RICARDO ALEXANDRE RODRIGUES GARCIA
(orientador)
RESUMO: Este artigo tem como foco analisar o instituto do direito de não nascer, o qual ganhou repercussão na França no início dos anos 2000, tendo como protagonista Nicolas Perruche, portador de “Síndrome de Gregg”, e que, em razão disso, obteve indenização da justiça por suas condições de vida, isso após seus genitores processarem a clínica médica por fornecer informações incorretas sobre a situação de Nicolas quando ainda estava no período de gestação, o que os privou da possibilidade de poder optar por um aborto, ou até mesmo uma melhor preparação para receber um filho com tantas anomalias e necessidade de cuidados especiais, bem como, na visão deles, impediu seu filho de possuir uma vida justa. Até os dias atuais são muito presentes debates relacionados a este tema na esfera do direito em diversas partes do mundo. Além do mais, será feita uma análise sobre o tratamento em relação ao aborto no ordenamento jurídico brasileiro, suas formas de execução, tanto as ilícitas como as suportadas pela lei.
Palavras-chave: Aborto. Lei Perruche. Vida.
ABSTRACT: This article focuses on analyzing the institute of the right not to be born, which gained repercussion in France in the early 2000s, having as protagonist Nicolas Perruche, bearer of "Gregg's Syndrome", and who, as a result, received compensation from the justice for their living conditions, after their parents sued the medical clinic for providing incorrect information about Nicolas's situation when he was still pregnant, which deprived them of the possibility of choosing abortion, or even a better one preparation to receive a child with so many anomalies and need for special care, as well as, in their view, prevented their child from having a righteous life. To this day, debates related to this topic in the sphere of law are very present in different parts of the world. Furthermore, an analysis will be made on the treatment of abortion in the Brazilian legal system, its forms of execution, both illegal and supported by law.
Keywords: Abortion. Law Perruche. Life
1 INTRODUÇÃO
Não há dúvidas de que a legalização do aborto é um dos temas mais polêmicos no direito não só brasileiro, mas como em todo o mundo, o qual é amplamente defendido por alguns grupos sociais, e amplamente criticado por outros, muito em razão do que se prega pela religião e a visão política que está em torno deste tema.
Entretanto, tendo em vista que o Estado brasileiro é laico, não é em razão de crenças e opiniões religiosas que se dá a proibição de práticas abortivas. A CF/88 em seu artigo 5º garante a todos os cidadãos o direito e proteção à vida, o que (ao menos em tese) seria violado em um aborto, além do mais, no código penal são elencados artigos para punir tal conduta, os quais serão comentados com mais profundidade no decorrer do artigo.
Ademais, este artigo visa comparar o caso de Nicolas Perruche e seus genitores, ocorrido na França no início dos anos 90, com o que está descrito em nosso ordenamento jurídico, assim como todas as repercussões provenientes no ramo do direito em diversos países, gerando temas como “wrongful life” e “wrongful birth”, analisando a origem do caso, desde o início das correntes de pensamento Eugenistas, até o presente, considerando os moldes em que se encontra a atual sociedade.
2 O QUE É O ABORTO
Divergente em diversas partes do mundo, mas com um único consentimento: Polêmica. Sendo que, não teria como ser diferente, se tratando de um assunto que aborda questões sociais, religiosas, políticas e científicas, e que até os dias atuais enfrenta diversas alterações legislativas pelo mundo a fora.
Conceitualmente, trata-se da interrupção de uma gravidez, sendo marcado pela retirada de um embrião ou feto antes que este conclua o devido tempo de desenvolvimento (em média 40 semanas), o que resulta sua morte.
O aborto, diante da ótica jurídica, pode vir a ocorrer de diversas formas, sendo estas: Atípica, Típica Jurídica, e Típica Antijurídica e culpável, sendo estas divididas em diferentes espécies.
Quando se trata do aborto atípico, este pode vir a acontecer de três formas. O aborto atípico natural (espontâneo) ocorre em razão de causas patológicas do corpo feminino, em que o feto não se desenvolve da maneira correta. Também é possível que aconteça de maneira a acidental, no qual se dá através de causas exteriores e traumas, como por exemplo um acidente doméstico. Por fim, o aborto atípico pode estar configurado de modo culposo, sendo causado em razão de condutas imprudentes, negligentes ou imperitas.
O ato de abortar também se configura, no mundo do direito, de forma típica e jurídica, envolvendo duas espécies. A princípio, pode ser realizado de forma terapêutica, com a finalidade de salvar a vida da gestante (artigo 128, I, CP). Bem como, há o aborto chamado de Sentimental/Humanitário, autorizado pelo legislador nas ocasiões em que a gravidez tenha ocorrido através de um crime estupro (Artigo 128, II, CP).
Por fim, o aborto típico, jurídico e culpável, o qual se divide em quatro espécies. O aborto Doloso é realizado pela própria gestante, ou por terceiro, com ou sem seu consentimento. O dolo se trata da vontade consciente de interromper a gestação eliminando o embrião ou feto. Eugênico, quando o feto apresenta graves e irreversíveis problemas genéticos, e em razão disso, há a motivação do aborto. Há também a modalidade Econômica/Social, em que a motivação está presente na situação de miserabilidade da gestante, entendendo não possuir condições financeiras para criar o filho. Por fim, O aborto Honoris Causa, executado para ocultar ato de desonra própria, como por exemplo engravidar amante.
3 O ABORTO NA LEI BRASILEIRA
Na legislação brasileira, o crime de aborto encontra-se tipificado no título 1 dos “crimes contra a pessoa”, capítulo 1 “dos crimes contra a vida”, estando presente entre os artigos 124 e 128 do Código Penal Brasileiro.
O artigo 124 descreve de forma genérica como o crime se configura, sendo este provocado pela gestante propriamente, ou consentindo para que outro o faça, com pena de detenção de um a três anos. No seguinte artigo é tratado sobre o aborto causado sem o consentimento da gestante, sendo a pena de três a dez anos. No artigo 126 é descrito sobre o aborto com consentimento da vítima, fazendo algumas ressalvas:
Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de um a quatro anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência (BRASIL, p. [não paginado]).
No artigo 127 da mesma lei está exposta a forma qualificada do crime de aborto, sendo a pena aumentada em um terço caso o aborto ou os meios empregados para este venham a causar lesão corporal de natureza grave na gestante, e duplicada, se esta venha a falecer.
O texto do artigo 128 descreve formas autorizadas pela lei para que o aborto possa ocorrer sem que se configure um ilícito penal. No inciso I é tratado sobre o aborto para salvar a vida da gestante, já no II, para os casos de gravidez proveniente de estupro, em que, quando houver consentimento da vítima ou dos representantes legais desta, o médico poderá realizar o procedimento abortivo.
Mais recentemente, no ano de 2012 a última mudança acerca desta legislação foi implementada, sendo aceito o aborto de fetos portadores de anencefalia, em uma votação do STF que terminou em 8 votos favoráveis contra 2. Na oportunidade, declarou o ministro Marcos Aurélio (apud Cunha, 2012):
Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, não existe vida possível. O feto anencéfalo é biologicamente vivo, por ser formado por células vivas, e juridicamente morto, não gozando de proteção estatal. [...] O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura. Anencefalia é incompatível com a vida”.
Sendo assim, fica evidenciado o entendimento de que em alguns casos, não basta se prezar pelo direito à vida, sendo que esta não terá continuidade ou ao menos uma esperança de prosperidade, podendo ainda causar mais sofrimento e frustração àqueles que o geraram.
4 O DIREITO DE NÃO NASCER
O tema é debatido em muitas partes da Europa e do mundo há pelo menos 20 anos, tendo em vista que o precursor dos debates foi o “Acórdão Perruche”, emitido no início dos anos 2000.
O direito de não nascer engloba dois tipos de ações possíveis, sendo uma delas as “wrongful life”, que pode ser imposta pelos pais da criança logo após seu nascimento com as enfermidades, ou até mesmo pela própria “vítima” (sendo esta representada/assistida, ou não, dependendo das circunstâncias presentes no caso), destinando a ação contra aquele(s) que deu(ram) causa para seu nascimento, ou que omitiram as informações que poderiam evitar este, mesmo que sem causar diretamente sua malformação, sendo estes os médicos ou clínica. O foco da ação seria indenizar a criança por não poder desfrutar de uma vida nas mesmas condições de todos os cidadãos, entendendo que os problemas presentes em sua saúde configuram uma vida indigna, gerando a ela mais prejuízos do que benefícios por ter nascido.
Além disso, por parte dos genitores da criança deficiente poderia ser pleiteada a ação de “wrongful birth”, colocada em prática quando a omissão dos médicos tira a possibilidade dos pais de optarem pelo aborto eugênico. (Como este é proibido no Brasil, sendo possível unicamente nos casos em que a vida da mãe está em risco, seria necessária uma ampla reforma na legislação em torno do assunto), ou até mesmo de ter um filho saudável. Sobre isso, dissertou Costa (2012, p. 23):
são quatro os requisitos para que a ação possa ser proposta pelos pais, sendo elas, deficiência desde o nascimento, deficiência ocasionada por fatos da natureza, presunção de interrupção da gestação caso os pais tivessem conhecimento da moléstia e a existência de erro do médico, hospital ou laboratórios.
Levando em conta as novas tecnologias e formas de reprodução assistida, o mecanismo jurídico de “wrongful birth” pode vir a ser aplicado quando no momento do Diagnóstico genético pré-implantação (DGPI), este que visa inspecionar se o embrião possui qualquer tipo de problemas genéticos, estiver presente algum erro médico ou clínico, ocorrendo o nascimento do bebê que já apresentava deficiências quando embrião, mesmo com todos os cuidados por parte dos genitores.
Sobre o último exemplo apresentado, temos uma jurisprudência que se relaciona e poderia ser aplicada:
RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO. NEGLIGÊNCIA. INDENIZAÇÃO CABÍVEL. FECUNDAÇÃO IN VITRO. RECURSO ESPECIAL. 1. Afasta-se a alegada violação do art. 535, II, do CPC na hipótese em que o não-acatamento das argumentações deduzidas no recurso tenha como conseqüência apenas decisão desfavorável aos interesses do recorrente. 2. Médico que deixa de prestar assistência pós-cirúrgica a paciente que tem seu estado de saúde agravado, alegando que a piora não decorre do ato cirúrgico que realizou, mas de outras causas, encaminhando-a a profissionais diversos, deve responder pelo dano ocasionado à paciente, pois deixou de agir com a cautela necessária, sendo negligente. 3. O conhecimento de recurso especial fundado na alínea “c” do inciso III do art. 105 da Constituição Federal pressupõe a coincidência das teses discutidas, porém, com resultados distintos. 4. Recurso especial não-conhecido (STJ - REsp: 914329 RJ 2007/0001491-8, Relator: Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Data de Julgamento: 19/08/2008, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: --> DJe 13/10/2008)
Como é possível ver, a decisão condena a clínica no que tange à responsabilidade de responder pelos danos causados em decorrência da negligência e desprovida cautela do médico, e isso poderia ser aplicado nos casos de erro de DGPI, tendo em vista que também estaria configurada a desprovida cautela e negligência em apresentar exames imprecisos para os pais, quando o assunto tratado irá mudar não somente a vida dos dois, como também a de um ser humano que está por vir.
5 AS RAÍZES DO EUGENISMO
Nos dias atuais é totalmente impensável que possam haver “raças superiores” entre a sociedade, sendo inclusive, uma luta enfrentada há décadas, e que vem ganhando ainda mais força em seu combate, principalmente no que tange a etnias. Todavia, em meados do século passado, o eugenismo era amplamente praticado, e o pensamento de que pessoas portadoras de deficiência “manchavam” a sociedade era muito comum. Sobre o assunto, disserta Michael Rose (2000, p. 166-167): “As chamadas raças humanas são flagrantemente absurdas. Ao nível molecular, não há nenhum modo legítimo de dividir a espécie”.
O termo foi criado pelo cientista Francis Galton (1883), visando indicar o estudo dos agentes perante o controle da sociedade, (sendo elas físicas ou mentais), visando influenciar positivamente ou negativamente nas próximas gerações que viriam a conduzir a sociedade. Sendo que, tinha como uma de suas propostas um sistema de casamentos arranjados, o qual teria como intuito a geração de uma raça “melhor dotada”
Coincidentemente ou não, Galton tinha como primo o reconhecido pensador naturalista Charles Darwin, criador das teorias sobre a origem e evolução das espécies, bem como a seleção natural pelo ambiente.
Seguindo a linha de pensamento citada acima, Platão assentia. Em sua obra “A República” (380 a.C), tal fato fica evidenciado em um diálogo com Sócrates, no qual afirma que a seletividade seria a melhor opção tanto para os enfermos, como para o desenvolvimento da sociedade.
Por fim, outro personagem de grande relevância também era adepto desta teoria, sendo ele Karl Pearson (1901), notório estatístico. Segundo seu ponto de vista, a multiplicação de pessoas consideradas pobres era um perigo a sociedade, devendo as “raças superiores”, para evitar um colapso, suplantar as inferiores.
No que diz respeito à aplicação das citadas teorias, os Estados Unidos da América, na primeira metade do Século XX teve grande influência no citado movimento Eugenista. Por meio de uma “esterilização” de indivíduos considerados deficientes mentais, estima-se que mais de 60 mil abortos foram realizados, sendo que, tal movimento passou a perder força apenas no final dos anos 90, quando as leis que previam a “esterilização” deixaram de vigorar.
Os nórdicos também fizeram uso de tais medidas, tendo como meta ceifar pessoas de “baixa qualidade”, cabendo apontar a observação de Francesca Puigpelat (1999, p. 65):
Na Dinamarca as leis de esterilização foram promulgadas em 1929, na Suécia e na Noruega em 1934. A sociedade sueca recentemente ficou chocada ao saber que milhares de pessoas, sendo 62.888 que foram esterilizados no país durante as campanhas de esterilização entre os anos de 1935 e 1975, foram contra sua vontade. Em 1998 foi acordado conceder indenização aos afetados. (...) Na Alemanha Nacional Socialista o movimento de esterilização por razões eugênicas representou um número de pessoas dez vezes maior do que o de Estados Unidos entre 1907 e 1945.
Conforme o último fato apontado, cabe destacar a relevância deste assunto no que pregava o movimento nazista, sendo que, por meio destes discursos eugenistas implementados por Wilhem Schallmeyer e Alfred Ploetz[1], foi passada à sociedade uma sensação de normalidade com tal prática, resultando posteriormente ao extermínio de centenas de milhares de pessoas.
Mais detalhadamente, relata Michael Rose (2000, p. 169) como era feita a seleção dos que passariam pela esterilização durante o período da Alemanha Nazista:
Os nazistas trataram de esterilizar e praticar eutanásia naqueles a quem consideravam inaptos. Suas vítimas incluíram portadores de deformidades, esquizofrênicos, retardados mentais, epilépticos e doentes mentais institucionalizados, em geral. As crianças consideradas deficientes eram mortas por falta de cuidados, superdoses de morfina ou envenenamento por cianureto, em geral sem o conhecimento dos pais, que eram informados de que seus filhos haviam morrido durante o tratamento médico. (...) Os ciganos foram mandados para os campos para serem aniquilados. Depois vieram os judeus.
6 CASO NICOLAS PERRUCHE E O POLÊMICO ACÓRDÃO
Na França, no ano de 1992 teve início um dos mais polêmicos casos julgados pela corte francesa, Nicolas Perruche nasce acometido de diversas patologias derivadas da síndrome de Gregg, esta que lhe causava problemas auditivos, visuais, cardiopatias e neuropatias, isso em razão de sua genitora ter contraído Rubéola durante a gravidez, apesar de ter informado aos médicos tal problema, e deixando claro que fosse prejudicar a qualidade de vida do filho que viria, preferia o aborto, foi comunicada pelo laboratório de que não havia riscos, o que não se confirmou com o nascimento de Nicolas. Sendo assim, se iniciou uma longa disputa judicial contra o laboratório, entrando com ações para indenizar o filho pelo nascimento injusto (wrongful life action), e também uma reparação contra o erro do laboratório no momento da análise, essa convertida em face dos pais (wrongful birth action). Em primeira instância foi conferido o direito de indenização somente a Josette e Christian, os genitores, mas, em 17 de novembro de 2000, o Tribunal de Cassação veio a mudar a sentença, decidindo que os pais deveriam ser indenizados pelo fato de terem sido desapossados do direito de escolher entre o aborto ou continuar com a gestação, assim como para a criança, em razão dos danos sofridos por ela, sendo este o teor da decisão de maneira resumida:
Considerando, todavia, que, a partir do momento em que os erros cometidos por um médico e um laboratório na execução de contratos firmados com Mme X... tenham impedido esta de exercer sua escolha de interromper a gravidez com o objetivo de evitar o nascimento de uma criança atingida por uma deficiência, esta última pode requerer a reparação do dano resultante dessa deficiência e causada pelos erros considerados9... POR ESSES MOTIVOS, e sem que seja necessário decidir sobre os outros pedidos de uma e de outra petição: CASSA E ANULA, em sua íntegra, o julgamento de 5 de fevereiro de 1999, entre as partes, pela Corte de Apelação de Orléans (Tradução nossa).
Sobre a supracitada decisão, Jerry Sainte-Rose, advogado geral da União e também representante do Ministério Público nos casos que envolvem responsabilidade médica diante da Assembleia da Corte de Cassação Francesa, em seu momento de manifestação perante o juiz, fez a seguinte observação:
A ação de existência injusta, que não deve ser analisada exclusivamene do ponto de vista jurídico porque possui uma dimensão ética, filosófica e antropológica, é resultante de três fatores, sendo: Necessidade de indenização associada a insuficiência de ajuda pública; o progresso espetacular da medicina pré-natal; e em terceiro, a lei de 1975 sobre a interrupção da gravidez, medida considerada pelos seus incentivadores como um mal necessário e que, posteriormente, foi institucionalizada. (Tradução nossa)
7 REPERCUSSÃO SOCIAL E A “LEI ANTI-PERRUCHE”
Logo após a Corte de Cassação Francesa emitir tal decisão, teve início um fenômeno denominado como “backlash”, este que ocorre quando a sociedade reage de maneira negativa à uma decisão judicial, na maior parte dos casos quando são afetados grupos minoritários e historicamente discriminados.
Em decorrência disso, em 4 de março de 2002 foi promulgada a lei nº 2002-303, a qual tratava sobre o direito de pacientes e a qualidade do sistema de saúde. Logo de início, no seu primeiro artigo estava descrito que nenhum cidadão poderia reclamar danos em decorrência apenas de seu nascimento, sendo assim, apenas os pais da criança deficiente poderiam vir a entrar na justiça buscando indenização, essa que teria como fundamento o dano moral em si, e não mais a perda do direito de abortar, como outrora. Como exemplo desta possibilidade de dano moral, podemos citar a necessidade de um dos genitores precisar abandonar seu trabalho para ter plenas condições de cuidar do filho que possui maiores necessidades de acompanhamento.
No ano de 2005 a “Lei anti-Perruche” veio a ser revogada, entretanto, entrou em vigor o Código de Acção Social francês, trazendo em seu artigo L. 114-5 um conteúdo similar.
Entretanto, para que essas mudanças pudessem vir a acontecer, além de toda mobilização social, três projetos de lei foram apresentados, o primeiro deles proposto por Claude Huriet (apud Costa, 2012):
Artigo único
O artigo 16 do Código Civil francês é completado por uma alínea assim redigida:
Sem prejuízo dos direitos à indenização dos pais, a criança nascida deficiente não pode ser reparada por sua deficiência, a menos que o dano seja resultante diretamente de um ato médico, diagnóstico ou terapêutico
Em seguida, surgiu o segundo projeto de lei (2001) contrário à jurisprudência Perruche, este formulado por Bernard Fournier, Philippe Adnot, Jean-Paul Alduy, Gérard Bailly, Roger Besse, André Boyer, entre outros, tendo como base os seguintes termos (apud Costa, 2012):
Artigo único
O artigo 16 do Código Civil é complementado pelas duas alíneas, conforme redigidas abaixo:
Ninguém pode ser indenizado pelo simples fato de ter nascido.
Uma vez que uma deficiência for consequência direta e exclusiva de um erro, ela é passível de direito à reparação nos mesmos termos do artigo 1382 do presente código (Tradução nossa).
Por fim, o último projeto, e que viera a ser consagrado na Lei anti-Perruche (2002), foi descrito da seguinte forma (apud Costa, 2012):
Artigo único
O artigo 16 do Código Civil é complementado pelas duas alíneas, conforme redigidas abaixo:
Ninguém pode ser indenizado pelo simples fato de ter nascido.
Uma vez que uma deficiência for consequência direta e exclusiva de um erro, ela é passível de direito à reparação nos mesmos termos do artigo 1382 do presente código (Tradução nossa).
Artigo 2
Fica criado, nas condições definidas por decreto, um Observatório de recepção e integração de pessoas deficientes, encarregado de obversar a situação material, financeira e moral, das pessoas portadoras de deficiencis na frança e de apresentar todas as propostas julgadas necessárias, ao parlamento e ao governo, visanto ameliorar o cuidado dado à essas pessoas (Tradução nossa).
8 OPINIÃO DOUTRINÁRIA
A doutrina mais completa acerca do assunto foi produzida pelo jurista belga Axel Gosseries (2002, p. 93-110), tendo este criado diferentes vertentes que em sua opinião poderiam solucionar o problema apresentado. Em uma delas, está presente a opinião de que o conceito do dano por vida indigna é plenamente cabível, mas não nos casos de ação por vida injusta, entendendo ainda, que na sua opinião o caso de Nicolas Perruche não poderia ser enquadrado como uma vida indigna. Para Axel, a melhor solução para casos como esse, seria a elaboração de programas de indenização e reintegração para deficientes, o qual seria executado por um fundo assistencial.
Levando em conta a sugestão para a problemática apresentada pelo doutrinador, cabe observar que na França já existe um órgão que pratica atividades num setor bem semelhante ao proposto pelo estudioso belga, sendo este denominado CPAM (Caixa Primário de Seguro-Doença). Sendo assim a proposta em questão seria uma ampliação deste órgão público para que também funcionasse atendendo toda a nação, tendo em vista que na opinião de Axel, este é um problema que deve ser abraçado por toda a nação, evitando, assim, que sejam indenizados somente aqueles que nasceram com deficiência por razões de erro médico. Ainda num contexto parecido, Gosseries (2022) argumenta que a implantação desta nova forma de indenização traria um tom de sensibilização ética para com os casos, e não mais tratando-os como casos de responsabilização civil, incluindo a possibilidade de indenização àqueles que nasceram com deficiência por razões genéticas/naturais.
9 CONCLUSÃO
Portanto, ao analisarmos as condições para que o direito de não nascer pudesse vir a ser aplicado no Brasil, percebemos que diante da vigente legislação, tal possibilidade seria ilusória, levando em consideração que o ordenamento jurídico brasileiro preconiza a proteção a vida de forma taxativa, até porque, é possível dizer que o direito do cidadão surge no nascimento com vida, e se encerra com a morte, logo, criar um direito que é adquirido para não nascer iria contra muitas garantias presentes em nosso ordenamento jurídico, principalmente pelo fato de que é impossível determinar o quão miserável uma vida deve ser para considerar que sua existência seja indigna, ainda mais porque essa decisão não seria tomada por aquele que de fato arcaria com os danos “à flor da pele”.
Ademais, pode-se dizer que a legalização do aborto eugênico poderia causar uma sensação de selecionismo, indo contra as diferenças e pessoas com deficiências, na contramão de todas as campanhas de inclusão que devem ser propostas, principalmente na era em que vivemos, onde as diferenças, felizmente estão sendo normalizadas, e não mais vistas como desvairadas.
Por fim, os erros médicos que causam efeitos tão graves como no caso Francês supracitado seguramente devem ser punidos, bem como, também deve haver uma garantia de que todos os deficientes que possam receber suporte do Estado, e auxílio para uma melhor reintegração social, sem que necessite previamente de ações judiciais ou até mesmo que ocorra um erro médico, caminho este que a França procurou estabelecer após o desequilíbrio gerado pelo caso de Nicolas Perruche e seus familiares.
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SINTRA, Rui. A Eugenia Natural de Darwin: Genética e Evolução de uma Ideia. Universidade de São Paulo. Instituto de Física de São Carlos, 16 mar. 2018. Disponível em: http://ciencia19h.ifsc.usp.br/ciencia19hwp/a-eugenia-natural-de-darwin-genetica-e-evolucao-de-uma-ideia-2/. Acesso em 28 jun. 2022.
WUNSCH, Guilherme. O DIREITO DE NÃO NASCER E AS FRONTEIRAS ENTRE OS CONCEITOS DE PESSOA E VIDA NO CASO NICOLAS PERRUCHE. Empório do Direito, 16 nov. 2015. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/o-direito-de-nao-nascer-e-as-fronteiras-entre-os-conceitos-de-pessoa-e-vida-no-caso-nicolas-perruche-1508703545. Acesso em: 5 nov. 2021.
[1] Weiss, Sheila (1987). Raça Higiene e Eficiência Nacional: A Eugenia de Wilhelm Schallmayer. Imprensa da Universidade da Califórnia. Wilhelm Schallmayer (1857-1919) que, junto com Alfred Ploetz (1860-1940), fundou a eugenia alemã.
graduando em Direito pelo Centro Universitário de Santa Fé do Sul (UNIFUNEC)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GENTINI, Paulo Roberto Silva. O direito de não nascer – sua aplicabilidade no direito brasileiro e uma reflexão acerca do “Acórdão Perruche” Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 jul 2022, 04:10. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58946/o-direito-de-no-nascer-sua-aplicabilidade-no-direito-brasileiro-e-uma-reflexo-acerca-do-acrdo-perruche. Acesso em: 23 dez 2024.
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