LETÍCIA LOURENÇO SANGALETO TERRON
(orientadora)
RESUMO: O cenário pandêmico de Coronavírus provocou alterações na saúde e também mudanças jurídicas administrativas e esse contexto originou demandas em demasia a serem analisadas pelo poder judiciário, com destaque para o Supremo Tribunal Federal, verificando-se a judicialização de questões políticas. Quando instado a se pronunciar nessas questões pode ou não o poder judiciário responder de forma ativista e em prejuízo do Princípio da Separação dos Poderes. Utilizando o método dedutivo através de pesquisas bibliográficas em artigos científicos, livros e legislação, dissertou-se sobre o Princípio da Separação dos Poderes, os fenômenos da judicialização e ativismo judicial e análise de julgados do STF relacionados ao cenário da pandemia. Pretende-se refletir se em tais deliberações de vasta repercussão a Suprema Corte agiu com ingerência na competência dos demais poderes, com ultrapasse de suas funções constitucionalmente previstas. Foi possível concluir que embora já tenha decidido de maneira ativista em situações anteriores, no que se refere a pandemia, as decisões do Supremo Tribunal Federal foram no sentido de ratificar o que está expresso no texto constitucional.
Palavras chave: Covid-19. Supremo Tribunal Federal. Judicialização. Ativismo.
ABSTRACT: The Coronavirus pandemic scenario caused changes in health and also administrative legal changes and this context gave rise to too many demands to be analyzed by the judiciary, with emphasis on the Federal Supreme Court, verifying the judicialization of political issues. When asked to comment on these issues, the judiciary may or may not respond in an activist manner and to the detriment of the Principle of Separation of Powers. Using the deductive method through bibliographic research in scientific articles, books and legislation, the Principle of Separation of Powers, the phenomena of judicialization and judicial activism and analysis of STF judgments related to the pandemic scenario were discussed. It is intended to reflect if in such deliberations of vast repercussion the Supreme Court acted with interference in the competence of the other powers, exceeding its constitutionally foreseen functions. It was possible to conclude that although it has already been decided in an activist way in previous situations, about the pandemic, the decisions of the Federal Supreme Court were in the sense of ratifying what is expressed in the constitutional text.
Keywords: Covid-19. Federal Supreme Court. Judicialization. Activism
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Separação dos Poderes e a Constituição Federal de 1988. 3 Ativismo Judicial e Judicialização da Política. 4 Análise de casos práticos. 5 Conclusão. 6 Referências
1 INTRODUÇÃO
O Princípio da Separação dos Poderes, trabalhado sistematicamente pela primeira vez pelo pensador Aristóteles, aprimorado por Locke e posteriormente por Montesquieu, aborda a existência de três poderes distintos e com funções definidas que devem atuar harmonicamente nos limites estabelecidos para cada um tal como foi inclusive consagrado na Constituição Federal brasileira de 1988.
Apesar da adoção do sistema tripartite, pode-se observar nos últimos tempos um destaque para o Poder Judiciário brasileiro com o fenômeno da judicialização da política. Caracterizando tal ocorrência quando questões que tradicionalmente seriam de incumbência dos Poderes Legislativo ou Executivo são transferidas ao Judiciário acarretando excesso de demandas e atuação em questões polêmicas que levantam divergências quanto o que seria a maneira correta de agir.
Com a ocorrência desse fenômeno, pode ou não o Poder Judiciário responder de maneira ativista nos seus julgamentos, não necessariamente a ocorrência de um fenômeno obrigaria o outro, porém há decisões que acarretaram críticas e ascenderam debates quanto à sua atuação e possível postura dotada de ativismo judicial, indo além do que seria sua função de julgar conforme o texto legal.
Como consequência da pandemia de Covid-19 o Poder Judiciário, em destaque o Supremo Tribunal Federal, foi sobrecarregado de processos envolvendo as questões que foram trazidas pelo cenário pandêmico, o que acendeu o debate se estaria atuando novamente com postura ativista ingerindo na função dos demais poderes ou apenas trabalhando dentro de suas atribuições.
O Supremo foi provocado em diversas situações envolvendo inclusive decisões tomadas pelo Poder Executivo Federal o que ganhava ainda mais destaque e repercussão, além de desconforto entre os poderes e debates acalorados sobre atuação fora da delimitação funcional estabelecida.
Nesse diapasão, buscou-se analisar com esse trabalho se nessas decisões de maior repercussão envolvendo a pandemia o STF feriu o Princípio da Separação dos Poderes, atuando de forma ativista, ou se apenas agiu nos expressos limites fazendo valer o texto constitucional diante da omissão dos demais poderes.
2 SEPARAÇÃO DOS PODERES E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
O Princípio da Separação dos Poderes, tido como um dos pilares do Estado Democrático, tem sido tecido e aprimorado ao longo do tempo, considerando-se suas bases primárias esboçadas por Aristóteles em Política, obra em que o pensador identificou as funções do Estado como deliberativas, executivas e judiciais, porém concentradas em único poder soberano.
As primeiras bases teóricas para a “tripartição de Poderes” foram lançadas na antiguidade grega por Aristóteles, em sua obra Política, em que o pensador vislumbrava a existência de três funções distintas exercidas pelo poder soberano, quais sejam, a função de editar normas gerais a serem observadas por todos, a de aplicar as referidas normas ao caso concreto (administrando) e a função de julgamento, dirimindo os conflitos oriundos da execução das normas gerais nos casos concretos (LENZA, 2018, pag. 571).
No século XVII John Locke em sua obra Segundo Tratado sobre o Governo, com concepções liberais, defendeu a desconcentração do poder em órgãos distintos e identificou funções diferentes a serem exercidas elencando-as como executiva, legislativa e federativa, de maneira que o poder que fosse responsável pela edição das leis não as executassem (LOCKE, 1998).
Nesse sistema esboçado o poder legislativo elaboraria as leis a serem cumpridas e seria o poder supremo entre os demais, bastando sua composição temporária, assim, após a formação das leis, desmanchar-se-ia voltando apenas a recompor-se quando e se necessário. O poder executivo nessa repartição seria um poder permanente e responsável por executar as leis impostas.
Ao terceiro poder, o federativo, caberia as relações da comunidade com o exterior e declarar guerra ou paz e apesar da divisão, Locke reconhece que tais decisões deveriam ser de competência do poder executivo, compreendendo-se esse terceiro poder como parte daquele: “Embora, conforme disse, os poderes executivo e federativo de qualquer comunidade sejam realmente distintos entre si, dificilmente podem ser separados e depositados, ao mesmo tempo, nas mãos de pessoas diferentes” (LOCKE, 1998, p. 517).
Mas foi Montesquieu que em O Espírito das Leis (1748) trabalhou sistematicamente pela primeira vez o que viria a ser conhecido como onceito de Separação dos Poderes e delimitação funcional do poder a fim de manter a liberdade e segurança individuais, dando ênfase que um dos benefícios desse sistema de divisão era um órgão atuar de forma a não ultrapassar os limites de suas funções ponderando pelo equilíbrio na divisão orgânica dos poderes.
De fato, segundo Montesquieu, uma vez realizada a separação dos poderes, a soberania deixaria de pertencer, ou por outras palavras, de caber a um único, mas sim passaria simultaneamente a todos eles, em condições de absoluta paridade e independência, todos investidos, a igual título, das respectivas competências. Estabelecerse-ia, assim, entre os órgãos fundamentais, um verdadeiro e autêntico equilíbrio (balance de pouvoirs), um servindo de freio ao outro (teoria dos freios e contrapesos), dominados como são por uma recíproca desconfiança (“o poder detém o poder”). (BOTTALLO, 2007, p. 38)
Tal princípio foi consagrado na Constituição Federal de 1988 no artigo 2º que dispõe “São poderes da União independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”, visando a desconcentração do poder e com a função de coibir desrespeito aos direitos fundamentais, além de mensurar mecanismos previstos para controle com vistas a garantir a manutenção Estado democrático.
Corroborando com o exposto:
A Constituição Federal, visando, principalmente, evitar o arbítrio e o desrespeito aos direitos fundamentais do homem, previu a existência dos Poderes do Estado e da instituição do Ministério Público, independentes e harmônicos entre si, repartindo entre eles as funções estatais e prevendo prerrogativas e imunidades para que bem pudessem exercê-las, bem como criando mecanismos de controles recíprocos, sempre como garantia da perpetuidade do Estado democrático de Direito (MORAES, 2017, p. 312)
Nessa separação o Poder Executivo é o órgão que foi recebido como encargo o exercício das atividades relacionadas ao comando de estado e decisões inerentes à sua direção (MORAES, 2021). Na concepção clássica da separação, a função típica de executar as leis e garantir a ordem interna através do governo representando os interesses dos seus governados assim considerados como um todo.
Ao Poder Legislativo, como sugere a nomenclatura, na divisão orgânica dos poderes, foi reservado como competência principal e típica a elaboração das normas jurídicas que regulam as diversas relações existentes seja entre os indivíduos ou até mesmo envolvendo o próprio Estado.
O resultado da atuação desse Poder é a exteriorização das necessidades de regulamentação das demandas oriundas do convívio em sociedade e que não cabe a esta dirimir.
Nesse mesmo sentido:
O Poder Legislativo, na condição de mais transparente e democrático dos poderes, tem como missão organizar e equacionar, pacífica e democraticamente, as contradições que a sociedade não pode nem deve assumir [...] portanto, é, por natureza, o lugar onde se forma a vontade normativa do Estado e o foro legítimo e apropriado para a solução das demandas da sociedade a serem traduzidas na forma de lei e políticas públicas (QUEIROZ, 2014, pag. 10).
Ao terceiro Poder, o Judiciário, tipicamente é assegurada a competência para exercer a função jurisdicional, reservada aos juízes, analisando e aplicando o direito à luz do caso concreto, dirimindo as questões que são submetidas à sua análise e dizendo na prática quem seria o detentor do direito.
A função típica do Poder Judiciário é a prestação da tutela jurisdicional, que consiste em aplicar a norma (que é abstrata) a um caso concreto, a um litígio (lide) que lhe foi apresentado, dizendo quem tem razão de acordo com o Direito. O ato jurisdicional produz a coisa julgada, a decisão judicial contra a qual não cabe mais recurso, tornando-se imutável. Jurisdição significa “dizer o Direito”, e qualquer cidadão tem direito a esta prestação (art 5º, XXXV) (MOTTA, 2021, pag. 763).
Revela-se mister que a atuação dos poderes seja balizada no princípio da tripartição para que seja mantida a ordem que exige o Estado Democrático de Direito e sua organização política que encontra previsão e fundamento na Constituição Federal, em que pese a necessidade de ajustes tendo em vista a evolução da aplicação do direito, faz-se imprescindível manter a essência de tal previsão.
3 ATIVISMO JUDICIAL E JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA
A judicialização da política e o ativismo judicial são dois fenômenos que, apesar de não serem recentes, tem ganhado cada vez mais espaço em estudos e, não obstante serem interligados, possuem características e origens distintas que os diferenciam e evidenciam que podem ocorrer de maneira independente.
Judicialização, segundo Barroso (2012), ocorre quando questões que tradicionalmente deveriam ser decididas pelos poderes executivo e/ou legislativo restarem a ser solucionadas pelo judiciário, principalmente pelo Supremo Tribunal Federal, com transferência do poder e condicionamento a acontecimentos externos que independem do judiciário que tem o dever de se manifestar nos limites e à medida em que é provocado.
Há múltiplas causas para evidenciar a ocorrência da Judicialização, dentre elas podemos enumerar a ascensão do Poder Judiciário como imprescindível para garantir os direitos fundamentais, a descredibilidade com a política e seus representantes eleitos e a transferência que políticos fazem ao poder judiciário quando questões polêmicas e sobre as quais haja controvérsias de repercussão moral tem de ser decididas e que podem acender controvérsias na sociedade (BARROSO, 2019).
Tal ocorrência deve-se em parte junto com a evolução e mudanças do direito e após a Constituição de 1988 considerada como a constituição cidadã e que vem para prever direitos fundamentais que deveriam estar à disposição de todos.
Com um maior número dessas garantias e uma possível displicência dos Poderes Legislativo e Executivo no sentido de implementá-las, ocasiona-se um aumento no número de demandas direcionadas ao Supremo, detentor do papel de guardião da constituição, utilizando-se a via judicial para tutelar o direito previsto.
Desse modo, têm-se o poder judiciário como um moderador das contendas políticas, indicando alternativas e por vezes alterando o rumo dos debates e resultado político, em todas as instâncias judiciais, mas em destaque o Supremo Tribunal Federal que também é responsável pelo controle de constitucionalidade.
Já o ativismo judicial segundo Barroso (2012), diferentemente do que ocorre com a judicialização, é uma escolha na maneira de interpretar a norma, de forma a expandir o seu sentido e alcance.
Sua ocorrência independe de acontecimentos externos, pois é como se posta o poder judiciário com uma conduta interpretativa expansiva ao analisar e aplicar o direto ao caso concreto.
No que tange a origem do termo ativismo judicial, é atribuída à jurisprudência norte americana, reconhecendo Arthur Schlesinger Jr como o primeiro a usar a terminologia no artigo intitulado The Supreme Court: 1947, trabalho em que traça o perfil de nove juízes da corte americana classificando-os em juízes ativistas e conservadores (CAMPOS, 2014).
Para ilustrar, Barroso enumera o que seriam atitudes que caracterizariam uma postura ativista:
(i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matérias públicas (BARROSO, 2012, p. 6).
O ativismo na prática pode denotar uma discordância dos demais poderes, ampliando a competência do tribunal transformando em jurídicos temas que deveriam ser tratados no campo da política. Também é certo que é missão constitucional do poder judiciário prestar-se ao tratamento dos conflitos, se pautando na harmonização e fruição dos direitos fundamentais dirimindo os conflitos concretos.
Apesar das críticas que enfrenta o ativismo judicial considerando-se um eventual risco em adentrar em competências dos outros poderes e causar uma sobreposição, há que se evidenciar que a atuação mais intensa do judiciário torna possível que demandas sociais ou políticas não atendidas pelos meios ordinários sejam alcançadas e satisfeitas.
Quando o poder judiciário é provocado com o excesso da judicialização de questões de vasto alcance político ele pode ou não responder de maneira ativista no julgamento do caso concreto que esteja em pauta.
Nesse sentido:
O ativismo judicial, por outro lado, liga-se à resposta que o judiciário oferece à questão objeto da judicialização. No caso específico da judicialização da política, o ativismo representa um tipo de decisão na qual a vontade do julgador substitui o debate político (seja para realizar um pretenso “avanço” seja para manter o status quo) (STRECK, 2016).
Por outro lado, os dois fenômenos se entrelaçam ainda mais quando sob à óbice que o excesso de judicialização das questões políticas, forçando o poder judiciário a manifestar-se em casos que representam omissão de outros poderes poderia abrir margens para a interpretação e aplicação expansiva da norma se o julgador assim escolher se portar com postura ativista indo além de suas funções.
4 ANÁLISE DE CASOS PRÁTICOS
A pandemia do Coronavírus mais que na saúde gerou efeitos jurídico-administrativos, o que levou a uma provocação maior do poder judiciário em todas as instâncias. Em destaque está o Supremo Tribunal Federal que nesse cenário, segundo o painel de ações mantido em seu site, já recebeu mais de 9000 processos relacionados à Covid-19.
Não é uma ocorrência nova, tendo em vista que em demais situações o Supremo já foi provocado a se manifestar em questões políticas e controvérsias. Não é objetivo desse presente trabalho julgar se deveria o poder judiciário atuar, pois esse tem o dever de manifestar-se quando instado a se pronunciar.
Algumas dessas decisões históricas proferidas pela Suprema Corte que envolviam questões com vasto alcance político foram amplamente discutidas, criticadas e por vezes caracterizadas como ultrapasse da função reservada ao poder judiciário e dotadas de ativismo judicial.
Em 2012 ao julgar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 que envolvia a polêmica sobre a interrupção voluntária da gestação em casos de fetos com anencefalia, o STF decidiu no sentido de descriminalizar tal hipótese. Na análise, decidiu-se que a conduta não poderia ser punida mesmo não havendo previsão da excludente no Código Penal, pois não haveria vida que só começaria com a formação cerebral e era inviável a sobrevivência do feto nessas condições.
Outro julgamento que ascendeu discussões foi a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 e a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 que reconheceu a união homoafetiva, utilizando o relator de argumentos na fundamentação do caso de que a CF no artigo 3º, IV veda tratamento discriminatório e o século XXI marca a preponderância afetividade sobre a biologicidade. A legislação expressa no Código Civil em seu artigo 1723 reconhece a união estável entre homem e mulher e nada menciona no sentido da interpretação que foi aplicada.
Apesar de ouvir o clamor social, e preencher lacunas legislativas valendo-se de postura ativista, tais decisões que inovam a legislação não caberiam ao Supremo Tribunal Federal que não tem legitimidade política pois não recebeu o voto popular, são de responsabilidade do poder legislativo.
Em relação ao cenário pandêmico, o primeiro julgamento de grande repercussão e que acendeu debates sobre a atuação do Judiciário ocorreu quando o governo federal editou a MP 926/2020 tentando centralizar as decisões com ações para o enfrentamento ao coronavírus, sendo interposta a Ação Direta de Inconstitucionalidade 6341 questionando a medida, a Corte no julgamento reafirmou a competência concorrente entre os entes federados para a tomada de medidas de saúde.
A decisão nesse debate apenas referendou o que já é previsto em nosso texto constitucional em seu artigo 23 que determina “É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência”.
Apesar do desconforto político gerado e das discussões ascendidas, nessa ocasião não inovou o Supremo na questão legislativa, apenas reafirmou a previsão legalmente existente, sem demonstrar ingerência em função que não seria de sua incumbência.
Nesse sentido disserta Maffini:
A competência da União para editar normas gerais em matéria de saúde (art. 24, XII, CF) deve ser devidamente articulada com a competência administrativa comum de todos os entes federados (art. 23, II da CF). No exercício das competências administratiavs, os entes federados devem primar por uma atuação cooperada, mas havendo divergências entre as medidas empregadas, sobretudo as medidas de quarentena, devem predominar aquelas que estiverem mais bem fundamentadas em critérios científicos, atentando-se para as respectivas realidades regionais ou locais sobre as quais incidem, minimizando, pois, interferências pessoais e ideológicas. (MAFFINI, 2021, P.376)
No cenário delicado da pandemia o governo federal promoveu uma campanha incentivando à população a retornar as atividades habituais propagando o slogan “O Brasil não pode parar”. A ideia era o incentivo à flexibilização do isolamento social, contrariando inclusive as recomendações da Organização Mundial da Saúde e a postura adotada por grande parte dos países.
A divulgação foi alvo da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 668 e 669 ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos e pela Rede Sustentabilidade questionado o viés e consequências dessa divulgação. A relatoria foi a cargo do ministro Luis Roberto Barroso.
Analisando a ADPF o ministro relator reforçou que a campanha promovida deturpava o fim informativo que deveria ter, violando múltiplos dispositivos constitucionais, invocando assim na decisão a proteção do direito à vida, à saúde e a informação da população (artigo 5º, caput, XVI e XXXII, artigo 6º e artigo 196 CF), além de estar conflitante com as recomendações do Ministério da Saúde, minimizando o efeito da pandemia, determinando assim a retirada e interrupção da campanha.
Na decisão:
Nessa linha, uma campanha publicitária, promovida pelo Governo, que afirma que “O Brasil não pode parar” constitui, em primeiro lugar, uma campanha não voltada ao fim de “informar, educar ou orientar socialmente” no interesse da população (art. 37, §1º, CF).[...] O uso de recursos públicos para tais fins, claramente desassociados do interesse público consistente em salvar vidas, proteger a saúde e preservar a ordem e o funcionamento do sistema de saúde, traduz uma aplicação de recursos públicos que não observa os princípios da legalidade, da moralidade e da eficiência, além de deixar de alocar valores escassos para a medida que é a mais emergencial: salvar vidas (art. 37, caput e §1º, CF) (STF-ADPF 669. Relator: Min. Roberto Barroso. Data de julgamento: 07/05/2020, Data de Publicação: DEe-114 11/05/2020).
O Presidente da República ainda nesse cenário também editou a MP 928/2020 que impunha restrições à Lei de Acesso à Informação para limitar as informações prestadas por órgãos públicos durante a crise de saúde pública. Foi interposta a Ação Direta de Inconstitucionalidade 6351 ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem de Advogados do Brasil e a Corte confirmou liminar concedida pelo Ministro Alexandre de Moraes que impedia tais restrições e que considerou como “genéricas e abusivas à garantia constitucional de acesso à informação”.
Na análise destacou que a publicidade é uma obrigação do Estado, salvo em situações excepcionais e que a referida Lei não deixava caracterizado a necessidade de imposição de restrições a tal direito.
[...]. À consagração constitucional de publicidade e transparência corresponde a obrigatoriedade do Estado em fornecer as informações solicitadas, sob pena de responsabilização política, civil e criminal, salvo nas hipóteses constitucionais de sigilo. 3. O art. 6º-B da Lei 13.979/2020, incluído pelo art. 1º da Medida Provisória 928/2020, não estabelece situações excepcionais e concretas impeditivas de acesso à informação, pelo contrário, transforma a regra constitucional de publicidade e transparência em exceção, invertendo a finalidade da proteção constitucional ao livre acesso de informações a toda Sociedade.(STF - ADI: 6341 DF 15/04/2020, Relator: ALEXANDRE DE MORAES, Data de Julgamento: 30/04/2020, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 14/08/2020)
Em mais uma análise assertiva os ministros decidiram no sentido de cumprir nos exatos moldes o que é previsto no texto constitucional e garantir a efetividade de direitos fundamentais em conformidade com o que está previsto no inciso XXXIII, artigo 5º CF, que assegura o direito à obtenção de informação.
A polêmica de decisões e desconforto entre os poderes ganhou ainda mais espaço com a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito. O ministro Luis Roberto Barroso ao julgar o MS nº 37.760/DF, impetrado pelos senadores Alessandro Vieira e Jorge Kajuru, determinou que o Senado Federal adotasse as providências para a instalação da CPI da Pandemia a fim de averiguar eventuais omissões do governo federal no enfrentamento à crise de saúde, pois estariam satisfeitos os requisitos constitucionais para instauração.
Prevê o texto constitucional que as CPI’s devem ser instaladas sempre que alcançados três requisitos previsto no artigo 58, §3º, Constituição Federal: assinatura de 1/3 dos integrantes da Casa, indicação de determinado fato a ser apurado e prazo certo para duração. Com o preenchimento não há discricionariedade e sim o dever de determinar a instalação. Com o alcance dos requisitos e a inércia do Legislativo, restou ao Judiciário determinar a instauração da Comissão para apuração dos fatos indicados.
Apesar do histórico de decisões que abrem margem para críticas e levantamento de análise de um possível ativismo por parte do Supremo Tribunal Federal, observa-se que no que se refere à crise de saúde trazida pela pandemia, as decisões do STF têm sido acertadas e de encontro com o que prevê a Carta Magna.
5 CONCLUSÃO
É inegável que a crise gerada pela Covid-19 trouxe muitas questões e situações que não estavam os Poderes preparados para agir, além de dúvidas e divergências quanto à maneira correta de combatê-la e essa situação atípica ocasionou a judicialização de questões políticas para obter respostas.
As divergências quanto o que seria a forma correta de lidar com a crise de saúde diante da ocorrência nova e que não estavam os Poderes esperando levou ao caminho da judicialização para decidir sobre os pontos controversos, e houve o consequente destaque para a atuação do poder Judiciário que tinha o dever de se manifestar pois foi acionado.
Diante da omissão dos poderes legislativo e executivo além de atuação divergente da que seria de responsabilidade destes, resta a via judiciária como alternativa para garantir a proteção e efetivação dos direitos, pois uma vez que é provocado, não pode abster-se de julgar, devendo pronunciar-se e analisar a situação que é trazida à pauta.
Apesar de historicamente enfrentar o Supremo críticas quanto à sua postura ativista em decisões anteriores, pode-se observar que no que tange ao cenário pandêmico atuou no sentido de reafirmar o que já há expressa previsão no texto constitucional e em casos que foi provocado e diante de omissões ou atuações divergentes e omissas dos demais Poderes.
Por mais que tenha causado desconfortos entre os Poderes, não pode o Judiciário se omitir quando instado a se pronunciar, cabendo a este decidir todas as questões que são levadas à sua pauta e de encontro com o que prevê o texto constitucional, pois essa é a sua função típica não podendo omitir-se.
Foram acertados os vereditos com questões relacionados à Covid-19 agindo o Supremo de acordo com a previsão da Carta Magna e cumprindo sua função de Guardião da Constituição em harmonia com o princípio da Separação dos Poderes vigente no ordenamento jurídico brasileiro apesar das críticas que enfrentou.
Resta demonstrado dessa maneira que apesar dos desafios ocasionados pelo cenário pandêmico e consequente judicialização das questões políticas, a atuação do Pretório Excelso foi ao encontro com o ordenamento jurídico cumprindo com maestria sua função atuando dentro dos limites previstos e não dotado de ativismo.
REFERÊNCIAS
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STRECK, Lênio Luiz. O Rubricão e os quatro ovos do condor: de novo, o que é ativismo? Revista CONJUR, 07 jan. 2016. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-jan-07/senso-incomum-rubicao-quatro-ovos-condor-ativismo#author. Acesso em: 10 jul. 2021.
Bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário de Santa Fé do Sul (UNIFUNEC).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ZERBINATI, Denise Fabiane Martins. Judicialização da política: atividade do Supremo Tribunal Federal no cenário da pandemia de covid-19 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 jun 2022, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58719/judicializao-da-poltica-atividade-do-supremo-tribunal-federal-no-cenrio-da-pandemia-de-covid-19. Acesso em: 23 dez 2024.
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