RESUMO: O presente artigo busca definir o acesso ao aborto como um Direito. Através da análise de dados sobre o aborto no Brasil, fica demonstrado como a criminalização do aborto prejudica as mulheres, mas principalmente as pobres, uma vez que são elas as maiores vítimas dos procedimentos clandestinos realizados de forma precária. Frente aos dados, demonstra-se como a efetivação dos direitos humanos à vida, saúde e liberdade passam a ser divididos por gênero, classe e raça. Deste modo, a efetivação plena dos direitos humanos está diretamente ligada ao gênero, raça e classe social que pessoa pertence. No que diz respeito às mulheres, a não efetivação desses direitos está diretamente ligada ao fato do aborto ser criminalizado, a mulher é colocada em um lugar de submissão, como se não fosse um sujeito completo, que deve ter sua dignidade e sua capacidade de escolha respeitada.
Palavras-chaves: acesso ao aborto, direitos humanos, mulheres.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa conceituar o aborto como um Direito Humano. Para tanto, foi divido em três capítulos.
A primeira parte traz os dados sobre o aborto no Brasil fala do aborto e como sua criminalização é prejudicial. Por sua vez, o segundo capítulo, busca conceituar o aborto como um Direito Reprodutivo e sua proteção no âmbito internacional. Por fim, no último capítulo, busca-se definir o aborto como um direito humano.
Primeiro se faz necessário reafirmar o direito ao aborto como um direito progressista e humano, que deve estar na pauta dos partidos de esquerda. Assim, para chegar nessa definição, no primeiro capítulo será feita uma análise dos dados sobre o aborto no Brasil, demonstrando como este procedimento é comum na vida das brasileiras e, ainda, como a ilegalidade causa a internação e morte de inúmeras mulheres, pois a ausência de auxílio estatal, faz com que se submetam a procedimentos de baixo custo, feito sem as mínimas condições de saúde,
Neste sentindo, à vista que o procedimento seguro, ainda que ilegal, é de alto custo, portanto, restrito a uma pequena parcela da população, demonstrar-se-á como a criminalização do aborto acaba sendo um problema não apenas de gênero, mas também de classe e raça, pois, conforme os dados apresentados, restou comprovado que a pobreza no Brasil tem gênero e raça: mulheres negras. Que, por consequência, acabam sendo as maiores vítimas da lei punitiva brasileira, limitando o acesso dessas mulheres aos direitos básicos, como vida, saúde e liberdade.
Em seguida, com base nos mais importantes documentos jurídicos internacionais, conceituar-se-á o aborto como um direito reprodutivo que, por consequência, deve ser reconhecido como um direito humano. E, por fim, será demonstrado como a proibição do aborto deixa a mulher numa posição de submissão, de não a reconhecimento como um sujeito de direitos capaz de fazer suas próprias escolhas.
2. DADOS SOBRE O ABORTO NO BRASIL
Primeiramente, é necessário definir o que é abortamento e aborto, conforme Norma Técnica editada pelo Ministério da Saúde em 2012:
Sob a perspectiva da saúde, abortamento é a interrupção da gravidez até a 20ª ou 22ª semana de gestação, e com produto da concepção pesando menos que 500g. Aborto é o produto da concepção eliminado pelo abortamento (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2012, p. 76).
Ou seja, o termo técnico correto é abortamento, mas no presente trabalho se adotará o termo “aborto”, por ser mais comumente utilizado.
O aborto pode ocorrer de forma natural ou provocado, sendo este último o objeto do presente trabalho, mais precisamente o Direito ao abortamento seguro. Segundo o Ministério da Saúde (2012, p. 76), o procedimento não será considerado seguro quando realizado nas seguintes condições:
O abortamento é considerado inseguro quando praticado em condições precárias e inadequadas, por pessoal com insuficiente habilitação, ou ambas as condições. Nesses casos, o abortamento relaciona-se com taxas elevadas de mortalidade, com cerca de 13% das mortes relacionadas maternas. Também acarreta condições de morbidade que, muitas vezes, comprometem a saúde reprodutiva da mulher. Por outro lado, se realizado em ambiente apropriado, com técnica adequada, e com profissionais de saúde capacitados, o abortamento induzido é procedimento considerado seguro, com riscos muito pequenos se comparado com outros procedimentos médicos.
Levando em consideração as definições de condições para o aborto e identificando que a precariedade pode estar presente, convém tratar dos motivos que levam uma mulher a praticar um aborto. Eles podem estar relacionados à idade, estado civil, número de filhos, problemas conjugais e aspectos econômicos, como renda familiar e condição de trabalho (BANKOLE; SINGH; HAAS, 2001).
Em lugares que as mulheres têm oportunidades de emprego e educação, e consequentemente, postergam o casamento e a maternidade, os índices de abortos são maiores, principalmente entre as aquelas com menos de 25 anos. Por sua vez, em regiões mais conservadoras, onde as mulheres casam jovens e a expectativa é de engravidar logo após o casamento, o aborto é menos frequente (BANKOLE; SINGH; HAAS, 2001).
Ademais, mesmo com a estimativa da Organização Mundial de Saúde (OMS) que 120 milhões de mulheres no mundo desejem evitar a gravidez, nem elas, nem seus parceiros utilizam de métodos contraceptivos (BRASIL, 2011)
No Brasil, o acesso ao aborto ainda é bastante restrito, tipificado no rol de crimes contra a vida nos artigos 124,125 e 126 do Código Penal, sua prática leva os autores à Júri Popular. O referido diploma legal, no entanto, permite a realização do procedimento nos seguintes casos: quando necessário para salvar a vida da gestante ou quando a gravidez for fruto de um estupro, conhecidos como aborto terapêutico e humanitário, respectivamente (Artigo 128, I e II).
O Supremo Tribunal Federal, por outro lado, em 2012 no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, com voto favorável de oito dos Ministros, autorizou a antecipação terapêutica do parto quando tratar-se de feto anencéfalo, o que configurou um grande avanço na luta das mulheres pela própria autonomia e abrindo precedente para outras decisões.
Assim, em julgamento ainda mais recente, datado de 2016, o Ministro Luis Roberto Barroso concedeu um Habeas Corpus fundamentado na não recepção dos tipos penais que criminalizam o aborto (artigos 124 e 126 do Código Penal), em sua alegação constata que o procedimento praticado até o terceiro mês de gestação, não deve ser considerado crime.
Entretanto, mesmo diante de tantas sanções legais, a criminalização do aborto não é um fator impeditivo para que as mulheres o façam. Neste sentido, a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) - realizada em 2010 como parte de uma investigação extensa sobre políticas de saúde reprodutiva no Brasil, conduzida pela Universidade de Brasília e a Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero -, demonstra que 15% das mulheres brasileiras urbanas já se submeterem a um aborto ilegal. Contudo, conforme o próprio estudo, o número de abortos é certamente maior, uma vez que a pesquisa se refere a mulheres que praticaram aborto, e não a quantas vezes se submeteram ao procedimento ao longo da vida. Ademais, a pesquisa também não contabilizou a população rural e analfabeta do país, o que também elevaria a taxa de aborto inseguros (DINIZ; MEDEIROS, 2010).
Diante da análise realizada a pesquisa contribuiu também para a desmistificação da ideia de que o aborto é realizado para evitar maternidade precoce ou tardia. Na realidade, a proporção de realização de aborto “[...] varia de 6% para mulheres com idades entre 18 e 19 anos a 22% entre mulheres de 35 a 39 anos. ” (DINIZ; MEDEIROS, 2010, p. 962). Ou seja, a maioria das mulheres que praticam o aborto estão na idade reprodutiva:
[...] cerca de 60% das mulheres fizeram seu último (ou único) aborto no centro do período reprodutivo, isto é, entre 18 e 29 anos, sendo o pico da incidência entre 20 e 24 anos (24% nesta faixa etária apenas). Vale notar ainda que 15% das mulheres não sabem ou não responderam a idade com que realizaram o último aborto (DINIZ; MEDEIROS, 2010, p. 963).
Tendo isto em vista, é importante uma análise levando em consideração às características sociais. Neste ponto, a pesquisa afirma que o aborto tem maior incidência em mulheres com escolaridade mais baixa: 23% das mulheres que fizeram aborto estudaram até o quarto ano do ensino fundamental, enquanto na população feminina que concluiu o ensino médio o índice cai para 12% (DINIZ; MEDEIROS, 2010). Entretanto, não é possível imputar a baixa escolaridade como um fator determinante à prática do aborto por dois motivos:
[...] os resultados refletem uma distribuição etária da educação na qual o nível de escolaridade é menor entre grupos que acumularam mais abortos ao longo do tempo, ou seja, as mulheres mais velhas e (2) porque é razoável crer que os efeitos indiretos da educação sobre o aborto – afetando participação no mercado de trabalho e salários, padrões de união conjugal, etc. – sejam tão ou mais importantes que os efeitos diretos do nível de informação sobre reprodução e sexualidade que uma maior escolaridade seria capaz de acrescentar. (DINIZ; MEDEIROS, 2010, p. 963)
Ainda no quesito social, deve-se destacar que, de acordo com a PNA, a religião das mulheres não é um fator determinante para a realização do procedimento. A taxa de aborto entre mulheres de diferentes crenças é praticamente a mesma: “Pouco menos de dois terços das mulheres que fizeram aborto são católicas, um quarto, protestantes ou evangélicas, e menos de um vigésimo, de outras religiões. Cerca de um décimo não respondeu ou não possui religião. ” (DINIZ; MEDEIROS, 2010, p. 963).
No que diz respeito aos métodos utilizados para provocar o abortamento, 48% utilizou algum remédio abortivo, que geralmente é uma forma mais segura de realizar o aborto. Em relação a outra metade, que não utilizou medicamentos, é possível que tenham realizado o procedimento de formas precárias de saúde. Deste modo, mais da metade das mulheres (55%) precisou de internamento após o procedimento (DINIZ; MEDEIROS, 2010).
O contexto apresentado dispõe de informações suficientes para a percepção de quão comum é o aborto no Brasil, uma vez “[...] que, ao completar quarenta anos, mais de uma em cada cinco mulheres já fez aborto. ” (DINIZ; MEDEIROS, 2010, p. 964). Mesmo diante de tantos dados provindos de análises oficiais, tal assunto ainda não é tratado como prioridade pelo Estado que deixa as mulheres à mercê das consequências reais do aborto
No tocante à mortalidade, a OMS estima que anualmente, no mundo, 47 mil mulheres morrem em decorrência de abortos realizados de forma precária (BRASIL, 2011). Enquanto isso, no Brasil, o aborto, realizado em condições precárias totaliza 13% das mortes das gestantes, o que o coloca em terceiro lugar nas causas de mortalidade materna (CPI, 2001).
E este índice pode ser, ainda, muito maior:
A questão do aborto pode, na verdade, ser ainda mais importante do que esse índice aponta, pois é razoável considerar a existência de uma subnotificação geral sobre o aborto, devido à ilegalidade da prática em inúmeros países em desenvolvimento. É provável que os índices de infecções e hemorragias encubram sequelas de tentativas de aborto em más-condições, fazendo com que a questão do aborto não seja considerada a terceira causa, mas algo ainda mais importante e urgente de ser discutido sobre a mortalidade materna (CPI, 2001, p. 39)
Outro fator agravante para esta situação é que a criminalização do aborto também dificulta o atendimento médico, pois muitas mulheres, com medo da repressão, não contam que se submeterem a um aborto, nem como ocorreu o procedimento:
Além de ser a causa provável de muitos óbitos, a clandestinidade dificulta desde o diagnóstico no atendimento médico até o registro adequado do aborto induzido, piorando a já precária qualidade com que frequentemente esse atestado é preenchido. No atestado de óbito, o simples registro da ocorrência de um aborto induzido, sem justificativa legal, pode caracterizar uma denúncia e ter implicações judiciais para o profissional, que muitas vezes acaba por preferir a omissão (REDE FEMINISTA DE SAÚDE, 2004, p. 17)
Portanto, diante dos dados aparentados, é nítido o quão grave é este problema e o quanto pior ele pode se tornar, tanto no âmbito da saúde quanto no social. Desta maneira, a questão a responsabilidade estatal deve ser criticada, pois é necessária a ponderação das consequências da criminalização e a quantidade de mortes ocasionadas por esta, sendo reflexo, principalmente, da vitimização de certa parcela da sociedade
Para adentrar na análise sobre as vítimas do processo de criminalização do aborto é necessário ter em vista que o acesso, ainda que em clínicas ilegais, ao procedimento seguro, realizado por profissionais qualificados, ambiente propício e com demais condições necessárias para garantir a integridade da mulher, é de alto custo, o que é restrito a mulheres ricas, minoria na população.
As mulheres representam 51,3% da população brasileira, não existindo diferenças significativas entre a quantidade de negras e brancas, 49,9% e 49,3%, respectivamente. Por sua vez, os homens são 48,7% da população, sendo que 51,1% declaram-se negros, enquanto a população de brancos é de 48,2%. Logo, a mulheres negras são maioria no país (IPEA, 2009). Curiosamente, apesar de serem a maioria, as mulheres negras são as mais que enfrentam dificuldades no mercado de trabalho:
O desemprego é também uma realidade permeada de desigualdades de gênero e raça. Assim, a menor taxa de desemprego corresponde à dos homens brancos (5%), ao passo que a maior remete às mulheres negras (12%). No intervalo entre os extremos, encontram-se as mulheres brancas (9%) e os homens negros (7%) (IPEA, 2009, p. 27).
A renda per capita é outro importante indicativa na desigualdade social entre homens e mulheres, e negros e brancos. Enquanto a renda per capita do homem branco é de R$ 1.491,00, a da mulher branca é de R$ 957,00. Por sua vez, a renda per capita da população negra é de R$ 833,50 para o homem e R$ 544,40 para mulher (IPEA, 2009). Diante deste contexto, percebe-se que pobreza no Brasil tem gênero e, principalmente, cor.
Conforme já exposto, o abortamento seguro é de alto custo, o que faz com que as mulheres pobres e negras recorram às práticas abortivas baratas que colocam em risco suas vidas:
Os resultados apontam para o aumento relativo da população não branca (preta parda, amarela e indígena) atendida nestas circunstâncias. Em 2008 as mulheres brancas representavam 40% do total de internações por abortamento, e em apenas dois anos sua participação decresceu para 34%. Já o atendimento às mulheres pardas aumentou de 54% para 60% entre 2008 e 2010 e, juntamente com as pretas, estas mulheres representaram 62% das internações por abortamento neste período (RISI, 2008, p. 85)
Isto é, além do aborto ser uma questão de gênero, é principalmente uma questão de raça e classe:
A ilegalidade aprofunda o abismo entre mulheres pobres e ricas. Divide o direito à vida por classe. Existem aquelas mulheres que podem realizar o procedimento em clínicas adequadas e aquelas que põem em risco a própria vida e a possibilidade de futuras gestações desejadas em clínicas sem a menor condição ou em auto-abortos. São essas últimas que batem às portas do Sistema Único de Saúde com as seqüelas de abortamentos realizados de forma insegura (FEGHALI, 2006, p. 216)
Sendo assim, será sobre as mulheres, mais especificamente pobres e negras, que recairá a pior consequência da criminalização do aborto, a morte: “As diferenças, que se concretizam em desigualdades, não são as mesmas para todas as mulheres: raça/etnia, classe social, religião, são fatores que também produzem identidades. ” (LUCENA, 2008, p. 29).
É pelo fato de pertencerem a determinado gênero e raça, que uma parcela da população terá os direitos negligenciados:
Para ilustrar, cabe citar, como exemplo da discriminação contra a mulher no campo da saúde, estudo de Amartya Sen, “Missing women”, que evidencia como a omissão de políticas públicas na área da saúde, endereçadas às mulheres, resultou na morte evitável de milhões de mulheres. Isto significa que pertencer ao gênero feminino interfere no modo pelo qual os direitos humanos são exercidos, respeitados ou violados (PIOVESAN, 2002, p. 70)
Portanto, analisando os dados expostos, apesar de todos poderem serem réus numa ação penal que apura a prática do aborto e sofrerem as consequenciais legais, é sobre as mulheres que recai a privação aos Direitos fundamentais à vida, liberdade e autonomia.
3. O ABORTO COMO UM DIREITO REPRODUTIVO E SUA PROTEÇÃO NO ÂMBITO INTERNACIONAL
A luta das mulheres por igualdade foi pensada em políticas de justiça e de transformação da realidade com o reconhecimento das mulheres como sujeitos de direito, tendo em vista suas especificidades para, assim, atingir a democracia para todos os gêneros (LUCENA, 2008). Isto é, o Estado precisa intervir para garantir a igualdade:
Quando se reivindica equidade nas relações, exige-se um tipo de intervenção ou julgamento que não considere simplesmente a igualdade perante a lei – igualdade formal -, mas uma igualdade de fato (material), que seja construída socialmente, ou até mesmo por meio da lei exemplo do que se busca com as leis e políticas de ações afirmativas, que oferecem mais oportunidades para segmentos menos favorecidos socialmente, como as mulheres, os negros. (VENTURA, 2009, p. 20)
Os direitos reprodutivos devem ser, então, entendidos como uma extensão do Direito à igualdade, conforme explica Piovesan (2007):
Ao lado da universalidade, da indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, surge o valor da diversidade. Nós somos iguais e diferentes, diferentes, mas sobretudo, iguais. Trabalho com três concepções de igualdade: a primeira é uma concepção de igualdade formal, que foi essa que eu mencionei, igualdade de todos perante a lei. A igualdade cega às diferenças. Em um segundo momento, surge a igualdade enquanto justiça social, a igualdade conduzida e inspirada pelo critério socioeconômico. E a terceira concepção de igualdade, que é a que nos importa, é a igualdade como reconhecimento de identidades. Não basta a justiça distributiva. Esta deve ser somada com a justiça enquanto reconhecimento de identidade, o que me parece central, especialmente para a teorização dos direitos sexuais, por exemplo.
Segundo Ventura (2009, p. 19), estes Direitos são entendidos como:
Os Direitos Reprodutivos são constituídos por princípios e normas de direitos humanos que garantem o exercício individual, livre e responsável, da sexualidade e reprodução humana. É, portanto, o direito subjetivo de toda pessoa decidir sobre o número de filhos e os intervalos entre seus nascimentos, e ter acesso aos meios necessários para o exercício livre de sua autonomia reprodutiva, sem sofrer discriminação, coerção, violência ou restrição de qualquer natureza.
A proteção conferida aos Direitos Reprodutivos é estendida aos direitos à vida e à sobrevivência, à saúde sexual e reprodutiva, à liberdade e à segurança, à não-discriminação e o respeito às escolhas, à informação e à educação para tomada de decisão, à autodeterminação e livre escolha da maternidade e paternidade, ao casamento, à filiação, à constituição de uma família, à proteção social à maternidade, paternidade e à família, inclusive no trabalho. (VENTURA, 2009). Portanto, quando se fala em Direitos Reprodutivos não está se referindo apenas a questão da procriação:
[...] a atual concepção dos Direitos Reprodutivos não se limita à simples proteção da procriação humana, como preservação da espécie, mas envolve a realização conjunta dos direitos individuais e sociais referidos, por meio de leis e políticas públicas que estabeleçam a equidade nas relações pessoais e sociais neste âmbito. (VENTURA, 2009, p. 20)
Os Direitos Reprodutivos são reconhecidos como direitos humanos, classificados como Direitos de terceira dimensão:
Os direitos sexuais e reprodutivos se enquadram na terceira geração de direitos, referentes aos valores de solidariedade, e essa nova concepção de direitos reconhece por fim, a dimensão da sexualidade na vida humana, expressa por diferentes orientações sexuais, e vivida plenamente separada dos aspectos reprodutivos. (LUCENA, 2008, p. 54)
No âmbito internacional, estes direitos começaram a ser discutidos na Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher de 1979, a qual o Brasil ratificou apenas em 1984, devido a reivindicação do movimento de mulheres (PIOVESAN, 2002).
O referido documento internacional menciona em seu artigo 12 a questão do planejamento familiar:
Os Estados-partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na esfera dos cuidados médicos, a fim de assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres, o acesso a serviços médicos, inclusive referentes ao planejamento familiar.
Byrnes (1989, p.1 apud PIOVENSAN, 2002, p. 7) explica que a Convenção incorpora:
[...] uma preocupação de que os direitos reprodutivos das mulheres devem estar sob o controle delas próprias, e que o Estado deve assegurar que as escolhas das mulheres não sejam feitas sob coerção e não sejam a elas prejudiciais, no que se refere ao acesso às oportunidades sociais e econômicas.
Portanto, devido à Convenção, em relação aos Direitos Reprodutivos, os Estados devem ter um duplo papel: negativo e positivo. Negativo no que diz respeito a legislações repressivas/punitivas às mulheres, as quais devem ser eliminadas, e ainda no âmbito da autonomia do indivíduo, devendo ser respeitada a liberdade de escolha da mulher. Por sua vez, o papel positivo deverá ser o de promoção de acesso aos serviços de saúde e planejamento familiar (PIOVESAN, 2002).
No entanto, não é surpresa que a Convenção tenha pouca efetividade na prática, pois não prevê mecanismos concretos:
A Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher se restringe a conter a sistemática dos relatórios, não prevendo, a exemplo das mencionadas convenções, a sistemática de petição individual ou comunicação inter-estatal, nem tampouco sistemática que permita a investigação “in loco”. (PIOVESAN, 2002, p. 8)
Apesar de em 1999 ter sido adotado o Protocolo Facultativo à Convenção, que institui o mecanismo de petição, que permite a denúncia ao Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher quando algum direito previsto do documento é violado, bem como a possibilidade de investigação por parte do Comitê, o Brasil não aderiu o protocolo (PIOVESAN, 2002).
Em 1994 também foi redigido outro importante documento sobre a proteção das mulheres, de âmbito regional: a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Belém do Pará – 1994), que foi ratificada pelo Brasil em 1996. A sua importância decorre do conceito de violência descrito logo no artigo primeiro:
Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada. (BRASIL, 1996)
Ou seja, a Convenção reconhece que o Estado também prática e perpetua a violência contra a mulher, conforme explicado em seu artigo segundo: “Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica: [...] c) perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra. ”. (BRASIL, 1996)
Porém, no que diz respeito ao aborto, o mais importante documento internacional foi redigido em Cairo, em 1994, na Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento, que, em síntese:
aprova a recomendação internacional de que os países revejam as legislações punitivas em relação ao aborto, bem como garanta, em todos os casos, acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva de qualidade. Importante destacar que este documento expressa que, em nenhuma circunstância, o aborto pode ser tomado como um método de planejamento familiar, cuja responsabilidade é do Estado, que deverá promover a ampliação e a melhoria dos serviços de saúde (LUCENO, 2008, p. 48):
Na Declaração e a Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a mulher, em 1995, em Beijing, os compromissos assumidos na Conferência de Cairo foram reiterados, tendo o Estado Brasileiro assumido o compromisso de adotar os princípios gerais do Direito Internacional, de forma a subsidiar a interpretação do direito brasileiro, de orientar as políticas públicas, reanalisar a legislação e garantir direitos no que se refere aos tema sexual e reprodutivo, o Brasil comprometeu-se, ainda, a rever a legislação que criminaliza o aborto e reconhece-lo como um problema de saúde pública. (LUCENA, 2008).
Contudo, desde então já se passaram vinte e um anos e o aborto continua sendo tratado no âmbito penal sob a égide de uma legislação da década de 40 do século passado, distante de respeitar a autonomia e a vida das mulheres.
4. O ACESSO AO ABORTO COMO UM DIREITO HUMANO
Em vista dos números de mortes em decorrência de abortos ilegais, mencionados no primeiro subtítulo não é novidade que o Brasil seja classificado como um Estado violador dos Direitos das Mulheres a partir momento que se abstém diante dos números alarmantes e criminaliza as mulheres.
A luta pelo reconhecimento do aborto como um Direito no Brasil não é uma pauta nova. A partir da década de 1970, quando os movimentos sociais lutavam contra a ditadura militar, o movimento feminista começou a ganhar força:
A dura fase de repressão política, iniciada em 1964, foi um período de enorme conscientização a respeito da situação da mulher na sociedade brasileira. As mulheres mais politizadas começaram a se organizar, ansiosas por protagonizarem algum tipo de resistência à ditadura militar. Muitas vieram de partidos clandestinos, outras vieram de movimentos apoiados pela ala mais progressista da Igreja Católica, e eram trabalhadoras sindicalizadas, artistas, intelectuais, estudantes, profissionais liberais, de diferentes idades e origens políticas, sociais e religiosas. As mulheres começaram a despontar como militantes ativas, na luta contra o governo militar que abalou o cenário político com a promulgação do Ato Institucional número 5 (AI 5), em dezembro de 1969 (GOLDENBERG e TOSCANO, 1992, p. 34).
As mulheres não demoraram a entrar em cena e enfrentar o regime autoritário, enquanto algumas saíram à procura dos filhos, maridos e amigos presos ou desaparecidos políticos, outras se juntaram às organizações clandestinas e guerrilhas armadas, dispostas a lutar por liberdade (TELES, 1999). A luta, no entanto, não ficou restrita aos estudantes e intelectuais, as mulheres pobres também demonstraram seu descontentamento com o sistema vigente à época:
[...] mulheres das camadas populares, pois, em face das diversas dificuldades enfrentadas, sobretudo com o aumento dos preços de gêneros alimentícios e bens de primeira necessidade, estas passaram a se mobilizar e a reclamar, publicamente, contra o custo de vida, a falta de escolas, os baixos salários, a ausência de creches, a desnutrição infantil, dentre outras demandas. (SILVA, 2011, p. 126)
Todavia, a luta das mulheres não era apenas contra a ditadura civil-militar. Conforme explica Basterd (1991, p. 104), questões antes ignoradas pela esquerda começaram a ganhar força com o surgimento dos novos movimentos sociais:
Dessa forma, como uma espécie de reação não armada à extrema repressão política, o feminismo, assim como outros movimentos sociais, surge e se fortalece, no período autoritário, trazendo novas demandas sociais e questionando as relações de sexo e raça, dentre outras, que, até então, estavam ofuscadas e englobadas na questão das classes sociais.
Desde então, o movimento feminista esteve na vanguarda na luta por mudança e, principalmente, pelo reconhecimento de direitos:
A partir da década de 1980, o aborto ganha destaque na luta feminista por emancipação e por mudanças jurídicas na legalização do aborto. Autonomia e liberdade são os princípios norteadores de princípios que levem em conta o desejo frente à necessidade de interrupção voluntária da gravidez. (LUCENA, 2008, p. 57)
Apesar das incontáveis conquistas do movimento das mulheres, o aborto continua sendo considerado crime no Brasil, e a consequência disso, é a diminuição da autonomia da mulher, o que é essencial para a manutenção do sistema patriarcal:
A criminalização do aborto é um dos pilares da manutenção da desigualdade entre os gêneros e, portanto fortemente resguardada pelo sistema de dominação, amparado pelo sistema médico, legal e religioso. O status (i)legal da interrupção voluntária da gestação afeta diretamente a saúde e a dignidade das mulheres. Esta complexidade de fatores incide negativamente para as formas de violência institucional no campo jurídico e na área da saúde, e são desafios para a efetivação dos direitos humanos das mulheres. A permanência da criminalização do aborto revela como o corpo sexuado feminino é ainda a principal arena política para as mulheres; corpo demarcado por costumes, valores, tradições e interdições (LUCENA, 2008. p. 14 – 13)
O corpo feminino é utilizado e demarcado pelo sistema patriarcal, a fim de buscar a submissão feminina:
O sistema patriarcal no decorrer de sua história buscou de todas as formas construir ideologias para obter o controle psico-político do corpo biológico da mulher, através da construção de alguns tabus principais: da menstruação, do cinto de castidade, da mutilação dos órgãos genitais feminino, do homicídio feminino etc (SANTOS, 2006, p. 66).
Assim, o interesse pela criminalização do aborto por parte dos conservadores se dá devido a manutenção do status quo:
Em termos de acesso a cidadania e da percepção das mulheres como sujeito, o aborto se configura como uma questão emblemática, porque se mescla com desigualdades produzidas e retro alimentadas por uma sociedade patriarcal e pouco afeita à produção de novos direitos ou questionamentos que promovam mudanças e eqüidade (LUCENA, 2008, p. 58).
Portanto, a partir do momento em que a liberdade da mulher é cerceada, sua capacidade de escolha passa a ser relativizada: “Impor a qualquer mulher, mesmo seguidora de um credo religioso, uma norma que restringe sua liberdade é impedi-la de exercer sua capacidade moral de julgamento e decisão. É negar-lhe sua humanidade. ” (ROSADO-NUNES, 2006, p. 28).
Quando o acesso ao aborto seguro é tolhido de uma mulher e ela se vê diante de uma maternidade compulsória, é também retirado o direito de planejar sua vida, carreira, família etc.
As mulheres precisam da liberdade de tomar decisões relativas à reprodução não apenas para reivindicar o direito de serem deixadas em paz, mas sim, na maior parte das vezes, para fortalecer os laços que as unem aos demais: para planejar responsavelmente uma família cujo sustento possam prover, para dar conta de seus compromissos profissionais assumidos com o mundo exterior, ou para continuar a sustentar suas famílias ou comunidades. Em outros momentos, a necessidade de abortar se impõe não a partir de um impulso assassino de pôr fim a uma vida, mas da dura realidade de um parceiro financeiramente irresponsável, uma sociedade indiferente aos cuidados com os filhos e um ambiente de trabalho incapaz de atender às necessidades dos pais que trabalham. Seja qual for a razão, a decisão de abortar é quase invariavelmente tomada no contexto de uma rede de responsabilidades e compromissos interligados, conflitantes e, em geral, irreconciliáveis. (WEST, 1990, apud DWORKIN, 2003, p. 80).
Os argumentos utilizados pela manutenção da criminalização do aborto não levam em consideração a falta de apoio, estrutural e emocional, que o estado e a sociedade dão às mulheres e seus filhos. A falta de vagas em creches públicas impede que muitas mulheres retornem ao trabalho ou aos estudos, cabendo a elas a responsabilidade de ficar em casa para cuidar dos filhos e depender financeiramente de terceiros.
Em uma sociedade melhor, que amparasse a criação dos filhos com o mesmo entusiasmo com que desestimula o aborto, é bem possível que o status do feto passasse por modificações, tornando mais verdadeiro e menos problemático o sentimento das mães de que a gravidez e a maternidade são processos criativos, e fazendo-as perceber que o valor intrínseco de suas próprias vidas não está sujeito a tantas ameaças (DWORKIN, 2003, p. 79).
Estes argumentos contrários ao aborto têm valores apenas religiosos e morais:
Hoje, a proibição moral e legal à interrupção da gravidez não desejada pela mulher não encontra motivos razoáveis ou racionais, de ordem pública, que a justifiquem. Ao contrário, ela representa um verdadeiro tabu, pois não é racional nem razoável valorizar mais a vida do feto – vida humana em formação – do que a vida da mulher – ser humano pleno. Representa a tácita sub-valorização da mulher (PIMENTEL, 2006, p. 7).
Ocorre que a liberdade de culto é um direito individual, não devendo a religião ser utilizada para fundamentar políticas públicas:
Quanto à insistência em calçar os argumentos sob a perspectiva religiosa, é preciso lembrar que a liberdade de culto é parte constitutiva deste Estado e está garantida na Constituição Federal desde 1946, por iniciativa da bancada comunista, da qual o saudoso escritor Jorge Amado era membro. O exercício individual da religiosidade é uma característica da democracia. Mas também é uma grande conquista democrática a separação entre Estado e Igreja, o Estado laico (FEGHALI, 2006, p. 214).
Contudo, apesar de constitucionalmente o Brasil declarar-se um estado laico, as religiões, principalmente as cristãs, continuam exercendo forte influência sobre o Estado, e por consequência, exercendo seu controle social e moral sobre as mulheres:
A partir do momento em que Estado e Igreja separam-se, cada qual com funções diferenciadas e formas de controle social próprias, torna-se incabível que as leis civis sejam regidas por parâmetros religiosos. Ou seja, nesta nova configuração, a defesa de justificações seculares no direito penal não mais admitiria a condenação ao aborto em razão deste ser um pecado que insulta e frustra o poder criador de Deus (LAPA, 2008, p. 50 – 51).
Por séculos, a Igreja Católica defendeu a tese de Aristóteles que o feto teria alma após quarenta dias da fecundação. O aborto não era considerado pecado, sua prática era aceitável, pois o procedimento era uma forma de ocultar infidelidades conjugais. À época o casamento monogâmico era o mais importante fundamento da Igreja, que o defendia não apenas por questões morais, mas também por motivos econômicos, preocupação com a propriedade legítima do herdeiro. Contudo, no século XIX a Igreja passou a condenar o aborto, alegando que desde a concepção o feto já tem alma, sendo a sua prática motivo de excomunhão (LAPA, 2008).
Atualmente, a Igreja está mudando os fundamentos de seu argumento, buscando afastá-lo da fé cristã, afirmando que há uma moral, independente de religião, que deve respeitar a dignidade de todos os seres humanos desde a fecundação:
Mas há um mínimo consenso que se articula à volta da defesa da dignidade humana — na qual se inclui o direito à vida e também do ser que já foi concebido mas que ainda não nasceu —, que é absolutamente irrenunciável, pois, de contrário, nem a sociedade nem o Estado teriam razão para existir. Este mínimo não é patrimônio exclusivo da Igreja Católica, mas de toda a humanidade. (...) Opor-se hoje ao aborto provocado, como em outras épocas à escravatura, não é fanatismo nem tem a ver exclusivamente com as convicções religiosas, católicas ou não, mas é uma obrigação indeclinável para todos os que crêem no direito à vida e na dignidade do ser humano. (COMITÊ EPISCOPAL DA ESPANHA PARA A DEFESA DA VIDA, 1993, p. 48 apud LAPA, 2008, p. 52)
No entanto, apesar da linha argumentativa da Igreja estar mudando, a resistência dos setores religiosos e conservadores à aceitação da liberação do aborto, mesmo nos casos que existe risco à saúde da mulher, revela o não reconhecimento da mulher como um sujeito de direitos, que também deve ter sua dignidade respeitada (PIMENTEL, 2006).
Esta sub-valorização ocorre, devido à crença religiosa e patriarcal de que a principal função feminina é a reprodução, assim, a mulher é o meio e o feto fim, e a vida do último é valorizada em detrimento da vida feminina.
A partir do momento que a mulher não é reconhecida como um sujeito de direitos: “[...] uma parte importante da sociedade humana tem uma dificuldade acrescida para exercer os direitos humanos e as liberdades fundamentais de que é titular, em função da situação de injustiça a que está submetida. ” (ALMEIDA, 2014, p. 12).
Assim, para que seja reconhecido o direito ao aborto, é necessário antes que a mulher tenha seus direitos básicos respeitados, e consequentemente sua dignidade reconhecida e respeitada. E ter a dignidade respeitada, conforme define Boff:
É ser tratado sempre humanamente. E principalmente é poder participar da construção do bem comum. Fomos criados criadores. Se não pudermos criar somos privados de algo essencial de nossa vida. E a criação e a participação exigem a liberdade. Ser livre das necessidades vitais, da fome, da sede, da falta de moradia, de saúde, de educação e de segurança para ser livre para os outros, para a criação, para a plasmação de seu próprio destino, tudo isso é viver com dignidade (2006, p. 18 – 19).
O Ministro Luís Roberto Barroso (STF, 2016), em seu voto no Habeas Corpus n. 124.306, também defendeu que: “dignidade significa, do ponto de vista subjetivo, que todo indivíduo tem valor intrínseco e autonomia”.
É importante destacar que o movimento feminista não nega em seus argumentos que o feto pode e deve ter seus direitos respeitados – alimento gravídicos, por exemplo, estabelecidos na Lei 11.804/2008. No entanto, quando estes direitos entram em conflito com a dignidade da gestante, a palavra da mulher deverá prevalecer:
[...] os argumentos e os estudos feministas têm por base não apenas a negação de que o feto é uma pessoa, ou a afirmação de que o aborto é permissível ainda que o feto o seja, mas que se baseia igualmente em preocupações positivas que reconhecem o valor intrínseco da vida humana. (DWORKIN, 2003, p. 70)
Portanto, a mulher só será reconhecida como sujeito de direitos, quando sua liberdade de escolha e a sua vida forem plenamente respeitadas, isto é, sua autonomia, segundo defendeu o Ministro Luis Roberto Barroso em seu voto do Habeas Corpus já exposto
Quando se trate de uma mulher, um aspecto central de sua autonomia é o poder de controlar o próprio corpo e de tomar as decisões a ele relacionadas, inclusive a de cessar ou não uma gravidez. Como pode o Estado – isto é, um delegado de polícia, um promotor de justiça ou um juiz de direito – impor a uma mulher, nas semanas iniciais da gestação, que a leve a termo, como se tratasse de um útero a serviço da sociedade, e não de uma pessoa autônoma, no gozo de plena capacidade de ser, pensar e viver a própria vida? (BRASIL, 2016).
A luta do movimento feminista ao longo dos anos pelo direito ao aborto é uma busca identitária: “O valor da autonomia resida na associação com o valor identidade, para resgatar o poder da escolha do caminho feminino dentro do tecido societário patriarcal”. (SOUZA, 2006, p. 187)
Contudo, para que a mulher possa exercer sua autonomia e liberdade, faz-se necessários que lhe sejam dados os meios para tanto, visto a sociedade patriarcal em que as mulheres estão inseridas:
[...] a liberdade pretendida pelas feministas no campo reprodutivo se encaixa no sentido dado por Chauí (1985), para quem liberdade é, em primeiro lugar, a participação na construção das condições nas quais as pessoas vão fazer suas escolhas e não como sendo a possibilidade de escolher frente ao que os outros oferecem. Neste sentido, para existir a liberdade é necessária a construção de condições objetivas e subjetivas. Desfazer o lugar do corpo (anatomia) como destino, desconstruir a heteronomia em que estiveram (e continuam) mergulhados os corpos femininos são os fundamentos de uma concepção renovada de cidadania, que incorpora as vivências da sexualidade e da reprodução e, por esse caminho, abre campo para que seja superado o ‘despossuimento de si’ experimentado pelas mulheres nessas duas esferas.
O corpo das mulheres não pode ser tomado como um lugar de definição do seu “destino”, mas justamente ao contrário; a sua integridade corporal e o reconhecimento do direito sobre seu próprio corpo como dimensão fundamental da sua cidadania abrem o caminho para vivenciar as diferenças que existem entre os vários aspectos de ser mulher e também de ser homem, sobre os quais esses direitos também devem ser estendidos. (ÁVILA, 2002, p. 177).
O acesso é ao aborto é, então, uma extensão do Direito à vida, igualdade e liberdade – direitos reconhecidos como humanos. O direito ao aborto não é um fim em si mesmo, mas sim uma forma de efetivação dos direitos humanos das mulheres.
Além de descriminalizar o aborto e reconhecê-lo como um direito individual, é necessário que o Estado garanta o acesso seguro e gratuito para todas as mulheres. A descriminalização sem a regulamentação pelo Estado, não é o suficiente, pois assim, a dignidade continuará sendo assegurada apenas para as mulheres que poderão arcar com os custos do procedimento.
Portanto, para que se alcance uma sociedade materialmente igual, é preciso que antes, a mulheres sejam reconhecidas como humanos, como sujeito de direitos que têm capacidade e autonomia para decidir sobre seu corpo e vida. E este reconhecimento deve ser assegurado a todas mulheres, por meio da atuação estatal, que deverá ter um papel negativo, de não proibição do aborto, e positivo, de oferecer educação sexual, informação, acesso à contraceptivos e, quando estes falharem e não forem suficientes para evitar uma gravidez indesejada, assegurar o acesso ao aborto seguro e gratuito.
5. CONCLUSÃO
O direito ao acesso ao aborto pode ser considerado um ponto de encontro entre as mais diversas teorias feministas, seja liberal, radical, marxista ou pós-modernas.
O que todas elas têm em comum é que a criminalização do aborto mata mulheres todos os dias no mundo, principalmente mulheres pobres.
Neste sentindo, tendo em vista tratar-se de um debate pacífico entre os movimentos de mulheres e uma reivindicação antiga das feministas brasileiras, mas que, no entanto, encontra-se estagnado e regido pelo Código Penal de 1940.
Mesmo após tantas mudanças no país, inclusive com a elaboração de uma nova Constituição, que trouxe inúmeras mudanças na legislação e avanços sociais, o direito das mulheres ao aborto seguro continuou sob a vigência da lei criminal.
A criminalização do aborto no brasil dificulta o acesso ao aborto seguro. Assim, o acesso ao procedimento seguro, ainda que ilegal, é restrito a uma parcela da sociedade, devido ao seu custo.
Deste modo, as mulheres pobres recorrem a práticas baratas e consideradas de risco pela medicina, que por consequência, colocam em risco a saúde e a vida, levando milhares de mulheres a internações e à morte.
Ocorre que, as vítimas de abortos clandestinos, como se viu, são, geralmente, mulheres negras, a população mais pobre do Brasil, o que torna o aborto não apenas um problema de saúde pública, mas também um de raça e classe, que deve ser defendido pelos partidos de esquerda.
A partir destes dados, o trabalho caminhou para a conceituação do aborto como um direito humano. Na verdade, demonstrou-se que no âmbito do direito internacional, já se pode considerar o acesso ao aborto seguro como uma extensão dos direitos reprodutivos, uma vez que já existem documentos que asseguram que cabe à mulher o planejamento familiar, cabendo ao estado garantir os meios para que ela faça suas escolhas.
Entretanto, o Brasil, devido a intensa influência das religiões no Estado, está longe de pensar assim. A criminalização do aborto é essencial para o patriarcado exercer o controle sobe corpo feminino, tratando as mulheres como seres incapazes de fazer escolhas. Ocorre uma sub-valorização do corpo feminino, na qual acredita ser a sua única função é a reprodução, portanto, o feto merece mais proteção do a mulher.
Ainda que esta gravidez interrompa os planos de estudo e trabalho desta mulher, ainda que ela precise ficar dependente economicamente de terceiros para criar o filho. Assim, ainda que a mulher tenha planejado sua vida de outra forma, seu destino, será a maternidade, não levando em conta sua individualidade.
Neste sentindo, o direito ao aborto é uma extensão do direito à liberdade, direito de a mulher planejar a sua vida, sem que para isso, precise se submeter a procedimentos insalubres, que ferem seu direito à saúde a à vida.
Deste modo, a mulher só terá sua dignidade reconhecida e será considerada um sujeito de direito capaz de fazer suas escolhas, quando o acesso ao aborto seguro e gratuito for garantido para todas a mulheres.
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Advogada. Graduada em Direito pela UNISOCIESC (Sociedade Educacional de Santa Catarina) em Joinville/SC e Especialista em Direito Público pela ESMESC (Escola da Magistratura Estadual Catarinense).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SCHREINER, Betina. O acesso ao aborto como um direito humano Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 jun 2022, 04:05. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58755/o-acesso-ao-aborto-como-um-direito-humano. Acesso em: 23 dez 2024.
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