KATIA GOMES DA SILVA[1]
LUCAS FERNANDES DE MORAIS VIDOVIX[2]
(coautores)
RESUMO: No presente artigo, discutiu-se o Direito das obrigações concernentes às relações jurídicas de dar coisa certa. Preliminarmente, realizou-se um estudo amplo sobre a evolução das obrigações civis desde os tempos primitivos, de modo a permitir o entendimento de suas origens e a sua interferência no campo social. Posteriormente, descreveram-se as principais hipóteses de obrigações de dar coisa certa, definindo os seus institutos e explicando os pontos alusivos ao domínio da coisa e à boa-fé de cada agente da relação obrigacional. Como metodologia para a extração de informações e desenvolvimento deste trabalho, adotou-se uma pesquisa analítica e exploratória de Doutrinas conceituadas e do próprio ordenamento jurídico-constitucional da República Federativa do Brasil.
Palavras-chave: Direito Civil. Obrigação de dar coisa certa. Perdas e Danos. Melhoramentos e Acréscimos.
ABSTRACT: In this article, the law of obligations concerning the legal relationships of giving certain things was discussed. Preliminarily, a broad study was carried out on the evolution of civil obligations since primitive times, in order to allow an understanding of their origins and their interference in the social field. Subsequently, the main hypotheses of obligations to give the certain thing were described, defining their institutes and explaining the points alluding to the domain of the thing and the good faith of each agent of the obligation relationship. As a methodology for extracting information and developing this work, the analytical and exploratory research of conceptualized Doctrines and legal and constitutional norms of the Federative Republic of Brazil was adopted.
Keywords: Civil norms. Obligation to do the certain thing. Losses and damages. Improvements and additions.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Obrigações. 3. Obrigação de dar coisa certa quando envolve perecimento do bem. 4. Perda quando há culpa ou não. 5. Obrigação de dar coisa certa quando ocorre deterioração do bem. 6. Melhoramento do bem: quando há boa-fé ou não. 7. Obrigação de restituir quando envolve deterioração e perda do bem. 8. Considerações finais. 9. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Desde os tempos remotos, os seres humanos viviam de forma nômade, procurando áreas que fornecessem os recursos produtivos para a sua subsistência. Sendo assim, se a região indicasse um sinal de esgotamento de seus recursos, transferiam-se para uma área adjacente que satisfizesse as suas pretensões vitais.
Contudo, à medida que vai compreendendo o ciclo do recurso naturais e as dificuldades de locomoção de indivíduos e de transporte de objetos acumulados ao longo de sua existência, o ser humano percebeu que se tornava essencial a sua fixação em uma determinada região. Vale notar que, com a sua fixação à terra, foi possível explorá-la eficientemente mediante técnicas rudimentares cada vez mais eficientes em termos produtivos.
Nesse diapasão, pode-se considerar que, nos tempos iniciais de sua existência, o ser humano era limitado no que se refere ao consumo de produtos. Isso porque o seu consumo era baseado naquilo que era decorrente de sua produção ou de atividades extrativistas animais, minerais e vegetais.
Ao logo do tempo, ao viver em grupos sociais, o ser humano percebeu que era necessário realizar permutas de coisas e bens entre os seus semelhantes com vistas à melhoria da qualidade de vida de todo o grupo social. Nesse momento, surge a moeda como elemento simbólico de unidade de valor e se iniciam contratos de compras e vendas de bens e coisas, entre outros instrumentos facilitadores da vida em coletividade.
Importa destacar que tais contratos estabelecidos entre os indivíduos representam, atualmente, negócios jurídicos de extrema relevância para a realização das relações obrigacionais jurídicas.
Ademais, consigne-se que as relações obrigacionais estipuladas em contratos visam ao seu total adimplemento. Entretanto, por razões ou circunstâncias alienígenas ou diversas, a prestação obrigacional pode não ser efetivada na forma originária proposta pelas partes contraentes ou participantes do negócio jurídico ou mesmo torna-se impossível o seu adimplemento.
Nessa linha, objetivando o entendimento de alguns pontos referentes ao adimplemento e ao inadimplemento contratual na relação jurídica obrigacional, no artigo em apreço, serão abordadas as obrigações de dar coisa certa com os seus principais desdobramentos relativamente as suas partes, credor e devedor.
2. OBRIGAÇÕES
As obrigações podem ser conceituadas como relações de natureza econômica que se formam entre as figuras do devedor e do credor. Para que surja uma obrigação, é necessária a existência de um fato jurídico anterior.
Enquanto os direitos reais são absolutos, por possuírem natureza erga omnes, os obrigacionais são relativos e impõem-se apenas a determinadas pessoas. Outra característica dos direitos obrigacionais é a transitoriedade, que tende a acabar com o cumprimento da obrigação. Sublinhe-se que não importa a duração da obrigação, é possível que ela seja longa ou curta, mas não eterna.
Em suma, a obrigação é um vínculo jurídico transitório, que obriga uma pessoa a cumprir uma prestação econômica em proveito de outra. Perceba que o ponto central aqui é o vínculo jurídico e, para que seja relevante à obrigação, esse deve interessar ao Direito. Assim, um vínculo de caráter pessoal ou moral não é suficiente para efeitos obrigacionais jurídicos.
Enquanto os Direitos Reais são perpétuos, os Direitos obrigacionais são temporários.
Deve-se entender por prestação o objeto da obrigação, podendo referir-se a uma ação ou omissão. A obrigação sempre será de fazer, não fazer ou dar algo.
É necessário que a obrigação tenha uma correspondência econômica, com valor definido, para que possa ser possível a responsabilização patrimonial da parte inadimplente, na eventualidade de que esta não cumpra a referida obrigação.
Esse valor econômico correspondente da obrigação é o que permite ao credor executar seu devedor, buscando satisfazer, via judicial, a obrigação do credor de dar, fazer ou não fazer algo. No caso das obrigações de dar e de fazer, elas são chamadas de obrigações positivas, enquanto as obrigações de não fazer são chamadas de obrigações negativas.
O autor Pereira (2017) definiu a obrigação como sendo um vínculo jurídico em virtude do qual uma pessoa (sujeito ativo) pode exigir de outra (sujeito passivo) uma prestação economicamente apreciável.
Desse conceito, listam-se dois tipos de elementos. O primeiro se refere aos elementos subjetivos, que são as pessoas, a que pode exigir (credor) e a de quem pode-se exigir (devedor), caracterizando-se, respectivamente, o sujeito ativo e o sujeito passivo. Já o segundo tipo de elemento objetivo consiste na prestação, que deve ser de natureza patrimonial, salientando o seu caráter de patrimonialidade (valoração econômica).
Em outras palavras, a obrigação pode ser entendida como a relação jurídica de caráter transitório estabelecido entre um devedor e um credor, cujo objeto é uma prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo, que lhe garante o adimplemento por seu patrimônio.
Ademais, temos que a obrigação é oriunda de uma determinada fonte. Nesse momento, faz-se mister adentrar-se à temática das fontes do Direito para um entendimento mais preciso do Direito obrigacionais.
As fontes do Direito correspondem aos meios por meio dos quais são estabelecidas ou formadas as normas jurídicas, sendo consideradas “instâncias de manifestação normativa”. Nesse compasso, os referidos autores exemplificam como fontes do Direito “a lei, o costume (fontes diretas), a analogia, a jurisprudência, os princípios gerais do direito, a doutrina e a equidade (fontes indiretas)” (GAGLIANO; FILHO, 2017, p. 221).
Curial observar que os as normas jurídicas e as prestações obrigacionais incidem sobre um fato jurídico específico, que consiste em um acontecimento natural ou humano determinante para o surgimento de vínculo jurídico-obrigacional entre o credor e o devedor.
Importa denotar que a lei é a principal fonte de qualquer obrigação, sendo classificada, assim, como fonte imediata no campo jurídico. Entretanto, conforme Gagliano e Filho (2017), existirá entre as normas jurídicas e os seus efeitos obrigacionais in concreto uma situação de fato, considerada pela Doutrina majoritária como fonte mediata.
Nesse sentido, torna-se necessário delinear algumas considerações sobre as fontes mediatas das obrigações. De acordo com Gagliano e Filho (2017, p. 222), elas se classificam em:
“a) os atos jurídicos negociais (o contrato, o testamento, as declarações unilaterais de vontade);
b) os atos jurídicos não negociais (o ato jurídico stricto sensu, os fatos materiais — como a situação fática de vizinhança etc.);
c) os atos ilícitos (no que se incluem o abuso de direito e o enriquecimento ilícito).”
Considerando a sua importância prática, o contrato é considerado a fonte negocial com maior relevância no Direito Obrigacional.
Note-se, também, que os negócios de natureza unilateral, caracterizados pela manifestação de uma só vontade na concretização do ato jurídico, onde se inserem o testamento e a promessa de recompensa, são fontes de obrigações.
Gagliano e Filho (2017) citam que os atos jurídicos não negociais podem gerar efeitos obrigacionais perante terceiros mediante um simples comportamento humano como aquele em casos envolvendo questões atinentes a vizinhança, por exemplo.
Já o ato ilícito que consiste no “comportamento humano voluntário, contrário ao direito, e causador de prejuízo de ordem material ou moral” (GAGLIANO; FILHO, 2017, p. 223). Assim sendo, o agente causador do prejuízo material ou não se vinculará pessoalmente à vítima, até que a obrigação de indenização seja cumprida.
No estudo do ato ilícito, relevante consignar o abuso de direito como elemento- fonte das obrigações. O Código Civil, de 2002, o destacou em seu artigo 187, in verbis: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Os autores Gagliano e Filho (2017, p. 185) interpreta o referido artigo, ipsis litteris:
Analisando este artigo, conclui-se não ser imprescindível, para o reconhecimento da teoria do abuso de direito, que o agente tenha a intenção de prejudicar terceiro, bastando, segundo a dicção legal, que exceda manifestamente os limites impostos pela finalidade econômica ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Portanto, existindo abuso de direito, o agente que gerou o dano deve indenizar a pessoa prejudicada. Por exemplo, quando um contratante nega injustificadamente a contratação de um indivíduo após este efetivar gastos com o negócio jurídico, há a geração de abuso de direito, situação na qual o causador do dano tem a obrigação de indenizar o prejudicado.
O enriquecimento ilícito ou sem justa causa, considerado pela Doutrina como um acréscimo no patrimônio de um indivíduo em detrimento de outrem sem fundamento jurídico, é uma fonte de obrigações jurídicas. Isso porque tal enriquecimento é uma vedação expressa do Código Civil, conforme o seu art. 884 e seguintes.
3. OBRIGAÇÃO DE DAR COISA CERTA QUANDO ENVOLVE PERECIMENTO DO BEM
Como já evidenciado, coisa certa é aquela que se distingue das demais pelo fato de possuir características próprias, sendo individualizada e podendo ser móvel ou imóvel. Conforme Tartuce (2016), tais características são balizadas em um instrumento negocial. Por exemplo, nos contratos de compra e venda, o devedor da obrigação jurídica corresponde ao vendedor e o credor é o comprador.
Frise-se que, em uma relação jurídica que envolva um objeto certo, não pode o devedor entregar ao credor coisa diversa daquela que foi pactuada, ainda que mais valiosa, conforme preceituado no art. 313 do Código Civil. O devedor se vincula aos termos da obrigação, portanto.
Sobre a temática em apreço, Gonçalves (2012) assevera que, na obrigação de dar coisa certa, o devedor se obriga a entregar ou restituir a coisa exatamente igual e está forçado a cumpri-la conforme combinado. Dessa maneira, o devedor da coisa certa não pode dar outra coisa, ainda que mais valiosa, nem o credor é obrigado a recebê-la.
Portanto, a entrega de coisa diversa implica quebra obrigacional, o que só poderá ser realizado com a plena concordância entre as partes (credor e devedor). No entanto, até que se ocorra a sua efetiva entrega (tradição), o bem poderá sofrer perda, a qual pode ser total, situação que se denomina de perecimento, ou parcial, também classificada como deterioração.
Relevante citar que o art. 233 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, denominado de Código Civil, prescreve que “a obrigação de dar coisa certa abrange os acessórios dela embora não mencionados, salvo se o contrário resultar do título ou das circunstâncias do caso”. Consoante o entendimento de Nader (2016), o princípio de que o acessório segue a coisa principal pode ser aplicado às obrigações de dar coisa certa, mesmo que o contrato seja silente nesse compasso.
Não se deve olvidar que, caso as partes não façam menção ao acessório, este será entregue com o objeto principal. Caso não se queira incluir tal objeto no negócio jurídico, tornar-se-á imprescindível a elaboração de uma cláusula contratual específica ou que a sua exclusão seja interpretada com facilidade por intermédio das circunstâncias fáticas.
Por conseguinte, ao adimplir a obrigação, o devedor tem o dever de entregar a coisa certa acompanhada de todos os acessórios que participam de sua composição, visando à sua utilização plena no campo econômico-social.
Em outro giro, para Nader (2016), as pertenças, caracterizadas por bens móveis inconsumíveis e acessórios, assim como os frutos, os produtos, os rendimentos e as benfeitorias devem acompanhar o bem principal. Quanto às partes integrantes, merecem destaque apenas as não essenciais, únicas acessórias, pois as essenciais já fazem parte da coisa. Note-se que a relação jurídica vinculada a um objeto prestacional não se modifica caso o seu acessório, temporariamente, estiver separado da coisa principal.
4. PERDA QUANDO HÁ CULPA OU NÃO
O art. 234 do Código Civil preconiza que, se “a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradição, ou pendente a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas às partes”. Para melhor entendimento do texto normativo, analise-se o seguinte exemplo. Uma motocicleta deveria ser entregue em uma obrigação contratual, entretanto, antes de sua tradição, um muro desmorona sobre ela, deixando-a totalmente destruída, ou, então, ela é roubada ou furtada, havendo perda total. No entanto, se verificado que após o desabamento do muro somente uma pequena parte dele atingiu o veículo, causando a quebra de algumas peças apenas, há o caso de deterioração.
Nesses casos, cumpre observar se a perda total ou parcial da coisa se deu em razão de culpa ou não do devedor, uma vez que o Código Civil dispõe de soluções variadas para resolver as várias hipóteses que possam vir a ocorrer com o bem.
Infere-se, com base no supracitado artigo, que, ocorrendo um evento danoso sem culpa do devedor antes da tradição da coisa, a sua perda é na totalidade do devedor, uma vez que ele continua, de fato, sendo o proprietário da coisa até a sua efetiva transferência ao credor, que encontra fulcro no art. 492 do Código Civil, in verbis: “até o momento da tradição, os riscos da coisa correm por conta do vendedor, e os do preço por conta do comprador”.
Dessa forma, o devedor que tem a obrigação de entregar coisa certa precisa ter o máximo de cuidado e atenção para que essa coisa não se deteriore ou pereça. No entanto, se porventura o devedor tem em sua posse um automóvel e esse é destruído por um incêndio ou então é roubado, implica dizer que a culpa não é do devedor, mas sim decorrente de caso fortuito. Nesse sentido, a obrigação se extingue para ambas as partes. Contudo, o vendedor que recebeu a quantia estipulada de forma antecipada deve, imediatamente, devolvê-la, arcando com o prejuízo devido ao perecimento do bem. Destaque-se que, nas circunstâncias relatadas, ele não será obrigado a indenizar o comprador em perdas e danos.
Importa mencionar que, se a coisa se perdeu no decorrer de condição suspensiva como, por exemplo, aprovação em vestibular, emagrecer tantos quilos ou passar em um concurso etc., o direito de transferência da propriedade da coisa certa não se efetivará e o devedor arcará com o risco da coisa.
Por outro lado, perecendo a coisa por culpa do devedor, a solução a ser adotada será diferente, visto que, devido à culpa em seu inadimplemento, forma-se para o devedor obrigação do pagamento de perdas e danos, caso existam. Diante dessa situação, o credor possui, por conseguinte, direito adquirido de receber o seu equivalente em dinheiro, não sendo obrigado a receber outro objeto parecido, além de eventuais perdas e danos.
Saliente-se que, em conformidade com o art. 402 do Código Civil, as perdas e danos englobam o lucro emergente e o lucro cessante. Nesse ponto, o credor pode recuperar o lucro que, de imediato, perdeu, além daquele que ainda perceberia e, em virtude do fato, deixou de auferir.
5. OBRIGAÇÃO DE DAR COISA CERTA QUANDO OCORRE DETERIORAÇÃO DO BEM
Inicialmente, pertinente conceituar deterioração em situações envolvendo coisa certa. Ela se caracteriza por uma redução, a qualquer nível, da funcionalidade ou do valor agregado de uma coisa ou bem, de modo que ela ainda exista, mas tenha um valor reduzido no mercado. A deterioração é, destarte, uma danificação do bem, sem tirar seu valor pleno. Pode ocorrer com culpa ou sem culpa do devedor.
No caso de deterioração da coisa, aplicam-se os arts. 235 e 236 do Código Civil, textualmente:
Art. 235. Deteriorada a coisa, não sendo o devedor culpado, poderá o credor resolver a obrigação, ou aceitar a coisa, abatido de seu preço o valor que perdeu.
Art. 236. Sendo culpado o devedor, poderá o credor exigir o equivalente, ou aceitar a coisa no estado em que se acha, com direito a reclamar, em um ou em outro caso, indenização das perdas e danos (BRASIL, 2002, online).
Se a coisa, sem culpa do devedor, se deteriorar (periculum deteriorationis), vindo a sofrer diminuição de seu valor ou degradação física, caberá, nesse caso, ao credor escolher se considera extinta a relação obrigacional, voltando as partes ao statu quo ante, ou se aceita o bem no estado em que se encontra, abatido de seu preço o valor do estrago (DINIZ, 2019).
Assim, deteriorada a coisa na obrigação de dar coisa certa sem culpa do devedor, existem duas opções: desfaz o negócio jurídico ou aceita o objeto no estado em que se encontra com abatimento no preço.
Deteriorando-se o objeto por culpa do devedor, poderá o credor exigir o equivalente (valor da coisa em dinheiro) ou aceitar a coisa no estado em que se achar, com direito de reclamar, em um ou em outro caso, indenização das perdas e danos (DINIZ, 2019), já que a deterioração ocorreu por culpa do devedor.
6. MELHORAMENTO DO BEM: QUANDO HÁ BOA-FÉ OU NÃO
No que concerne às obrigações de dar coisa certa que sofreu alguma alteração positiva em sua qualidade ou quantidade, deve-se exteriorizar, preliminarmente, algumas considerações.
Conforme Nader (2016), no ordenamento jurídico-constitucional do Brasil, a transferência de propriedade de uma coisa se efetiva com a tradição. Não se operando esta, a coisa, juntamente a seus acessórios, pertence ao patrimônio do devedor, embora haja celebração de contrato objetivando a entrega da coisa.
Explicite-se que, conforme explanado por Gonçalves (2017), o contrato, por si só, não transfere o domínio da coisa objeto da prestação jurídica. Ele apenas gera a expectativa de entregar a coisa alienada. Assim, enquanto não se realizar a tradição da coisa, isto é, a sua entrega definitiva na obrigação de entregar, a coisa pertence ao devedor. Caso aconteçam melhoramentos ou acréscimos sobre a coisa, o devedor poderá exigir aumento proporcional em seu preço. Se o credor não aceitar tal proposta, poderá o devedor resolver ou extinguir a relação obrigacional, retornando ambas as partes ao status quo ante em que estavam inseridas.
Em consonância com o entendimento de Nader (2016), tal critério demonstra-se justo. Isso porque, ocorrendo perda, total ou parcial, da coisa, os seus prejuízos incidem sobre o patrimônio do devedor, buscando evitar que esse se enriqueça ilicitamente. Em relação aos melhoramentos e acréscimos à coisa, a legislação cogente autoriza o devedor a exigir do credor o aumento no preço, conforme delineado anteriormente.
Denote-se que, em consonância com o lecionado por Mello (2017), na obrigação de dar coisa certa, o objeto da prestação consiste em uma coisa certa e determinada, dotada, portanto, de individualidade. Nessa toada, o devedor é obrigado a entregar a coisa certa estipulada no instrumento contratual ao credor, não podendo esse ser compelido a receber outra coisa, ainda que mais valiosa. Ademais, o artigo 313 do Código Civil preconiza que “o credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa”.
Tal diretriz está consubstanciada no art. 237 do Código Civil, ipsis litteris: “até a tradição pertence ao devedor a coisa, com os seus melhoramentos e acrescidos, pelos quais poderá exigir aumento no preço; se o credor não anuir, poderá o devedor resolver a obrigação”, uma vez que o dispositivo é inequívoco ao descrever que se atribui ao patrimônio do devedor os melhoramentos e acrescidos que possam recair sobre a coisa antes da tradição.
Para o entendimento preciso dos termos previstos na legislação brasileira, Gonçalves (2017) evidencia a conceituação dos termos a seguir. Para o autor, melhoramento designa tudo que indique mudança para melhor da coisa em seus quesitos de valor, utilidade, comodidade, condição e estado físico. Já acrescido é tudo que se ajunta a uma coisa, considerada principal, ou, em outras palavras, tudo que se acrescenta à coisa, aumentando-a em quantidade. Importante também é elucidar o termo frutos, conceituado pelo referido autor como elemento acessório periodicamente produzido pela coisa, o qual nasce e renasce da coisa, sem acarretar-lhe a destruição total ou parcial, como é o caso das frutas das árvores, cereais, as crias dos seres vivos etc.
No que tange a melhoramentos em coisas, Nader (2016) expõe alguns pontos que merecem ser listados nessa pesquisa. Para o autor, o termo deve ser interpretado restritivamente, visto que, após o negócio jurídico e antes da tradição, o devedor poderia executar benfeitorias voluptuárias, voltadas ao embelezamento ou a mero deleite, entre outras modificações, objetivando somente cobrá-las posteriormente.
Para a Doutrina majoritária, melhoramentos ou acréscimos devem ser resultantes de fatos naturais, como é o caso dos eventos de acessões dispostos no artigo 1.248 do Código Civil, ou de iniciativa de terceiros, além de englobarem as benfeitorias necessárias e úteis produzidas artificialmente pelo ser humano com o fito de conservar ou melhorar a utilidade da coisa.
Conforme Nader (2016) e considerando o entendimento dos estudiosos da temática, caso o devedor, de boa-fé, tenha construído benfeitorias voluptuárias com o consentimento tácito ou expresso do credor, há de se prevalecer a interpretação declarativa do artigo de lei em questão.
Nader (2016) explana que os frutos percebidos em uma relação obrigacional de dar coisa certa pertencem ao devedor, proprietário da coisa, enquanto os pendentes cabem ao credor. Se o devedor estiver em mora, os frutos que eram pendentes, quando a prestação jurídica deveria ser efetivada, e foram percebidos pelo devedor, tal situação gera direito ao ressarcimento ao credor dos mencionados frutos não usufruídos. Agindo de má-fé o devedor, colhendo prematuramente os frutos, que deveriam ser pendentes por ocasião da tradição, deverá, também, ressarcir ao credor.
7. OBRIGAÇÃO DE RESTITUIR QUANDO ENVOLVE DETERIORAÇÃO E PERDA DO BEM
O artigo 239 do Código Civil é taxativo ao delinear que, caso o devedor não consiga cumprir a obrigação ora colimada com o comprador, tendo em vista que a coisa compromissada não tenha sido entregue, por motivos de perda ou perecimento, cabe a este responder pelos valores pactuados e, não obstante, por perdas e danos, se assim couber.
Faz-se mister a compreensão de alguns dispositivos para auxiliar o pleno entendimento de relações obrigacionais de restituição de coisa certa quando há hipótese de sua deterioração ou seu perecimento. Sendo assim, deve-se elucidar, preliminarmente, os conceitos de tradição, casos fortuitos e força maior.
A tradição constitui a entrega da coisa, todavia, assevera Pereira (2017, p. 66) que “a propriedade não se transfere pelo contrato, exigindo-se a tradição para coisas móveis e a inscrição do título no Registro, para as imóveis (...)”. Adicionalmente, o doutrinador Gonçalves (2012) corrobora a tese de que a simples elaboração de instrumento contratual entres as partes, por si só, não configura a tradição, sendo estabelecidos nele pelas partes assinantes apenas obrigações e direitos.
Para eventos cujo nascedouro encontra-se ancorado em casos fortuito ou de força maior, conforme esculpido no art. 393 do Código Civil, ficam estabelecidas salvaguardas ao devedor que, em razão alheia às suas vontades, não pode adimplir as suas obrigações.
Os casos fortuitos, apesar de decorrerem de atos de humanos, são imprevisíveis e inevitáveis, que desembocam na impossibilidade do cumprimento de uma obrigação. Para exemplificar, tem-se o movimento grevista de uma determinada categoria. Já a força maior trata de eventos imprevisíveis ou de difícil previsão e inevitáveis, oriundos de manifestações da natureza ou eventos externos, independendo, assim, da conduta humana, tais como raios e tempestades.
Relativamente aos efeitos de um inadimplemento obrigacional, deve-se trazer à baila a Teoria do Risco. Ela traz consigo os elementos que alteram, parcial ou totalmente, o estado da coisa. Para Pereira (2017), a aludida teoria consubstancia-se no risco de deterioração ou perda a que a coisa se encontra exposta.
Atinente à deterioração parcial da coisa, no caso de não haver culpa do devedor, o autor Gonçalves (2012) descreve que poderá o comprador: receber a coisa no estado em que se encontra, sendo resguardado a ele uma reavaliação de preço, com abatimento proporcional do valor da coisa de acordo com o dano sofrido; ou cancelar/resolver/extinguir o negócio, já que a coisa no estado atual em que se encontra não lhe interessa. Por outro lado, se houver culpa do devedor, fica estabelecida a mesma regra da situação anterior, havendo apenas uma ressalva nesse caso, conforme preceituado no art. 236 do Código Civil, pois, desde que comprovada a referida culpa, cabe ao comprador a indenização por perdas e danos, resultantes da conduta do vendedor.
Tendo acontecido o perecimento (perda total) da coisa antes de sua transmissão para o comprador, faz-se necessário apurar se as circunstâncias narradas ocorreram por culpa ou não do devedor. Para Gonçalves (2012), o devedor, por força de contratual, está obrigado a entregar coisa certa. Entretanto, em virtude de fatos estranhos à sua vontade, o devedor não consegue conservar a coisa, restando a extinção da obrigação. Diametralmente oposto, se o devedor concorreu, culposamente, para perda da coisa, ele deverá ser responsabilizado pelo valor da coisa perdida, além de mais perdas e danos, conforme disposto no art. 234 do Código Civil.
Em relação à obrigação de restituir coisa certa, em que a coisa pertence ao credor, devem-se traçar algumas explicações. Conforme Nader (2016), na hipótese de perda parcial (deterioração) do objeto antes da tradição no caso da obrigação em tela, estando a coisa sob o domínio do devedor e não ocorrendo culpa dele, o credor receberá a coisa no estado em que se encontra e sem direito à indenização. Nesse caso, esclarece-se que a indenização é incabível, tendo em vista que a deterioração parcial se efetivou devido a caso fortuito ou força maior. Na situação inversa, segundo o suprarreferido autor, sendo o fato provocado por culpa do devedor, o credor deverá receber a coisa no estado em que ela se encontra, contudo ele possui direito à indenização pela deterioração parcial da coisa e eventuais perdas e danos.
No caso de perecimento da coisa certa em obrigação a restituir, o art. 240 do Código Civil determina a aplicação do disposto no art. 239, em caso de culpa do devedor. Assim sendo, na hipótese de perda total com culpa do devedor, o arcabouço jurídico-constitucional consigna que ao credor caberá indenização pelo valor equivalente ao objeto perdido vinculado à prestação obrigacional, além de perdas e danos, se houver.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho buscou mostrar as principais modalidades de obrigação envolvendo um bem jurídico ou uma coisa certa e presentes no campo do Direito. Nesse sentido, verificou-se que a formação de institutos obrigacionais foi paulatina, sofrendo mudanças desde os tempos mais remotos e acompanhando os objetivos fundamentais de interesse coletivo social.
Constatou-se que o direito de obrigações brasileiro está balizado, principalmente, no Código Civil, que estabelece um conjunto de regras e princípios com o fito de compreensão das relações jurídicas que permeiam os atos decorrentes da autonomia privada e atinentes à esfera patrimonial de cada indivíduo.
Verificou-se que, para a efetiva aplicação da legislação aos casos contratuais concretos, o ordenamento jurídico-constitucional utiliza-se de princípios da dignidade da pessoa humana, que se reflete na função social das transações executadas cotidianamente, e da eticidade, que se desdobra em aspectos de boa-fé ou má-fé do ser humano.
Nesse contexto, importa consubstanciar que todo o arcabouço legislativo visa à circulação livre, respeitosa e justa das diversas riquezas presentes no complexo jurídico-social. Tal enquadramento normativo instaura limites consolidados na ordem jurídica às relações sociais, de modo que haja previsões de sanções a comportamentos que possam se desviar de uma relação contratual preexistente.
Vale pontuar, adicionalmente, que, no campo obrigacional, como se verificou na abordagem de todo o trabalho, o interesse recíproco com o fim do bem coletivo deve prevalecer, eliminando-se, assim, atitudes egoístas e maliciosas que possam contaminar um vínculo jurídico em uma obrigação.
Portanto, o Direito das obrigações se mostra como uma ferramenta imprescindível para o desenvolvimento econômico-social de toda a humanidade, visto que está presente em basicamente todos os atos da vida civil envolvendo questões alusivas à esfera patrimonial que podem ter reflexos extrapatrimoniais.
9. REFERÊNCIAS
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TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 6. ed. Rio de Janeiro: Método, 2016.
[1] Especialista em Legislação Educacional pela UNITINS. Especialista em Docência de Ensino Superior pela Faculdade Suldamérica. Bacharel em Sistemas de Informação pelo Centro Universitário Luterano de Palmas (CEULP/ULBRA). Bacharelanda do curso de Direito pela Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS) em Palmas/TO.
[2] Bacharel em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Bacharelando do curso de Direito pela Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS) em Palmas/TO. Servidor público efetivo do Município de Porto Nacional. E-mail: [email protected]
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS) em Palmas/TO. Bacharel em Engenharia de Alimentos pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Especialista em Direito Tributário pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP). Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil (RFB).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Rônison Aparecido dos. Direito das obrigações: das obrigações de dar coisa certa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 ago 2022, 04:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59017/direito-das-obrigaes-das-obrigaes-de-dar-coisa-certa. Acesso em: 22 nov 2024.
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