RESUMO: O presente artigo pretende analisar o enquadramento do direito ao esquecimento como espécie de direito da personalidade protegido pelo Código Civil de 2002, bem como averiguar a compatibilidade do direito ao esquecimento com o ordenamento jurídico pátrio, com enfoque na tutela da dignidade da pessoa humana prevista pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Para tanto, como metodologia de pesquisa, analisaram-se obras bibliográficas e artigos científicos de doutrina especializada, bem como os votos proferidos no julgamento do RE nº 10010606/RJ pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, proferido em sede de Repercussão Geral. Ao final, tendo em vista que a eficácia erga omnes da referida decisão não vincula o Plenário do Supremo Tribunal Federal em suas decisões futuras, defendeu-se a possibilidade de mudança do entendimento fixado no RE nº 10010606/RJ, com consequente reconhecimento de compatibilidade do direito ao esquecimento com o ordenamento jurídico brasileiro.
Palavras-chave: Direito ao esquecimento. Direitos da personalidade. Dignidade da pessoa humana. Constitucionalização do direito civil.
ABSTRACT: This article aims to analyze the framing of the right to be forgotten as a kind of personality right protected by the Civil Code of 2002, as well as to investigate the compatibility of the right to be forgotten with the national legal system, focusing on the protection of the dignity of the human person provided for by the Constitution of the Federative Republic of Brazil of 1988. Therefore, as a research methodology, bibliographic works and scientific articles of specialized doctrine were analyzed, as well as the votes cast in the judgment of RE 10010606/RJ by the Plenary of the Federal Supreme Court, delivered in Headquarters of General Repercussion. In the end, considering that the erga omnes effectiveness of the aforementioned decision does not bind the Plenary of the STF in its future decisions, the possibility of changing the understanding established in RE 10010606/RJ was defended, with consequent recognition of compatibility of the right to be forgotten. with the Brazilian legal system.
Keywords: Right to be forgotten. Personality rights. Dignity of human person. Constitutionalization of civil law.
1. Introdução
O presente artigo busca analisar a possibilidade jurídica de enquadramento do direito ao esquecimento como espécie de direito da personalidade protegido pelo Código Civil de 2002, além de pretender verificar a compatibilidade do direito ao esquecimento com o ordenamento jurídico pátrio, haja vista o mandamento constitucional de proteção da dignidade da pessoa humana prevista pelo art. 1º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil .
Inicialmente, demonstrar-se-á no presente artigo a possibilidade de enquadramento do direito ao esquecimento como espécie de direito da personalidade previsto no art. 11 do Código Civil, com fulcro em doutrina especializada. Após, serão especificados fundamentos favoráveis e contrários ao reconhecimento do direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro utilizados pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº 10010606/RJ, proferido em sede de repercussão geral. Posteriormente, verificar-se-á a possibilidade de se reconhecer a compatibilização do direito ao esquecimento com o ordenamento jurídico brasileiro como espécie do gênero direitos da personalidade.
Por oportuno, destaque-se que a metodologia de pesquisa utilizada no presente trabalho consiste em revisão bibliográfica de doutrina especializada, a exemplo de Flávio Tartuce, Cristiano Chaves, Paulo Lôbo e Anderson Schreiber, bem como estudos de caso jurisprudenciais, com análise de fundamentação dos votos apresentados no julgamento do RE nº 10010606/RJ pelo Supremo Tribunal Federal.
2. O direito ao esquecimento como espécie de direito da personalidade prevista pelo art. 11 do Código Civil de 2002
O direito ao esquecimento, conforme leciona Flávio Tartuce em sua obra Manual de Direito Civil, corresponde ao direito que o indivíduo possui de discutir a utilização, pela sociedade de informações, de fatos anteriores ocorridos em sua vida. A existência jurídica de tal direito, corolário do metaprincípio da dignidade da pessoa humana, é defendido por parcela da doutrina como uma das espécies de direito da personalidade, mormente por constituir mecanismo de proteção jurídica diretamente relacionado à fruição pelo indivíduo de uma vida digna (TARTUCE, 2020, p. 85).
No que atine aos direitos da personalidade, gênero que abrange doutrinariamente o direito a esquecimento, tem-se que tais direitos “são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, inc. III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana). Em caso de colisão entre eles, como nenhum pode sobrelevar os demais, deve-se aplicar a técnica da ponderação”, conforme explicita o Enunciado nº 274 do Conselho da Justiça Federal (BRASIL, 2006).
Observa-se, ainda, que há previsão expressa do instituto jurídico dos direitos da personalidade no Livro I, Título I, Capítulo II Código Civil de 2002. Veja-se:
Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.
Em uma análise topográfica, observa-se que os direitos da personalidade estão localizados nos primeiros artigos do Código Civil, o que denota a importância conferida pelo legislador à matéria, colocando a pessoa humana como o centro da tutela de direitos, em observância ao novo paradigma trazido pela Constituição Federal de 1988.
Tal fenômeno é denominado pela doutrina especializada, a exemplo de Paulo Lôbo (LÔBO, 1999, p. 99-109), como constitucionalização do direito civil, de modo a abandonar a ótica patrimonialista exacerbada trazida pelo Código Civil de 1916 (BRASIL, 1916) para um viés de tutela jurídica dos direitos da pessoa humana.
Nessa linha de intelecção, observa-se que o direito ao esquecimento se propõe a tutelar a dignidade do indivíduo, assegurando-lhe direitos fundamentais invioláveis previstos pelo art. 5º, inciso X da CRFB/88, como o direito à privacidade, à intimidade, à honra, à imagem e à vida privada, cuja violação é suscetível de reparação civil por danos materiais ou morais.
Acerca dessa temática, destacando a finalidade de tutela específica da privacidade pretendida pelo direito ao esquecimento, disserta Schreiber (2015, p. 141):
(...) o direito ao esquecimento está intrinsecamente ligado à dimensão substancial da privacidade, que diz respeito à utilização das informações pessoais obtidas de cada indivíduo. Se todos possuem um direito à privacidade, entendido como um direito à autodeterminação informativa, devem poder controlar qualitativamente a projeção de seus dados pessoais perante os demais e exigir que essa representação seja fidedigna e não contribua, de qualquer forma, para condutas discriminatórias contra o indivíduo representado.
Evidencia-se, pois, a relação intrínseca existente entre o direito ao esquecimento e o direito à vida digna, consistindo este no direito de o indivíduo usufruir de sua vida de forma plena e com viés eudemonista (direito à busca pela felicidade).
Tal relação entre direitos remonta à origem histórica do direito ao esquecimento, cuja discussão acerca de sua existência iniciou em casuísticas envolvendo condenações criminais, a exemplo do Caso Lebach (CAVALCANTE, 2021), com o fito de assegurar a ressocialização adequada dos egressos do sistema penal (TARTUCE, 2020, p. 85).
Nesse sentir, disserta com maestria o Ministro Gilmar Mendes acerca da aplicação do direito ao esquecimento na seara criminal (MENDES. COELHO. BRANCO. 2007, p. 374):
Se a pessoa deixou de atrair notoriedade, desaparecendo o interesse público em torno dela, merece ser deixada de lado, como desejar. Isso é tanto mais verdade com relação, por exemplo, a quem já cumpriu pena criminal e que precisa reajustar-se à sociedade. Ele há de ter o direito a não ver repassados ao público os fatos que o levaram à penitenciária (MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 374).
Na seara cível, em uma análise jurisprudencial das Cortes Superiores, observa-se que nas últimas décadas houve decisões do Superior Tribunal de Justiça reconhecendo a compatibilidade do direito ao esquecimento com o ordenamento jurídico pátrio, assegurando a aplicação de tal direito no âmbito do direito civil a depender das peculiaridades do caso concreto (CAVALCANTE, 2021), conforme será abordado no tópico 4 do presente artigo.
Todavia, em decisão recente proferida pelo Supremo Tribunal Federal em sede de Repercussão Geral, especificamente no julgamento do RE nº 1010606/RJ, entendeu-se pela incompatibilidade do direito ao esquecimento com a Constituição Federal, uma vez que, a despeito de inexistência de caráter absoluto do direito à liberdade de expressão, não há previsão legal no ordenamento jurídico que autorize a sua restrição pelo mero decurso do tempo, consoante será explicitado no tópico 3 do presente artigo.
Apesar da decisão vinculativa proferida em sede de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal, entende-se pela compatibilidade do instituto do direito ao esquecimento com a Constituição Federal de 1988 e com o Código Civil de 2002, pelos motivos a seguir delineados, a fim de resguardar a dignidade do indivíduo e a proteção de seus direitos personalíssimos.
3. A Decisão do Supremo Tribunal Federal proferida no RE nº 1010606/RJ em sede de Repercussão Geral.
No julgamento do RE nº 10010606/RJ, proferido dia 11/02/2021, o Plenário do Supremo Tribunal Federal entendeu em sede de repercussão geral que a ideia de um direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição Federal de 1988, resguardando a possibilidade de restrição judicial de eventuais excessos ao direito à liberdade de expressão e de informação, com vistas a tutelar a honra, imagem, privacidade e personalidade do indivíduo.
Por sua inequívoca pertinência, transcreve-se tese fixada no referido julgado:
É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais – especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral – e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível. STF. Plenário. RE 1010606/RJ, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 11/2/2021 (Repercussão Geral – Tema 786) (Info 1005).
De acordo com o Ministro Dias Toffoli, relator do caso, a inexistência de previsão legal do direito ao esquecimento e a excessiva restrição ao direito à liberdade de expressão são fundamentos que afastam sua incidência no ordenamento jurídico, em observância ao princípio hermenêutico de unidade da constituição (STF. RE 1010606/RJ, p. 34). Nesse sentido, segue trecho do voto do referido Relator:
A previsão ou aplicação de um direito ao esquecimento afronta a liberdade de expressão. A existência de um comando jurídico que eleja a passagem do tempo como restrição à divulgação de informação verdadeira, licitamente obtida e com adequado tratamento dos dados nela inseridos, precisa estar previsto em lei, de modo pontual, clarividente e sem anulação da liberdade de expressão. Não pode, ademais, ser fruto apenas de ponderação judicial. Parece-me que, admitir um direito ao esquecimento, seria uma restrição excessiva e peremptória às liberdades de expressão e de manifestação de pensamento dos autores e ao direito que todo cidadão tem de se manter informado a respeito de fatos relevantes da história social. Ademais, tal possibilidade equivaleria a atribuir, de forma absoluta e em abstrato, maior peso aos direitos à imagem e à vida privada, em detrimento da liberdade de expressão, compreensão que não se compatibiliza com a ideia de unidade da Constituição. Plenário, 11.02.2021 (Sessão realizada por videoconferência - Resolução 672/2020/STF).
Conforme fundamentado no voto do supracitado Ministro, entendeu-se que não há amparo legal para se transmutar uma publicação lícita para um ato ilícito unicamente em razão do mero decurso de tempo (Ibidem, p. 34).
De mesmo modo, reconheceu-se no referido voto que a passagem de tempo não induz o surgimento de um dever social de perdão, de modo que não se pode obrigar terceiros a renunciar a seu direito à informação e direito à memória em prol de indivíduo que supostamente faria jus a um direito de esquecimento, devendo prevalecer o interesse público da informação (Ibidem, p. 68).
Destacou-se, ainda, no referido voto, que caso se permita negar acesso a fatos ou dados meramente em razão do decurso de tempo, interferir-se-á na independência e progresso da ciência, ainda que indiretamente (Ibidem, p. 61).
Com efeito, no julgamento em questão, foram vencidos os Ministros Edson Fachin e Gilmar Mendes, que, ao realizar a ponderação entre o direito à liberdade de expressão e o direito à intimidade, privacidade, honra e vida privada, entenderam que estes poderiam prevalecer em detrimento daquele a depender do caso concreto, de modo a reconhecer a compatibilidade do direito ao esquecimento com o ordenamento jurídico, destacando a importância do referido direito da personalidade na tutela jurídica da dignidade da pessoa humana (Ibidem, p. 263-264).
Destacou-se, inclusive, no voto vencido do Ministro Gilmar Mendes, que na VI e VII Jornadas de Direito Civil promovidas pelo Conselho da Justiça Federal foram aprovados dois enunciados reconhecendo a aplicação do direito ao esquecimento, entendendo-se que “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”, nos termos do Enunciado nº 531 da CJF/STJ (BRASIL, 2013), e que “o direito ao esquecimento pode ser assegurado por tutela judicial inibitória”, conforme teor do Enunciado nº 576 do CJF/STJ (BRASIL, 2015).
Fundamentou-se, ainda, no referido voto, que a possibilidade de se discutir o modo, a abrangência e a finalidade da lembrança de fatos pretéritos ocorridos na vida de um indivíduo decorre diretamente do direito à intimidade, à vida privada e à imagem (STF. RE 1010606/RJ, p. 263-264), direitos personalíssimos que recebem proteção constitucional como cláusulas pétreas, nos termos do art. 60, §4º, IV, CRFB/88. Nesse sentido:
A despeito da veracidade da informação prestada pelo jornal impresso ou virtual, meio televisivo, radiofônico ou qualquer conteúdo contido em sítio eletrônico (específico ou ferramenta de busca), extrai-se do comando constitucional do resguardo da intimidade, da vida privada e da imagem, que existe a possibilidade de discutir a forma, a abrangência e a finalidade da lembrança dos fatos pretéritos da existência de qualquer ser humano.
O direito ao esquecimento (the right to be let alone, tradução livre – direito de ser deixado sozinho – prefiro denominá-lo de “apagamento de dados”) deve ser entendido como uma solução jurídica encontrada para não permitir que um fato ocorrido em determinado momento distante de sua vida (passado remoto ou longínquo), ainda que verídico, seja exposto indiscriminada e/ou vexatoriamente na atualidade, sob pena de indenização, direito de resposta ou outros mecanismos previstos no ordenamento jurídico. (STF. RE 1010606/RJ, p. 263-264).
Com efeito, ao final do julgamento do RE nº 1010606/RJ, prevaleceu o entendimento de que não há possibilidade de se reconhecer a compatibilidade do direito ao esquecimento com o ordenamento jurídico brasileiro, seja pela ausência de previsão legal nesse sentido, seja porque o reconhecimento de tal direito poderia constituir uma restrição excessiva ao direito à liberdade de expressão e à livre manifestação de pensamento (Ibidem, p. 3-4)
A despeito de tal entendimento firmado pela Suprema Corte em sede de Repercussão Geral, que possui eficácia erga omnes, entende-se pela necessidade de ampliação do debate jurídico acerca do tema, com fulcro em doutrina especializada, mormente considerando que a força vinculante do referido decisum não vincula o Plenário do Supremo Tribunal Federal em suas futuras decisões, conforme art. 102, §2º, da CRFB/88, de modo que é plenamente possível uma futura mudança de entendimento acerca da compatibilidade do direito ao esquecimento com o ordenamento jurídico pátrio.
4. A compatibilidade do direito ao esquecimento (espécie de direito da personalidade) com o ordenamento jurídico brasileiro.
Conforme mencionado, apesar da tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal em sede de Repercussão Geral no julgamento do RE nº 10010606/RJ, tem-se que parcela da doutrina especializada entende pela compatibilidade do direito ao esquecimento com o ordenamento jurídico brasileiro, máxime por constituir espécie de direito da personalidade digna de tutela jurídica pela Constituição Federal de 1988 e pelo Código Civil de 2002, a fim de garantir a proteção à dignidade do titular do direito ao esquecimento.
Nesse sentir, disserta com maestria Anderson Schreiber em sua obra (SCHREIBER, 2020, p. 3):
(...) o direito ao esquecimento nasce e se desenvolve em meio às mais variadas polêmicas, a começar pela sua nomenclatura, entendida pelos críticos ao seu reconhecimento como um indício da sua inexequibilidade. Na realidade, ninguém tem mesmo o direito de ser esquecido, ou de esquecer-se de algo, o que não significa, contudo, que os interesses subjacentes ao direito ao esquecimento – e que vão além da sua imprecisão terminológica – não são dignos de proteção jurídica.
A partir de uma interpretação civil-constitucional, orientada pela função do direito ao esquecimento, e não pela literalidade do termo, buscar-se-á demonstrar que se trata de um direito que merece ser reconhecido em algumas situações, não para que o fato seja extirpado da memória individual ou social, mas para que eventos pretéritos não limitem ou impossibilitem o livre desenvolvimento da pessoa humana.
Nessa linha de intelecção, consigna Flávio Tartuce que o grande desafio prático relacionado ao direito ao esquecimento é a delimitação da amplitude de sua incidência no caso concreto (TARTUCE, 2019, p. 86-87). Destarte, com o fito de resolver tal controvérsia, o referido doutrinador aponta a adoção da técnica de ponderação como importante mecanismo argumentativo para solucionar problemáticas da atualidade (Ibidem, p. 87).
Tem-se, pois, ao adotar a aludida técnica de ponderação, que o reconhecimento de um direito ao esquecimento pressupõe a ponderação entre direitos da personalidade em um caso concreto – especificamente entre os direitos à privacidade, intimidade, honra e imagem e os direitos à informação e à liberdade de expressão –, conforme amplamente debatido no julgamento do RE nº 10010606/RJ pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.
Nessa ótica, considerando as transformações normativas e axiológicas advindas do fenômeno da constitucionalização do direito civil, ocorrido após a promulgação da Constituição Federal de 1988, as quais ensejaram a prevalência da dignidade da pessoa humana em detrimento de questões exclusivamente patrimoniais (LÔBO, 1999, p. 99-109), torna-se necessário que a ponderação a ser realizada no caso concreto busque uma solução que privilegie a dignidade da pessoa humana.
Desta feita, utilizando-se a técnica de ponderação de direitos personalíssimos em casos envolvendo a temática do direito ao esquecimento, é possível juridicamente que este prevaleça quando ficar demonstrado no caso concreto que os fatos pretéritos que se pretende rememorar publicamente causarão maiores danos à dignidade do indivíduo do que utilidade à sociedade em caso de eventual interesse público.
Nesse sentido, trazendo a necessária diferenciação entre interesse público e interesse do público, disserta Evilásio Filho (FILHO, 2014, p. 65):
(...) o interesse público supostamente existente na divulgação do fato deve ser averiguado com muito cuidado, pois interesse público difere bastante do interesse do público, guiado muitas vezes por uma mídia voltada apenas à obtenção de lucros e interessada em inundar a esfera pública de fatos estritamente privados.
Com efeito, em observância ao papel normativo-axiológico que a dignidade da pessoa exerce no ordenamento jurídico pátrio, constituindo fundamento da República Federativa do Brasil, observa-se a possibilidade de se reconhecer a compatibilização do direito ao esquecimento como uma das espécies de direito da personalidade protegidas pelo Direito Civil brasileiro, a ser ponderada no caso concreto quando em conflito com outras espécies de direito da personalidade.
Sendo assim, tendo em vista que a eficácia erga omnes da decisão proferida no julgamento do RE nº 10010606/RJ não vincula o Plenário do Supremo Tribunal Federal em suas decisões futuras, conforme já abordado, observa-se a possibilidade de mudança jurisprudencial do referido entendimento no futuro, a fim de se reconhecer a compatibilidade do direito ao esquecimento com o ordenamento jurídico brasileiro.
5. Considerações Finais
Ante as razões delineadas no presente artigo, observa-se que o reconhecimento do direito ao esquecimento é compatível com o ordenamento jurídico pátrio, conforme defende parcela da doutrina especializada citada supra, de modo que se verifica a possibilidade futura de mudança de entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, máxime ante o caráter fundamental atribuído pela Constituição Federal de 1988 ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Desta feita, objetivando uma maior eficácia na tutela dos direitos da personalidade no caso concreto, inclusive por meio do controle judicial de atos ilícitos, infere-se a possibilidade de tutela do direito ao esquecimento como espécie de direito da personalidade, que deverá prevalecer quando eventual ponderação em face dos direitos à informação e liberdade de expressão puder ensejar violação à dignidade humana do indivíduo, cuja proteção constitui o centro do ordenamento jurídico pátrio.
Em sendo assim, diante de seu papel de centralidade no direito positivado, conclui-se que o princípio da dignidade da pessoa humana justifica a prevalência do direito ao esquecimento no caso concreto quando o reavivamento de fatos pretéritos pela sociedade de informações puder comprometer o seu direito à vida digna, que abrange a proteção de outros direitos da personalidade tutelados pela Constituição Federal de 1988 e pelo Código Civil de 2002, como a vida privada, intimidade, honra, imagem, dentre outros.
6. Referências Bibliográficas
BRASIL. Código Civil de 1916. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm. Acesso em 29 de nov. 2021.
BRASIL. Código Civil de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em 29 de nov. 2021.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 29 de nov. 2021.
BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Marco Civil da Internet. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm. Acesso em 09 de nov. 2021.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Direito ao esquecimento. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/75fc093c0ee742f6dddaa13fff98f104>. Acesso em: 12/12/2021
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. O ordenamento jurídico brasileiro não consagra o denominado direito ao esquecimento. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/10fb6cfa4c990d2bad5ddef4f70e8ba2>. Acesso em: 12/11/2021
BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Enunciado nº 274 da CJF/STJ. IV Jornada de Direito Civil: 2006. Disponível em < https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/219>. Acesso em 05/11/2021.
BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Enunciado nº 531 da CJF/STJ. VI Jornada de Direito Civil:2013. Disponível em < https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/142>. Acesso em 15/11/2021.
BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Enunciado nº 576 da CJF/STJ. VII Jornada de Direito Civil:2015. Disponível em < https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/821>. Acesso em 02/11/2021.
FILHO, Evilásio Almeida Ramos. Direito ao esquecimento versus liberdade de informação e de Expressão: a tutela de um direito constitucional da Personalidade em face da sociedade da informação. Disponível em: https://esmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2014/12/Direito-ao-Esquecimento-vs-Liberdade-de-Informa%c3%a7%c3%a3o.pdf. Acesso em 10/11/2021.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Revista de Informação legislativa, v. 36, n. 141, jan./mar. 1999. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/453. Acesso em 20/11/2021.
SCHREIBER, Anderson. Direito ao esquecimento e seus mecanismos e tutela na internet: como alcançar uma proteção real no universo virtual? Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020.
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 8ª Edição. Editora Atlas: São Paulo, 2015.
STF. Plenário. RE 1010606/RJ, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 11/2/2021 (Repercussão Geral – Tema 786) (Info 1005).
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: Volume Único. 10ª Edição. Editora MÉTODO, Rio de Janeiro/RJ. 2020.
Advogada. Pós-graduada em Direito Constitucional, Direito Civil e Direito Processual Civil pelo Instituto Elpídio Donizetti. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Sergipe.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Vanessa Matos Cortes. Direito ao esquecimento como direito da personalidade: análise de sua compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 jun 2022, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58736/direito-ao-esquecimento-como-direito-da-personalidade-anlise-de-sua-compatibilidade-com-o-ordenamento-jurdico-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Precisa estar logado para fazer comentários.