LETÍCIA LOURENÇO SANGALETO TERRON
(orientadora)
RESUMO: O crime de porte de drogas ilícitas para consumo pessoal insculpido no art. 28 da Lei n.º 11.343/2006 suscitou diversas polêmicas sobre a natureza desta conduta desde a sua criação. Ao não punir o usuário com pena restritiva de liberdade, como ocorria na Lei n.º 6.368/1976, a condição da conduta como crime foi extremamente discutida pela doutrina e pela jurisprudência. Com o objetivo de se analisar como a jurisprudência tem compreendido este crime foi realizada pesquisa de revisão bibliográfica, na qual doutrina, legislação e jurisprudência foram utilizadas, de maneira a se compreender porque tal conduta deve ser considerada como crime, inobstante o não apenamento com restrição de liberdade, dado a danosidade que a conduta representa tanto para a saúde pública quanto para a segurança pública. Assim, conclui-se que a conduta do porte de drogas ilícitas para consumo pessoal deve ser compreendida como crime pela sua reprovabilidade e pelos nefastos efeitos que tem para a sociedade como um todo. Vale lembrar que a matéria é objeto de discussão em RE 635.659, admitido pela existência de repercussão geral.
Palavras Chaves: Lei de Drogas. Crime de Porte de Drogas para Consumo Pessoal. Saúde Pública. Segurança Pública.
ABSTRACT: The crime of possession of illicit drugs for personal consumption in article 28 of Law No. 11,343/2006 has raised several controversies about the nature of this conduct since its creation. By not punishing the user with a restrictive penalty of freedom, as occurred in Law No. 6.368/1976, the condition of conduct as a crime was greatly discussed by doctrine and jurisprudence. In order to analyze how the jurisprudence has understood this crime, a bibliographic review research was carried out, in which doctrine, legislation and jurisprudence were used, in order to understand why such conduct should be considered as a crime, regardless of the non-warping with restriction of freedom, given the damage that the conduct represents for both public health and public security. Thus, it is concluded that the conduct of the possession of illicit drugs for personal consumption should be understood as a crime by its distaste and the harmful effects it has on society as a as a whole. It is worth remembering that the matter is the object of discussion in RE 635,659, admitted by the existence of general repercussion.
Keywords: Drug Law. Drug Possession Crime for Personal Consumption. Public health. Public Safety.
1 INTRODUÇÃO
A Lei de Drogas de 2006 teve papel fundamental para o tratamento mais humanizado do usuário de drogas ilícitas em conformidade com o princípio da dignidade da pessoa humana insculpido na Constituição de 1988.
Contudo, ao não apenar com privação de liberdade do usuário, em escolha biopolítica do legislador, se abriu margem para os mais diversos questionamentos jurídicos quanto a criminalização desta conduta. Neste sentido, o julgamento do Recurso Extraordinário 635.658, atualmente em curso no Supremo Tribunal Federal, demonstra que a polêmica sobre o tema ainda está longe de ser pacificada.
A escolha do tema justifica-se dada a relevância que a matéria tem tanto nos campos da saúde pública quanto da segurança pública, visualizando assim, a importância da análise do crime de posse de drogas ilícitas para uso pessoal, art. 28, da Lei n.º 11.343/2006.
Desta maneira, foi realizada pesquisa de revisão bibliográfica, na qual legislação, doutrina e jurisprudência foram utilizadas com o objetivo de se compreender como ambas vêm abordando a questão da criminalização de tal conduta, bem como questionar a validade argumentativa daqueles que postulam pela descriminalização desta.
Para uma melhor compreensão do trabalho este encontra-se organizado em três seções: na primeira seção buscou-se analisar os aspectos jurídicos do crime de porte de drogas ilícitas para consumo pessoal, e os impactos da alteração trazida pela Lei n.º 11.343/2006 quanto à reincidência e possibilidade de prisão provisória no crime de porte de drogas ilícitas para consumo pessoal.
Na segunda seção se procura compreender os impactos do consumo de drogas para a saúde pública e para a segurança pública, de forma a estabelecer a existência de substrato fático para a criminalização da conduta, seja ela apenada ou não com reclusão de liberdades, ou somente com restrição de direitos.
Por fim, a terceira seção tece crítica às posições apresentadas até o momento no julgamento do Recurso Extraordinário 635658, as quais postulam pela inconstitucionalidade da criminalização desta conduta e analisar os impactos de tais pronunciamentos até o momento para a jurisprudência.
2 O CRIME DE PORTE DE DROGAS PARA CONSUMO PESSOAL
A atual Lei de Drogas (Lei n.º 11.343/2006) se consubstanciou como tentativa de uma nova abordagem de saúde pública e de segurança pública mais condizente com a principiologia constitucional de respeito à dignidade da pessoa humana sob a égide da Constituição de 1988 no tocante ao problema do consumo e do tráfico de entorpecentes.
Em relação ao uso de drogas ilícitas, a antiga Lei de Tóxicos (Lei n.º 6.368/1976) previa pena de detenção de 6 meses a 2 anos além de autorizar a internação compulsória dos dependentes químicos. Desta forma, ao suprimir a punição com privação de liberdade do dependente, bem como por colocar critérios extremamente rígidos para a internação involuntária, a nova lei de drogas buscou uma abordagem mais humanizada no tratamento jurídico do usuário, conforme ensina Souza (2006, p. 25):
O que fez o legislador brasileiro foi seguir a tendência internacional e reconhecer ser o usuário ou viciado uma vítima na cadeia produtiva e econômica em que se acham inseridas as drogas, entendendo por bem que essas pessoas não devem punidas com rigor máximo do Estado, a ponto de ser possível aplicar a elas as sanções mais fortes, como a prisão.
Contudo, também é preciso observar que a imposição de uma pena não restritiva de liberdade pela Lei n.º 11.343 em 2006, pode muito mais se relacionar com a necessidade de resolver o problema da superlotação carcerária, quanto questão financeira do Estado, do que uma real preocupação com os direitos humanos dos usuários de entorpecentes. Neste sentido, Rocha (2006, p. 16) comenta sobre a superlotação carcerária à época da alteração da Lei de Tóxicos:
Segundo relatório de 2004 do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), a média mensal de inclusão nos estabelecimentos penais é de 9.391, enquanto as liberações somam 5.897, gerando um acréscimo de 3.494 presos e internados a cada mês, ou cerca de 40 mil ao ano.5 Pode ocorrer um colapso no sistema penitenciário numa questão de tempo, caso não sejam tomadas medidas que controlem o déficit de vagas nos estabelecimentos prisionais. Não obstante, ressalta-se que o problema da superlotação é ocasionado por variâncias das mais diversas ordens, que em suma refletem o descaso de sucessivos governos quanto à questão penitenciária, fato comprovado pela carência de políticas públicas e principalmente de investimento.
Assim, o art. 28 da Lei de Drogas define o crime de porte de drogas para uso pessoal como “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. Importante ressaltar que foi muito acertada a decisão do legislador de utilizar o termo científico “droga” ao invés de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica como ocorria na Lei de Tóxicos (CAVALCANTE, 2021).
A saber: a definição das drogas à que se sujeitam as determinações da Lei n.º 11.343/2006, encontra-se regulamentada pela Portaria 344 da ANVISA. Assim, a Lei de Drogas é norma penal em branco heterogênea, já que para sua aplicação é necessário complementação de outra norma legal, a qual não se encontra no mesmo nível hierárquico da primeira.
Sob a questão, vale lembrar que o uso de drogas ilícitas em si nunca foi crime, nem sob a vigência da antiga Lei de Tóxicos, a qual previa como conduta para o crime de posse de substâncias entorpecentes para uso próprio “adquirir, guardar ou trazer consigo” até porque mesmo em uma legislação mais repressiva seria impossível, na prática, o controle toxicológico de todos aqueles suspeitos de estarem sob a influência de drogas ilícitas ou de as terem consumido em tempo mensurável por exames toxicológicos.
Como penas para este crime a Lei de Drogas de 2006 impõe advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. De sorte que, este apenamento sem restrição de liberdade fez com que muitos doutrinadores questionassem se tal dispositivo não teria, na realidade, descriminalizado o porte de drogas ilícitas para consumo pessoal.
Assim, três correntes são defendidas pela doutrina: uma que postula que houve a descriminalização da conduta, uma que propõe se tratar de uma infração penal sui generis e não de crime, e a terceira que entende que inobstante as penas não restritivas de liberdade se trata sim, de crime.
Bianchini (2013, p. 117) defende que tal conduta seria fato atípico, ou seja, não seria mais crime, nem tampouco contravenção penal, uma vez que o art. 1.º da Lei de Introdução ao Código Penal estabelece que: “considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção e que contravenção penal seriam aquelas infrações penais a que a lei comina, isoladamente, penas de prisão simples ou de multa, ou ambas”. Desta maneira, não sendo apenado desta forma, pela definição do código penal não poderia se tratar nem de crime, nem de contravenção penal, constituindo assim situação de abolitio criminis.
Por outro lado, Gomes e Sanches (2007, p. 1) defendem que se trata de infração penal sui generis, dado que existe uma escolha do legislador em tipificar a conduta, porém falta punição compatível com as diretrizes do direito que classificariam este tipo penal no conceito de crime ou de contravenção:
[...] houve descriminalização formal (acabou o caráter criminoso do fato) e, ao mesmo tempo, despenalização (evitou-se a pena de prisão para o usuário de droga). O fato (posse de droga para consumo pessoal) deixou de ser crime (formalmente) porque já não é punido com reclusão ou detenção (art. 1.º LICP). Tampouco é uma infração administrativa (porque as sanções cominadas devem ser aplicadas pelo juiz dos juizados criminais). Se não trata de crime nem de uma contravenção penal (mesmo porque não há cominação de qualquer pena de prisão), se não pode admitir tampouco uma infração administrativa, só resta concluir que estamos diante de infração penal sui generis.
Finalmente, uma corrente majoritária compreende que, inobstante a não cominação de penas restritivas de liberdade predomina a escolha do legislador que incluiu a conduta na seção “Dos Crimes e das Penas” da Lei de Drogas de 2006. Sobre este posicionamento Mesquita Junior (2007, p. 35) leciona:
No âmbito internacional, a Resolução n.º 45/110 da Assembleia Geral das Nações Unidas estabelece as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas Não-Privativas de Liberdade (Regras de Tóquio), o que foi decidido na 68.ª Sessão Plenária, de n.º 14.12.1990, marcando a vontade de evitar a pena privativa de liberdade e fomentar a busca de caminhos menos onerosos e mais eficazes que a prisão. [...] A pena restritiva de Direito constitui efetiva pena, a qual, nos termos do CP, é autônoma (art. 44, caput). Na época da edição da Lei n.º 3.914/1941, não se falava em pena restritiva de direito. Esta era concebida, no CP, como “pena acessória” (art. 67). A pena restritiva de direito, como a única possível, deve ser a regra, abandonando-se a cultura de que a prisão é a panaceia para todos os males.
Posição esta, adotada pelo Supremo Tribunal Federal conforme é possível observar no seguinte julgado:
EMENTA: I. Posse de droga para consumo pessoal: (art. 28 da L. 11.343/06 - nova lei de drogas): natureza jurídica de crime. 1. O art. 1.º da LICP - que se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção - não obsta a que lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime - como o fez o art. 28 da L. 11.343/06 - pena diversa da privação ou restrição da liberdade, a qual constitui somente uma das opções constitucionais passíveis de adoção pela lei incriminadora (CF/88, art. 5.º, XLVI e XLVII). 2. Não se pode, na interpretação da L. 11.343/06, partir de um pressuposto desapreço do legislador pelo "rigor técnico", que o teria levado inadvertidamente a incluir as infrações relativas ao usuário de drogas em um capítulo denominado "Dos Crimes e das Penas", só a ele referentes. (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts. 27/30). 3. Ao uso da expressão "reincidência", também não se pode emprestar um sentido "popular", especialmente porque, em linha de princípio, somente disposição expressa em contrário na L. 11.343/06 afastaria a regra geral do C. Penal (C. Penal, art. 12). 4. Soma-se a tudo a previsão, como regra geral, ao processo de infrações atribuídas ao usuário de drogas, do rito estabelecido para os crimes de menor potencial ofensivo, possibilitando até mesmo a proposta de aplicação imediata da pena de que trata o art. 76 da L. 9.099/95 (art. 48, §§ 1.º e 5.º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras do art. 107 e seguintes do C. Penal (L. 11.343, art. 30). 6. Ocorrência, pois, de "despenalização", entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade. 7. Questão de ordem resolvida no sentido de que a L. 11.343/06 não implicou abolitio criminis (C. Penal, art. 107). II. Prescrição: consumação, à vista do art. 30 da L. 11.343/06, pelo decurso de mais de 2 anos dos fatos, sem qualquer causa interruptiva. III. Recurso extraordinário julgado prejudicado (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF, 2007, p. 516-523)
Contudo, tal escolha do legislador em considerar a conduta crime, porém puni-la de forma incomum, acabaram por suscitar diversas outras questões jurídicas sobre o tema, em especial no tocante à problemática da reincidência.
Assim, para a duração das penas (incisos I a III) conforme estabelecem os parágrafos 3.º e 4.º do art. 28 seriam as mesmas aplicadas por 5 meses para réus primários e por 10 meses para reincidentes. Nesta questão, se tem por entendimento de que se trata de reincidência específica, ou seja, no crime do art. 28, conforme é possível observar na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
Recurso especial. Posse de drogas. Art. 28, § 4.º, da Lei n.º 11.343/2006. Aplicabilidade àquele que reincidir na prática do delito previsto no caput do art. 28 da lei de drogas. Melhor exegese. Revisão do entendimento da sexta turma. Recurso improvido. 1). A melhor exegese, segundo a interpretação topográfica, essencial à hermenêutica, é de que os parágrafos não são unidades autônomas, estando direcionados pelo caput do artigo a que se referem. 2). Embora não conste da letra da lei, é forçoso concluir que a reincidência de que trata o § 4.º do art. 28 da Lei n.º 11.343/2006 é a específica. Revisão do entendimento. 3). Aquele que reincide no contato típico com drogas para consumo pessoal fica sujeito a resposta penal mais severa: prazo máximo de 10 meses. 4). Condenação anterior por crime de roubo não impede a aplicação das penas do art. 28, II e III, da Lei n.º 11.343/06, com a limitação de 5 meses de que dispõe o § 3.º do referido dispositivo legal. 5). Recurso improvido. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF, 2019, p. 1).
Por outro lado, compreende a jurisprudência, de que a condenação pelo crime do art. 28 da Lei de Drogas não tem o condão de caracterizar reincidência para outros crimes, uma vez que pelo critério da proporcionalidade não seria possível caracterizar a reincidência, pois esta não se aplica para infrações penais, cominadas com penas não restritivas de liberdade, de forma que mesmo sendo considerado um crime, seria desproporcional, devido às suas penas incomuns, que fosse considerado para fins de reincidência, conforme possível observar no posicionamento do Superior Tribunal de Justiça:
Habeas Corpus substitutivo de recurso próprio. Inadequação da via eleita. Tráfico ilícito de entorpecentes. Absolvição ou desclassificação. Impossibilidade. Exame do conjunto fático-probatório incabível na via eleita. Condenação anterior pelo crime do artigo 28 da lei de drogas. Reincidência. [...] Desproporcionalidade. Pedido de aplicação da minorante prevista NO § 4.º DO Art. 33 da Lei n.º 11.343/2006. Possibilidade. Preenchimento dos requisitos. Regime aberto e substituição da pena. Viabilidade. Pena inferior a 4 anos e circunstâncias judiciais favoráveis. Habeas Corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício. [...] 3. Consoante o posicionamento firmado pela Suprema Corte, na questão de ordem no RE n.º 430.105/RJ, a conduta de porte de substância entorpecente para consumo próprio, prevista no art. 28 da Lei n.º 11.343/2006, foi apenas despenalizada pela nova Lei de Drogas, mas não descriminalizada, em outras palavras, não houve abolitio criminis. Desse modo, tratando-se de conduta que caracteriza ilícito penal, a condenação anterior pelo crime de porte de entorpecente para uso próprio pode configurar, em tese, reincidência. 4. Contudo, as condenações anteriores por contravenções penais não são aptas a gerar reincidência, tendo em vista o que dispõe o art. 63 do Código Penal, que apenas se refere a crimes anteriores. E, se as contravenções penais, puníveis com pena de prisão simples, não geram reincidência, mostra-se desproporcional o delito do art. 28 da Lei n.º 11.343/2006 configurar reincidência, tendo em vista que nem é punível com pena privativa de liberdade. 5. Nesse sentido, a Sexta Turma deste Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp n.º 1.672.654/SP, da relatoria da Ministra MARIA THEREZA, julgado em 21/8/2018, proferiu julgado considerando desproporcional o reconhecimento da reincidência por condenação pelo delito anterior do art. 28 da Lei n.º 11.343/2006. 6. Para aplicação da causa de diminuição de pena do art. 33, § 4.º, da Lei n.º 11.343/2006, o condenado deve preencher, cumulativamente, todos os requisitos legais, quais sejam, ser primário, de bons antecedentes, não se dedicar a atividades criminosas nem integrar organização criminosa, podendo a reprimenda ser reduzida de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços), a depender das circunstâncias do caso concreto. No caso, tendo em vista que a reincidência foi o único fundamento para não aplicar a benesse e tendo sido afastada a agravante, de rigor a aplicação da redutora [...] (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF, 2018, p. 1).
Finalmente, uma das maiores críticas ao crime de porte de drogas ilícitas para consumo pessoal está na subjetividade dos critérios utilizados para a caracterização do que se considera “consumo pessoal”. Embora o parágrafo 2º estabeleça que para se determinar se a droga apreendida era destinada ao consumo pessoal deve o juiz considerar o tipo da droga, a quantidade apreendida, o local e as condições em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais, a conduta e os antecedentes do agente. Dessa forma, existe um inevitável critério subjetivo nesta ponderação.
Cumpre-se ressaltar que desde o advento da Lei de Drogas de 2006 o número de encarcerados pelo crime de tráfico aumentou brutalmente, demonstrando que a escolha do legislador em não apenar com prisão o crime de posse para consumo pessoal simplesmente levou ao enquadramento desta conduta, em muitos casos, como na do crime de tráfico, para se apenar o indivíduo.
Este aumento do encarceramento por tráfico de drogas pode ser observado no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN, de junho de 2014, no qual é possível perceber que 8 anos após a alteração legislativa que retirou a pena privativa de liberdade para o porte de drogas para consumo pessoal, o número de apenados por tráfico de drogas aumentou significativamente. Carvalho (2016, p. 205) comenta sobre as estatísticas apresentadas no supracitado levantamento:
Em 2007 o tráfico de drogas representava 15% da população carcerária, sendo que os delitos de roubo simples e qualificado, e latrocínio atingiam 32%. Em 2011 há uma mudança substancial: o tráfico é responsável por 24,43% dos apenados, e o roubo simples e qualificado, e latrocínio decrescem para 28%.
De forma contraproducente, uma legislação que visava um tratamento mais humanitário do usuário de drogas, teve seu propósito corrompido, uma vez que a ampliação fática do enquadramento de usuários como traficantes, também implicou em penas mais severas devido ao recrudescimento das penas cominadas por tráfico de drogas em relação às cominadas na antiga lei de tóxicos, como é possível observar comparando-se os dois diplomas:
Lei n.º 6.368/1976 - Art. 12. Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal, ou regulamentar; Pena - Reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e pagamento de 50 (cinquenta) a 360 (trezentos e sessenta) dias-multa. Lei n.º 11.343/2006 - Art. 33 Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
Infelizmente, tal enquadramento de usuários como traficantes para que haja seu encarceramento, normalmente recai sobre as populações mais vulneráveis e marginalizadas, de forma que se corrompe a necessária máxima constitucional do respeito à dignidade da pessoa humana e simultaneamente sabota as políticas públicas de saúde e segurança ao corromper os dados sobre uso e tráfico no Brasil, os quais seriam necessários para a elaboração de políticas públicas adequadas à realidade.
3 DAS IMPLICAÇÕES DO CONSUMO DE DROGAS PARA A SAÚDE E SEGURANÇA PÚBLICA
Antes de adentrar a questão envolvendo a constitucionalidade ou não do crime de posse de drogas para consumo pessoal, bem como as soluções propostas para a questão até o presente momento pela Suprema Corte ao discutir a matéria, é importante destacar algumas estatísticas pertinentes às áreas de saúde e segurança pública envolvendo o consumo de drogas.
Segundo o 3.º Levantamento Nacional Sobre o Uso de Drogas Pela População Brasileira conduzida pela FIOCRUZ em 2017 (o maior estudo do gênero realizado até o momento no Brasil), 3,2% dos brasileiros usaram substâncias ilícitas nos 12 meses anteriores à pesquisa, ou seja, aproximadamente 4,9 milhões de pessoas (FIOCRUZ, 2017).
Importante destacar que nem todo consumidor de drogas pode ser classificado como dependente químico. Enquanto o consumidor tem elevado grau de controle sobre seu consumo de forma que este não prejudique suas relações sociais e de trabalho, o dependente químico, por sua vez, tem parcela significativa de sua existência voltada ao consumo da droga, de maneira que é sua possibilidade de acesso à droga que dita como ele conseguirá funcionar socialmente e laborativamente, chegando ao ponto, muitas vezes, destas demais atividades serem totalmente suprimidas em função do uso da droga. Sobre a distinção entre usuários e dependentes comenta Costa (2009, p.2):
O dependente químico é caracterizado por sua procura constante pela droga, seja ela legal ou ilegal, pois não há diferença entre legal ou ilegal se já existe a dependência física da substância, nisso o caráter ilegal descrito nas leis punitivas de nossa sociedade apenas as classifica como permitidas ou não permitidas e não proíbem o consumo das que provocam dependência, pois não existe droga que não leve a dependência. É claro que os efeitos destas drogas vão variar de acordo com suas composições e reações características. Todo dependente químico já foi um dia um simples usuário de drogas, ou seja, apenas consumia drogas ocasionalmente, mas nem todo consumidor se tornará dependente químico, porque para isso o consumidor precisa levar em consideração o tempo do consumo, o tipo de droga ingerida, seu próprio organismo se é ou não vulnerável a substância. O apenas usuário permanece consumindo sem mostrar sinais de dependência, a abstinência só acontece em quem é dependente químico, porque o organismo do dependente não consegue reagir sem a substância. O apenas consumidor pode até escolher o melhor lugar para o consumo, o melhor horário, já o dependente não consegue escolher a melhor hora nem lugar para consumir, porque tudo ao seu redor estar concentrado no consumo das drogas, para o dependente toda hora é apropriada para o consumo.
Tal distinção é particularmente importante porque, embora a maior parte dos usuários não seja dependentes químicos, isto não implica que eles não possam sofrer de problemas de saúde associados ao uso de drogas. A saber, o II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), feito pela UNIFESP em 2012 acusava 1,2 milhão de dependentes químicos no Brasil, excluindo-se aqueles dependentes de bebidas alcoólicas e o tabaco.
De qualquer maneira, entre usuários e dependentes, os números do consumo de substâncias ilícitas são gigantescos, refletindo no incrível poder econômico do narcotráfico, o qual movimenta somente no Brasil, 17 bilhões de dólares por ano. O impacto do uso de drogas para o sistema de saúde público também é gigantesco: de 2005 a 2015 foram gastos R$7,76 bilhões para custear tratamentos daqueles que consomem drogas ilícitas, período no qual se apurou 604.965 internações provocadas pelo consumo de drogas (SANTOS, 2020).
Em análise do supracitado estudo Rodrigues et al. (2019) comentam:
O aumento das taxas de internação pode estar relacionado ao crescimento do consumo de drogas pelas pessoas em geral, independentemente da classe econômica e da faixa etária. O aumento do consumo de drogas e a utilização de serviços de saúde vêm sendo relatados em diversos países. O Relatório Mundial de Drogas emitido em 2017 apontou para o aumento no consumo de cannabis na América do Norte e na Europa Central, e de cocaína na América do Sul. Uma pesquisa desenvolvida no Canadá identificou que os usuários de drogas utilizam com maior frequência os serviços de emergência hospitalar, aproximadamente de sete a oito vezes mais que o restante da população. Um estudo de coorte conduzido na França detectou que 4% das hospitalizações por uso de drogas resultaram em morte ou em admissão em unidades de terapia intensiva, e elas foram principalmente associadas ao consumo de opiáceos, cocaína e narcóticos. Vale considerar ainda que usuários de drogas têm maior probabilidade de ser hospitalizados e passar por reinternações, devido à exposição à violência, acidentes de trânsito, overdose, desnutrição e ao risco de contrair infecções, tais como pneumonia, tuberculose e HIV.
Vale destacar que estes dados se referem a internações em que foi possível determinar diretamente a correlação entre o consumo de drogas e os problemas apresentados, todavia, se consideramos os diversos problemas ocasionados pelo consumo de droga, os quais podem acarretar debilidades físicas por muitos anos após o cessar do consumo, este número pode ser expressivamente maior.
Na questão de segurança pública o consumo de drogas também se apresenta como fator relevante no cometimento de crimes. Como referência em 2013, aproximadamente 70% dos processos no Tribunal de Justiça de Minas Gerais relativos a crimes, apesar de não estarem diretamente relacionados ao tráfico, constataram que os acusados são consumidores de drogas ilícitas, inclusive, durante o cometimento dos crimes estavam sob efeito de alguma substância. Sobre a questão, comentou à época Eduardo Machado, desembargador da 5.ª Câmara Criminal do TJ-MG, em entrevista ao Estado de Minas, Maakaroun, (2013, p.1) destaca que:
A maior parte dos homicídios, furtos, roubos e agressões contra mulheres enquadradas na Lei Maria da Penha está relacionada com as drogas. O problema é sério e atinge em cheio os jovens. Muitos dos condenados em primeira instância, quando julgado o recurso pelas câmaras criminais, já foram assassinados por tiro ou facada.
Assim, embora seja realmente muito difícil uma compilação adequada de estatísticas a nível nacional sobre o tema, a estatística mineira de 2013 aponta para um problema de segurança pública que extrapola o binômio tráfico-consumo em relação aos problemas criminais da questão das drogas, demonstrando que seu consumo se relaciona diretamente com uma infinidade de crimes dos mais variados tipos. Por sua vez, o consumo de drogas é a razão para a existência do tráfico de drogas, o qual é atividade criminosa organizada envolvida em múltiplas violações de direitos humanos.
Assim como é incorreto acreditar que todo usuário seja dependente, também é incorreto eximir da responsabilidade pela existência do tráfico de drogas, enquanto organização criminosa com características transnacionais, os usuários não dependentes que conscientemente sabem que alimentam uma atividade relacionada a diversos crimes como tráfico de armas, tráfico de pessoas (em especial de mulheres para fins sexuais), tráfico de órgãos humanos e terrorismo.
Desde 2008 a Polícia Federal investiga conexão entre a organização criminosa brasileira Primeiras Comando da Capital (PCC), expoente no tráfico de entorpecentes no país, e o grupo terrorista Hezbollah sediada em Beirute no Líbano. Sobre a questão comenta Ferriche (2021, p. 1):
Nos últimos anos, os serviços de inteligência brasileiros reuniram uma série de indícios de que traficantes se associaram a criminosos de origem libanesa, ligados ao Hezbollah, organização com atuação política e paramilitar fundamentalista islâmica xiita, sediada no Líbano. Relatórios da Polícia Federal apontam que esses grupos teriam se ligado ao PCC, organização criminosa que atua nos presídios brasileiros, principalmente, nos de São Paulo. Os documentos mostram que os criminosos estrangeiros abriram canais para o envio de armas ao grupo brasileiro. Segundo o jornal O Globo, uma série de documentos revela que a sociedade entre o PCC e o Hezbollah teria começado em 2006, mas as provas só vieram dois anos depois, quando uma operação da Polícia Federal reuniu os primeiros indícios dessa parceria. Na época, envolvidos com o tráfico internacional foram presos.
Desta maneira, ante a visível correlação entre o consumo de drogas e problemas severos de saúde e de segurança pública cabe a reflexão do quanto discutir somente a problemática da criminalização do consumo no Brasil sem adentrar da criminalização da comercialização das drogas em si, é um exercício meramente doutrinário do direito, porém com pouca utilidade prática ante o impacto social da questão.
A descriminalização do porte para consumo pode atender ao respeito à dignidade da pessoa humana, considerando seu direito à intimidade, vida privada e autodeterminação, contudo, trata-se de uma questão de direito individual, cuja esfera de aplicação será feita individualmente ante o caso concreto.
Por outro lado, políticas que repensem a comercialização de drogas não necessariamente irão estimular seu consumo, mas definitivamente irão minguar os recursos de organizações criminosas e poderão providenciar melhores e mais confiáveis estatísticas sobre o uso, o abuso e a dependência de drogas de maneira a ser possível também criar políticas de saúde pública e de segurança pública mais afinadas com a realidade. Sobre a questão, comentou João Paulo Becker Lotufo em entrevista à Rádio Senado, em 2019 à Agência Senado:
Se nós formos discutir isso do ponto de vista de saúde, é um grande problema. A gente sabe que, nos países que assim o fizeram, nós tivemos o dobro de usuários. Levando-se em conta a saúde, de cada 100, 30 são dependentes e um tem surto psicótico, se eu tiver 200 utilizando, eu vou ter 60 dependentes e 2 surtos (AGÊNCIA SENADO, 2019, p. 1)
Em relação à justificabilidade da medida adotada pelo legislador, cabe observar, inicialmente, que não existem estudos suficientes ou incontroversos que revelem ser a repressão ao consumo, o instrumento mais eficiente para o combate ao tráfico de drogas. Pelo contrário, apesar da denominada “guerra às drogas”, é notório o aumento do tráfico nas últimas décadas. Por outro lado, em levantamento realizado em 2012 em cerca de 20 países que adotaram nas últimas duas décadas, modelos menos rígidos nos diz respeito à posse de drogas para uso pessoal, por meio de despenalização ou de descriminalização, constatou-se que em nenhum deles houve grandes alterações na proporção da população que faz uso regular de drogas. A comparação entre países pesquisados demonstra que a criminalização do consumo tem muito pouco impacto na decisão de consumir drogas (EASTWOOD; FOX; ROSMARIN; 2012).
No mesmo sentido, estudos publicados pelo Centro Europeu de Monitoramento de Drogas e Dependência (EMCDD), revela que a prevalência do consumo de drogas decorre de um conjunto muito mais amplo de fatores entre os quais a criminalização tem pouca influência (ANUAL REPORT ON THE STATE OF THE DRUGS PROLEM IN EUROPE - EMCCDA, 2011).
Por sua vez, o Ministro Gilmar Mendes, em seu voto no RE 635659 SP, cita diversos estudos internacionais que não apontam para o aumento do consumo quando há a descriminalização do consumo de entorpecentes, ainda que se tratem de estudos relativamente recentes, não é difícil constatar que os dados disponíveis na época da edição da norma não indicavam, com razoável margem de segurança, a sustentabilidade da incriminação, conforme se observa das justificativas agregadas ao Projeto de Lei n.º 7.134/02, transformado na atual Lei de Drogas (MENDES, 2015).
Todavia, dado os precários dados sobre a real dimensão do consumo de drogas no Brasil, como foi possível perceber nas pesquisas mencionadas, estatísticas sobre uma atividade ilícita não costumam retratar com clareza a realidade, uma vez que somente representam uma pequena parcela que admite a atividade, é presa realizando a atividade, ou no caso em questão, tem problemas médicos diretamente relacionados.
Se a receita líquida de uma empresa multinacional como a The Coca-Cola Company foi de US$ 10,04 bilhões no terceiro trimestre de 2021 a nível mundial, é de se considerar o volume necessário de consumidores para que o tráfico de drogas no Brasil movimente US17 bilhões de dólares por ano, em uma forte indicação que a estimativa de 4,9 milhões de usuários no Brasil é muito abaixo da realidade.
4 CONSIDERAÇÕES SOBRE O RE 635.659 DO STF
Conforme anteriormente mencionado, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 430105 QO, em 2007, havia firmado entendimento de que a não cominação de pena privativa de liberdade no crime de posse de drogas ilícitas para consumo pessoal do art. 28 da Lei de Drogas não implicava na descriminalização da conduta. Todavia, em 2011, em razão do Recurso Extraordinário 635.659, a corte voltou a analisar a questão (RODIGUES; PAIVA, 2016).
O supracitado recurso extraordinário foi motivado pela insatisfação da Defensoria Pública de São Paulo com decisão pelo apenamento, nos termos do art. 28 da Lei n.º 11.343/2006, de usuário de drogas. Argumenta a defensoria de que a penalização do usuário fere seu direito constitucional à liberdade, violando direito da personalidade ao interferir em sua intimidade e vida privada.
Por se tratar de argumentos envolvendo matéria constitucional, ante a alegada violação de norma da Constituição de 1988 os que caracterizariam a inconstitucionalidade do crime de posse de drogas ilícitas para consumo pessoal, a matéria novamente deve ser apreciada pelo Supremo Tribunal Federal. Desta forma, foi dada repercussão geral à questão: “Constitucional. 2. Direito Penal. 3. Constitucionalidade do art. 28 da Lei n.º 11.343/2006. 3. Violação do artigo 5.º, inciso X, da Constituição Federal. 6. Repercussão geral reconhecida” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF, 2012, p. 697-700). Até o presente momento, em agosto de 2021, somente o relator, Gilmar Mendes, e os ministros, Luís Roberto Barroso e Luiz Edson Fachin proferiram seus votos, todos no sentido de descriminalização da conduta, com maior ou menor grau de abrangência.
Em seu voto, Gilmar Mendes entendeu pela descriminalização da referida condutada e que deve ser declarada a inconstitucionalidade, sem redução de texto, do art. 28 da Lei n.º 11.343/2006, afastando desta maneira, os efeitos de natureza penal do dispositivo, o qual terá natureza administrativa até a criação de legislação específica. Justifica para tanto que devido ao fato do art. 28 estar inserido no título da lei que trata das “Atividades de Prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas” não se pode equiparar o usuário ao criminoso, de forma que tal tratamento dado pela lei seria inconstitucional. Também ressaltou que, conforme seu entendimento, a conduta gera danos apenas ao usuário, de maneira a afastar a saúde pública como bem jurídico protegido deste tipo penal.
Por sua vez, o Ministro Luiz Roberto Barroso, compreendeu que a natureza da droga deve ser considerada para a descriminalização da conduta do art. 28, sendo somente a maconha descriminalizável e estabelecendo um critério quantitativo de 25 gramas para que a conduta não configure o supracitado crime. Ademais, incorporou para esta decisão os argumentos do voto do relator. Finalmente, o Ministro Luiz Edson Fachin também considerou pela inconstitucionalidade do art. 28 quanto à maconha, porém sem ressalvas ao critério quantitativo como o fez o Ministro Barroso.
Tais decisões se mostram particularmente perturbadoras, tanto por seu aspecto jurídico como de ordem social. Ora que, se a lei não faz ressalvas quanto ao tipo ou quantidade de droga para a tipificação do crime de posse de drogas para uso pessoal, e estando a maconha elencada como droga ilícita pela Portaria 344 da ANVISA, não cabe ao poder judiciário decidir por sua legalização, conforme bem aponta Nucci (2016, p.1):
Outro ponto essencial é incentivar, cultuar e encerrar com uma conclusão a famosa discussão em torno da legalização do porte de drogas para uso próprio. O debate oficial teve início em julgamento, no Plenário do STF, já existindo três votos pela despenalização e/ou descriminalização do porte de maconha. No entanto, de nossa parte, cremos ser inviável que o próprio Pretório Excelso, por maior boa vontade que possua, estabeleça, sem lei, uma quantidade para ser considerada fato atípico (caso vença a tese da descriminalização ou despenalização total). Essa é uma tarefa do Legislativo, que deve exercitá-la de pronto, em face do caos instalado na interpretação diferenciadora entre o art. 28 e o art. 33.
Ademais, quanto à possibilidade de se considerar o crime do art. 28 da Lei de Drogas como inconstitucional por violar direito da personalidade ao interferir na intimidade e vida privada do usuário, sob o argumento de que o tipo penal em questão não protege a saúde pública, conforme defendido pelo relator, Ministro Gilmar Mendes, deve ser também visto com ressalvas.
Mesmo que haja um conflito entre normas constitucionais, como o direito às convicções próprias, a liberdade, a intimidade e a vida privada, e o direito à vida, à saúde e à segurança pública; a técnica da proporcionalidade para se alcançar a solução mais adequada ao princípio do respeito à dignidade da pessoa humana não indica a prevalência de direitos e garantias individuais sobre os direitos sociais e coletivos. Pelo contrário, é notória a escolha de uma mitigação de direitos individuais em prol de direitos coletivos em respeito ao princípio da proporcionalidade pela jurisprudência.
Indicar que o consumo de drogas é problema de foro íntimo do indivíduo, nega os fatos cientificamente comprovados da danosidade de tal conduta para a saúde física e psíquica do usuário, e, muitas vezes de terceiros que com ele convivem, os quais tem peso significativo para o sistema de saúde pública. É também inegável que é o uso de drogas ilícitas que movimenta o tráfico ilícito de entorpecentes, contribuindo assim para um problema de segurança pública.
Frente à realidade é duvidoso considerar que o direito individual de entorpecer-se poderia predominar sobre o direito coletivo à vida, à saúde e à segurança. Contudo, caso haja uma escolha biopolítica para tal, cabe tal decisão ser feita pelo Poder Legislativo, sob elaboração de nova regulamentação sobre o consumo de drogas ilícitas na forma de lei, e não pelo Poder Judiciário.
Todavia, os reflexos dos votos proferidos até o momento no RE 635.659 SP já começam a ser percebidos nas decisões de tribunais pelo país, como é possível observar no julgamento do Processo 0602245-17.2018.8.04.0001, no qual a juíza Rosália Guimarães Sarmento da 2.ª Vara Especializada em Crimes de Uso e Tráfico de Entorpecentes de Manaus/AM entendeu pela descriminalização da conduta ante a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei n.º 11.343/2006 em sede de controle difuso de constitucionalidade.
1. DISPOSITIVO: por todas as razões supra elencadas, declaro, por sentença e ex officio, a inconstitucionalidade do Art. 28 da Lei n.º 11.343/2006, de modo a afastar do retromencionado dispositivo legal os efeitos jurídico-penais deles decorrentes que poderiam (caso não houvesse a declaração de inconstitucionalidade) alcançar os denunciados (---) e (---). Considerando, todavia, que o § 7.º do art. 28 da Lei n.º 11.343/2006 não possui natureza penal, determino a expedição de ofício à Policlínica Governador Gilberto Mestrinho (avenida Getúlio Vargas, 341, Centro, Manaus/AM) para que disponibilize tratamento especializado aos nacionais supracitados, relativamente ao uso indevido ou dependência de drogas, nos termos dos artigos 20 a 26 da Lei n.º 11.343/2006 (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO AMAZONAS, 2017, p. 1).
No supracitado processo a juíza considerou que, assim como apontado pelo Ministro Gilmar Mendes no RE 635.659 SP, a punição ao consumidor é desproporcional aos objetivos almejados pela Lei n.º 11.343/2006, quais sejam a prevenção e repressão ao tráfico de entorpecentes, inclusive servindo como óbice ao tratamento de usuários e dependentes químicos ao estigmatizá-los como criminosos.
Desta forma, extrapola a função de interpretação constitucional, as decisões sobre a matéria até o momento apresentadas, configurando clara invasão de competência legislativa pelo judiciário. Neste sentido, fica a lição do ilustríssimo doutrinador Cappelletti (1993, p. 74) “um bom juiz pode muito bem ser criativo, dinâmico, ‘ativista’ e patentear-se como tal, mas só um mau juiz agiria pelas formas e modos de um legislador; conforme penso, um juiz que agisse de tal maneira simplesmente deixaria de ser um juiz”.
Não cabe assim ao poder judiciário decidir por uma descriminalização restritiva da conduta de posse de drogas ilícitas para o consumo pessoal, e não deveria compreender pela descriminalização de forma alguma, quando o legislador claramente não o quis e frente uma realidade que comprova a necessidade da criminalização de tal conduta.
5 CONCLUSÃO
A conduta do porte de drogas para consumo pessoal, tipificada no art. 28 da Lei de Drogas (Lei n.º 11.343/2006) dada sua danosidade tanto para o usuário quanto para a saúde pública e para a segurança pública deve ser considerada como crime. Inobstante a acertada decisão do legislador de dar um tratamento mais humanizado do usuário de entorpecentes, cominando pena não restritiva de liberdade, não se pode deixar de ter em mente sua expressa vontade de tipificar tal conduta como crime.
O consumo pessoal de drogas ilícitas é causa de profundos problemas de saúde pública e de segurança pública, alimentando a cadeia nefasta do tráfico de drogas, o qual é gerador de violências profundas contra os direitos humanos em escala global. Assim, fica evidente a necessidade da criminalização desta conduta, adequando a pena à realidade de que o fim do consumo deve se dar pela conscientização e tratamento dos usuários, conforme a escolha feita pelo legislador na elaboração da Lei de Drogas de 2006.
As decisões proferidas pelos ministros do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 635658, até o presente momento, se mostram afrontosas ao princípio da separação dos poderes, se consubstanciando em verdadeira invasão de competência legislativa pelo judiciário e desrespeitoso à proteção à vida, à saúde e à segurança, preceituadas pela Constituição Federal de 1988, a qual os referidos ministros incumbiriam à guarda.
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Graduando em Direito pelo Centro Universitário de Santa Fé do Sul (UNIFUNEC)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Gustavo Carvalho Rodrigues de. Lei de drogas, crime de porte de drogas para consumo pessoal, artigo 28 da Lei 11.343/2006 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jul 2022, 04:05. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58826/lei-de-drogas-crime-de-porte-de-drogas-para-consumo-pessoal-artigo-28-da-lei-11-343-2006. Acesso em: 23 dez 2024.
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