LUCIMARA ANDRÉIA MOREIRA RADDATZ
(orientadora)
RESUMO: O presente trabalho parte de uma perspectiva histórica das Medidas Provisórias, a fim de compreender os aspectos políticos e históricos que permeiam seu uso. O estudo objetiva abordar os fatores que levam à deturpação no uso do instituto, bem como, almeja a compreensão acerca da validade ou não deste instituto. Em um primeiro momento, será feita essa digressão histórica, ao passo que em análise próxima serão observadas as dinâmicas políticas e a forma como as Medidas Provisórias foram utilizadas como extensão do poderio do Executivo. Após, analisar-se-á os Estados de Exceção aos quais o Brasil esteve submetido desde a República Velha, e por fim, serão comparados os mecanismos de aprovação das Medidas Provisórias e das Leis Ordinárias. A finalidade deste artigo é observar a forma com a qual as Medidas Provisórias têm sido utilizadas no contexto atual, e se, diante desse uso incorreto o mecanismo perdeu sua validade ou não dentro do ordenamento jurídico. O trabalho foi desenvolvido através de pesquisa bibliográfica, e se classifica quanto ao gênero como empírico, de finalidade básica. A abordagem realizada foi qualitativa e o método utilizado foi o indutivo.
Palavras-chaves: Medidas Provisórias. EC 32/2001. Presidencialismo de Coalizão. Estado de Exceção.
ABSTRACT: The present work starts from a historical perspective of the Medidas Provisórias, in order to understand the political and historical aspects that permeate their use. The study aims to address the factors that lead to misrepresentation in the use of the institute, as well, aims to understand the validity or not of this institute. At first, this historical digression will be carried out, while in a close analysis the political dynamics and the way in which the Medidas Provisórias were used as an extension of the Executive's power will be observed. Afterwards, the States of Exception to which Brazil has been subjected since the Old Republic will be analyzed, and finally, the approval mechanisms of Medidas Provisórias, and Leis Ordinárias will be compared. The purpose of this article is to observe the way in which the Provisional Measures have been used in the current context, and if, in the face of this incorrect use, the mechanism has lost its validity or not within the legal system. The work was developed through bibliographic research, and it is classified as empirical, with basic purpose. The approach performed was qualitative and the method used was inductive.
Key-words: Medidas Provisórias. EC 32/2001. Coalition presidentialism. State of Exception.
1. INTRODUÇÃO
Historicamente a sociedade se organizou de maneira plural na política, levando em consideração as necessidades e especificidades de cada momento. Todavia, existia um acontecimento recorrente: o abuso de poder, fosse nos governos imperialistas, nas oligarquias ou em governos despóticos. Em razão disso, diversos estudiosos se debruçaram sobre o tema, com a expectativa de que pudessem, racionalmente, desenvolver um sistema capaz de se autorregular e evitar esses desvios de poder.
Nesse contexto, Montesquieu, acabou por desenvolver uma teoria que foi amplamente aceita ao redor do mundo: a tripartição dos poderes. A partir dessa ideia as sociedades foram se organizando de forma a dividir as atribuições de cada poder, a fim de evitar abusos por parte de um governante, tradicionalmente se dividindo em Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário.
Dessa tripartição, tentando uma prestação constitucional eficaz, que de fato seja capaz de reduzir as ocorrências do abuso de poder, é necessário que haja harmonia entre os poderes:
São os poderes do Estado, com efeito, um sistema de vasos comunicantes e quanto mais houver essa comunicação e essa ajuda mútua, de forma compreensiva e harmônica, melhormente funcionará o mecanismo estatal, com consequências positivas na vida da Nação. (OMMATI, 1997 apud CLEVER, 2017, p. 60).
A fim de evitar abusos por parte desses representantes, pactuou-se que haveria entre os três poderes uma forma de se regular, de sorte que cada um pudesse limitar e ser limitado pelo outro poder. Com isso, uma das teorias mais importantes da democracia contemporânea surgiu, o Sistema de Freios e Contrapesos.
Originalmente, o legislativo é responsável por elaborar leis, o executivo é representado por um governante e administra a coisa pública, sempre no limite da legalidade, e o judiciário tem o poder de julgar, aplicando as leis criadas pelo legislativo e administradas pelo executivo. A partir da concepção do Sistema de Freios e Contrapesos, são dadas atribuições aos poderes que se afastam de sua função precípua, dentre elas, a atribuição de legislar dada de maneira extraordinária ao executivo.
Tão profunda é a correlação entre os poderes, que há julgados do Poder Judiciário nesse sentido:
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. VAGA EM ESTABELECIMENTO DE EDUCAÇÃO INFANTIL. DIREITO ASSEGURADO PELA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. O Supremo Tribunal Federal fixou entendimento no sentido de que "embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam essas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão -por importar em descumprimento dos encargos políticos-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório -mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais impregnados de estatura constitucional". Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 595595 AgR, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 28/04/2009, DJe-099 DIVULG 28-05-2009 PUBLIC 29-05-2009 EMENT VOL-02362-09 PP-01651)”
Por sua vez, o desequilíbrio na atuação de um dos poderes que seja, afeta o exercício dos demais. E é justamente esse desequilíbrio que o presente trabalho busca analisar, em especial, no que diz respeito ao exercício do poder executivo e a edição exacerbada de medidas provisórias para assuntos diversos, fugindo do caráter excepcional de seu poder legiferante.
Este trabalho foi desenvolvido através de pesquisa bibliográfica, e se classifica quanto ao gênero como empírico, de finalidade básica. A abordagem realizada foi qualitativa e o método utilizado foi o indutivo.
No primeiro capítulo, o trabalho aborda a criação e a separação dos poderes, ressaltando as competências de cada um, a partir de uma perspectiva histórica. No segundo capítulo, discorre-se acerca das Medidas Provisórias e sua origem para além da Constituição Federal de 1988, bem como, sobre as alterações que sofreu no ordenamento jurídico brasileiro desde seu surgimento.
No terceiro capítulo, foram abordados os fatores de tensão que permeiam a política, e a forma como essas pressões são capazes de alterar o fluxo de edição das MPs diante dos interesses particulares de cada governante. Por fim, no quarto e último capítulo, o artigo objetiva discorrer acerca das distinções entre as leis ordinárias e as Medidas Provisórias.
2. DA CRIAÇÃO E SEPARAÇÃO DOS PODERES
A história da humanidade se constrói, em boa parte, pela busca do homem pelo poder, segundo Ives Gandra da Silva Martins (1985, p. 68, apud José Augusto Dias de Castro, 2010, p.9), sobrevivência e a procriação são dois instintos que justificam esse interesse pelo poder. A partir desse comportamento primitivo, o poder evoluiu e passou a compor a vida em sociedade, obrigando o homem a abrir mão de seus instintos animalescos em troca da segurança que a vida em comunidade oferece.
Nesse sentido, os filósofos contratualistas, como Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau, explicam que o ser humano sai desse estado natural a fim de assinar o contrato social que lhe garantirá segurança em troca de parte de sua liberdade.
Ainda que para alguns desses pensadores o ser humano não seja um indivíduo intrinsecamente bom, é capaz de abrir mão de seus interesses naturais. E a partir desse contrato, o poder central vai se sofisticando e institucionalizando como um ente central, de onde nasce a figura do Estado. Ocorre que, por sua vez, o Estado hipertrofiado também é capaz de oprimir tal qual o homem primitivo.
Disso decorre a política, pois “exprime-se pela necessidade de os sujeitos discutirem e definirem como deve o Estado agir para melhor defender e institucionalizar seus interesses” (CASTRO, 2010, p. 9). E é dessa aparente ironia, de criar um poder para limitar o homem e da necessidade de governá-lo que emanam novas teorias empenhadas em criar um mecanismo apto para tal.
2.1. Das competências e exceções
A partir dessa necessidade de administrar a vida em comum, surgiram diversas vertentes e teorias que prelecionavam acerca da maneira adequada de se organizar. Uma delas, porém, foi amplamente aceita e hoje é fortemente aplicada ao redor do mundo, e em especial, no Brasil.
A teoria em questão é a da tripartição dos poderes. Inicialmente, é preciso compreender qual força orientou a construção de seu texto. Para tanto, é necessária uma digressão ao barão de La Brède e de Montesquieu, Charles-Louis de Secondat. Filósofo, político e escritor francês, ficou conhecido, principalmente, por essa teoria, descrita em sua obra “O Espírito das Leis”.
Na obra, Montesquieu analisa a diversidade das formas de governo, sendo essa a expressão final de seu livro (KRITSCH, 2011, p. 25). Ademais, em sua obra, se preocupa em mostrar como se sustentam as formas de governo, observando um aspecto comum entre os sistemas favoráveis à liberdade: a moderação.
Para ele, “o espírito de moderação deve ser o do legislador. O bem político, assim como o bem moral, se acha entre dois limites” (MONTESQUIEU apud KRITSCH, 2011, p.25). Tal constatação culminaria na criação do sistema de freios e contrapesos. Esse ideal, por sua vez, perpassa por toda sua obra.
Dessa detida análise, Secondat percebe que de maneira geral os Estados têm três espécies de poder: o legislativo, o executivo “das coisas que dependem do direito das gentes”, e o executivo das “[coisas] que dependem do direito civil” (MONTESQUIEU, 2000, p. 148). A partir da concepção embrionária do autor francês tais ideias se desenvolveram e foram nomeadas como se conhece hoje.
[...] Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dós principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares. (MONTESQUIEU, 2000, p. 168)
Vale ressaltar, que em sua obra, Montesquieu não empregou as expressões “separação de Poderes” ou “divisão de Poderes”, mas tão somente se referiu a necessidade do “equilíbrio entre os Poderes”, do que resultou o sistema de freios e contrapesos (MARQUES E BERWIG, 2016, p. 2).
A divisão à que se refere possui caráter essencialmente organizacional, a fim de impedir que se concentrem em uma única figura todas as funções estatais. Porém, são faculdade e obrigação de cada Poder, que estejam sempre em harmonia e atentos para limitar de modo adequado quaisquer excessos nos demais Poderes.
Então ao Legislativo cabe, tipicamente, a função de produzir leis, criar a norma jurídica e inovar originariamente a ordem jurídica, lembrando que esta deve ser a manifestação da vontade do povo através de seus representantes; ao Judiciário cabe a função de dizer o direito ao caso concreto, resolvendo conflitos com caráter definitivo através da coisa julgada sempre que provocado; e ao Executivo cabe à atividade administrativa do Estado, a implementação do que determina a norma jurídica para atender às necessidades do povo, ou seja, a função típica do Executivo é a administrativa, que nada mais é do que a defesa dos interesses públicos atuando sempre dentro da legalidade. (MARQUES E BERWIG, 2016, p. 2).
2.2. Da tripartição dos poderes no Brasil
“Independência ou morte!”, e assim surgiu o Império do Brasil. Uma Carta Magna imperialista, pautada no “carácter unitário do Estado, o municipalismo, e uma separação dos poderes mitigada pelo quarto poder, o poder moderador, inspirada nas teorizações de Benjamin Constant” (CUNHA, 2007, p. 265).
Assim, surge em 1824 a primeira Constituição brasileira, uma formação apressada e urgente, motivada pelas pressões populares, como um prelúdio do que viria a acontecer nos séculos seguintes à independência.
Desde a formação do Brasil enquanto país até a promulgação da Constituição Cidadã em 1988 foram criados sete textos constitucionais.
Impressiona constatar o volume e a curta duração de tantos momentos constitucionais, apresentando a média de um novo contrato a cada 19 anos, em um interregno de pouco mais de um século. Inquieta refletir sobre quais condições históricas permitiram firmar tantos pactos políticos em tão pouco tempo. Mais intrigante torna-se o quadro quando verificamos a gama de vertentes ideológicas e de engenharia política que emergiu durante o século republicano [...] (CEPÊDA, 2013, p.289)
Um século e meio depois da primeira constituição do país, em 1988, foi promulgada a nova Carta, que perdura até hoje, sendo a de mais longínquo exercício.
O constituinte, em muito influenciado pelos ideais de Montesquieu, dispôs tão logo em seu artigo 2º, acerca dos poderes da União, determinando que fossem “independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
Ainda, tratou de regular as relações entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário no seu Título IV (Da Organização dos Poderes), criando “normas constitucionais que estruturam cada um dos Poderes, estabelecendo as respectivas atribuições, bem como aquelas que regulam o relacionamento entre os órgãos de Poder, dispondo, ainda, sobre os direitos e obrigações de seus membros” (MEDEIROS, 2008, p. 201).
Assim, orientada pela teoria dos pesos e contrapesos, a CF/88 apresentou quais seriam as funções típicas e atípicas de cada poder. O poder originário, ao determinar as funções de cada ente, atribuiu, de modo resumido: ao legislativo, a função de legislar; ao judiciário, o dever de garantir o cumprimento das leis e à Constituição; e por fim, ao executivo, determinou que administrasse o governo do país.
A este último, inseriu, com caráter atípico, a possibilidade de legislar através dos Projetos de Lei e das Medidas Provisórias. Estas, objeto do presente trabalho.
Para uma análise eficaz das MPs é preciso analisar com atenção quais foram os processos que culminaram com a sua criação, observando suas funções precípuas e analisando de maneira crítica quais fenômenos inspiraram seu desenvolvimento.
3.1. Dos decretos-lei às medidas provisórias
Inspirada pela Carta Italiana, a Constituição brasileira de 1937 trouxe pela primeira vez a figura dos decretos-lei. O sistema parlamentarista italiano, à época, possuía a figura dos decretto-legge, os quais permitiam que em caso de necessidade e urgência, sob a responsabilidade do Governo, fossem editados decretos com valor de lei ordinária (BARROS, 2000, p. 78).
O golpe de Estado de 1937, no governo de Getúlio Vargas, consumado com o fechamento do Congresso Nacional foi o cenário ideal para a hipertrofia do poder executivo. Com a instauração do Estado Novo foi desenvolvida a Constituição Polaca, baseada nas de países onde o regime vigente à época era dotado de forte caráter autoritário, como Alemanha, Itália, Portugal, Polônia, Lituânia e Áustria (TUCCI, 1990, p. 32).
Apesar de nunca ter sido aplicada na sua totalidade, a Constituição de 37 foi inspirada na Carta del Lavoro, italiana, que incorporava toda legislação social depois de 1930; proibia greves e lockouts, considerados como ‘recursos anti-sociais nocivos ao trabalho e ao capital’. (TUCCI, 1990, P. 32)
Não surpreende, portanto, que a figura dos decretos-lei tenha sido incorporada ao ordenamento estadonovista. Em um cenário onde não havia um poder legislativo no exercício de suas funções típicas, era de se esperar que essas atribuições fossem assumidas por outros, no caso em questão, tomadas pelo presidente.
Com o fim de seu governo e a restauração do regime democrático o constituinte de 1946 extinguiu os decretos-lei. Na realidade, tamanha a preocupação em não hipertrofiar o executivo, que na CF/46 não havia, inicialmente, sequer a possibilidade de delegar leis ao chefe da nação.
[...] a reação liberal ao autoritarismo não só baniu o decreto-lei, mas até mesmo impediu a adoção da lei delegada, o que foi lastimado por muitos. Por exemplo, pelo jovem Miguel Reale, para quem um dos grandes equívocos da Constituição brasileira de 1946 foi proibir a delegação legislativa, cuja necessidade se reconhece até mesmo nos países presidencialistas. (BARROS, 2000, p. 77)
Posteriormente, com a instauração do regime militar, em 1967, os decretos-lei reapareceram no ordenamento jurídico. Nesse sentido, vale destacar que a redação que previa esse instrumento aos governantes dispunha acerca das matérias e dos aspectos formais:
Art. 55. O Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse público relevante, e desde que não haja aumento de despesa, poderá expedir decretos-leis sobre as seguintes matérias:
I - segurança nacional;
II - finanças públicas, inclusive normas tributárias; e
III - criação de cargos públicos e fixação de vencimentos.
§ 1º Publicado o texto, que terá vigência imediata, o Congresso Nacional o aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendo emendá-lo; se, nesse prazo, não houver deliberação, o texto será tido por aprovado.
§ 2º A rejeição do decreto-lei não implicará a nulidade dos atos praticados durante a sua vigência. (CONSTITUIÇÃO FEDERAL 1967, EC 1/69)
Mais uma vez, com a redemocratização em 1988 surgiram as Medidas Provisórias como uma alternativa para os Decretos-Lei. Durante a transição, a preocupação dos constituintes, nas palavras de Argelina Figueiredo e Fernando Limongi (1998, p. 131), era encontrar um sucedâneo para o decreto-lei que mantivesse a prerrogativa do executivo sem permitir seu uso abusivo.
Na prática, após a edição da constituinte e especificamente no seu artigo 62, que disciplinou a existência das MPs, o que houve foi um grande desvio da finalidade para a qual foram instituídas. Esse desvio ocorreu pelos mais variados motivos, mas o fato é que, desde a sua instituição, tal dispositivo não atingiu a finalidade desejada pelo constituinte originário, o que se evidencia pelas numerosas alterações pelas quais esse instituto tem passado.
3.2. As medidas provisórias e suas alterações
A fim de uma melhor compreensão do instituto, é necessário analisar com maior atenção suas alterações e os fatores sócio-políticos que culminaram nessas mudanças, e para tanto, iniciaremos a análise no período pós Constituição de 1988.
3.2.1 Da Resolução do Congresso nº 1/1989-CN
No período imediatamente posterior à instituição da nova Carta, o artigo 62 que havia determinado quais seriam os moldes para a edição de Medidas Provisórias se mostrou muito abstrato, de modo que três aspectos principais ficaram obscuros: quais eram os temas de urgência e relevância; a possibilidade de emenda pelo Congresso; e a possibilidade de reedição pelo presidente (FIGUEIREDO E LIMONGI, 1999).
Inicialmente, segundo Bedritichuk (2021), a prática do Congresso era leniente não observando os pressupostos de relevância e urgência. O problema surgido nessa época foi, na verdade, fruto da maneira com a qual o então presidente se utilizava do instituto.
A nova Constituição começou a vigorar no último terço do mandato de José Sarney, o qual já havia governado por mais da metade de sua presidência lançando mão prodigamente dos decretos-lei. Vale ressaltar que, ao assumir a presidência, Sarney havia prometido não fazer uso decretos, alinhado com o espírito democrático da época (BEDRITICHUK, 2017, p. 34).
Ocorre que, em fevereiro de 1986, lançou o Plano Cruzado por meio de um decreto-lei que na época foi capaz de reduzir a inflação e impulsionar a sua popularidade. Porém, quando, a inflação voltou a crescer, Sarney se tornou um presidente impopular e minoritário, de modo tal que se tornou dependente dos decretos-lei (POWER, 1998).
Apoiado em suas prerrogativas, o então presidente editou nove MPs durante o recesso legislativo. Entretanto, em razão do prazo exíguo, o Congresso não se manifestou acerca da MP nº 29, que perdeu eficácia. Sarney, então editou a MP nº 39, com o mesmo teor.
Diante dessa prática, foi constituída comissão mista especial para emissão de parecer sobre a possibilidade de reedição, o que foi aceito conforme parecer publicado em 1º de março de 1989. Todavia, pairavam outras dúvidas sobre o processo de conversão das medidas provisórias em lei. Em razão disso, a Resolução do Congresso nº 1/1989-CN surgiu para, dentre outros pontos, regulamentar a tramitação do instituto.
Entretanto, a Resolução não foi suficiente para dirimir todos os problemas que se agigantavam diante dos parlamentares.
3.2.2 Da Emenda Constitucional 32/2001
Seguindo a proposta iniciada por seu antecessor Sarney, Fernando Collor se apoiou no mesmo estilo de governança, tendo editado no primeiro dia de governo 22 medidas provisórias com o Plano Collor. As propostas do então presidente foram muito mais polêmicas que as do governante anterior, incluindo sequestro da poupança e criação de novos tipos penais.
Ao contrário de José Sarney, Collor tinha popularidade e legitimidade de voto e com isso, segundo Bedritichuk (2017), tinha mais espaço para fazer uso de suas prerrogativas. Com tamanha liberdade e apoio pôde direcionar o Congresso para ratificar seus interesses e designações.
Em segundo lugar, ao tomar ciência que o Congresso não conseguiria aprovar as MPs do plano econômico em trinta dias, Power (1998) afirma que Collor deu instruções expressas para que toda medida provisória não convertida em lei pelo parlamento fosse automaticamente reeditada. (BEDRITICHUK, 2017, p. 35)
Em 1990, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 293-D pacificou o entendimento de que era vedada a reedição de medidas provisórias que houvessem sido rejeitadas. Porém, para que uma MP fosse derrubada era necessário que o Congresso se manifestasse de forma expressa. Caso contrário, o Executivo poderia reeditá-la continuamente.
Com a numerosa quantidade de MPs editadas, o Supremo Tribunal Federal começou a ser instado frequentemente, bem como o Legislativo se mostrou insatisfeito com a atuação do presidente. Assim, conforme observou Power (1998), Collor reduziu a edição de medidas provisórias a partir de 1991.
Em 1992, com o impeachment de Collor e com Itamar Franco assumindo a Presidência interinamente, o contexto político e social foi fortemente afetado, tendo interferido na quantidade de medidas provisórias editadas e nas leis ordinárias de iniciativa do executivo (FIGUEIREDO e LIMONGI, 1997, p. 144).
Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso continuaram com a prática de seus antecessores. O que mudou, todavia, foi o comportamento do Congresso. Figueiredo e Limongi (1997) notaram que, desde 1993, o parlamento deixou de apreciar as MPs, de sorte tal que as reedições se tornaram mais frequentes.
Objetivando regulamentar a atuação legiferante do Executivo, os congressistas editaram a Resolução nº 1/89. Contudo, a eles foi relegada a incapacidade de emendarem as MPs, ao passo que o Presidente era livre para reeditá-las. Por isso, instaurou-se uma nova sistemática na relação Congresso e Executivo.
A possibilidade de reeditar colocava de imediato uma vantagem estratégica nas mãos do executivo, que não precisava de maioria para aprovar, bastando-lhe negar quorum e reeditar. Portanto, a Resolução nº 1 se mostrava um instrumento ineficaz para inibir o uso de MPs. Tornava-se muito atraente para o executivo prescindir do mais moroso e complexo processo legislativo ordinário. (FIGUEIREDO E LIMONGI, 1997, p. 149)
Tamanho era o descompasso entre os poderes que entre 1988 e 2000 foram editadas 5533 medidas provisórias. Desse total, segundo os dados de Amorim Neto e Tafner (2002), 568 (10,3%) eram originais e 4965 (89,7%) reedições. (MACHIAVELLI, 2009, p. 29).
O desequilíbrio nessas relações foi sentido diretamente por Fernando Henrique Cardoso, uma vez que segundo Machiavelli (2009), o jogo político estava sendo travado em três áreas distintas: parlamentar, partidária e judicial. Com propostas de emendas à Constituição (PECs) elaboradas em 1995 e que até então não haviam sido apreciadas, o parlamento estava em polvorosa.
O presidente FHC, ao perceber os avanços do texto que limitariam seu poder, interveio para colocar na discussão das PECs os decretos autônomos para que pudesse “empreender reformas administrativas e assim conseguir maior margem para negociar o texto das MPs”. (BEDRITICHUK, 2017, p. 36).
No âmbito partidário, as bases de apoio ao governo se encontravam em guerra, pois o comando das Casas legislativas se encontrava na mão da oposição. A perda do comando das Casas, segundo Bedritichuk (2017), levou o partido a ameaçar votar a PEC das medidas provisórias e abriu espaço para a oposição conseguir avanços no texto da PEC.
Por fim, quanto ao judiciário, o STF, que até então não tinha se manifestado de maneira expressiva, passou a ter importância no jogo devido às mudanças jurisprudenciais e ao fortalecimento da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Mais do que uma ação do Legislativo contra o Executivo, a aprovação da matéria é consequência da disputa partidária no interior da coalizão. A capacidade do governo de mobilizar apoio partidário no Congresso evitou uma mudança mais drástica nas regras de tramitação das MPs. Por meio de seus recursos institucionais, o Presidente conseguiu conduzir o processo e manter a base unida em momentos decisivos. Quando os custos da estratégia de protelação excederam os benefícios, o presidente cedeu. Naquela altura, insistir não significava apenas enfrentar a oposição no Congresso, mas também o Judiciário e atores da sociedade civil. (MACHIAVELLI, 2007, p. 71)
Assim, em 12 de setembro de 2001 foi promulgada a Emenda Constitucional nº 32. Suas inovações alteraram profundamente o artigo 62 da Constituição e trouxeram: aumento do prazo de vigência de trinta para sessenta dias, prorrogável por uma única vez; limitações materiais; apreciação prévia por uma comissão mista; apreciação em casas separadas; juízo prévio de admissibilidade e trancamento de pauta.
Entretanto, ao contrário do que ansiava o Congresso, a EC 32/2001 não teve o efeito esperado. Conforme observa Machiavelli (2017, p. 96) “A média de MPs editadas passou de 40,3 no primeiro mandato de Fernando Henrique, para 50 no segundo mandato, alcançando 59,8 MPs anuais no primeiro mandato de Lula.”
A possibilidade de trancar a pauta e a previsibilidade de que a matéria fosse votada em 120 dias constituíram um incentivo institucional ao presidente, de modo a interferir na pauta do parlamento sem a necessidade de negociar com seus líderes (BEDRITICHUK, 2017).
Com isso, houve um aumento expressivo no número de medidas provisórias, o oposto do que se esperava. Desse modo, foi necessário mais uma vez repensar a forma com a qual se organizavam as MPs.
3.2.3 Da Resolução nº 1/2002-CN e a ADI nº 4.029
Após a aprovação da Emenda nº 32/2001, foi necessário atualizar a Resolução nº 1/1989-CN, pois com o novo procedimento constitucional, o antigo documento que regulamentava a tramitação estava defasado.
A nova resolução estabelecia que a comissão mista teria quatorze dias para aprovar o parecer, e após esse prazo seria enviada à Câmara dos Deputados, com um deputado como relator. Em seguida, o mesmo aconteceria no Senado.
Porém, mais uma vez, o que se observou na prática não foi o que prelecionava a norma. As comissões não estavam analisando a constitucionalidade das medidas nem o mérito das matérias, chegando nas casas legislativas para serem votadas sem nenhum critério de admissibilidade anterior.
As comissões mistas que deveriam analisar a constitucionalidade e mérito da matéria, por exemplo, raramente emitiram parecer. De acordo com a Subsecretaria de Apoio às Comissões Mistas do Senado, foram instaladas comissões apenas para a análise de três medidas provisórias editadas após a emenda: MP 6 de 2001, MP 182 de 2004 e MP 232 de 2004. (MACHIAVELLI, 2007, p. 102)
Somente em março de 2012, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.029, o STF julgou a inconstitucionalidade dos artigos da Resolução nº 1, de 2002-CN que previam a dispensa do parecer da comissão mista após o prazo de catorze dias.
Assim, após 2012, o processo de aprovação das Medidas Provisórias passou a ser respeitado e seguido como demandava a Resolução nº1 do Congresso Nacional. Como se demonstrou, desde a instituição das MPs na CF88, foi usada fora dos limites legais, não observando sequer as formalidades que o instrumento demanda.
Ainda hoje, a prática dissona do que demanda a lei, demonstrando a interferência do poder executivo sobre os demais poderes e os desvios ante os quais as Medidas Provisórias estão submetidas.
4. FATORES DE TENSÃO NA TRIPARTIÇÃO DOS PODERES
Historicamente, a divisão dos poderes no Brasil é fortemente influenciada por disputas políticas que envolvem legislativo, judiciário e executivo. Por conseguinte, o exercício governista está permeado por essas tensões que resvalam em suas atribuições constitucionais e são capazes de direcioná-lo. Nesse sentido, é preciso observar em especial o presidencialismo e seus fatores de disputa, bem como, o Estado de Exceção mencionado por Giorgio Agambem.
4.1. O presidencialismo e os fatores de poder
Para pensar a política brasileira, em primeiro plano é necessário compreender a sistemática governista, segundo define Batista (2016, p. 127)
O sistema político brasileiro é atualmente definido como um presidencialismo de coalizão (Abranches 1988). Esse sistema tem por base um presidente eleito diretamente e com mandato próprio, mas que para governar conta com o apoio de uma coalizão multipartidária.
Afim de que possa governar com plenitude, conforme estuda a ciência política, o presidente precisa barganhar no Congresso, no Judiciário, entes subnacionais e dentro da própria estrutura do Executivo, de sorte que seu sucesso depende de suas qualidades pessoais (BATISTA, 2016).
Segundo Freitas (2013), “o aparente desequilíbrio entre os Poderes em prol do Executivo no tocante à produção legal não pode ser explicado apenas pelas garantias constitucionais e regimentais cedidas a este poder”. Isto é, para que se entenda a sistemática aplicada, é imperioso compreender que os presidentes eleitos, sistematicamente, compõem coalizões governamentais dividindo as pastas ministeriais entre os partidos a fim de compor maioria legislativa.
Essa análise foi feita inicialmente em 1988, ocasião na qual Sérgio Abranches publicou o livro “Presidencialismo de coalizão” onde observava justamente essa sistemática. Na ocasião afirmou que os presidentes para garantir sua governabilidade, necessitam ter no Congresso, uma coalizão majoritária (ABRANCHES, 2019).
Já em 2018, Abranches publicou um novo livro chamado “Presidencialismo de coalizão: raízes e trajetória do modelo político brasileiro” no qual, observou as alterações que levaram ainda mais à um desequilíbrio interno entre os poderes.
Os estados e municípios ficaram demasiadamente dependentes do Governo Federal para financiar até mesmo ações que estão entre suas atribuições constitucionais exclusivas. Os parlamentares passaram a ter como uma de suas funções centrais atuar como intermediários políticos para extrair recursos fiscais da União em benefício de seus redutos eleitorais. Essa situação de dupla dependência — do presidente a uma coalizão parlamentar multipartidária extensa e das unidades da federação ao orçamento da União controlado discricionariamente pelo presidente — gerou um poderoso sistema de incentivos ao clientelismo, ao toma-lá-dá-cá e à competição por postos ministeriais e na burocracia federal com poder sobre o orçamento ou capacidade regulatória. (ABRANCHES, 2019)
Como evidenciado pela obra, foi necessário um gradativo e reiterado envolvimento do STF em conflitos políticos e institucionais que levaram à uma politização do judiciário, bem como, à uma judicialização da política. Essas situações por sua vez, contribuíram para um aguçamento dos desequilíbrios entre os poderes, cujos reflexos podem ser sentidos na relação executivo e legislativo e na numerosa edição de MPs.
4.2. O Estado de Exceção como prática recorrente
4.2.1 O Estado de Exceção entre a República Velha e o Regime Militar
Segundo Giorgio Agamben, a concepção da democracia hoje está dominada pelo paradigma do Estado de Direito, que sob a premissa de prevenção da desordem, trabalha para a produção de emergências (ABDALLA, 2013, p. 25).
[...] administra a desordem justamente para que sejam eliminados quaisquer adversários políticos que não sejam integráveis ao sistema. Uma vestidura que é hoje o paradigma dominante de governo: O que era uma suspensão temporária da lei se tornou gradualmente uma técnica usual de governo; o extraordinário que se torna padrão. Abre-se espaço, assim, para o advento de um estado de exceção permanente e muitas vezes voluntário: um estado de exceção que não é imposto por vias subversivas, golpistas ou revolucionárias, mas que, muito rasteiramente, insere-se no coração da democracia, do Estado de Direito e a fortiori da própria economia. (ABDALLA, 2013, p.26)
No Brasil, essa prática foi comum ao longo dos anos, adquirindo novas roupagens conforme demandava a situação.
Durante a República Velha (1889-1930), com a primeira Constituição republicana brasileira, havia em seu bojo a possibilidade de declarar estado de sítio, fortemente inspirado pelo ordenamento espanhol e francês. O estado de sítio na Carta de 1891 impunha mais restrições às liberdades e garantias individuais.
Segundo pesquisa realizada pelo Senado Federal, entre 1889-1930, oito dos dez governos declararam estado de sítio em algum momento, somando 2365 dias nessa situação. Nessa época, a principal intenção era a consolidação do capitalismo como sistema econômico (GOMES e MATOS, 2017, p. 1766).
Já no Governo Vargas, marcado por intensas mudanças na atuação presidencial de Getúlio, houve também uso do instituto. Entre 1930 e 1934, seu governo era marcado pelo uso indiscriminado de decretos, que à época podiam versar sobre qualquer matéria.
Além disso, durante a primeira metade da década de 30 havia um embate entre partidos de direita e esquerda, que culminaram em duas insurreições. Apesar de terem acontecido somente em dois estados, os acontecimentos foram o suficiente para que o Congresso autorizasse a declaração de estado de sítio em todo o território nacional.
Através de uma manobra política de Vargas, em 18 de dezembro de 1935, o CN aprovou uma emenda que permitiu ao presidente “declarar comoção intestina grave com finalidades subversivas das instituições políticas e sociais, equiparada ao estado de guerra, em qualquer parte do território nacional”.
Com isso, entre o final de 1935 até o golpe de Estado em 10 de novembro de 1937, o Brasil foi governado em estado de sítio ou em equiparação ao estado de guerra. Mais uma vez, o inimigo era a ameaça comunista (GOMES E MATOS, 2017, p. 1770).
Em 1946, com a nova Carta democrática foi criada mais uma figura: o estado de sítio preventivo (arts. 209 a 215) que poderia ser decretado em caso de risco iminente de comoção interna, tendo substituído a figura da urgência nos últimos institutos. Na época, havia então a figura do estado de sítio para casos de guerra externa e comoção intestina grave, e o estado de sítio preventivo.
Antes da posse de Juscelino Kubitscheck, em 1955, ocorreu uma crise política diante da qual, em razão da oposição da UDN à posse de JK e da inércia do vice-presidente Carlos Luz, Nereu Ramos, que era vice-presidente do Senado solicitou ao Congresso a decretação do estado de sítio preventivo.
Mais uma vez, o estado de exceção foi utilizado como uma maneira de silenciar a oposição política e inibir movimentos de reivindicação trabalhista “permitindo ao governo, mais uma vez, de forma não democrática, atuar com muito mais liberdade no cenário econômico, de forma a defender interesses específicos” (CASELA, 2011, p. 55 apud GOMES E MATOS, 2017, p. 1771).
Durante o governo de João Goulart, sem apoio no legislativo e visando reformar diversas áreas nasceu uma crise política de grave separação entre esses dois poderes. Somado à inflação e a crise econômica do país, bem como às frequentes greves, em 1963, o então presidente propôs estado de sítio, porém, sem apoio da mídia, que temia um golpe comunista, e sem apoio das Casas Legislativas acabou desistindo do pedido.
Por fim, durante o regime militar o que se vivenciava era um regime de exceção, uma vez que ainda que não tenha sido utilizado o instituto propriamente dito, mesmo que previsto na Carta Constitucional de 1967, o governo se apoiava na decretação de Atos Institucionais (GOMES E MATOS, 2017, p. 1775).
Com a publicação do AI-5 de 1968, que vigorou por 10 anos, o Poder Legislativo foi colocado em recesso, e o resultado “foi a paralisação quase completa dos movimentos sociais e o afastamento absoluto da participação popular nos governos” (GOMES E MATOS, 2017, p. 1776).
Assim, é possível compreender a forma como a dinâmica de poderes se alterou ao longo dos anos, sempre objetivando atender os desígnios de uma coalisão. Um mesmo dispositivo pode ser utilizado de modos diferentes para garantir determinados interesses, de modo similar ao que se percebe com o uso das Medidas Provisórias no decorrer dos governos.
4.2.2 O estado de exceção no Brasil pós 1988
Na vigência da atual constituição, foram inseridos a figura do estado de sítio e do estado de defesa, que dependem da aprovação do Congresso e de decreto do presidente da república, além de preverem instrumentos de controle para as medidas tomadas durante esses períodos.
Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.
Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de: I - comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.
Desde a promulgação da Constituição Cidadã o instituto do Estado de Sítio não foi utilizado, porém em razão da pandemia do Covid-19 que assolou o mundo especialmente nos anos de 2020 e 2021, algumas medidas precisaram ser tomadas e assim, foi formalizado um quadro de calamidade pública e estado de emergência.
De maneira similar ao que a história mostrou ao longo dos anos, as situações de emergência foram um cenário propício para ampliar os poderes conferidos aos gestores da federação, desde os prefeitos ao presidente, o que ocorreu também durante a pandemia.
A eles fora permitido por exemplo, que caso decretassem estado de calamidade ou emergência em saúde pública, haveria maior liberdade fiscal, nos termos do art. 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Com esse retrospecto buscou-se esclarecer as distintas formas com as quais o Estado de Exceção se apresenta. Algumas vezes apenas com o fito de garantir os interesses particulares dos governistas, outras como a ultima ratio na defesa do coletivo.
E é justamente nesse contexto de grave comoção social, onde se constata uma situação de urgência e emergência, que a figura das Medidas Provisórias se faz necessária. O que têm se visto em retrospecto, porém, é uma desvirtuação desse caráter emergencial, de sorte que as MPs tem sido mais uma ferramenta para as manobras políticas dos governantes.
5. DA DISTINÇÃO ENTRE A LEI ORDINÁRIA E AS MEDIDAS PROVISÓRIAS
Conforme dispõe a Constituição Federal, o processo legislativo pode tomar variadas formas. Tipicamente, compete ao Poder Legislativo essa função, entretanto, em caráter excepcional, é facultado aos demais poderes legislar.
Entretanto, é atribuição determinada pela própria CF88, em seu artigo 61, que a iniciativa das leis complementares e ordinárias caberá, para além dos membros do legislativo “ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos”. Além disso, dispõe também que alguns temas serão de iniciativa privativa do Presidente da República, o que ressalta o poder imbuído ao representante do país.
No artigo 62, a Constituição menciona a possibilidade de que o Presidente adote as Medidas Provisórias em caso de relevância e urgência, porém, no artigo 64, acrescenta que nos casos de lei que forem de sua iniciativa poderá solicitar urgência em sua aprovação.
Com isso, cria-se uma sensação de que é facultado ao líder do executivo escolher o que lhe mais aprouver como forma de iniciar o processo legislativo. Entretanto, há uma grande diferença entre os dois casos: os projetos de lei não são de eficácia imediata, carecendo de aprovação legislativa.
5.1. Dos projetos de lei de iniciativa do presidente
Para esclarecer a diferença entre os dois processos, observemos como se dá o processo legislativo de uma lei de iniciativa do presidente. Após a proposição do PL, sua tramitação começará na Câmara dos Deputados, depois será distribuído para até três comissões temáticas que tratem de assuntos correlatos a ele, ou para uma comissão especial.
Nessas comissões o projeto será analisado por um relator que observará as emendas feitas pelos deputados, podendo ou não as alterar. Após, o parecer do relator será votado, de onde passará para as comissões de Finanças e Tributação (CFT), nos casos de se referirem a finanças, e obrigatoriamente passarão para a comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), a fim de avaliar se estão de acordo com a Constituição. Essas duas comissões têm o poder de arquivar o projeto de lei em razão de sua inadequação.
Posteriormente, regra geral, os projetos de lei irão para o Plenário, de onde o projeto irá para o Senado, se for alterado, volta para a Câmara que poderá ou não manter as alterações, indo em seguida para a sanção ou veto do presidente da República. O presidente por sua vez, poderá sancionar o projeto ou vetá-lo todo ou em parte. Caso decida vetar alguns trechos, a parte sancionada se torna lei e os vetos irão para a análise conjunta do Congresso Nacional que poderá derrubar os vetos do presidente.
Quanto ao quórum necessário para aprovação do projeto de lei, dependerá do que se refere o PL, se for sobre um tema de lei ordinária o quórum será o mesmo necessário para sua aprovação, e de igual modo os projetos de lei cujo objeto for de lei complementar.
Caso o presidente solicite urgência, de maneira expressa, na aprovação do projeto de lei, o Congresso terá 100 dias para aprovar ou não o projeto de lei, o chamado processo legislativo sumário. Nessa modalidade cada Casa terá o prazo de 45 dias para se manifestar, sob o risco de trancamento da pauta.
Art. 64. A discussão e votação dos projetos de lei de iniciativa do Presidente da República, do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores terão início na Câmara dos Deputados.
§ 1º O Presidente da República poderá solicitar urgência para apreciação de projetos de sua iniciativa.
§ 2º Se, no caso do § 1º, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal não se manifestarem sobre a proposição, cada qual sucessivamente, em até quarenta e cinco dias, sobrestar-se-ão todas as demais deliberações legislativas da respectiva Casa, com exceção das que tenham prazo constitucional determinado, até que se ultime a votação. (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988)
As medidas provisórias, por sua vez, têm força de lei desde a sua edição e valem por até 120 dias, devendo ser aprovadas pelo Congresso nesse período, sob pena de perderem a validade.
A MP é analisada por uma comissão mista de deputados e senadores, que apresentarão emendas. Essa comissão aprovará um parecer que será submetido aos Plenários das duas casas. Caso o Senado altere o texto da Câmara, a MP volta para Casa dos Deputados que analisarão as mudanças, podendo ou não recuperar seu texto antes de enviar para a sanção presidencial.
De modo similar ao que ocorre com o processo legislativo sumário, depois de 45 dias a MP tranca a pauta do Plenário da Câmara caso já tenha sido aprovada na comissão mista, e já chegará no Senado trancando pauta.
O quórum necessário para sua votação é o mesmo dos projetos de lei ordinária, sendo necessário, portanto, maioria simples dos votos em um único turno.
Quando o texto da MP é alterado, passa a se chamar projeto de lei de conversão e precisará ser enviado ao presidente para sanção ou veto cujas regras serão iguais para os projetos de lei. Se não houver alteração no bojo da MP, esta será promulgada pelo Congresso.
5.3. Da inversão da sistemática legislativa
Com isso, o que se constata é uma inversão na ordem legislativa, de sorte que o presidente, desde a edição da MP, seu “projeto de lei” já passa a ter valor. Superando o próprio poder atribuído ao legislativo, que em todos os seus projetos de lei precisa aguardar o trâmite legal.
Ademais, quando se observa os ritos das medidas provisórias e do processo legislativo sumário o que se percebe é uma nítida preocupação do constituinte em observar com rapidez as proposições trazidas à baila pelo presidente.
Com isso, havendo a possibilidade de se criar projetos de lei que seriam observados com rapidez pelo congresso em casos de relevância social, não há porque disciplinar assuntos que poderiam se utilizar desse meio através de medidas provisórias, o que por sua vez causa um forte desequilíbrio no exercício democrático e constitucional.
A perversão da faculdade atribuída constitucionalmente para situações excepcionais é uma afronta ao exercício da democracia.
Porque então essa é uma prática tão recorrente? Como se vê dos dados do Palácio do Planalto, entre 2001 e 2020 foram editadas 1009 MPs, das quais somente 742 foram convertidas em lei. Para Pereira, Power e Rennó (2005, p. 192), esse uso excessivo e incorreto das medidas provisórias faz parte de um processo político que visa à promoção do presidente em exercício através de leis.
Em resumo, uma coalizão maior em números, cria incentivos para os presidentes confiarem mais frequentemente em meios extraordinários de governo. Isso apoia a ideia proposta pela teoria da delegação de que presidentes politicamente mais seguros ganham mais liberdade para usar a autoridade do decreto. No entanto, a taxa de coalescência impõe algumas restrições à liberdade de ação presidencial.
A partir dessa análise é possível compreender de que modo os presidentes têm manipulado seu exercício legislativo de maneira a favorecer seus interesses pessoais e sua imagem pública, se utilizando de um mecanismo cujo caráter é excepcional, como uma simples ferramenta para alcançar seus interesses particulares.
Em outra obra publicada em 2005, Pereira, Power e Rennó observaram que:
“O feedback recíproco entre escolha presidencial de instrumento de elaboração de políticas e popularidade do presidente tem o seguinte formato: quando os presidentes implementam políticas por meios extraordinários, que têm um efeito imediato, há respostas positivas imediatas do público, na forma de aumento da popularidade” (PEREIRA, POWER E RENNÓ, 2005, p. 416)
Assim sendo, não há como se olvidar dos benefícios trazidos ao Poder Executivo pelo elevado número de medidas provisórias editadas, porém, não se podem esquecer os riscos impostos à democracia com essa inversão na ordem legislativa.
Durante a pandemia do Covid-19 foram editadas algumas medidas provisórias a fim de regulamentar um período tão tenso e de fato emergencial. Seus benefícios e a sua conversão em lei, como se observam, por exemplo, nas MPS 1057/2021, convertida na Lei 14257/21; a MP 1059/2021, lei 14259/21; e a MP 1027/2021, lei 14160/21, se mostraram adequadas e urgentes, se amoldando ao disposto no art. 62 da CF88.
A existência das MPs por si só não ocasiona nenhum tipo de prejuízo social, oportunizando na verdade uma efetiva e rápida tomada de decisão, necessária para situações ocasionais e de extrema relevância. Porém, a maneira como vêm sendo usada altera seus propósitos, utilizando-a como barganha, e de maneira inapropriada para as situações.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do que foi discorrido no presente trabalho restou evidenciado que as Medidas Provisórias são originárias de um passado autoritário e por ocasião de sua natureza, possuíam resquícios desse desvio de poder. A organização político-social brasileira por sua vez, instada por interesses pessoais e demandas coletivas criou mecanismos aptos a alterar e minorar o autoritarismo remanescente no instituto, como se viu após a Emenda Constitucional 32/2001.
Além do caráter autoritário intrínseco às MPs, os desvios de poder aos quais são submetidos perpassam por interesses econômicos e políticos, que usam desse instituto como ferramenta para materializar seus desígnios. As dinâmicas usadas, porém, se alteram conforme cada exercício governamental, se valendo das peculiaridades de cada época e de cada líder.
Como se experenciou durante o governo Collor, o presidente se valia desse mecanismo de modo exacerbado, tendo editado 22 medidas provisórias em seu primeiro dia de exercício com o Plano Collor, e ainda, realizado o sequestro da poupança e criado novos tipos penais. Em razão desse comportamento, o Supremo Tribunal Federal foi instado muitas vezes a se manifestar, bem como, o Congresso se viu obrigado a tentar adequar esse comportamento presidencial.
Nesse contexto, o legislativo editou a Resolução nº 1/89, porém, não teve o efeito esperado, uma vez que as dinâmicas de poder se alteram conforme o momento e a situação política. Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, munido de apoio do Congresso, se aproveitou das brechas na Resolução para criar e reeditar as MPs pela simples manipulação do quórum necessário, de modo que entre os anos de 1988 e 2000 o número de reedições superava o número de medidas provisórias editadas.
Por sua vez, essa dinâmica levou a outra alteração constitucional, a Emenda Constitucional 32, que visou limitar o poder presidencial para a edição de normas, bem como, desestimular sua edição. Todavia, seu objetivo não foi concretizado como o esperado pois o número de MPs continuou elevado, com limitação nos temas que podia abordar, e além disso, necessitou da Resolução nº 1/2002-CN e a ADI nº 4.029 para finalmente regulamentar de modo eficaz o trâmite dessas medidas.
Ao observar o histórico político brasileiro e o mal uso desse instituto fica evidenciado o desvio em sua função precípua, qual seja resolver de modo rápido e eficiente situações urgentes e relevantes. Ocorre, porém, que a desvirtuação em seu uso, permeia também o interesse dos governantes em fazer do instituto um mecanismo de validação política.
Como foi abordado no trabalho, a população recebe de modo positivo os efeitos imediatos das MPs, valorando a ação como um sinal de força e capacidade do presidente. Usar esse instituto como uma ferramenta para elevar sua popularidade é mais um dos desvios aos quais está submetida.
Não se pode esquecer, todavia, que a existência das MPs, se faz imprescindível para disciplinar situações que sejam de fato urgentes, como previu a Constituição. Nesse sentido, durante a pandemia do Covid-19, o presidente foi capaz de atuar de modo pontual e rápido, prevenindo maiores danos à sociedade.
Assim, fica evidente que a existência das Medidas Provisórias, por si só, não é algo negativo, haja vista a capacidade inerente a esse mecanismo de agir de modo expressivo e pontual como deveria ser, todavia, a maneira como tem sido utilizado historicamente denota os desvios realizados.
Assim, se torna imprescindível repensar e discutir seu uso, pois, apesar das mudanças legislativas aplicadas, a simples alteração da norma vigente não tem condão para promover as transformações necessárias ao exercício adequado destas. Quais seriam essas medidas, porém, não foram objetos do presente trabalho.
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bacharelanda em Direito pela Universidade Federal de Tocantins
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Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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