REGINA M. DE SOUZA[1]
(orientadora)
RESUMO: O presente estudo se trata de um artigo de revisão, que tem como objetivo central, analisar e interpretar a produção científica acerca da Lei Antimanicomial e do tratamento penal direcionado aos transtornos mentais, que se constituem em transtornos da mente, ou seja, condições com repercussões de ordem psicológica ou psiquiátrica, que podem ser desencadeados por condicionamento genético ou fatores ambientes e que prejudicam a capacidade de autodeterminação do sujeito. Nesse sentido, aponta-se de que modo estão conceituadas as instituições totais, locais em que a subjetividade dos indivíduos está submetida a espaços fechados. Os manicômios judiciários, por sua vez, são instituições destinada a abrigar os criminosos diagnosticados com transtornos mentais e que ou são considerados inimputáveis ou estão em fase de julgamento. Nesses locais, os sujeitos são controlados e afastados da comunidade social, seja com o sentido de cura ou com a visão de proteção da sociedade contra os indivíduos internados. Busca-se estabelecer um paralelo entre esse conceito e os locais que no decurso do tempo foram dispostos como centros de controle das pessoas tidas como loucas. Assim, analisa-se o controle jurídico exercido pelos manicômios e asilos e o empenho em humanizar e dignificar o denominado tratamento penal da loucura.
Palavras-chave: Lei Antimanicomial. Loucura. Dignidade. Instituições Totais. Direito Penal.
ABSTRACT: The present study is a review article, seeking to analyze and interpret the scientific production about the Anti-Asylum Law and the criminal treatment of madness. In this sense, it is pointed out how total institutions are conceptualized, places in which the subjectivity of individuals is molded into closed spaces. In these places, the subjects are controlled and removed from the social community, either with a sense of cure or with a view to protecting society against interned individuals. It seeks to establish a parallel between this concept and the places that in the course of time were arranged as control centers for people considered crazy. Thus, we analyze the legal control exercised by asylums and asylums and the effort to humanize and dignify the so-called penal treatment of madness.
Keywords: Anti-Asylum Law. Craziness. Dignity. Total Institutions. Criminal Law.
1.INTRODUÇÃO
O presente estudo tem como objetivo analisar a Lei Antimanicomial e os aportes do Direito Penal acerca do tratamento à loucura. Realiza-se a tarefa de investigar o decurso histórico do tratamento da loucura, com ênfase nas instituições totais, espaços destinados ao isolamento das pessoas com transtornos mentais. Analisa-se de que modo esses espaços modificam a subjetividade da pessoa e muitas vezes, no decurso da história, significaram a inclusão de práticas de tortura e desumanizantes em busca de uma cura ou de proteger a sociedade contra os indivíduos considerados loucos.
Considera-se o dever estatal em promover a paz e a segurança mediante o direito penal e, desse modo, consolidar instrumentos jurídicos que atuem em direção às pessoas com transtornos mentais que são implicadas em ações delituosas. Todavia, coloca-se como por força constitucional, as normas jurídicas no pós-1988 consolidam um tratamento humano, com ênfase nas medidas de segurança e na proibição de internação - exceto se por avaliação médica com a presença de laudos e em locais cujos parâmetros se adequem a dignidade e humanidade disposta constitucionalmente.
2 Controle Social no Direito Penal: as instituições totais e a hipótese da sociedade disciplinar
O conceito de “Instituições totais” abarca uma utilizada comum dentro da literatura sociológica, dinamizando-se com distintas terminologias. Desde um viés expansivo, a noção de instituições está demarcada pela característica de isolamento, faz menção ao senso físico, concreto, a algo fechado. Erving Goffman é o precursor dessa noção e coloca o caráter total dessas instituições como um limite das dinâmicas sociais com a sociedade. Nessas instituições vigoram proibições de saída, inclusive na própria arquitetura desses lugares, sendo edifícios que possuem portas fechadas, paredes altas, arame farpado, e florestas em seu entorno (PESTANA, 2014).
Nas instituições totais, com enfoque nas prisões, o objetivo de sua construção está no resguardo da comunidade social, não existe a preocupação central com o bem-estar das pessoas que estão internadas nesses lugares. Deve-se considerar que as prisões possuem a finalidade de resguardar a sociedade e não de se preocupar com a manutenção do recluso, de modo que isso provoca múltiplas situações conflituosas. Tem-se, nesse panorama, um cenário de tensão dentro da instituição total, utilizada como ferramenta de contenção do crime e resposta institucional ao agente que pratica a ação delituosa. Desse modo, a pessoa internada é posta de forma antagonista com os indivíduos que compõe a administração do local e os que se encontram na sociedade (ROSA, 2018)
Em sua sociologia, Goffman, como expõe Rosa (2018), busca entender as ordens sociais específicas não em seus pontos superficiais, mas dispondo as instituições como locais dotados de um sentido sociológico próprio. As instituições totais se tratam de espaços sociais dotados de uma lógica social interna, figurando como estabelecimentos fechados atuantes em regime de internação ou aprisionamento.
Nesse escopo, identifica-se um conjunto de indivíduos que convivem integralmente em um mesmo local, mas que se encontram separados da comunidade social mais ampla - seja por um período ou por toda a vida. Esses locais são formalmente administrados, integram a totalidade de práticas da vida dos sujeitos que estão nesses locais, e as ações das pessoas ocorrem nesse espaço mediante o controle rígido de administradores. As instituições totais implicam uma microfísica do poder pautada por funções de autoridade e de submissão
O modo de controle e apresentação física das instituições totais, pontua Rosa (2018) de modo circular e transparente, implica que um número menor de agentes possa realizar as atividades de vigia de um número elevado de reclusos. Nos reclusos se exerce uma elevada pressão mental, considerando que os reclusos continuam a todo tempo dispostos sobre o olhar daquele que realiza a sua guarda, essa pessoa, por sua vez, observa sem ser percebido. Tem-se que a vigilância é sentida pelos reclusos, ainda que não possua alguém na torre central, visto que somente a força da mera ameaça de existência do local de vigilância, se desdobra em um senso de autovigilância dos internos.
As instituições totais, trata Pestana (2014) são caracterizadas por uma universalidade quanto ao tratamento. Isso significa que se observa a padronização e homogeneização das práticas humanas dos internos que estão em um estado de reclusão direcionado a uma “cura” ou “readaptação” para a vida em coletividade. Nesse sentido, destacam- se os hospitais psiquiátricos e outros espaços que praticam atividades semelhantes às instituições totais. O fundamento das instituições totais está em sua forma de funcionar e no modo como se modela a identidade dos reclusos visando responder às demandas da família, da comunidade social e da equipe administrativa.
Aponta-se que no século XX percebe-se o processo de consolidação e ao mesmo tempo de crise das instituições totais punitivas, tal como os cárceres e os manicômios. Ainda que se consolide uma estrutura punitiva ocidental, as instituições totais, no bojo do século XX, passaram a ganhar elevados questionamentos. Na Europa e nos Estados Unidos da América tem-se a noção de cárcere da modernidade disposta por Foucault associada à revolução industrial, assenta-se o modelo capitalista e o surgimento das sociedades liberais-democráticas, tratam (FAVILLI E AMARANTE, 2018)
A prisão esteve associada a uma ideologia de inclusão das classes sociais mais desfavorecidas. A noção de cárcere na comunidade social, cujo enfoque se encontra na integração de sujeitos tradicionalmente na margem está posto com o direcionamento de disciplinar essas pessoas. Na atualidade, observa-se uma sociedade pautada na exclusão, desse modo, aprofunda-se os sentidos de marginalização da prisão (SANTOS, 2009).
Ressalta-se, como trata Pestana (2014) que as dinâmicas de poder interpostas pelas instituições totais se estendem fora dos muros da instituição, visto que curar e tratar implica em realizar ajustes e modelar o sujeito visto como pessoa doente. Desse modo, as instituições locais são apresentadas como locais de produção de subjetividades, ajustando-as aos moldes da organização social em voga. O que passa nas instituições totais ocorre mediante a assimilação a uma estrutura de serviço especializado e médico interposto por múltiplas técnicas que moldam as subjetividades, assim como práticas de deformação da realidade. Observa-se a prestação de serviços a pessoa é legitimado como essencial ao bem-estar do indivíduo, assim como a incapacidade, seja no grau que for, é disposta como um despreparo para a vida em liberdade, ao qual se demanda a submissão a um tratamento que justificaria a segregação da pessoa dentro das instituições totais.
No momento em que o interno é posto dentro do hospital ou do cárcere, pontuam Favelli e Amarante (2018) passa por um processo de “mortificação do eu” no qual a sua identidade pessoal é suprimida. Ocorre o enfraquecimento da autonomia da pessoa, seguida da ausência de manutenção de suas comodidades materiais, a perda do poder de decidir sobre a sua própria vida, ademais inúmeras práticas atinentes à instituição fechada.
Assim, a pessoa presa vivencia tensões no escopo do "mundo original", por um lado e de outro, o campo do "mundo institucional" mediante o estabelecimento de múltiplas técnicas de adaptação. Santos (2009), em seu livro Manicômios, Prisões e Conventos, dispõe as técnicas utilizadas no internado para a limitação e o enfrentamento de tensões, tal como o "afastamento da situação" em que o sujeito, que não pode manter a confiança nos seus companheiros devido a ausência de lealdade presente na instituição total, expressa uma desatenção e abstenção quanto as mínimas interações (SANTOS, 2009).
Ocorre que a prisão, disposta enquanto uma instituição total encaminhada à proteção da sociedade com relação aos sujeitos vistos como perigosos ao bom andamento da paz social, empreende ações de segregação do sujeito condenado, sem ater-se com seu bem-estar, empenhando-se nas demandas em um único espaço, cujas ações se dão na companhia de múltiplos outros sujeitos, de modo padronizado e mediante a vigilância de somente uma autoridade, reforçando a ausência de identidade do encarcerado. Considerando que o objetivo central do cárcere está em proteger a comunidade social, e não possuindo a preocupação com a pessoa do recluso, observam-se múltiplas ocorrências de conflito e perda do “eu” do interno. Nesse quadro, tem-se a perpetuação do estigma e a perda de dignidade em um constante processo de inferiorização do apenado (ROSA, 2018)
Destaca-se também, como trata Favilli e Amarante (2018) a denominada "tática da intransigência", de viés temporário e típico relacionado com a fase inicial da internação. Nesse panorama, o paciente ou encarcerado de forma intencional rebate o espaço e as normas da instituição visto que se nega a práticas de cooperação. Tem-se, ainda, a ocorrência de "colonização", que é importante na redução das tensões nos mundos externo e interno da instituição, assim, enfoca-se a vida institucional enquanto algo desejável em vista das más experiências presentes no mundo externo. Sequencialmente, tem-se o momento da "conversão" no qual se estabelece um elevado entusiasmo pela instituição, nesse período o internado aceita a interpretação oficial e busca representar a função do internado em sua perfeição; até o momento de “imunização” onde se dá a naturalização da instituição total na vida do indivíduo.
Considerando tais disposições, a próxima seção analisa as contribuições do movimento antimanicomial no Brasil com ênfase na disposição dos asilos e dos manicômios como instituições totais no qual os indivíduos vistos como loucos eram isolados e apartados da vida social, assim como submetidos a situações de perda de dignidade.
2.2 As Contribuições do Movimento Antimanicomial no Brasil
O modelo manicomial tem origem no final do século XVIII, pautando o isolamento da pessoa como um dos seus fundamentos. Tal modelo está pautado no ato de afastar a pessoa tida como louca da convivência social, isolando-a da cidade, do trabalho, do lazer, da família, da cultura e da vida social. Inaugura-se o primeiro asilo de alienados mentais no ano de 1793, dispondo um novo campo da medicina denominado de medicina mental ou alienismo (AMARENTE E TORRES, 2016)
A proposta principal está no “isolamento terapêutico”, base da tecnologia pineliana cujo enfoque se encontrava na cura da alienação mental. Desse período, advém a noção de que a loucura possui como lugar de destaque o hospício, dispondo a reclusão como detentora da função de resguardar a sociedade do sujeito tido como um louco. Fixa-se um duplo processo de isolamento baseado no desenvolvimento dos conhecimentos da medicina mental, que tem como efeito a consolidação da clínica psiquiátrica, e que aporta também as instituições manicomiais baseadas na máxima do isolamento para o conhecimento e no isolamento direcionado para o tratamento (SANTOS, 2009).
A loucura, pontua Pires e Resende (2016), está disposta e analisada de acordo com os momentos sociais, as situações políticas e os contextos culturais da humanidade. A loucura, em muitos momentos, pode ser apresentada em associação com os deuses ou como um castigo divino. A exclusão das pessoas consideradas loucas da esfera do meio social considera o surgimento de um local que acolhe essas pessoas.
Desse modo, surgem os asilos com inúmeros pacientes que aglomerados nesses locais no decurso do tempo e cujas vidas estão adstritas a práticas de acorrentamento, da submissão a tratamentos de tortura, como os banhos gelados e choque eletricos, uma vida eternizada em meio à tortura e à sua dignidade usurpada. No bojo do século XIX, observa-se a troca das correntes como meio de aprisionamento, para a utilização da camisa de força. Assim, a psiquiatria se dinamiza mediante um discurso médico-terapêutico-moral e nesse período permite uma rápida massificação dos asilos (SANTOS, 2009).
O fundamento do isolamento, mediante as estipulações da medicina mental ou alienismo, estão pautadas por um duplo caminho, a influência direta do método da botânica, como apresentado por Pinel, e mediante o uso de uma linguagem classificatória, de viés nosográfico, com a presença de tipologias diagnósticas. Na esfera da linguagem classificatória, disposta no campo da medicina e da psiquiatria, observa-se a doença e a doença mental com a interpretação da experiência de sofrimento e adoecimento dentro dos discursos médico e psiquiátrico modernos (AMARANTE E TORRES, 2018)
Nesse viés, tratam Amarante e Torres (2018) se estabelece o conceito de clínica médica e de clínica psiquiátrica considerando os discursos de verdade científica da modernidade, a questão do isolamento da doença e a observação do ambiente hospitalar. Ocorre que o princípio do isolamento da loucura se faz presente com a noção de que o isolamento é uma necessidade para a observação da ciência, com vistas a experimentação e a comprovação científica. Desse modo, tem-se o desdobramento do modelo de racionalidade científica no campo das ciências naturais, dispondo as questões de modelo do laboratório, do controle experimental, da produção da prova mediante a previsibilidade e reprodutibilidade.
Ressalta-se a concepção da pessoa tida como louca no decurso da história. Essa representação é diversa e alcança até o período da Grécia Antiga, no qual os loucos eram interpretados como enviados dos deuses no Olimpo, e a sua identificação era fundamental para o entendimento das proposições dos deuses. No começo da Idade Média, os loucos eram expressos como a exteriorização das forças oriundas da natureza e assim eram exaltados (PIRES E RESENDE, 2016)
No final da Idade Média, a loucura é posta em consideração com um viés negativo, de modo que os portadores de doenças mentais eram afastados de forma forçosa da comunidade social, relegados ao mesmo espaço que criminosos, e em conjunto com os indivíduos considerados libertinos, homossexuais, leprosos, sifilíticos e os que de algum modo atrapalhavam a ordem social. Nesse período, existia a demanda de impor uma disciplina e uma moral nos corpos, submetendo os sujeitos vistos como desviantes (PIRES E RESENDE, 2016)
Amarante e Torre (2018) em vista dessas considerações, apontam que, nas últimas décadas, o movimento por reforma psiquiátrica no Brasil se encontra no centro das políticas de saúde mental e de inclusão da diferença. Consolida-se um dos movimentos centrais em prol dos direitos humanos no Brasil, com enfoque nas mudanças atinentes ao tratamento e ao cuidado da loucura e nos modos de integração social e política das pessoas em sofrimento mental. Pontua-se que as inovações atinentes a reforma psiquiátrica, mediante os critérios de integração social da loucura e da diferença, inclusive nas esferas do direito ao trabalho, do direito à cultura e do direito à cidade, têm se destacado e rompem com a delimitação histórica do louco perpetrada pelas instituições e pelas práticas manicomiais.
No começo da década de 1960, colocam Pires e Resende (2016) as práticas engendradas por Franco Basaglia contribuem para transformar o Hospício de Gorizia, na Itália, e promover ações que se estendem a partir desse exemplo. Nesse sentido, observa-se a promoção de tratamento médico digno aos pacientes desde um viés humanizado e considerando a abertura desses espaços para a comunidade. A influência dessas práticas se perpetua de modo que no ano de 1978 é promulgada a Lei nº 180, no qual fixam-se modificações quanto a condição do paciente, dispondo-o como um cidadão dotado de pleno direito.
As suas proposições inovadoras quanto ao tratamento da saúde mental foram centrais para as ações nesse sentido, no Brasil. Assim, juridicamente, as práticas similares são encabeçadas pelo deputado Paulo Delgado que pauta o Movimento pela Luta Antimanicomial no meio legislativo. De fato, o Movimento da Luta Antimanicomial começa no país ao fim da década de 1970, dispondo a luta pelos direitos das pessoas com doenças mentais, expondo o debate acerca da delimitação entre o que é considerado normalidade e o que é visto como uma doença, um elemento de loucura e sanidade. Assim, se estabelece um conjunto de serviços extra-hospitalares fixados a partir da década de 1990 (SANTOS, 2009).
Assim, Barbosa, Costa e Moreno (2012) apontam que o movimento da luta antimanicomial está perpetrado por esforços em torno dos direitos dos usuários e dos familiares. Busca-se consolidar a atenção dos serviços de saúde com dignidade, mediante práticas profícuas e que considerem a integração da criatividade e do esforço por modificar o imaginário social acerca da loucura. Ocorre que a realidade experimentada pelos portadores de transtorno mental, somado ao seu não reconhecimento, está estruturada com frágeis relações afetivas. Tem-se um cenário de negação de direitos e o estabelecimento de laços frágeis de solidariedade e um forte estigma social.
Diante dessas proposições a próxima seção aprofunda a Lei Antimanicomial, os seus contributos jurídicos e o tratamento penal da loucura considerando a noção de periculosidade e a fixação das medidas de segurança no ordenamento nacional.
2.3 A Lei Antimanicomial e o Tratamento Penal da Loucura
A Constituição de 1988 permitiu reinaugurar o período democrático no país, consolidando o Estado Democrático de Direito e a defesa do princípio da dignidade humana. Nesse viés, o escopo do direito penal passa a pautar que nenhuma pena irá além da pessoa do condenado, considerando o pressuposto da culpabilidade enquanto uma condição fundamental para a integração da sanção penal (CAETANO E TEDESCO, 2021)
Desse modo, as medidas de segurança, figuradas no Código Penal de 1940 e asseguradas na reforma de 1984 se baseiam em uma periculosidade identificada na pessoa tida como louco e se estabelecem enquanto sanções penais destituídas de suporte em vista do pressuposto da culpabilidade. Com a Lei nº 10.216/2001, denominada como Lei Antimanicomial, tem-se a regulação da atenção em saúde mental no considerando a função da internação psiquiátrica enquanto um dispositivo terapêutico. Desse modo, a internação deve seguir os direitos do cidadão e considerar o efetivo tratamento na integração da família, do trabalho e da comunidade (CAETANO E TEDESCO, 2021)
Na relação do direito, a noção de periculosidade pontua os seus fundamentos nas premissas da Escola Positiva e da Criminologia, com ênfase nos contributos de Garófalo e na temibilidade social acerca de uma perversidade sempre presente do delinquente. As contribuições da Escola Positiva e a apresentação do criminoso enquanto um ser naturalmente desviante que se coloca ante o binômio perigo e defesa social, desdobra-se na teoria da periculosidade (TEIXEIRA E PRADO, 2015).
O conceito de periculosidade está disposto no direito penal, a princípio, como um componente passível de avaliação no sujeito, seja ou não portador de uma perturbação mental. Ocorre que ser perigoso se trata de uma condição que somente pode ser disposta mediante o estabelecimento de múltiplas questões, como disposições físicas e psíquicas que integram a personalidade do agente; o fato delituoso; a questão dos antecedentes; as múltiplas condições do ambiente social e familiar (SANTOS, 2009).
Dentro dos contributos da legislação penal e processual penal observa-se uma apresentação da loucura e um modo específico de atuar em relação a esse conceito. Dentro da legislação sanitária se encontra também determinados conceitos de viés ideológico acerca da loucura. Desse modo, é nas disposições históricas e filosóficas da loucura, destacam-se essas concepções e reações de acordo com os contextos ideológicos no qual se produzem. Desde as contribuições do direito, é possível dispor uma visão crítico acerca da loucura, considerando o modo como as sociedades respondem a esse fenômeno, visando a sua interpretação e aplicação, ademais as adequações aos princípios humanistas dispostos na Constituição, mesmo que nem sempre se releve a gestão jurídica da insanidade e prática do tema na atuação dos operadores do direito (JACOBINA, 2004).
Não existe modificação da legislação penal quanto às medidas de segurança do período pré-ordenado constitucional para o período pós-1988. Entende-se que o país passa a viver questões distintas nesse campo, dispondo sistemas diferentes e até mesmo antagônicos. Tem-se o sistema do manicômio judiciário, pautado pela legislação penal; e em outra esfera, observa-se a experiência antimanicomial disposta desde 2006 no estado de Goiás como Paili, o Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator, disposto na Lei nº 10.216/2001. Todavia, não se utiliza totalmente a internação manicomial. Registra-se também a figuração de outras ações antimanicomiais pelo Brasil, de viés misto com a presença de políticas antimanicomiais que se integram com o HCTP (CAETANO E TEDESCO, 2021)
Teixeira e Prado (2015) colocam que a medida de segurança, na atualidade, está disposta na legislação como um elemento encaminhado ao portador de transtorno mental que, no período do crime, era completamente incapaz de compreender a ilicitude de sua ação ou determiná-la. A medida de segurança também serve aos semi-imputáveis, indivíduos cuja capacidade de discernimento está prejudicada, assim, o magistrado pode aplicar uma pena reduzida de 1/3 a 2/3 ou uma medida de segurança, de acordo com o art. 26, § único do Código Penal.
Entende-se que não é possível acumular dois institutos, ou seja, aplicar a pena e a medida de segurança visto a força do sistema vicariante, presente no ordenamento nacional. A aplicação da medida de segurança demanda a presença de alguns pressupostos como a presença de um injusto penal, no qual o Estado não pode empreender o seu jus puniendi; a disposição de um cenário de inimputabilidade assentada por laudo médico; e a presença da periculosidade, disposta em um juízo de probabilidade considerando que o agente pode voltar a cometer um ato danoso, demanda-se, assim, a realização de perícia por um psiquiatra (TEIXEIRA E PRADO, 2015).
A Lei 10.216/2001 se trata de uma norma infraconstitucional, condizente com o Decreto 186/2008, no qual se aprova a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, disposto em Nova Iorque, na data de 30 de março de 2007, assim como o Decreto 6.949/2009, que integra o conteúdo dessa convenção. Os desdobramentos dessa convenção internacional estabelecem, devido ao art. 5º, §3º, da Carta da República, a natureza jurídica de emenda constitucional, de modo que é superior à matéria em vigor no Código Penal e na Lei de Execução Penal. A Lei 10.216/2001 provoca a releitura da resposta no campo do direito penal ao indivíduo considerado louco infrator em vista da política antimanicomial (REIS JUNIOR, 2020).
Conforme as exposições do Código Penal, trata Reis Junior (2020) as medidas de segurança se apresentam como sanções integradas àqueles que praticam um crime, mas que não possuem a responsabilidade penal por não possuir, na ocasião do ato, a capacidade de reconhecimento do viés delituoso, ou pela diminuição da capacidade de entendimento do ilícito considerando a presença de um transtorno mental (CAETANO E TEDESCO, 2021). A Lei 10.216/2001 está em consonância com o art. 5º, inciso XLVII, da Carta Magna, no qual está proibida a pena perpétua. Assevera-se também a criação de uma equipe multidisciplinar, a montagem de um programa personalizado direcionada aos doentes mentais implicados na lei penal, dispondo ao Ministério Público a verificação da legalidade das internações.
A submissão do agente inimputável ou semi-imputável à medida de segurança, implica que o magistrado deve priorizar o tratamento ambulatorial, dispondo a internação na hipótese em que os recursos extra-hospitalares forem insuficientes. No caso em que existe a indicação de internação, a mesma deve seguir as disposições da Lei da Reforma Psiquiátrica, com a obrigatoriedade de laudo médico circunstanciado (SILVA, 2010).
Nesse panorama, tratam Caetano e Tedesco (2021) o espaço do louco deixa de ser o lugar do manicômio para figurar como a vida em comunidade social. Desse modo, garante-se a assistência à saúde mental e figuram componentes substitutivos que fundamentam a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), disposta pela Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro/201112, e pela Portaria de Consolidação nº 3, de 28 de setembro/2017 do Ministério da Saúde, assentando a atenção psicossocial à pessoa.
De acodo com Caetano e Tedesco (2021), os manicômios judiciários funcionam igualmente a uma prisão qualquer, com cenas de presos perambulando sobre o pátio, sem atividades e bastante medicados.
Por fim, é importante deixar claro a diferença dos classificados como imputáveis, ou seja, esses são capazes de responsabilização sobre um crime cometido. O contrário é válido para o inimputável, ou seja, não distingue o que é ilicitude de conduta por problemas mentais, etc. Já a semi-imputabilidade é a perda parcial da conduta ilícita compreensiva, do discernimento do que é ilícito, reduzindo a imputabilidade (ROSA, 2018).
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo compreendeu os aportes jurídicos ofertados na atualidade e no decurso da história acerca da pessoa tida como louca. Verificou-se que em vários modelos de sociedade, a pessoa portadora de transtornos mentais foi isolada, tratada com crueldade e submetida aos métodos das instituições totais, onde o indivíduo é desumanizado e destituído de dignidade.
Todavia, enfatizou-se os contributos constitucionais sobre a proteção humana com ênfase na Lei Antimanicomial no qual se dá a aplicação das medidas de segurança como forma de proteção social, inibição do crime e resposta institucional humana ao agente. Ademais, verificou-se como a internação já não é mais possível nos moldes com o qual era praticada, necessitando um laudo médico e a verificação de que a instituição é apta a recepcionar a pessoa com dignidade.
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TEIXEIRA, Yáskara de Magalhães; PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas. Crime e doença mental: uma análise sobre a relação entre saúde pública e direito penal na tutela dos portadores de transtornos mentais. Direito Humanos, ética e dignidade, 2015.
Graduando em Direito-Centro Universitário de Santa Fé do Sul/UNIFUNEC
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PRADO, JOÃO GUILHERME TOME. Aportes acerca da lei antimanicomial e o tratamento penal da loucura Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 ago 2022, 04:19. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59004/aportes-acerca-da-lei-antimanicomial-e-o-tratamento-penal-da-loucura. Acesso em: 23 dez 2024.
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