RESUMO: O presente artigo busca delimitar como o instituto da coisa julgada pode ser entendido sob a ótica coletiva. São apresentados alguns aspectos da coisa julgada no exercício teórico de fazer sua leitura de forma diferenciada no âmbito coletivo, momento em que se socorrendo de contribuições doutrinárias é feita uma defesa do entendimento de que o instituto pode em si mesmo ser entendido como uma garantia.
Palavras-chave: Processo Civil; Coisa Julgada; Processo Coletivo.
ABSTRACT: This article seeks to delimit how the institute of res judicata can be understood from a collective perspective. Some aspects of res judicata are presented in the theoretical exercise of reading it differently in the collective scope, at which time, using doctrinal contributions, a defense is made of the understanding that the institute can itself be understood as a guarantee.
Keywords: Civil Procedure; Issue Preclusion; Collective Process.
1. INTRODUÇÃO
O processo coletivo é um ramo do direito processual civil que tem despertado cada vez mais interesse de estudo, seja porque diz respeito a modalidade de conflito reconhecida mais recentemente, seja porque o funcionamento de seus institutos ainda está sendo amadurecido na doutrina e jurisprudência pátrias.
O objeto de aprofundamento no presente trabalho é a análise do instituto da coisa julgada em sua dimensão coletiva, buscando entendê-la também como garantia, mas sob uma perspectiva diferenciada. Além disso, também se enfrenta os regimes de sua formação e como eles se apresentam, em se tratando de ação de grupo, no plano individual e no coletivo. Para concluir o trabalho, resgatou-se o debate sobre a limitação dos efeitos da coisa julgada a partir de críticas doutrinárias dirigidas à alteração do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, promovida pela Lei 9.494/97, e como elas culminaram no atual entendimento do STJ sobre a matéria.
2. A COISA JULGADA NO PROCESSO COLETIVO
2.1. Noção clássica do instituto
Antes de adentrar nas peculiaridades que a coisa julgada apresenta quando operacionalizada na seara coletiva, faz-se necessário dar um passo atrás e rememorar que aqui também se está diante de uma verdadeira garantia ou direito fundamental. Como se depreende do art. 5°, inciso XXXVI, da Carta Magna, “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (BRASIL, 1988).
Sendo assim, se a coisa julgada coletiva pode dar causa à extensão de efeitos para além das partes, é preciso entender de que maneira a uma garantia ou direito fundamental que tradicionalmente se estruturou como vedação à rediscussão da causa por quem foi parte no processo foi dada essa outra funcionalidade, que compõe sua dimensão subjetiva.
O enfrentamento do instituto, tal como desenvolvido no âmbito do processo civil clássico, merece, portanto, maiores digressões, o que será feito nas linhas que se seguem.
A disciplina normativa da coisa julgada para os processos individuais pode ser encontrada nos artigos 502 a 508 do Código de Ritos, além de incluir outros dispositivos como o artigo 337 e seu parágrafo quarto. Dispõe o artigo 502 do CPC: “Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso” (BRASIL, 2015).
Como se pode ver, há uma atribuição de sentido que incide sobre um estado de coisas verificado geralmente ao final do processo, a saber, “a) uma decisão jurisdicional fundada em cognição exauriente b) o trânsito em julgado” (DIDIER JÚNIOR et al; 2016, p. 530). À falta de algum dos requisitos, haverá apenas coisa julgada formal (NEVES, 2018, p. 878), que não obsta a discussão da matéria em outra demanda. É que neste último caso, haveria apenas “estabilidade endoprocessual da decisão” (DIDIER JÚNIOR et al; 2016, p. 531), quando então se põe termo à lide.
Presentes os requisitos, a decisão judicial recebe um acréscimo qualitativo, na medida em que passa a ser dotada de atributos distintos de como até então se apresentava e comparativamente a outras decisões proferidas ao longo do procedimento.
NEVES (2018, p. 878) explica que “pela coisa julgada material, a decisão não mais poderá ser alterada ou desconsiderada em outros processos”. No mesmo sentido é a lição de ALMEIDA (2014, p. 10), para quem “[...] a coisa julgada é o instituto que proíbe aos litigantes tentarem rediscutir o caso”.
Com maior detalhamento, Fredie Didier Júnior, Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira trazem a classificação comumente adotada pela doutrina em relação a seus efeitos, aplicáveis após a decisão judicial ter adquirido a autoridade mencionada pela lei. No efeito negativo existe uma proibição de se rediscutir o mesmo tema mediante a instauração de nova demanda, ao passo que o efeito positivo se dirige a outros processos que pressupõem uma definição prévia acerca da questão passado em julgado para solucionar seu próprio objeto, que deve considerar aquilo que se estabeleceu na lide originária (DIDIER JÚNIOR et al; 2016, p. 527/528).
Em outras palavras, o efeito negativo serve ao processo que busca solução já fornecida pelo Poder Judiciário, situação que não é admitida em nosso direito, salvo em exceções como a ocorrência de vícios rescisórios e transrescisórios. Isso acontece porque o instituto em questão “é uma concretização do princípio da segurança jurídica. A coisa julgada estabiliza a discussão sobre uma determinada situação jurídica, resultando em um ‘direito adquirido’ reconhecido judicialmente” (DIDIER JÚNIOR et al, 2016, p. 531).
A verificação da existência de coisa julgada é feita a partir da noção de tríplice identidade dos elementos da ação (DIDIER JÚNIOR et al, 2016, p. 532), de acordo com o que preceitua o artigo 337, parágrafo segundo e quarto do CPC[1]. Trata-se de objeção, uma vez que cognoscível de ofício nos termos do parágrafo quinto do artigo de lei em questão[2], podendo também ser levantada pelo réu por ocasião de sua defesa.
Por sua vez, o efeito positivo serve ao respeito do que já fora decidido quando não se discute precisamente aquela matéria abrangida pelo manto da coisa julgada, mas tudo aquilo que lhe seja afeto, leve em conta ou dependa da conclusão ali obtida. O juiz do segundo processo, portanto, se acha vinculado em sua decisão no que concerne à parcela do debate que restou exaurido na via judicial.
Além dos efeitos, a coisa julgada costuma ser analisada também quanto a seus limites, o que se dá sob a perspectiva objetiva e subjetiva. Se o instituto é justificado pelo princípio da segurança jurídica, o mesmo fundamento explica a necessidade de esclarecimento no tocante às balizas em relação às quais nova discussão será vedada judicialmente. Dito de outro modo, é preciso definir os contornos em que se dará a imutabilidade e indiscutibilidade.
Os limites objetivos da coisa julgada operam levando em consideração o que pode se tornar imutável e indiscutível. Trata-se da “norma jurídica individualizada, construída para a solução de determinado caso” (DIDIER JÚNIOR et al, 2016, p. 536). Sem dúvida se está a falar do dispositivo da decisão, no qual a providência jurisdicional com efeito vinculante às partes é concentrada e delimitada. O CPC também fornece algumas pistas nesse ponto, quando em seu artigo 504 e incisos[3] exclui a verdade dos fatos e os motivos como aptos à formação da coisa julgada.
Uma novidade da atual codificação é que não apenas as questões principais podem passar em julgado, mas também certas questões incidentais, ou seja, aquelas que são pressuposto para decisão do tema central do litígio e que afetam o resultado de seu julgamento. No caput do art. 503[4] está a autorização para as primeiras, enquanto que seus parágrafos[5] trazem requisitos específicos para que a questão prejudicial também figure como parte integrante dos limites objetivos da coisa julgada.
Mas são os limites subjetivos da coisa julgada que levam em consideração quem está submetido a seu alcance, ajudando a estabelecer um ponto de contato com o tema desenvolvido neste trabalho. Como pontua MAZILLI (2007, p. 526), segundo “[...] a teoria clássica, a coisa julgada significa a imutabilidade do que foi definitivamente decidido, limitadamente às partes do processo”. Também é a dicção do artigo 506 do CPC: “Art. 506. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros” (BRASIL, 2015).
Trata-se de verdadeira garantia, de modo que a “[...] eficácia inter partes justificava-se em razão dos princípios da ampla defesa e do contraditório, não sendo plausível que a sentença de mérito se tornasse imutável e indiscutível para sujeito que não participou do processo” (NEVES, 2018, p. 891). O autor traz duas exceções a essa regra, que são os casos do substituto processual e dos sucessores (NEVES, 2018, p. 893). Mesmo assim, o alcance da decisão se revela bastante restrito em ambos as hipóteses.
Ainda no que se refere às exceções, autores como DIDIER JÚNIOR et al (2016, p. 559) entendem que é possível estender a coisa julgada para beneficiar terceiros, como acontece com o credor de obrigação solidária que não demandou em juízo, mas pode se valer do resultado favorável obtido por outro credor.
Já Luís Guilherme Marinoni cita a “ [...] solução da questão que diz respeito exatamente ao conflito concreto em que o terceiro está inserido” (MARINONI, 2016, pp. 104/105), quando então dá o exemplo de um acidente de ônibus em que as vítimas demandam em juízo isoladamente, sendo possível estender a configuração da culpa em tais circunstâncias. Veja-se que nesse caso não se está a falar de ação de grupo, mas alcance de parcela comum da decisão entre ações individuais.
Tanto a hipótese do credor solidário como a do terceiro que integra o conflito discutido na lide originária encontram fundamento na parte final do art. 506 do CPC, que proíbe a extensão para prejudicar, mas silencia em relação ao benefício dela advindo.
Essa modalidade de limite subjetivo, que opera inter partes, não é, todavia, a única existente. Ao seu lado convivem a coisa julgada ultra partes e a erga omnes, que ampliam o alcance da decisão para além das partes.
Na coisa julgada ultra partes, se “atinge não só as partes do processo, mas também determinados terceiros. Os efeitos da coisa julgada estendem-se a terceiros, pessoas que não participaram do processo, vinculando-os” (DIDIER JÚNIOR et al; 2016, p. 558). O determinante para que o indivíduo seja alcançado pelo resultado do processo costuma envolver o fato de partilhar certas características, em verdadeira noção de grupo.
Quanto à coisa julgada erga omnes, seria “aquela em cujos efeitos atingem a todos os jurisdicionados- tenham ou não participado do processo” (DIDIER, 2016, p. 559). A perspectiva aqui é mais universal, alcançando todos os indivíduos sobre os quais seja possível afirmar a presença da jurisdição estatal.
As duas últimas modalidades constituem exceção no ordenamento jurídico brasileiro. Como se pôde observar, o processo civil tradicional, de caráter individualista, consagra a eficácia inter partes dos efeitos da coisa julgada como natural decorrência da pacificação do conflito a elas referente, mas também como garantia aos terceiros que não participaram de sua formação.
Será visto como o instituto da coisa julgada a se relaciona com a temática do processo coletivo, na medida em que o Código de Defesa do Consumidor tratou das formas de extensão subjetiva dos efeitos da sentença. O regime de formação da coisa julgada, nesse sentido, surge como nuance do instituto sobre a qual é preciso maior detalhamento, já que opera de maneira coordenada com a ampliação dos limites subjetivos da decisão judicial na ação coletiva, da primeira dependendo esta última.
2.2. Coisa julgada secundum eventum litis e secundum eventum probationis
Foram tecidas no tópico pretérito algumas considerações acerca da coisa julgada como garantia em favor daqueles que participaram do processo, no sentido de não ver mais a mesma questão discutida, bem como dos terceiros que não integraram a demanda, os quais não se acharão vinculados, em regra, a seu resultado. No primeiro caso, concretiza-se especialmente a segurança jurídica. Quanto ao segundo, privilegia-se o contraditório e a ampla defesa.
Ocorre que essa é uma leitura feita a partir da lógica individual de processo, formatada para que a decisão judicial diga respeito à contenda trazida pelas partes, cujo teor possui caráter eminentemente privado.
No processo coletivo, há um interesse público que orienta a propositura, a condução e o desfecho da lide, atraindo a necessidade de os limites subjetivos da coisa julgada, em certas hipóteses, serem ampliados para alcançar pessoas que não fizeram parte da demanda. ALMEIDA (2014, p. 87) acrescenta que “a maior extensão da coisa julgada coletiva dá-se em razão das particularidades da tutela desse segmento do direito - proteção dos direitos e interesse da sociedade ou de grupos”.
No estudo do princípio da coisa julgada diferenciada com a extensão secundum eventum litis da decisão favorável ao plano individual, o resultado da lide coletiva pode beneficiar pessoas que se encontrem na posição de substituídas processualmente, quer estejam ou não com ações individuais em andamento, nesse último caso se requereram a sua suspensão.
Nas palavras de Hugo Nigro Mazilli, “ao contrário do que ocorre com a coisa julgada no processo civil individual, na tutela coletiva a imutabilidade do decisum alcançará pessoas que não participaram da relação processual” (MAZILLI, 2007, p. 531).
Aproveita-se para fazer uma distinção entre coisa julgada individual, aquela formada nas lides individuais, e coisa julgada coletiva, formada inicialmente no bojo de um processo coletivo, mas que pode vir a afetar processos individuais caso preenchidas algumas condições. É justamente esse comportamento bastante particular do instituto, de poder ou não determinar a extensão dos efeitos da sentença proferida na ação de grupo, que merece análise pormenorizada.
Como se terá a oportunidade de perceber, as condições segundo as quais a coisa julgada coletiva pode ser estendida a não participantes da lide são verdadeiras garantias porque se colocam como limitadoras do prejuízo que tal extensão da decisão poderia causar.
Dito de outro modo, se é verdade que o resultado do processo pode ser favorável à pretensão do legitimado ao ajuizamento da ação coletiva, quando então a extensão dos limites subjetivos da coisa julgada poderia servir ao interesse público, também seria possível que sobreviesse uma decisão que lhe fosse contrária, o que acarretaria em fator de risco para as lides individuais caso a solução nelas adotada fosse a mesma. Assim, procurou o legislador mitigar esse prejuízo, disciplinando de maneira diferenciada o modo como a coisa julgada é formada entre aqueles que por ela são alcançados no plano individual.
Logo, “entende-se que o modo de configuração do regime jurídico da coisa julgada é aquele que está mais apto a proporcionar respeito às garantias constitucionais e efetividade na concretização desse novo campo do processo coletivo denominado tutela jurisdicional coletiva” (ZUFELATO, 2011, p. 183).
Sobre o regime de formação da coisa julgada, a doutrina identifica três modalidades no ordenamento jurídico brasileiro: pro et contra, secundum eventum litis, e secundum eventum probationis.
Primeiramente, “há a regra geral: a coisa julgada se forma pro et contra, independentemente do resultado do processo (do teor da decisão judicial). Pouco importa se de procedência ou de improcedência, a decisão definitiva está apta a produzir coisa julgada” (DIDIER JÚNIOR et al, 2016, p. 533). Seria o caso do processo civil clássico, em que tanto o autor como o réu estarão vinculados ao resultado da decisão, seja ele favorável ou desfavorável.
A seu turno, “por meio da coisa julgada secundum eventum litis nem toda sentença de mérito faz coisa julgada material, tudo dependendo do resultado concreto da sentença definitiva transitada em julgado (NEVES, 2018, p. 910). O que geralmente ocorre é a eleição do resultado favorável a certo litigante como aquele apto a fazer coisa julgada, mas em tese trata-se de uma opção de política legislativa.
Já a coisa julgada secundum eventum probationis “é aquela que só se forma em caso de esgotamento das provas- ou seja, se a demanda for julgada procedente, que é sempre com esgotamento de prova, ou improcedente com suficiência de provas [...]” (DIDIER JÚNIOR et al, 2016. p. 534). Do referido conceito é possível extrair que se não houver provas suficientes para o julgamento, não há coisa julgada material e é possível a repropositura da demanda.
O Código de Defesa do Consumidor, enquanto normativa que explicita de maneira mais completa como opera o instituto da coisa julgada no processo coletivo, define seus limites subjetivos de acordo com a espécie de direito material envolvido, se difuso, coletivo ou individual homogêneo.
Para os direitos difusos, foi estabelecido o efeito erga omnes, mas atrelado a um regime de formação da coisa julgada secundum eventum probationis[6]. Havendo procedência ou improcedência por outro fundamento que não a falta de provas, produzem-se efeitos na forma citada; já se houver improcedência por insuficiência probatória, isso não acontece (MAZILLI, 2007, p. 538).
Apesar de existir coisa julgada secundum eventum probationis na hipótese de improcedência com suficiência de provas, pois a condicionante esteve preenchida, o artigo 103, §1°, do CDC[7] veda a extensão erga omnes para prejudicar nesse ponto. Isso leva a autores como DIDIER JÚNIOR e ZANETI JÚNIOR (2019, p. 477) a afirmarem que “não é correto, portanto, dizer que a coisa julgada coletiva é secundum eventum litis; o que é segundo o resultado do litígio é a sua extensão, apenas para beneficiar os titulares dos direitos individuais”.
Do pensamento dos autores é possível concluir que a hipótese de improcedência com suficiência de provas faz coisa julgada, mas ela é restrita ao âmbito coletivo à luz da previsão contida no art. 103, §1°, do CDC. No plano individual, por força da regra em comento, a extensão de efeitos ocorre apenas para beneficiar. É o que se depreende quando explicam que “[...] a decisão de procedência ou de improcedência, com esgotamento de prova, está apta a tornar-se indiscutível no âmbito coletivo” (DIDIER JÚNIOR; ZANETI JÚNIOR (2019, p. 477).
Em seguida, para os direitos coletivos, optou-se pelo efeito ultra partes com o mesmo modo de produção da imutabilidade e indiscutibilidade, que depende do fundamento da sentença[8]. Também aqui se aplica a mesma regra de impossibilidade de extensão para prejudicar, ainda que com suficiência probatória (plano individual). No entanto, no âmbito coletivo haverá coisa julgada material exceto se não forem reunidas provas suficientes.
Finalmente, para os direitos individuais homogêneos, o efeito erga omnes da coisa julgada ocorre secundum eventum litis[9]. Segundo MAZILLI (2007, p. 536) “ainda que a lei também diga que haverá coisa julgada erga omnes, no fundo a imutabilidade se limitará ao grupo, classe ou categoria de lesados, ou seus sucessores”. Quanto aos limites subjetivos da coisa julgada, importa consignar que apenas na hipótese de procedência haverá a extensão dos efeitos da decisão. Todavia, aqui “não há uma regulamentação quanto à possibilidade aplicação da coisa julgada secundum eventum probationis” (ALVES, 2016, 273), havendo decisão da 2ª Seção do STJ no RESP 1.302.596/SP, julgado em 09.02.2015, pela impossibilidade.
Esclarecidas as condicionantes de ampliação dos limites subjetivos da coisa julgada (sempre para beneficiar, mesmo na improcedência com suficiência de provas), e forte no entendimento de que são verdadeiras garantias em favor da coletividade, importa distinguir qual o plano a que se destinam, se individual ou coletivo.
Sobre o tema, confira-se a lição de André Vasconcelos Roque:
O legislador brasileiro procurou contornar os inconvenientes dos dois modelos clássicos, ao estabelecer um regime peculiar, no qual a coisa julgada opera com eficácias diferentes nos palos coletivo e individual. No plano coletivo, a coisa julgada se apresenta pro et contra, impedindo que sejam repropostas ações coletivas idênticas por qualquer dos colegitimados, independentemente do resultado da demanda. Entretanto, a extensão de seus efeitos à esfera jurídica dos membros da coletividade terá eficácia secumdum eventum litis, somente para beneficiar o grupo (art. 103 do CDC) (ROQUE, 2013, p. 6).
Do excerto supratranscrito se retira que o regime de formação da coisa julgada, em regra, continua a ser pro et contra no âmbito coletivo, de modo que os dois primeiros incisos do artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor disciplinam como isso pode ser excepcionado. Já o inciso terceiro inciso e o parágrafo primeiro do mesmo dispositivo, por sua vez, estabelecem como o resultado da ação de grupo irá afetar o plano individual, e em quais condições.
Portanto, “o regime não é diferente daquele que incide no âmbito da tutela individual: os efeitos da sentença e a extensão da coisa julgada produzem-se normalmente, seja na hipótese de acolhimento da pretensão, seja na de rejeição, e obstam à propositura de outra ação coletiva” (TUCCI, 2007, p. 414). Nessa linha de intelecção, GIDI (1995, pp. 72/73) defende que “o que diferirá com o ‘evento da lide’ não é a formação ou não da coisa julgada, mas o rol de pessoas por ela atingidas”. DIDIER JÚNIOR et al (2016, p. 534) também partilham dessa posição, quando afirmam que é “[...] também o que acontece na coisa julgada coletiva: é pro et contra, mas somente se estende ao plano individual se favorável ao indivíduo (art. 103, Código de Defesa do Consumidor)”.
Dessa forma, é possível concluir pela existência de uma coisa julgada pro et contra no âmbito coletivo e uma extensão secundum eventum litis ao plano individual. O Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso explica a opção legislativa:
A questão dos efeitos das decisões em ações coletivas destinadas à proteção dos direitos individuais homogêneos mereceu atenção especial por parte da doutrina e da legislação. Especialmente pelas dificuldades relacionadas à notificação de todos os potenciais interessados em figurar no pólo ativo da ação, entendeu-se que a decisão desfavorável não deveria afetar quem não foi parte na demanda. A solução adotada, como consequência, foi a denominada coisa julgada secundum eventum litis, pela qual os efeitos subjetivos da decisão se estendem a todos os interessados, se o pedido for acolhido; mas somente aos que figurarem efetivamente no processo, no caso de sua rejeição (BARROSO, 2013, p. 22).
Apesar do autor fazer expressa menção aos direitos individuais homogêneos, já foi dito que o artigo 103, §1°, do CDC amplia essa lógica para as repercussões no plano individual da defesa de direitos difusos e coletivos strictu sensu.
Já se sabe que no plano coletivo a coisa julgada vinculará ambas as partes, bem como os colegitimados à propositura da ação coletiva. De outro lado, o plano individual será afetado apenas para beneficiar. Mas existem ainda hipóteses especiais que merecem ser investigadas, a exemplo da situação do litisconsorte habilitado na ação coletiva e da pessoa que não requereu a suspensão de sua ação, pois fogem à regra da extensão secundum eventum litis.
Em relação à primeira, dispõe o artigo 94 do CDC [10]que após o ajuizamento de demanda coletiva visando a proteção de direitos individuais homogêneos, é possível a intervenção como litisconsorte pelos beneficiários no plano individual. Nesse ponto, MAZILLI (2007, p. 533) observa que “a lei [...] esqueceu-se de disciplinar a intervenção do lesado no processo coletivo que objetive a defesa de interesses coletivos [...] ou até mesmo [...] nas ações que versem sobre direitos difusos”. Em todo caso, esse tipo de ingresso deve ser baseado na pertinência para a demanda coletiva, como bem observou Ronaldo Lima Santos:
O ingresso dos interessados individuais como litisconsortes (assistentes litisconsorciais) nas lides coletivas para tutela de interesses individuais homogêneos deve ser aceito com cautela e somente quando reverter em benefício para a lide coletiva, não podendo a intervenção servir de instrumento para a tutela de direito individual do interveniente, de modo que retire o caráter molecular da demanda, transformando-a num conjunto de lides individuais, com prejuízo para a celeridade do processo e para o exercício do direito de defesa do réu (SANTOS, 2008, p. 125)
O autor classifica tal modalidade de intervenção como sui generis, pois apesar de sua intervenção ter como objeto apenas discussões pertinentes ao âmbito coletivo, o resultado da demanda o vinculará também no plano individual (SANTOS, 2008, p. 126). É o que prevê o artigo 103, §2°, do CDC, em uma interpretação a contrario sensu. Assim, por integrar o polo ativo da ação coletiva, o indivíduo terá vedada a discussão da mesma matéria em outro processo.
Outra situação peculiar é aquela do indivíduo que não requereu a suspensão de sua ação individual. Primeiramente é necessário dizer que segundo o art. 104 do CDC[11] a ação coletiva não induz litispendência em relação às ações individuais. Todavia, a lei estabelece uma condição para que os efeitos da sentença coletiva sejam estendidos ao plano individual: a suspensão das ações individuais em andamento após o conhecimento de ter sido ajuizada a ação coletiva. Trata-se de providência que cumpre o fim de pacificar o conflito em um mesmo sentido, bem como de estimular que o Poder Judiciário não necessite proferir decisões em processos ajuizados simultaneamente e que versam sobre o mesmo tema.
Para DIDIER JÚNIOR e ZANETI JÚNIOR (2019, p. 196), “o indivíduo tem o direito de ser informado sobre a pendência do processo coletivo, cabendo ao réu proceder a essa informação”. A posição foi acolhida pela 1ª Turma do STJ, tal como decidido no RESP 1.593.142/DF, julgado em 07.06.2016, sendo que a inobservância do dever de comunicação pelo réu dá causa à extensão dos efeitos da sentença coletiva em caso de procedência.
Assim, para haja a extensão de efeitos secundum eventum litis ao plano individual, devem os futuros beneficiários com ações em andamento requererem sua suspensão.
A jurisprudência, contudo, foi mais além. Sem embargo da possibilidade do exercício do direito conferido por lei de não requerer a suspensão e, portanto, não ser beneficiado pelo resultado da ação coletiva, certos eventos acabam por gerar uma multiplicidade de processos cujo interesse público é de que sejam julgados da mesma forma. Inclusive, há precedente da 1ª Seção do STJ autorizando a suspensão das ações individuais, ainda que os interessados não tenham exercido essa opção. Confira-se:
RECURSO REPETITIVO. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL.
REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. AÇÃO COLETIVA. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da educação básica, nos termos da Lei nº 11.738/08. SUSTAÇÃO DE ANDAMENTO DE AÇÕES INDIVIDUAIS.POSSIBILIDADE. 1. Segundo precedentes deste Superior Tribunal, "ajuizada ação coletiva atinente a macrolide geradora de processos multitudinários, suspendem-se as ações individuais, no aguardo do julgamento da ação coletiva". (v.g.: REsp 1110549/RS, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, Segunda Seção, julgado em 28/10/2009, DJe 14/12/2009). 2. Este STJ também compreende que o posicionamento exarado no referido REsp 1.110.549/RS, "não nega vigência aos aos arts. 103 e 104 do Código de Defesa do Consumidor; com os quais se harmoniza, atualizando-lhes a interpretação extraída da potencialidade desses dispositivos legais ante a diretriz legal resultante do disposto no art. 543-C do Código de Processo Civil, com a redação dada pela Lei dos Recursos Repetitivos (Lei n. 11.672, de 8.5.2008)".
3. Recurso Especial conhecido, mas não provido.
(REsp 1353801/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 14/08/2013, DJe 23/08/2013) (grifei)
Percebe-se que integra a ratio decidendi desse julgado uma interlocução entre o regime jurídico das ações coletivas com aquele referente aos casos repetitivos. DIDIER JÚNIOR e ZANETI JÚNIOR (2019, p. 203) avaliam se tratar de “[...] necessária racionalização do exercício da função jurisdicional, como forma de evitar decisões diversas para situações semelhantes, o que violaria o princípio da igualdade”.
A coisa julgada, portanto, é instituto com muitas peculiaridades no âmbito do processo coletivo, devendo ser entendida sobretudo como garantia em favor da coletividade titular de direitos.
2.3. Limitação territorial de efeitos e jurisprudência do STJ
A ação coletiva, como se pôde perceber ao longo deste trabalho, desempenha um papel de pacificação do conflito que tem reflexos diretos nas ações individuais. O próprio regime jurídico da coisa julgada, que vinha se construindo na Lei da Ação Popular e Lei da Ação Civil Pública, consolidou-se com o advento do Código de Defesa do Consumidor em direção à extensão dos limites subjetivos do instituto para beneficiar os titulares do direito no plano individual.
De um lado, a ampliação dos limites subjetivos da coisa julgada evidencia que a solução encontrada para a ação coletiva deve ser reaproveitada para todos os titulares do direito coletivo lato sensu envolvido, o que se verifica a partir da opção legislativa pelo alcance erga omnes ou ultra partes da decisão.
Sob outro ângulo, tem-se o funcionamento muito particular do instituto no processo coletivo, quando estabelece uma garantia em favor da coletividade de não ver o resultado da ação de grupo atingir o plano individual senão para beneficiar, em verdadeira extensão secundum eventum litis. Essa é a regra geral, embora existam exceções pontuais como a figura do litisconsorte habilitado na ação que vise tutelar direitos individuais homogêneos, a que se fez devida referência no tópico pretérito.
O sistema parecia conviver harmônica e coerentemente, a partir da interlocução aberta pelos artigos 90 do CDC e 21 da LACP e da similitude das previsões normativas em torno da coisa julgada, até que tal situação veio a ser alterada com o advento da Medida Provisória (MP) 1.570/97.
A referida Medida Provisória alterou o artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, que passou a vigorar com a seguinte redação:
Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova (BRASIL, 1997)
O diferencial para a redação originária do dispositivo está na expressão “nos limites da competência territorial do órgão prolator”, que promoveu verdadeira limitação do alcance da sentença coletiva. A MP foi então convertida na Lei 9.494/97, tendo sido conservada a mudança no seu artigo segundo.
Não se pode revisar o instituto da coisa julgada sem passar pelo debate acerca da mencionada alteração legislativa, que ocupou os estudiosos do processo coletivo e também a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. A pretensão aqui não é esgotar as críticas formuladas pela doutrina ou como o STJ durante muito tempo sustentou a aplicabilidade da previsão, uma vez que correspondem a anos de disputa sobre a melhor interpretação a ser dada à controvérsia.
O objetivo então seria noticiar que a tentativa de esvaziamento do propósito da ação coletiva foi superada com a uniformização do entendimento pela Corte Especial do STJ no ERESP 1.134.957/SP, julgado em 24.10.2016.
Saber o contexto em que se insere a modificação legislativa ajuda a situar as críticas à falta de técnica adotada pelo legislador. ALVES (2016, p. 275) explica que as demandas coletivas “acabavam afetando o Governo, seja porque fiscalizavam seus atos ou porque requeriam a tutela de direitos coletivos. Diante disso, o Poder Público começou a se sentir acuado com a repercussão, dimensão e importância que as demandas coletivas alcançaram”. A observação é pertinente porque grande parte das ações de grupo são movidas em desfavor dos entes que compõem a administração pública.
TUCCI (2007, p. 417) também identifica razões semelhantes quando afirma que “por opção de cunho eminentemente político, a Medida Provisória [...] procurou conter a ‘ameaça’ que a tutela coletiva representa ao Estado, reduzindo a eficácia erga omnes [..]”. GRINOVER (1999, p. 15), por sua vez, observa que “a acolhida, cada vez mais ampla, da coisa julgada de abrangência nacional qualificando a sentença dos processos coletivos e projetando os efeitos das liminares acabou por contrariar os interesses fazendários”.
Apesar do interesse orientado em sua origem, é preciso verificar se a modificação inaugurada pela Medida Provisória 1.570/97 e mantida pela Lei 9.494/97 se sustenta quando são considerados o conjunto de dispositivos que disciplinam o tema do alcance dos efeitos da decisão proferida nas ações coletivas.
Não é demasiado lembrar que a tutela coletiva no ordenamento jurídico brasileiro se desenvolveu de forma assistemática e pulverizada no tocante às legislações que regem a matéria, de modo que qualquer tentativa de reformulação do perfil normativo desse tipo de ação deve ser lida de maneira conjunta. Essa é uma nuance das várias críticas que serão trazidas nas linhas seguintes.
A doutrina mais abalizada desenvolveu basicamente os seguintes argumentos: a) a natureza da ação coletiva é orientada para que suas decisões atinjam toda a coletividade b) o artigo 16 da LACP deve ser interpretado conjuntamente com outros diplomas, a exemplo do CDC c) o princípio da igualdade restaria violado com a possibilidade de decisões conflitantes d) a alteração legislativa incide apenas sobre direitos difusos d) há uma confusão nos conceitos de competência e abrangência da coisa julgada.
Quanto ao primeiro ponto, GRINOVER (1999, p.8) é enfática ao defender que “ou a demanda é coletiva ou não o é; ou a coisa julgada é erga omnes ou não o é [...]”, rechaçando a possibilidade de uma figura intermediária, em que a extensão de efeitos se opere pela metade ou limitadamente. DIDIER JÚNIOR e ZANETI JÚNIOR, a seu turno, apontam que “[...] a limitação não deve subsistir diante das características mais elementares do processo coletivo, tais como o tratamento molecular do litígio e a indivisibilidade do bem tutelado”.
Aqui o tratamento molecular é entendido em oposição à litigância atomizada, característica do processo civil clássico, de cunho individual. Limitar os efeitos da coisa julgada “significa multiplicar demandas, o que, de um lado, contraria toda a filosofia dos processos coletivos, destinados justamente a resolver molecularmente os conflitos de interesses [...]’ (GRINOVER, 1999, p. 15).
Outro argumento que é mobilizado pelos doutrinadores é a inaptidão da mudança na Lei da Ação Civil Pública para repercutir em todo o regramento da coisa julgada no processo coletivo. Nas palavras de Hugo Nigro Mazilli:
[...] a alteração procedida no art. 16 da LACP incidiu apenas sobre esta lei, mas não alcançou o sistema do CDC. Ora, é de elementar conhecimento que é um só o sistema da LACP e do CDC, em matéria de ações civis públicas e coletivas, pois ambos os diplomas legais se interpenetram e se completam, ensejando um todo harmônico (LACP, art. 21, e CDC, art. 90). [...] de outro, o CDC disciplina adequadamente a coisa julgada na tutela coletiva (art. 103) — e seus princípios aplicam-se não só à defesa coletiva do consumidor, como também à defesa judicial de quaisquer interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, tenham ou não origem nas relações de consumo [...] Naturalmente, em face dessa conjugação de normas, restou ineficaz a alteração que o art. 2° da Lei n. 9494/97 procedeu no art. 16 da LACP” (MAZILLI, 2007, pp. 527/528).
Fica claro que o autor utiliza o microssistema de tutela coletiva para fundamentar a impossibilidade de alteração do regime jurídico da coisa julgada, já bem delineado no Código de Defesa do Consumidor de acordo com a espécie de direito coletivo lato sensu e que não comporta mitigação sem que esses dispositivos também sejam alterados ou suprimidos. Portanto, “o art, 16 da LACP, na redação que lhe foi dada pela Medida Provisória, não pode ser interpretado sem se levar em consideração os arts. 93 e 103 do CDC” (GRINOVER, 1999, p. 16).
Já em relação ao princípio da igualdade, em Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. colhemos a lição de que “o direito em discussão é da categoria; a categoria tem caráter nacional; ou toda categoria tem o direito reconhecido ou ninguém dessa categoria poderia tê-lo [...] O caráter unitário da tutela dessa espécie de direitos impõe uma decisão única” (DIDIER JÚNIOR; ZANETI JÚNIOR, 2019, p. 501). Assim, quando apenas a alguns titulares é dada a benesse conferida pela lei de ver aproveitado o resultado da lide coletiva, viola-se o princípio em comento.
O problema da cindibilidade no reconhecimento do direito gera ainda obstáculos de sustentação teórica em matéria processual, como a “clara relação de litispendência entre as várias ações ajuizadas nos diversos estados da federação” (GRINOVER, 1999, p.8). São também questões de ordem prática, como a “[...] instauração de vários processos idênticos na hipótese de danos de âmbito regional ou nacional” (ROQUE, 2013, p. 9).
Ada Pellegrini Grinover vai mais além e diz que o artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, com a redação conferida pela Lei 9.494/97, incide apenas para direitos difusos.
Não se aplica aos direitos coletivos porque a extensão nesse caso se dá ultra partes, de modo que não poderia um dispositivo que trata de efeitos erga omnes modificar disposições concernentes a categoria jurídica diversa. Por outro lado, existe normativa específica para direitos individuais homogêneos no Código de Defesa do Consumidor, em que não houve adoção do regime da coisa julgada secundum eventum proabationis; também há expressa menção no artigo 103, inciso III, do CDC ao benefício a todas as vítimas indistintamente (GRINOVER, 1999, pp. 16/17). Assim, a limitação não prosperaria quando a lei expressamente previu que fossem alcançados todos aqueles titulares do direito.
Finalmente, a última crítica que se deseja trazer é o fato da limitação de efeitos tomar como parâmetro a competência do órgão prolator. Segundo ALVES (2016, p. 280), “trata-se aqui da falta de técnica do legislador, geradora de uma confusão entre os conceitos de competência territorial e limites subjetivos da coisa julgada”. MAZILLI (2019, p. 527) acrescenta que a competência “nada tem a ver com a imutabilidade da sentença [...] até porque, na ação civil pública, a competência sequer é territorial, mas funcional”. Na esteira dessas posições, GRINOVER (1999, p. 19) pontua que “o âmbito da abrangência da coisa julgada é determinado pelo pedido, e não pela competência. Esta nada é mais do que a relação de adequação entre o processo e o juiz, nenhuma influência tendo sobre o objeto do processo”.
Assim, a doutrina mais abalizada sempre viu com ressalvas os reflexos da Lei 9.494/97.
No âmbito jurisprudencial, a acolhida das contribuições doutrinárias começou com o RESP 1.1243.887/PR, de relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão, julgado em 19.10.2011. Na oportunidade, o eminente relator deixou consignado em seu voto o seguinte:
[...]bem da verdade, o art. 16 da LACP baralha conceitos heterogêneos - como coisa julgada e competência territorial - e induz a interpretação, para os mais apressados, no sentido de que os "efeitos" ou a "eficácia" da sentença podem ser limitados territorialmente, quando se sabe, a mais não poder, que coisa julgada - a despeito da atecnia do art. 467 do CPC - não é "efeito" ou "eficácia" da sentença, mas qualidade que a ela se agrega de modo a torná-lá "imutável e indiscutível (STJ, 2011, p. 15)
Outros argumentos foram mobilizados pelo Ministro, tais como o fato de que nos danos de natureza regional ou nacional, a adoção da limitação de efeitos implicaria em benefício apenas àqueles titulares que residem nas capitais; que os efeitos da sentença tem a ver “com os limites da lide e das questões decididas [...] e com as que poderiam ter sido”; que a limitação territorial de efeitos sequer ocorre no processo civil clássico, que dirá no coletivo em que se objetiva solucionar várias lides; que deve-se perquirir quem é atingido pela decisão e o que se decidiu estender, independentemente do território analisado (STJ; 2011, pp. 15/17).
Após anos de debate, eis que finalmente a matéria foi pacificada no âmbito infraconstitucional a partir do julgamento do ERESP 1.134.957/SP, julgado em 24.10.2016, de relatoria da Ministra Laurita Vaz. Foram revisitados os argumentos que embasaram a decisão proferida no RESP 1.1243.887/PR e então a Corte Especial decidiu uniformizar a jurisprudência no sentido de tal precedente.
Confira-se a ementa do julgamento em questão:
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. PROCESSUAL CIVIL. ART. 16 DA LEI DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AÇÃO COLETIVA. LIMITAÇÃO APRIORÍSTICA DA EFICÁCIA DA DECISÃO À COMPETÊNCIA TERRITORIAL DO ÓRGÃO JUDICANTE. DESCONFORMIDADE COM O ENTENDIMENTO FIRMADO PELA CORTE ESPECIAL DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA EM JULGAMENTO DE RECURSO REPETITIVO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA (RESP N° 1.243.887/PR, REL. MIN. LUÍS FELIPE SALOMÃO). DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL DEMONSTRADO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA ACOLHIDOS.
1. No julgamento do recurso especial repetitivo (representativo de controvérsia) n° 1.243.887/PR, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, ao analisar a regra prevista no art. 16 da Lei n° 7.347/85, primeira parte, consignou ser indevido limitar, aprioristicamente, a eficácia de decisões proferidas em ações civis publicas coletivas ao território da competência do órgão judicante.
2. Embargos de divergência acolhidos para restabelecer o acordão de fls. 2.418-2.425 (volume 11), no ponto em que afastou a limitação territorial prevista no art. 16 da Lei n° 7.347/85.
(ERESP N° 1.134.957/SP, Rel. Ministra Laurita Vaz, Corte Especial, julgado em 24/10/2016) (grifei)
A tese fixada pelo STJ, como se depreende do acórdão prolatado, foi a de que não se pode limitar a eficácia das decisões proferidas em ações civis públicas ao território de competência do juízo que prolatou a decisão, ao menos não de forma automática.
Percebe-se, assim, que a solução adotada é a que melhor representa o traço distintivo das ações coletivas como instrumento de defesa de interesses da coletividade, estando tecnicamente amparada pelas normativas constantes no CDC sobre coisa julgada e na aplicação do microssistema de processo coletivo.
Ao maximizar o alcance da coisa julgada, tornando inoperante o art. 16 da Lei da Ação Civil Pública na parte em a vincula à competência territorial do órgão prolator da decisão, o Superior Tribunal de Justiça imprime efetividade às decisões do Poder Judiciário em matéria coletiva, pois são fio condutor para a resolução de uma multiplicidade de demandas individuais que versam sobre a mesma questão.
Com isso, a garantia de ter estendidos os efeitos da sentença coletiva apenas para beneficiar o plano individual, decorrência do regime de formação da coisa julgada pro et contra, mas com extensão secundum eventum litis, pode ser aplicada em toda sua força normativa, a qual decorre do regime jurídico previsto no Código de Defesa do Consumidor e nas Leis da Ação Popular e Ação Civil pública, interpretados sistemática, finalística e dialogicamente a partir de significações buscadas primeiramente no interior do microssistema.
Foi visto que sob a ótica individual, ou seja, do processo civil clássico, a coisa julgada é tradicionalmente entendida como garantia não somente pela sua posição topográfica no artigo 5° da Constituição Federal, mas também por significar para as partes no processo o primado da segurança jurídica em não ver mais a mesma questão decidida. No que concerne a terceiros que não fizeram parte da lide, encontra limites no respeito ao contraditório e à ampla defesa.
Sob a ótica coletiva, de outro lado, foi visto o particular tratamento dispensado pelo Código de Defesa do Consumidor ao instituto, na conjugação do regime de formação da coisa julgada pro et contra no âmbito coletivo com uma extensão subjetiva secundum eventum litis ao plano individual. Nesse ponto, defendeu-se o entendimento dessa peculiaridade na tutela coletiva brasileira como uma garantia em favor da coletividade no sentido de não ver o resultado da ação de grupo aproveitado aos casos individuais senão para beneficiar.
Portanto, a coisa julgada, à semelhança de outros institutos de processo, pode ser observada de maneira diferenciada na tutela coletiva não apenas pela disciplina normativa específica que lhe foi reservada, mas também porque a ação de grupo objetiva ampliar seus limites subjetivos, ainda que através de uma opção legislativa pela função garantidora em que essa ampliação ocorra apenas se favorecer o plano individual.
Quando se compara tal funcionalidade ao que acontece no processo civil clássico, vê-se que mesmo para os autores que consideram a possibilidade da coisa julgada beneficiar terceiros, como DIDIER JÚNIOR et al (2016) e MARINONI (2016), posição que encontra amparo no fato do 506 do CPC vedar apenas a extensão para prejudicar, trata-se de verdadeira exceção à eficácia inter partes típica de demandas atomizadas. O alcance das ações coletivas, pela eficácia erga omnes ou ultra partes da decisão proferida, sem dúvida se revela muito maior.
Conclui-se que a coisa julgada é coletiva quando formada no curso de uma ação de grupo, possuindo um regime de formação pro et contra no que tange aos participantes da lide. No entanto, sua extensão ao plano individual ocorre apenas secundum eventum litis, opção legislativa garantista em benefício dos titulares do direito que não serão impedidos de buscar solução diversa daquela proferida no âmbito coletivo. Quando este último regime de formação se alia a uma eficácia subjetiva erga omnes ou ultra partes, tem-se potencializado o alcance da tutela coletiva como instrumento de solução de conflitos. Não obstante as tentativas de limitar tal funcionalidade, o que ocorreu com a edição da Lei 9.494/97, a jurisprudência se consolidou no sentido de tornar inoperante o art. 16 da Lei da Ação Civil Pública no ponto que trata da eficácia subjetiva adstrita à competência do órgão prolator, maximizando assim os ganhos decorrentes da ação coletiva e preservando a coerência do sistema.
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[1] § 2º Uma ação é idêntica a outra quando possui as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido.
§ 4º Há coisa julgada quando se repete ação que já foi decidida por decisão transitada em julgado
[2] § 5º Excetuadas a convenção de arbitragem e a incompetência relativa, o juiz conhecerá de ofício das matérias enumeradas neste artigo
[3] Art. 504. Não fazem coisa julgada: I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; II - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença.
[4] Art. 503. A decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida
[5] § 1º O disposto no caput aplica-se à resolução de questão prejudicial, decidida expressa e incidentemente no processo, se: I - dessa resolução depender o julgamento do mérito; II - a seu respeito tiver havido contraditório prévio e efetivo, não se aplicando no caso de revelia; III - o juízo tiver competência em razão da matéria e da pessoa para resolvê-la como questão principal.
§ 2º A hipótese do § 1º não se aplica se no processo houver restrições probatórias ou limitações à cognição que impeçam o aprofundamento da análise da questão prejudicial.
[6] Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada: I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81;
[7] § 1° Os efeitos da coisa julgada previstos nos incisos I e II não prejudicarão interesses e direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe.
[8] II - ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81;
[9] III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81.
[10] Art. 94. Proposta a ação, será publicado edital no órgão oficial, a fim de que os interessados possam intervir no processo como litisconsortes, sem prejuízo de ampla divulgação pelos meios de comunicação social por parte dos órgãos de defesa do consumidor.
[11] Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe; Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Escola Judicial de Sergipe. Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) em Sergipe. Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRAZ, GABRIEL PARAIZO DANTAS. A coisa julgada no processo coletivo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jul 2022, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58849/a-coisa-julgada-no-processo-coletivo. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: ELISA CARDOSO BATISTA
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
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