RESUMO: Análise do controle de constitucionalidade, bem como do art. 28, caput, da Lei n° 11.343/06, por meio de pesquisa bibliográfica. Abordagem de diversos aspectos do controle de constitucionalidade, como objeto, órgão responsável pelo controle, legitimados e efeitos. O Recurso Extraordinário 635.659/SP é tratado como exemplo do controle difuso a ser exercido pelo Supremo Tribunal Federal, no qual se discute a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal. Após, examina-se o crime de porte de droga para consumo pessoal à luz do direito à vida privada e à intimidade, bem como dos princípios da lesividade, proporcionalidade e subsidiariedade, concluindo-se pela inconstitucionalidade material do tipo penal.
PALAVRAS-CHAVE: Controle. (In)constitucionalidade. Drogas. Crime. Uso pessoal.
ABSTRACT: Analysis of constitutional control, as well as the art. 28, caput, of the law nº 11.343/06 by the means of bibliographical research. Many aspects of the constitutional control were approached such as object, institution responsible, those authorized and the effects. The Recurso Extraordinário 635.659/SP is treat as an example of the diffuse control exercised by the Supreme Court, in which is discussed the decriminalization of drug use. Afterwards, there is an examination of the crime of drug use in light of the right of privacy and intimacy, as well as the principles of harmfulness, proportionality and subsidiarity, arriving at the conclusion that the legal type is unconstitutional by a material point of view.
KEYWORDS: Control; Unconstitutional; Drugs; Crime; Personal Use
1.INTRODUÇÃO
O presente artigo busca analisar o controle de constitucionalidade, perpassando pelo objetivo do controle, bem como pelas suas modalidades e seu objeto. Será analisado também quais órgãos são capazes de exercê-lo e quais os efeitos das decisões em sede de controle, concentrado ou difuso.
Nesse contexto, será ainda tratada a eventual inconstitucionalidade do art. 28, caput, da Lei 11.343/09, que tipifica o crime de porte de droga para consumo pessoal. Nesse momento abordar-se-á os princípios da lesividade, da proporcionalidade e da subsidiariedade do direito penal, avaliando-os em conjunto com a norma em questão.
A discussão é atual e relevante tanto no campo jurídico como no político e da saúde, uma vez que se aguarda o julgamento do Recurso Extraordinário 635.659/SP, no qual a Defensoria Pública do Estado de São Paulo pleiteia a inconstitucionalidade do crime de porte de droga para consumo pessoal. A eventual declaração de inconstitucionalidade afetará muitos e significará uma mudança histórica de como o Brasil lida com as drogas.
Por fim, destaque-se que as análises serão realizadas por meio de revisão bibliográfica, discutindo-se no primeiro momento o controle de constitucionalidade e em um segundo momento o art. 28, caput, da Lei n° 11.343/06, à luz dos princípios anteriormente citados.
2.ASPECTOS DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
A Constituição Federal de 1988 é a norma suprema do ordenamento jurídico brasileiro, de modo que as leis e demais atos normativos devem ser compatíveis com seus mandamentos para serem válidos. Nesse diapasão, pontue-se que ao ingressarem no ordenamento jurídico as normas são presumidamente constitucionais (presunção relativa de constitucionalidade). Ou seja, acredita-se que a nova norma tanto obedeceu ao procedimento constitucional estabelecido para a sua criação como o seu conteúdo atende aos preceitos e princípios constitucionais.
Ocorre que nem sempre as normas criadas estão alinhadas formal e materialmente com a Constituição Federal. Surge, assim, a possibilidade de controle das leis e dos atos normativos, verificando-se a compatibilidade vertical da norma com a Constituição de 1988. O controle de constitucionalidade, como é conhecido, objetiva, portanto, defender a Constituição Federal, a sua supremacia e força vinculante em relação aos poderes públicos.
Nesse contexto, frise-se que as normas poderão ser formal ou materialmente inconstitucionais. Será formalmente inconstitucional quando desrespeitar o procedimento constitucional estabelecido para a formação da norma, incluída a competência para a edição do ato (BONAVIDES, 2004).
Por sua vez, será materialmente inconstitucional quando o conteúdo da norma for incompatível com os preceitos constitucionais, seja por meio de uma análise de inconformidade direta entre o ato legislativo e o parâmetro constitucional seja pela verificação do desvio ou excesso de poder legislativo (MENDES e BRANCO, 2017).
Gilmar Mendes e Paulo Branco (2017, p. 948) esclarecem que o excesso ou desvio de poder “cuida-se de aferir a compatibilidade da lei com os fins constitucionalmente previstos ou de constatar a observância do princípio da proporcionalidade, isto é, de se proceder à censura sobre a adequação e a necessidade do ato legislativo”.
Dessa forma, para que haja compatibilidade entre a nova norma e a constituição, é preciso respeitar o princípio da proporcionalidade em suas duas dimensões: proibição do excesso e proibição de proteção insuficiente.
A lei, portanto, deve se pautar pela regra da proporcionalidade, não podendo exceder o limite do necessário à tutela dos fins almejados pela norma constitucional. Isso porque, ao excedê-los, estará ferindo direitos constitucionais limítrofes com o direito constitucional por ela tutelado. Quando há dois modos para dar proteção ao direito constitucional, considerasse ilegítima a lei que, dando-lhe tutela, não é a que a traz a menor interferência ou restrição sobre outro direito. Assim, se a lei vai além do necessário, há negação da cláusula de vedação de excesso.
De outro lado, o legislador não pode deixar de responder às exigências da norma constitucional, ou de respondê-las de modo insuficiente, deixando sem efetiva proteção o direito constitucional. Se isso ocorrer, a lei violará o direito fundamental na sua função de mandamento de tutela. Daí por que, quando esta tutela inexiste ou é insuficiente, há violação da cláusula de vedação de tutela insuficiente (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2018, p. 1048).
A análise da constitucionalidade sob o viés material requer, assim, uma apreciação ampla da matéria que inclui não só o seu conteúdo, mas a forma como é abordado em uma perspectiva sistemática do ordenamento jurídico.
A inconstitucionalidade poderá ainda ser por ação ou por omissão. A inconstitucionalidade por ação ocorrerá quando o legislador editar uma norma em desacordo com os mandamentos constitucionais, tratando-se de um comportamento ativo do poder público.
De outro lado, a inconstitucionalidade por omissão decorrerá de um não fazer do poder que tem a obrigação constitucional de legislar. Se essa obrigação não for cumprida, estar-se-á diante de uma omissão total; no entanto, se essa obrigação for cumprida, mas de forma insuficiente, falar-se-á que a omissão é parcial (MENDES; BRANCO, 2017).
No Brasil o controle de constitucionalidade pode ser exercido tanto por órgão político, em regra, antes da edição do ato (como na Comissão de Constituição e Justiça) como por órgão jurisdicional, normalmente, após a edição do ato. Neste último caso, a compatibilidade da norma é analisada por meio do controle concentrado ou do controle difuso (SILVA, 2004).
O controle concentrado – ou abstrato ou por via de ação – é aquele que avalia a norma em tese e é exercido exclusivamente pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Esse controle se materializa por meio das ações do controle de constitucionalidade, a saber, ação direta de inconstitucionalidade (ADI), ação declaratória de constitucionalidade (ADC), ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO) e ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF).
Embora seja um importante caminho para a aferição da constitucionalidade da norma, o controle concentrado possui limitação no sentido de quem pode propor a ação, uma vez que o rol é taxativo. O art. 103, da Constituição Federal elenca como legitimados apenas o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, o Governador de Estado ou do Distrito Federal, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o Partido Político com representação no Congresso Nacional e a Confederação Sindical ou Entidade de Classe de âmbito nacional.
Se por um lado, há restrição de quem pode acionar o controle concentrado, por outro, os efeitos da decisão são erga omnes e vinculantes. Isto é, a decisão de mérito proferida possui eficácia obrigatória contra todos, inclusive em relação aos demais órgãos do poder judiciário e à administração pública - direta e indireta -, excetuado apenas o poder legislativo no exercício da função legiferante (SILVA, 2004).
Destaque-se que a norma declarada inconstitucional é considerada nula desde o seu nascedouro, ou seja, trata-se de hipótese de nulidade ex tunc. Ressalvada, entretanto, a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão, de modo que a lei declarada inconstitucional poderá produzir efeitos até certo momento, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, nos termos do art. 27, da Lei n° 9868/99.
Por sua vez, o controle difuso – ou incidental ou concreto ou por via de exceção – é aquele exercido na análise do caso concreto, por qualquer órgão jurisdicional. A inconstitucionalidade é alegada como causa de pedir (incidenter tantum) e não como pedido propriamente dito, ou seja, a inconstitucionalidade é questão prejudicial à resolução do litígio, que será avaliada pelo órgão competente para julgar a demanda.
Nesse sentido, Ingo Sarlet, Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero (2018, p. 1073) afirmam que
a decisão da questão de constitucionalidade, assim, não é a decisão da questão principal ou, mais exatamente, do objeto litigioso do processo, mas a decisão da questão cujo exame constitui premissa indispensável para a análise da questão principal ou do mérito, sobre o qual litigam as partes do processo.
Os legitimados para a alegação de inconstitucionalidade de forma incidental são todas as partes do processo: autor, réu, terceiros interessados, Ministério Público (seja como fiscal da lei ou como parte propriamente dita), bem como juízes e tribunais de ofício.
Ademais, a declaração de inconstitucionalidade por meio da via incidental produz, em regra, efeitos inter partes, ex tunc e não vinculante, de modo que a lei continuará válida e eficaz no ordenamento jurídico (SILVA, 2004).
Entretanto, é importante ressaltar que quando o controle incidental for realizado pelo Supremo Tribunal Federal, a decisão de mérito quanto à constitucionalidade será vinculante e produzirá efeitos erga omnes, assim como no controle concentrado. Ingo e outros analisam com precisão as razões desse efeito vinculante, ao mesmo tempo em que ressignificam a possibilidade de suspensão da eficácia da lei pelo Senado Federal, prevista no art. 52, inciso X, da Constituição de 1988.
A compreensão da necessidade de cada uma das decisões do STF obrigar a própria Corte e os demais tribunais advém da premência de se dar sentido à função da mais alta Corte brasileira diante do sistema de controle de constitucionalidade. Não há racionalidade em entender que apenas algumas das suas decisões, tomadas no controle difuso, merecem ser respeitadas, como se o jurisdicionado não devesse confiar em tais decisões antes de serem sumuladas. Ora, isso seria o mesmo que concluir que a segurança jurídica e a igualdade dependeriam das súmulas e, por consequência, que o próprio Poder Judiciário, diante do sistema ao qual é submetido, poderia se eximir de responder aos seus deveres e aos direitos fundamentais do cidadão perante a justiça. [...] Assim, a eficácia vinculante das decisões do Supremo nada tem a ver com comunicação ao Senado, certamente ilógica e desnecessária para tal fim. A comunicação é feita apenas para permitir ao Senado, em concordando com o STF, suspender a execução do ato normativo. A não concordância daquele em nada interfere sobre a eficácia vinculante da decisão deste. Trata-se de planos distintos. Depois do controle incidental e da produção de efeito vinculante, a lei declarada inconstitucional pode continuar a existir, ainda que em estado latente (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2018, p. 1101e 1102).
Inclusive, a partir de uma releitura do art. 52, inciso X, da Constituição (para alguns uma mutação constitucional[1]) o STF firmou novo entendimento no sentido de que ao Senado Federal cabe apenas dar publicidade à decisão, não sendo possível ao órgão analisar a conveniência ou não da suspensão da lei declarada inconstitucional, em razão do efeito vinculante e da força erga omnes que derivam da própria decisão[2].
Exemplo atual do controle concreto a ser exercido pelo Supremo Tribunal Federal é o do Recurso Extraordinário 635.659 São Paulo[3], no qual a Defensoria Pública do Estado de São Paulo pugna pela declaração de inconstitucionalidade do art. 28, caput, da Lei n° 11.343/06 (crime de porte de droga para consumo pessoal), a seguir explorado.
3 ANÁLISE DO ART. 28, CAPUT, DA LEI N° 11.343/06 À LUZ DO DIREITO À VIDA PRIVADA E À INTIMIDADE E DOS PRINCÍPIOS DA LESIVIDADE, PORPORCIONALIDADE E SUBSIDIARIEDADE
O art. 28, caput, da Lei n° 11.343/06 define como crime a conduta de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Sujeitando os indivíduos que a praticarem a pena de advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade ou a medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (art. 28, incisos I a III, da Lei n° 11.343/06).
Ocorre que, embora esta previsão seja formalmente constitucional, por ter atendido a todos os procedimentos legais exigidos, o mesmo não se pode falar quanto ao aspecto material. Nesse diapasão, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo e outros entes (amici curiae) buscam a declaração de inconstitucionalidade material do crime de porte de droga para consumo pessoal.
Em primeiro lugar, alega-se que o art. 28, caput, da Lei de Drogas tutela a saúde pública, sob a premissa de que o porte de droga para consumo próprio contribui para a propagação no meio social, o que não se sustenta. Pois, da análise do tipo penal verifica-se que a conduta criminalizada é aquela que se limita ao consumo pessoal, ou seja, que está adstrita à vida privada do agente, tratando-se, no máximo, de autolesão, irrelevante penal. Logo, observa-se que a criminalização dessa conduta implica violação do direito à intimidade e à vida privada, garantido pelo art. 5°, inciso X, da Constituição Federal.
Se se trata de conduta pessoal que não ultrapassa os limites da autonomia do sujeito, não se pode falar em lesão a bem jurídico alheio. E se não há violação a bem jurídico alheio, não está presente a lesividade, aspecto indispensável na criação de um tipo penal. Gustavo Junqueira e Patrícia Vanzolino (2019, p. 17) ao abordarem o princípio da exclusiva proteção a bens jurídicos (lesividade) esclarecem que os
bens jurídico-penais podem ser definidos, grosso modo, como as condições mínimas de coexistência social cuja importância justifica a sua tutela através do Direito Penal. Segundo o princípio da exclusiva proteção a bens jurídico-penais em questão, o direito penal não é o meio legítimo para a persecução dos estados ótimos ou ideais para o indivíduo ou para a sociedade, mas apenas para garantir os pressupostos mínimos sem os quais a vida em comunidade estaria seriamente arriscada. [...] em um Estado Social e Democrático de Direito, ao lado da dignidade da pessoa humana, assoma como valor central o pluralismo do qual decorre a exclusão da legitimidade do Direito Penal para tutelar valores puramente morais, religiosos ou ideológicos (que não se possam considerar condições básicas para a vida em comum). Por isso, quanto a essas matérias o Estado deve, a priori, abster-se de regulamentações jurídicas.
O crime de porte de droga para consumo pessoal possui um bem jurídico tutelado que não ultrapassa a esfera individual. E se não há perigo concreto de violação a um bem jurídico alheio tutelado, não há legitimidade na criminalização da conduta, pois “somente se justifica a intervenção estatal em termos de repressão penal se houver efetivo e concreto ataque a um interesse socialmente relevante, que represente, no mínimo, perigo concreto ao bem jurídico tutelado” (BITENCOURT, 2020, p. 145).
Não é admissível que opções morais dos legisladores sejam capazes de limitar o direito constitucional à vida privada, à intimidade e à própria autodeterminação do sujeito. Em um regime pluralista é indispensável o respeito a diferentes formas de se viver, que não afetam a convivência social, como é o consumo pessoal de drogas. Logo, inegável a inconstitucionalidade do art. 28, caput, da Lei n° 11.343/06 por violação do direito à intimidade e à vida privada, bem como do princípio da lesividade.
Em segundo lugar, há ainda que se destacar que a medida interventiva adotada pelo Estado, no caso, a criminalização do porte de droga para consumo próprio, deve ser a mais adequada e a menos gravosa para o alcance dos objetivos, em respeito ao princípio da proporcionalidade. Se o legislador utilizou com excesso ou de forma deficiente a sua margem de ação para a proteção dos bens jurídicos pelo Direito Penal, deve ser declarada a inconstitucionalidade do ato normativo, retirando-o do ordenamento jurídico (MENDES; BRANCO, 2017).
Vislumbra-se, no entanto, que a criminalização não é a medida menos gravosa nem a mais adequada a ser adotada para a consecução dos objetivos declarados pelo Estado, qual seja, resguardar a saúde pública e do próprio usuário. Pois, a adoção de outras medidas regulatórias tem se mostrado mais eficaz e consentânea com os objetivos alegados, como a política de redução de danos.
Nesse contexto é importante destacar que existem dois tipos de políticas: “as políticas que visam ao cuidado por meio do respeito ao direito de escolha do usuário e as políticas nas quais prevalece o paradigma da abstinência, pela imposição da descontinuidade imediata do uso” (LOPES; GONÇALVES, 2018, p. 6). O Brasil, hoje, adota a política de repressão das drogas – de ruptura imediata do uso - que, ao contrário do que se sustenta, não é a melhor política quando se fala em cuidado à saúde.
A política de redução de danos, por sua vez, tem como objetivo reduzir os riscos associados ao consumo de drogas sem, necessariamente, intervir na oferta ou no consumo, por meio de ações de saúde dirigidas a usuários ou a dependentes que não podem, não conseguem ou não querem interromper o referido uso, conforme Portaria n° 1.028 de 2005 do Ministério da Saúde. O que demonstra uma verdadeira atenção à saúde do usuário e da população, enquanto a criminalização resulta na pura estigmatização e abandono do agente.
A Lei de Drogas é também inadequada, em razão de não conseguir diferenciar de forma clara e precisa o usuário do traficante. O tipo penal do tráfico de drogas (art. 33, caput, da Lei n° 11.343/06) é bastante aberto e se distingue do art. 28, caput, da Lei de Drogas, basicamente, pela finalidade “para consumo pessoal”. Ocorre que fica a critério dos policiais diferenciarem entre usuário e traficante durante a abordagem, sujeitando-se os usuários a uma interpretação muitas vezes pessoal, difícil de ser contraposta em juízo.
O Ministro Gilmar Mendes no voto relator do Recurso Extraordinário 635.659/SP[4] que discute a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal é bastante preciso em sua análise no tocante à ofensa ao princípio da proporcionalidade do tipo penal, ao afirmar que
Todavia, deflui da própria política de drogas adotada que a criminalização do porte para uso pessoal não condiz com a realização dos fins almejados no que diz respeito a usuários e dependentes, voltados à atenção à saúde e à reinserção social, circunstância a denotar clara incongruência em todo o sistema. [...] Na prática, porém, apesar do abrandamento das consequências penais da posse de drogas para consumo pessoal, a mera previsão da conduta como infração de natureza penal tem resultado em crescente estigmatização, neutralizando, com isso, os objetivos expressamente definidos no sistema nacional de políticas sobre drogas em relação a usuários e dependentes, em sintonia com políticas de redução de danos e de prevenção de riscos já bastante difundidas no plano internacional. Esse quadro decorre, sobretudo, da seguinte antinomia: a Lei 11.343/2006 conferiu tratamento distinto aos diferentes graus de envolvimento na cadeia do tráfico (art. 33, §4º), mas não foi objetiva em relação à distinção entre usuário e traficante. Na maioria dos casos, todos acabam classificados simplesmente como traficantes. [...] Nesse contexto, é inevitável a conclusão de que a incongruência entre a criminalização de condutas circunscritas ao consumo pessoal de drogas e os objetivos expressamente estabelecidos pelo legislador em relação a usuários e dependentes, potencializada pela ausência de critério objetivo de distinção entre usuário e traficante, evidencia a clara inadequação da norma impugnada e, portanto, manifesta violação, sob esse aspecto, ao princípio da proporcionalidade. [...] Diante da análise aqui precedida, é possível assentar que a criminalização do usuário restringe, em grau máximo, porém desnecessariamente, a garantia da intimidade, da vida privada e da autodeterminação, ao reprimir condutas que denotam, quando muito, autolesão, em detrimento de opções regulatórias de menor gravidade.
A atuação do legislador ao criminalizar uma conduta, no máximo, autolesiva viola de maneira clara a proibição do excesso, uma das dimensões do princípio da proporcionalidade, uma vez que restringe, além do necessário, direitos protegidos constitucionalmente.
Por fim, o art. 28, caput, da Lei n° 11.343/06 viola o princípio da subsidiariedade do direito penal, por meio do qual compreende-se que o direito penal deve ser a última opção do legislador para a proteção de bens jurídicos, devendo ser utilizado apenas quando outros ramos do direito não conseguirem proteger o bem jurídico de forma adequada e eficaz.
Nesse diapasão, Gustavo Junqueira e Patrícia Vanzolino (2019, p. 17) discorrem que
a pena e a medida de segurança não são os únicos meios dos quais dispõe a sociedade para a proteção de seus bens [...], os interesses sociais podem receber suficiente proteção, por meio de mecanismos distintos, menos lesivos para o cidadão e normalmente mais eficazes para a proteção.
Em atenção a esse princípio, é impossível não conceber que a criminalização do porte de droga para consumo pessoal foi a primeira opção do legislador e não a última, considerando que existem outras políticas a serem adotadas – redução de danos, por exemplo –, mas que sequer foram tentadas. Ademais, um problema público de saúde, bem jurídico a ser protegido, deve ser primeiramente abordado por políticas públicas de saúde e não por meio de política criminal, em respeito, frise-se, à subsidiariedade.
Diante do exposto, a criminalização do porte de droga para consumo pessoal é inconstitucional por violar o princípio da lesividade, da proporcionalidade e da subsidiariedade – princípios interligados entre si. Pois, o Estado se imiscui na vida privada, na intimidade e na autodeterminação do indivíduo desnecessariamente, uma vez que a conduta atingirá apenas o próprio agente. Bem como, porque o Estado tem outras opções regulatórias menos gravosas e mais adequadas para a proteção da saúde do usuário e da população.
4.CONCLUSÃO
Embora as normas nasçam com a crença de que estão alinhadas com os preceitos constitucionais, é possível discutir se, de fato, a norma é ou não constitucional por meio das ações do controle concentrado ou por meio do controle difuso. Nesse contexto, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo interpôs Recurso Extraordinário no Supremo Tribunal Federal, a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade do art. 28, caput, da Lei n° 11.343/06, no caso concreto.
Os fundamentos para inconstitucionalidade são a violação do direito à vida privada e à intimidade, e, consequentemente, do princípio da lesividade, uma vez que o único bem protegido pela norma em questão é a saúde do próprio usuário, tratando-se, no máximo de autolesão, irrelevante penal. Ainda, violação ao princípio da proporcionalidade, considerando a proibição do excesso, limitando-se além do necessário direitos constitucionais. Por fim, violação ao princípio da subsidiariedade, por adotar-se norma penal, quando existem outras medidas regulatórias mais eficazes disponíveis, como a política de redução de dano.
Espera-se, assim, que o crime de porte de droga para consumo pessoal seja declarado inconstitucional. Trata-se de uma inconstitucionalidade por ação e de caráter material, a ser declarada por meio da via incidental por órgão jurisdicional. No mais, os efeitos de eventual declaração de inconstitucionalidade serão vinculantes e obrigarão a todos, cabendo ao Senado Federal, apenas, dar publicidade à decisão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Melheiros Editores, 2004. cap. 9, p. 296-333.
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[1] A mutação constitucional é um fenômeno que indica a alteração no sentido e no alcance da constituição, sem que haja mudança do texto (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2018)
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade n° 3406/RJ e ação cdireta de inconstitucionalidade n° 3470/RJ. Relator: Ministra Rosa Weber. Pesquisa de cJurisprudência, Informativos, 1° dez. 2017. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo886.htm>. Acesso em: 9 mai. cc2020.
[3] Até a elaboração do artigo o ministro relator Gilmar Mendes já proferiu voto no sentido da descriminalização das drogas para uso pessoal. E os ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso votaram a favor da descriminalização apenas da maconha para porte e uso pessoal, mantendo-se a proibição para as outras drogas ilícitas.
[4] O voto completo do ministro Gilmar Mendes trata de outros aspectos importantes sobre a inconstitucionalidade do crime de porte de droga para consumo pessoal e está disponível em: < https://www.conjur.com.br/2015-ago-20/leia-voto-ministro-gilmar-mendes-re-posse-drogas>. Acesso em: 9 mai. 2020.
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Delegada de Polícia de Sergipe
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, Carla Viviane Oliveira do. Controle de constitucionalidade e análise do art. 28, caput, da Lei de Drogas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jul 2022, 04:04. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58812/controle-de-constitucionalidade-e-anlise-do-art-28-caput-da-lei-de-drogas. Acesso em: 23 dez 2024.
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