RESUMO: O presente artigo busca analisar os diferentes sistemas processuais penais, quais sejam, o sistema inquisitorial, o sistema acusatório e o sistema misto, enfatizando sua evolução ao longo da história. Soma-se a isso a análise do sistema processual penal brasileiro vigente, idealizado como sistema acusatório pela Constituição Federal de 1988, mas que ainda guarda aspectos do sistema inquisitorial em sua legislação processual penal.
PALAVRAS-CHAVES: Sistemas processuais penais. Inquisitorial. Acusatório. Misto.
INTRODUÇÃO
O estudo dos sistemas processuais penais é importante para a compreensão do atual sistemática do direito processual penal vigente no ordenamento jurídico brasileiro. De acordo com Eugênio Pacelli[1], normalmente, a doutrina separa o sistema processual inquisitorial do modelo acusatório, pela titularidade atribuída ao órgão da acusação: inquisitorial seria o sistema em que as funções de acusação e de julgamento estariam reunidas em uma só pessoa (ou órgão), enquanto o acusatório seria aquele em que tais papéis estariam reservados a pessoas (ou órgãos) distintos. Há ainda o sistema misto, em que a primeira fase é tipicamente inquisitorial e a segunda fase possui caráter acusatório. É nesse cenário que o presente artigo se debruça, destacando ainda o sistema processual penal vigente no ordenamento brasileiro.
EVOLUÇÃO HISTÓRIA
Inicialmente, na Roma Antiga, havia o denominado Sistema Acusatório Individualista, em que a acusação era de natureza privada, feita pelo próprio ofendido ou por qualquer um do povo (ação penal popular). A idéia de individualismo é no sentido de que caberia ao interessado movimentar, suscitar a autuação da autoridade para aplicação da sanção.
O processo era visto como “questão de interesse das partes” (iudex secundum allegata et probato partium decidicir). Esse modelo acabou por gerar injustiças, pois o resultado do processo depende da condição social e econômica das partes, assim, o membro com status social acabava sendo favorecido. Além disso, o ônus de promover a ação é do próprio ofendido. Nessa fase da história já se supõe normas, com ordem política. Não se confunde, portanto, de vingança privada.
Ressalta-se que modelo de persecução penal adotada pelos povos bárbaros era o das ordálias, isto é, eram meios de provação, de testes. Exemplo disso era a prova do fogo em se obrigava o suposto autor do fato a andar no fogo e, se mostrasse sentir dor, significava que seria culpado pelo delito.
Posteriormente, na Idade Média, surge o Sistema Inquisitorial, surgindo o interesse do Estado (Poder Político) em combater o crime. O sistema processual penal deixa de ser uma questão individual, passando a ser um interesse da própria sociedade, portanto, quem detinha o poder não pôde mais deixar a acusação a critério das partes.
Surge a investigação racional baseada na lógica, isto é, a idéia de inquéritos. Nesse contexto, os juízes paulatinamente interferem na atividade acusatória, na busca da “verdade real” (racional). Ganha relevo especialmente no âmbito das instituições canônicas, atingindo sua culminância na inquisição espanhola.
Para se verificar se houve a infração de uma norma, os canônicos nomeavam um terceiro neutro, que fazia um inquérito para aferir o que seria justo. O problema é que havia distorções dos resultados, nesse modelo em que o “juiz” buscava as provas, ou seja, ele que acusava e julgava, ao mesmo tempo. Nessa esteira, o réu não era visto como sujeito de direitos, mas como mero objeto do processo, sendo a relação processual linear e não triangular como os dias atuais.
Para contrabalançar os poderes do julgador, estabeleceu-se o sistema de provas tarifadas (ou sistema legal de provas) em que se atribuía um “peso” ou “valor” a cada tipo de prova. A confissão era a prova por excelência, o que fazia com que se legitimassem torturas para se obter uma confissão.
Em síntese, as principais características do sistema inquisitorial são: não há contraditório, ausência de igualdade/paridade entre as partes, ausência de ampla defesa (o que é relevante é a busca da verdade, e não o ofendido ou ofensor), constituição de um processo verbal e sigiloso (não há publicidade). Segundo Paulo Rangel[2] o próprio órgão que investiga, é o que pune – há confusão entre autor e julgador – na figura do juiz concentra-se as três funções: acusar, julgar e defender (o juiz iniciava de ofício a acusação, rompendo, assim, sua imparcialidade). O processo é sigiloso, feito de forma secreta, não havendo contraditório e ampla defesa, sendo utilizado o sistema das provas tarifadas.
Com o advento da Revolução Francesa e seus ideais iluministas, o sistema inquisitivo torna-se incompatível com o novo contexto, o que não significa que seus postulados foram completamente abandonados[3].
Por fim, surge na contemporaneidade, o sistema acusatório, sendo o modelo predominante atualmente. Tem como traço característico fundamental a acusação ser a cargo de um órgão público, distinto do julgador (só excepcionalmente a acusação é a cargo das partes, no caso de ação penal privada). Ary Lopes Júnior[4] diverge entendendo que o ponto chave será a “gestão de prova” e não a simples separação do acusador e do julgador.
Na verdade, para que o modelo seja genuinamente acusatório, é necessário que o julgador não tenha qualquer ingerência na produção de prova. Ocorre que no processo penal atual, pode o juiz ouvir uma testemunha que não foi arrolada pelas partes[5], assim tem ingerência sobre a produção de provas, ultrapassando o modelo acusatório puro. A doutrina majoritária entende que se for para benefício do réu, o processo em que o juiz excedeu os limites do sistema acusatório, ele será considerado válido.
Têm-se ainda como características do sistema acusatório a publicidade (em contraste com o sigilo que regia o modelo inquisitorial), o contraditório, a ampla defesa e a imparcialidade do julgador (regras sobre a prevenção, como por exemplo, no caso em que o juiz que determina a quebra de sigilo telefônico no inquérito policial, torna-se prevento em caso do inquérito torna-se um processo).
Apesar de se criar um órgão acusatório, não se priva do ofendido a possibilidade desse tomar iniciativa, quando houver previsão de ação penal privada. Nesse caso, há um traço do sistema acusatório individualista, apesar de se prezar pelo o interesse da coletividade.
Existem questões de ordem cultural e modos de “produção” ou “descoberta” da verdade. Explica-se: nos crimes existe o elemento anímico (dolo), no qual não se pode definir objetivamente. Assim, é resgatado por meio da produção das provas. Através delas tenta-se recriar o crime. Logo, a busca da verdade é afetada pelos diferentes meios de produção, ou seja, ainda que se possa dizer que adotamos o modelo acusatório, ele é marcado por traços de nossa cultura.
Para Paulo Rangel[6], no sistema acusatório, há nítida separação entre as três funções (julgar, acusar e defender). O juiz é órgão imparcial de aplicação da lei, não podendo mais ter iniciativa de instaurar de ofício a persecução penal. Isso porque é criado pelo Estado, um órgão próprio para propositura da ação. Sintetizando as características do sistema acusatório: separação entre as três funções, publicidade, contraditório e ampla defesa (o réu passa a ser sujeito de direitos), o sistema de provas é o do livre convencimento (a sentença deve ser fundamentadas com as provas trazidas nos autos, uma vez que o juiz tem livre apreciação, mas não pode se afastar do que consta no processo) e a imparcialidade do órgão julgador.
TRAÇOS INQUISITORIAIS NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO
Apesar de majoritariamente afirmar que o ordenamento jurídico brasileiro vigente adotou o sistema acusatório (já que a Constituição Federal assegura a acusação por um órgão autônomo e distinto do julgador – o Ministério Público), não se pode olvidar que ainda podem-se ser visualizados traços do sistema inquisitorial no processo penal atual.
Primeiramente, temos aspectos ligados à gestão da prova, inclusive iniciativas “ex officio” do Juiz na produção de provas. Exemplo disso é o artigo 156 CPP, que dispõe que:
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
O modelo inquisitório é marcado pela iniciativa as partes, ou seja, a vítima faz a acusação e o juiz realiza a produção de provas. Logo, esse dispositivo se aproxima do sistema inquisitorial, haja vista que permite o juiz ter a iniciativa, sem provocação, para produzir as provas. Parte da doutrina critica o mencionado artigo, dizendo que o mesmo fere o devido processo legal.
Além disso, pode-se citar como traço do sistema inquisitorial a manutenção das peças do inquérito policial nos autos da ação penal. O inquérito policial é um marco do modelo inquisitorial no sistema brasileiro atual. Utiliza-se como argumento para fundamentar que não é necessário o contraditório no inquérito policial por esse apenas ser um elemento para viabilizar o processo. Ocorre que o inquérito penal integra a ação penal, servindo como elemento de prova da decisão judicial, sem que houvesse o devido contraditório. O artigo 155 CPP autoriza o juiz a fundamentar parcialmente a sua decisão no inquérito penal, fazendo assim com que o inquérito penal, em que não houve contraditório, sirva como parte do fundamento da decisão judicial.
Para Paulo Rangel[7], a sentença deveria ser motivada somente com base nas provas existentes no processo judicial, salvo no caso de informações cautelares, não repetíveis e antecipadas. Isso porque é no processo judicial que as provas são colhidas sobre o crivo do contraditório e as demais provas do inquérito penal devem ser corroboradas em juízo.
MODELOS MISTOS DE SISTEMAS PROCESSUAIS
Os modelos mistos são aqueles que comportam os dois sistemas processuais: o inquisitorial e o acusatório. Como exemplo de modelo misto, há o modelo bifásico adotado pela França após a Revolução de 1789, que se divide em jurisdição de instrução e jurisdição de julgamento.
Na primeira fase, o juiz preside a instrução, tendo uma prerrogativa de interferir de modo mais intenso. Sendo pró-ativo, atinge a realidade de que o julgador não pode ser uma “samambaia”. O juiz dessa fase não participa da decisão, no qual é feita pelo juiz da segunda fase. Todavia, deve-se atentar que, a primeira fase dessa jurisdição, não se confunde com inquérito, pois o inquérito policial não é judicial. Essa primeira fase é judicial e já faz parte do processo.
Retornando ao sistema brasileiro, em que a fase do inquérito penal, como o próprio nome indica, é marcada pelo modelo inquisitorial, embora suscite muitas controvérsias, como por exemplo, a atuação do advogado e a sua publicidade, predomina o entendimento de que apesar de não ser processo, o advogado pode participar do inquérito. Ele é considerado um procedimento administrativo e não um processo administrativo, pois esse último necessita de uma decisão ao final e no inquérito penal só há ao final um relatório.
Entende-se que o modelo brasileiro atual é um modelo em que a Constituição Federal idealiza um modelo acusatório, que respeite o devido processo legal. Entretanto, é marcado por traços inquisitoriais em que o juiz ainda pode ter iniciativa probatória.
Segundo Paulo Rangel[8]:
“Na primeira fase, denominada instrução preliminar, o magistrado procede às investigações, colhendo todas as informações que autorizem a acusação. Essa fase é influenciada pelo sistema inquisitorial, assim é um procedimento secreto, sem ampla defesa e contraditório. A segunda fase, denominada fase judicial, a acusação penal é feita em regra pelo MP, no qual há publicidade e contraditório, bem como há igualdade entre acusação e defesa. É assegurado ainda nessa fase o estado de inocência, tendo o MP o ônus exclusivo de prova.”
Nesse mesmo sentido, Renato Brasileiro[9] afirma:
“Quando o Código de Processo Penal entrou em vigor, prevalecia o entendimento de que o sistema nele previsto era misto. A fase inicial da persecução penal, caracterizada pelo inquérito policial, era inquisitorial. Porém, uma vez iniciado o processo, tínhamos uma fase acusatória. Porém, com o advento da Constituição Federal, que prevê de maneira expressa a separação das funções de acusar, defender e julgar, estando assegurado o contraditório e a ampla defesa, além do princípio da presunção de não culpabilidade, estamos diante de um sistema acusatório. É bem verdade que não se trata de um sistema acusatório puro. De fato, há de se ter em mente que o Código de Processo Penal tem nítida inspiração no modelo fascista italiano. Torna-se imperioso, portanto, que a legislação infraconstitucional seja relida diante da nova ordem constitucional. Dito de outro modo, não se pode admitir que se procure delimitar o sistema brasileiro a partir do Código de Processo Penal. Pelo contrário. São as leis que devem ser interpretadas à luz dos direitos, garantias e princípios introduzidos pela Carta Constitucional de 1988”.
Logo, o sistema brasileiro atual de processo penal não é um sistema misto, mas também não pode ser considerado um sistema acusatório puro, haja vista permanecer alguns traços inquisitoriais, devendo os dispositivos do Código de Processo Penal serem lidos à luz da Constituição Federal de 1988.
CONCLUSÃO
Percebe-se que ocorreu um progresso em relação aos sistemas processuais penais ao longo do passar dos séculos da história. Todavia, um modelo não sucedeu ao outro de forma estanque, visto que, conforme explanado, ainda sobrevive aspectos do sistema inquisitorial no contexto atual. Logo, importante compreender as principais características de cada sistema, para perceber seus traços no sistema processual penal brasileiro, a fim de dar mais efetividade aos preceitos processuais penais como operadores do Direito.
REFERÊNCIAS
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único – 4. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2016.
LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do processo penal : introdução crítica – 3. ed. – São Paulo : Saraiva, 2017.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução pena – 13. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2016.
PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 21. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2017
RANGEL, Paulo. Direito processual penal – 23ª Ed – São Paulo: Atlas, 2015.
[1] Pacelli, Eugênio. Curso de processo penal. 21. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2017, p. 19.
[2] Rangel, Paulo. Direito processual penal – 23ª Ed – São Paulo: Atlas, 2015.
[3] Nucci, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução pena – 13. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2016, p.112.
[4] Lopes Junior, Aury. Fundamentos do processo penal : introdução crítica – 3. ed. – São Paulo : Saraiva, 2017.
[5] Art. 209. O juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes.
[6] Rangel, Paulo. Direito processual penal – 23ª Ed – São Paulo: Atlas, 2015.
[7] Rangel, Paulo. Direito processual penal – 23ª Ed – São Paulo: Atlas, 2015.
[8] Op cit.
[9] Lima, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único– 4. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p. 77.
Graduada em Direito pela Universidade Federal Fluminense - UFF. Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETTO, Elisa Rocha Teixeira. Sistemas processuais penais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 ago 2022, 04:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59049/sistemas-processuais-penais. Acesso em: 23 dez 2024.
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