratamento de resíduos. Então, todos estes fatores ganham de fato protagonismo numa situação pandêmica, como esta que estamos vivendo, sempre alertando à população para a importância dos procedimentos e a utilização dos serviços de saneamento de maneira adequada, dando a devida importância. Mas sem dúvida nenhuma, o setor de saneamento ganha uma relevância bastante grande neste contexto de pandemia. (VALENTIM, 2020).
4 Direitos Fundamentais e o Poder Discricionário
O saneamento básico vinculado diretamente ao direito à saúde, conforme art. 6º/CF que estabelece que são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, combinado com o art. 200/CF: ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: IV- Participar da formulação da Política e da Execução das Ações de saneamento básico. “Remete-nos para o reconhecimento de um direito fundamental que alcança os direitos humano, que uma vez não respeitado, viola a dignidade da pessoa humana” (CANOTILHO, 1998, p. 259).
Assim, o saneamento básico como corolário da universalização da saúde, é uma condição essencial à dignidade da pessoa humana, cabendo ao Estado, por meio de políticas públicas, assegurá-lo como direito de todos os cidadãos, sob pena de violar o mínimo existencial para que o ser humano viva com dignidade.
Sem se aprofundar na questão da dignidade humana e o núcleo essencial do mínimo existencial, pois o objetivo do presente artigo não é este, todavia, não se pode deixar de mencionar que o não cumprimento do mínimo existencial em razão da ausência de saneamento básico, viola um dos mais sagrados fundamentos de nossa Constituição de 1988, que é a dignidade da pessoa humana, conforme estabelece o art. 1º, inciso III, da CF (BRASIL, 1988).[2]
No auge do pico da pandemia do covid-19, mais precisamente em 14 de julho de 2020, foi publicado a lei nº 14.026/2020, com mudanças no marco legal brasileiro, conforme anteriormente mencionado e enumeradas as principais mudanças, porém, ao fixar a linha temporal de 2033 e 2040 como limite para alcançar a meta de universalização do saneamento básico (art. 11-B e § 9°), indubitavelmente, a prioridade com a questão do saneamento básico, mesmo diante da pandemia, ficou em um plano secundário nas políticas públicas (BRASIL, 2020).
Ao se falar de universalização do saneamento básico como direito fundamental positivado em nossa Constituição Federal, uma reflexão profunda deve ser feita no sentido de como um direito fundamental de grande alcance não é efetivado de maneira real em nosso País, pois, chega-se a violar a dignidade do ser humano e até o mínimo existencial das pessoas que moram em favelas e periferias dos grandes centros urbanos e das regiões do Brasil menos desenvolvidas, como no caso do norte e nordeste, situação que traz um grande custo humanitário com proliferações de doenças, inclusive COVID-19, baixa qualificação em termos de escolarização, trabalho e renda, com baixo padrão de vida, e mesmo com essas consequências sociais e econômicas nefastas, ainda há resistência estatal na imediata implementação da universalização do saneamento básico, com o respaldo do que a doutrina denomina “Teoria da Reserva do Possível”, tese que é ainda suscitada para a não implementação imediata desse direito fundamental.
Para melhor ilustração, a “Teoria da Reserva do Possível”, originária da doutrina alemã, foi aplicada pela primeira vez pela Corte Constitucional daquele país, nos idos da década de setenta, quando estudantes de medicina não conseguiram vagas nas universidades das cidades de Hamburgo e Munique, por conta da limitação de vagas imposta pelo Governo da Alemanha, os estudantes ajuizaram uma ação com base na Constituição que estabelece: “todos os alemães têm direito a escolher livremente sua profissão, local de trabalho e seu centro de formação”. (Art. 12, LEI FUNDAMENTAL DA REPÚBLICA FEDERAL DA ALEMANHA, 1949, p. 3).
A Corte Constitucional proferiu decisão no sentido de que o direito a ser prestado pelo Estado aos estudantes, qual seja, vagas nas universidades públicas de Hamburgo e Munique, encontrava-se dependente da reserva do possível, posicionando-se a Corte Constitucional de que os estudantes só poderiam exigir do Estado aquilo que razoavelmente pudesse esperar do Estado, ou seja, foi a pura aplicação do princípio da razoabilidade frente às necessidades da sociedade, sendo que este caso ficou conhecido como o caso “numerus clausus”, dado que se discutia a limitação do número de vagas nas unive3.rsidades públicas de Hamburgo e Munique ante o direito do cidadão alemão escolher livremente sua profissão, local de trabalho e seu centro de formação (MÂNICA, 2007, p. 169).
Diante desta corrente doutrinária que se originou na Alemanha de relegar aos direitos sociais a condicionante pura e simples da Teoria da Reserva do Possível, tem-se na própria doutrina alemã o entendimento, também, de que no âmbito dos direitos a prestação estatal, na forma de direitos fundamentais sociais, com a incidência do mínimo existencial, a decisão de garantir ou não a proteção deste Direito Social deve se basear na ponderação (sopesamento) de princípios e não pode ser deixado simplesmente ao poder discricionário do Poder Público, podendo haver o controle jurisdicional (ALEXY, 2017, p. 512).
No Brasil, não há consenso quando o assunto versa sobre a imediata implementação dos direitos fundamentais, até em razão da classificação que a doutrina faz dos direitos fundamentais, dividindo-os em gerações ou dimensões pelo marco histórico de cada um, a saber: 1ª geração ou dimensão: direitos civis e políticos, conquistados pelos movimentos de liberdade; 2ª geração ou dimensão: direitos sociais e coletivos, conquistados pelos movimentos sociais, direitos a igualdade e a positivação dos direitos humanos e da dignidade humana e a 3ª geração ou dimensão: direitos transindividuais, os que se referem aos direitos mais amplos e mais recentes, como meio ambiente, infância e juventude, desenvolvimentos dos povos e regiões e os direitos difusos. Há outras classificações, chegando-se até na 5ª geração ou dimensão, contudo, a divisão clássica é até a 3ª geração ou dimensão.
O doutrinador Paulo Bonavides, assevera:
Na primeira geração estão os direitos da liberdade, que são os direitos civis e políticos. Esses direitos já se solidificaram em sua importância de universalidade formal, galgando lugar de privilégio nas Constituições alinhadas com o conteúdo de tal postulado. (BONAVIDES, 2004, p. 563).
No mesmo sentido, o professor André Ramos Tavares, leciona:
Deve-se registrar que essa tripartição dos direitos fez com que os de primeira dimensão pudessem ser considerados como imediatamente exigíveis e implementáveis, ao passo que os de segunda dimensão necessitariam, para tanto, de uma disponibilidade orçamentária (e política) de cada Estado que os contemplasse em seus textos constitucionais. (TAVARES, 2012, p. 506).
Assim, os direitos sociais, incluindo o saneamento básico, por este ponto de vista doutrinário, estariam sempre a reboque da disponibilidade financeira do poder público para suas implementações, além da vontade política do agente público.
Até com bastante frequência, a jurisprudência pátria chegou a se posicionar no sentido do poder discricionário do Poder Público em escolher a prioridade que deveria ser alocada verbas orçamentárias, no que se refere aos direitos fundamentais que exigem a conduta positiva do Estado.
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PODER DISCRICIONÁRIO. ADMINISTRAÇÃO. Trata-se de ação civil pública em que o Ministério Público pleiteia que a municipalidade destine um imóvel para instalação de abrigo e elaboração de programas de proteção à criança e aos adolescentes carentes, que restou negada nas instâncias ordinárias. A Turma negou provimento ao recurso do MP, com fulcro no princípio da discricionariedade, pois a municipalidade tem liberdade de escolha onde devem ser aplicadas as verbas orçamentárias e o deve ter prioridade, não cabendo, assim, ao Poder Judiciário intervir. Precedentes citados: REsp 169.876-SP, DJ 21/9/1998, e Ag no REsp 252.083-RJ, DJ 26/3/2001. REsp 208.893-PR, Rel. Min. Franciulli Netto, julgado em 19/12/2003. Segunda Turma - Informativo 196. (BRASIL, 2003).
Contrariando tal entendimento, o doutrinador Wilson Donizetti Liberati, assim ensina:
O Estado não pode praticar atos (administrativos) e realizar serviços públicos que não estejam direcionados à completa satisfação do homem. Em outros modos, o Estado se posiciona vinculadamente à obrigação de cumprimento das normas constitucionais que consagram a primazia do respeito ao homem. O Estado não tem discricionariedade social em relação à proteção de todos os direitos do homem, de tudo aquilo que, genericamente, se costuma dizer da dignidade da pessoa humana. Como os direitos fundamentais gozam de um núcleo indisponível, o Estado sofre limitação pela regra constitucional da dignidade humana. (LIBERATI, 2013, p. 75).
Atualmente, a jurisprudência predominante tem se manifestado no sentido de que os direitos fundamentais, sejam direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, que forem atingidos de forma a violar os direitos humanos e o mínimo existencial, não pode prevalecer a tese da reserva do possível.
ADMINISTRATIVO. PROCESSO CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. REDE DE ESGOTO. VIOLAÇÃO AO ART. 45 DA LEI N. 11.445/2007. OCORRÊNCIA. DISCRICIONARIEDADE DA ADMINISTRAÇÃO. RESERVA DO POSSÍVEL. MÍNIMO EXISTENCIAL -1. Cuida-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul objetivando o cumprimento de obrigação de fazer consistente na instalação de rede de tratamento de esgoto, mediante prévio projeto técnico, e de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente e à saúde pública. 2. Caso em que o Poder Executivo local manifestou anteriormente o escopo de regularizar o sistema de encanamento da cidade. A câmara municipal, entretanto, rejeitou a proposta. 3. O juízo de primeiro grau, cujo entendimento foi confirmado pelo Tribunal de origem, deu parcial procedência à ação civil pública - limitando a condenação à canalização em poucos pontos da cidade e limpeza dos esgotos a céu aberto. A medida é insuficiente e paliativa, poluindo o meio ambiente. 4. O recorrente defende que é necessária elaboração de projeto técnico de encanamento de esgotos que abarque outras áreas carentes da cidade. 5. O acórdão recorrido deu interpretação equivocada ao art. 45 da Lei n. 11.445/2007. No caso descrito, não pode haver discricionariedade do Poder Público na implementação das obras de saneamento básico. A não observância de tal política pública fere os princípios da dignidade da pessoa humana, da saúde e do meio ambiente equilibrado. 6. Mera alegação de ausência de previsão orçamentária não afasta a obrigação de garantir o mínimo existencial. O município não provou a inexequibilidade dos pedidos da ação civil pública. 7. Utilizando-se da técnica hermenêutica da ponderação de valores, nota-se que, no caso em comento, a tutela do mínimo existencial prevalece sobre a reserva do possível. Só não prevaleceria, ressalta-se, no caso de o ente público provar a absoluta inexequibilidade do direito social pleiteado por insuficiência de caixa - o que não se verifica nos autos. Recurso especial provido." (REsp 1.366.331/RS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/12/2014, DJe 19/12/2014.) Utilizando-se da técnica hermenêutica da ponderação de valores, nota-se que, no caso em comento, a tutela do mínimo existencial prevalece sobre a reserva do possível. Só não prevaleceria, ressalta-se, no caso de o ente público provar a absoluta inexequibilidade do direito social pleiteado por insuficiência de caixa o que não se verifica nos autos. Ante o exposto, com fundamento no art. 557, § 1º-A, do CPC, dou provimento ao recurso especial para condenar o município a elaborar o projeto técnico de encanamento de esgotos no prazo de 60 dias, incluindo, por conseguinte, os valores da realização do projeto na lei orçamentária do exercício financeiro subsequente. Publique-se. Intimem-se. Brasília (DF), 24 de abril de 2015. MINISTRO HUMBERTO MARTINS Relator. (BRASIL. 2015).
Assim, fica claro que a universalização do saneamento básico é um direito fundamental com essência de direitos humanos, de imediata implementação, necessário para o ser humano viver em um ambiente saudável, com abastecimento de água, esgotamento sanitário e manejo de resíduos sólidos, principalmente diante da pandemia do covid -19 que sua proliferação tem relação com a precariedade do saneamento básico, propiciando a contaminação via oral-fecal das populações que convivem com esgoto a céu aberto ou sem água tratada para o mínimo de higienização, razão pela qual esse direito não pode ficar à mercê de políticas públicas que não atendam essas especificidades.
5 Conclusão
Todo esse entendimento de que o agente político não possui discricionariedade em relação aos direitos fundamentais que atingem o mínimo existencial para uma vida digna da pessoa humana, caso fosse a regra em nosso País, indubitavelmente, o Brasil estaria em uma situação de saúde pública bem melhor, enfrentando-se a pandemia do Covid-19 em todas as suas vertentes. Entretanto, não é o que acontece na realidade, pois, diante da escassez de recursos públicos para efetivar direitos fundamentais de forma concreta, os agentes públicos se valem da cláusula da “reserva do possível”.
Nessa relação, pode-se admitir a dicotomia que o poder da discricionariedade administrativa e a implementação das políticas públicas de cunho social nos impõe, sobretudo em relação ao saneamento básico que nos remete ao dilema da tutela do mínimo existencial e a teoria da reserva do possível.
O Poder Judiciário ainda é muito vacilante em reconhecer as garantias fundamentais de cunho social, quando o Estado é demandado para cumprir efetivamente e imediatamente esses direitos sociais, principalmente no caso da universalização do saneamento básico, dando às vezes interpretação jurídica de cunho neoliberal, onde tem prevalecido a teoria da reserva do possível em detrimento da tutela do mínimo existencial, reconhecendo o poder discricionário do agente público no trato dos direitos sociais, principalmente em virtude de disponibilidade orçamentária.
Destarte, a sociedade civil deve ter consciência da tragédia nacional, onde 45% de brasileiros não possuem coleta de esgotamento sanitário, isso em um universo de aproximadamente 220.000.000 (Duzentos e dez milhões) habitantes, significa perto de 100.000.000 (Cem Milhões) de pessoas sem coleta de esgotamento sanitária.
Regiões do Norte e Nordeste, respectivamente, 86,9% e 69,7% sem esgotamento sanitário, pode justificar que os Estados do Amazonas e Ceará, no pico da pandemia Covid-19, foram os mais atingidos proporcionalmente no Brasil.
Também, questão interessante a ser abordada e que embasa muitos argumentos da prevalência da cláusula da reserva do possível perante a tutela do mínimo existencial de uma vida dignada da pessoa humana, sob o manto de recursos escassos, confirmando, assim, o poder discricionário do agente público em matéria de direitos sociais, questiona-se como se daria o fluxo de verbas orçamentárias para esse investimento social de volumosa disponibilidade financeira, que, aliás, é discurso político predominante para a participação de investimentos privados, tem-se o seguinte:
Sabe-se que a saúde e a educação possuem gastos mínimos vinculados ao orçamento dos entes federativos, respectivamente, estabelecidos no art. 198, § 2º, I e no art. art. 212, da Constituição Federal.
Ora, fácil perceber que com boa vontade política, por exemplo, um aumento no percentual que incide no orçamento para gastos com a saúde para investimento no saneamento básico, o que se denominou “verbas vinculadas” sem a necessidade de criar impostos, já seria um início promissor para a solução do problema, ou outra forma seria um percentual retirado da fonte geral de recursos dos entes federativos para o saneamento básico de forma exclusiva, o que se restabeleceria de forma correta o sentido da universalização do saneamento básico por ser um direito fundamental de imediata implementação.
A iniciativa privada não possui qualquer interesse em investir em saneamento básico quando já tem a sua disposição mecanismos legais, como a Lei das Concessões de serviços públicos (Lei 8.987/1995) e as Parcerias Público-Privadas-PPP (Lei 11.079/2004), e mesmo assim a participação em abastecimento de água e esgotamento sanitário no Brasil chega a 8,35% e 3,58%, respectivamente. Como já tido anteriormente, não seria agora com a inovação trazida pela lei nº 14.026/2020, na igualdade de condições com o poder público, por meio de licitação, que a iniciativa privada participará mais ativamente do processo.
Ademais, mesmo os direitos fundamentais sociais mínimos que demandam um enorme efeito financeiro, como no caso do saneamento básico, não podem ficar à mercê da existência de orçamento para justificar a não exigibilidade deste direito (Reserva do Possível), ante o sopesamento do direito fundamental social que atinge o mínimo existencial de uma vida digne da pessoa humana (ALEXY, 2017, p. 513).
Ponto crucial do presente artigo é demonstrar que o direito fundamental ao acesso do saneamento básico pela população deve ser garantido de maneira integral e imediato, sem postergações, sem metas de implementação progressiva que não atingem o objetivo social, que sempre alteram os prazos de implementação universal para além do razoável, com respaldo em teorias que violam a tutela do mínimo existencial e atingem os direitos humanos no que lhe é mais caro: a dignidade da pessoa humana.
Outro ponto relevante do presente artigo é o fosso social, regional e até humanístico que existe no Brasil por conta da ausência do saneamento básico que, além da dignidade humana vilipendiada, torna o combate à proliferação da pandemia Covid-19 (Sars-CoV-2) mais dramática pela ausência de acesso à água potável para higienização e esgoto à céu aberto. A maior contatação é que a Pandemia do Covid-19 expôs a situação caótica dos direitos sociais no Brasil, mormente quanto à universalização do Saneamento Básico.
6 Referências
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BONAVIDES, P. Curso de Direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
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[1]Lei 11.445/2007, art. 11-B, § 9º - Quando os estudos para a licitação da prestação regionalizada apontarem para a inviabilidade econômico-financeira da universalização na data referida no caput deste artigo, mesmo após o agrupamento de Municípios de diferentes portes, fica permitida a dilação do prazo, desde que não ultrapasse 1º de janeiro de 2040 e haja anuência prévia da agência reguladora, que, em sua análise, deverá observar o princípio da modicidade tarifária. (Incluído pela Lei nº 14.026, de 2020).
[2] art. 1º, inciso III, da CF: A República Federativa do Brasil, formada pela União indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento: III- a dignidade da pessoa humana.
Mestrando em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito Ambiental e Políticas Públicas pela Universidade Federal do Pará e graduação em Direito pela Universidade Federal do Pará. Membro do Ministério Público do Estado do Pará desde 01/01/1993. Domiciliado em São Paulo. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2203867135023262. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0681-9300 E-mail: [email protected].
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARCELO BATISTA GONÇALVES, . A pandemia do covid 19 e a universalização do saneamento básico no Brasil: exposição caótica dos direitos sociais. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jun 2022, 04:41. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58624/a-pandemia-do-covid-19-e-a-universalizao-do-saneamento-bsico-no-brasil-exposio-catica-dos-direitos-sociais. Acesso em: 23 dez 2024.
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