RESUMO: Este artigo objetiva fazer um breve estudo acerca da chamada “quarta revolução industrial” ou “indústria 4.0”, abordando algumas de suas implicações no mundo do trabalho, a partir da inserção das ferramentas tecnológicas e do uso das plataformas digitais atreladas à ideologia da economia do compartilhamento (sharing economy). O texto também examina o discurso de empreendedorismo em contraponto ao controle por meio da subordinação algorítmica. Por fim, destaca a necessidade de os sindicatos e os movimentos sociais compreenderem a nova morfologia do trabalho e resgatarem os laços de pertencimento de classe como ferramenta de confrontação à precarização do trabalho, sob pena de se operar a consolidação de um modelo amparado no retrocesso social. A pesquisa é de natureza teórica e estruturou-se a partir da bibliografia sobre o tema.
Palavras-chave: Revolução 4.0. Economia do compartilhamento. Uberização. Subordinação algorítmica. Precarização do trabalho.
ABSTRACT: This article aims to make a brief study about the so-called "fourth industrial revolution" or "industry 4.0", addressing some of its implications in the world of work, from the insertion of technological tools and the use of digital platforms linked to the ideology of the sharing economy. The text also examines the discourse of entrepreneurship in counterpoint to control through algorithmic subordination. Finally, it highlights the need for unions and social movements to understand the new morphology of work and rescue the bonds of class belonging as a tool to confront the precarization of work, under penalty of operating the consolidation of social regression in the world of work. The research is theoretical in nature and was structured based on the bibliography on the subject.
Keywords: Revolution 4.0. Sharing Economy. Uberization. Algorithmic subordination. Labor precarization.
1) Introdução
A partir das últimas décadas do século passado, o mundo tem experimentado alterações bastante significativas no modo de organização do trabalho. Atrelado ao massivo uso da internet, sobreveio o oferecimento de inúmeros novos serviços e produtos, perpassados pelo conceito de economia do compartilhamento (sharing economy): uma ideia romântica sobre a utilização de um novo modelo de negócio, sendo entendida por seus idealizadores como uma alternativa sustentável ao comércio de grande circulação a partir de trocas informais entre indivíduos comuns.
No entanto, em pouco tempo, a economia do compartilhamento tem se mostrado bastante distinta de sua ideia inicial, revelando um mercado de trabalho pouco regulado e sem garantias. Como paradigma do modelo, destaca-se o surgimento do trabalho uberizado e a criação de subempregos, bem como a flexibilização de garantias trabalhistas conquistadas após décadas de luta social, indicando verdadeiro retrocesso.
Neste sentido, o presente artigo pretende tratar sobre alguns dos impactos promovidos pela quarta revolução industrial e pelo trabalho uberizado; sobre como as plataformas digitais defendem que os trabalhadores supostamente não seriam empregados nem estariam a elas subordinados, sendo detentores de plena autonomia na prestação de serviços; e sobre a importância da retomada da proteção do direito, a partir da reunião e mobilização da classe trabalhadora.
2) “Revolução 4.0” ou “quarta revolução industrial”
Inicialmente, cabe explicitar um breve histórico das revoluções industriais. Neste sentido, “a palavra ‘revolução’ denota mudança abrupta e radical” (SCHWAB, 2016, p. 15), o que seria entendido como uma fase disruptiva a partir de importantes avanços tecnológicos e científicos. E, como diz Klaus Schwab, “as novas tecnologias e novas formas de perceber o mundo desencadeiam uma alteração profunda nas estruturas sociais e nos sistemas econômicos” (SCHWAB, 2016, p. 15).
A primeira revolução industrial, datada em 1760, foi o primeiro paradigma na área de produção, a partir da introdução do uso de máquinas e da passagem do sistema de manufatura para o fabril. Consequência particular dessa disrupção, foi a substituição do trabalho artesanal pelo assalariado e consolidação do processo de formação do capitalismo. A segunda revolução (1850-1945) envolveu o desenvolvimento de indústrias química, elétrica, de petróleo e aço, além do progresso dos meios de transporte e comunicação, com especial destaque para o desenvolvimento da linha de montagem e a produção em maior escala. Por sua vez, a terceira revolução industrial (1950 – 2010) foi impulsionada pelo surgimento da indústria digital em substituição gradual da mecânica analógica e com a popularização do uso de microcomputadores e a criação da Internet.
Já a quarta revolução industrial, “foi iniciada na virada do século e baseia-se na revolução digital” (SCHWAB, 2016, p. 16). Klaus Schwab (2016) concebe a disruptura como sendo “caracterizada por uma internet mais ubíqua e móvel, por sensores menores e mais poderosos que se tornam mais baratos e pela inteligência artificial e aprendizagem automática (ou aprendizado de máquina)” (SCHWAB, 2016, p. 16). Nesse novo modelo, as tecnologias não são necessariamente novas, mas são mais sofisticadas e integradas. Diferentemente das revoluções anteriores, na quarta revolução, caracterizada por sua velocidade, amplitude, profundidade e impacto sistêmico, estamos diante da “fusão das tecnologias e a interação entre os domínios físicos, digitais e biológicos” (SCHWAB, 2016, p. 16). Além disso, são difundidas de forma mais ampla e rápida do que nas revoluções industriais anteriores, o que efetivamente está transformando o mundo de forma globalizada (SCHWAB, 2016, p. 16-17).
E foi na feira industrial de Hannover, em 2011, onde foram cunhadas as expressões “quarta revolução industrial” ou a chamada “Indústria 4.0”, utilizadas para descrever as “fábricas inteligentes”, por meio da criação de um “mundo onde os sistemas físicos e virtuais de fabricação cooperam de forma global e flexível” permitindo a “personalização de produtos e criação de novos modelos operacionais” (SCHWAB, 2016, p.16).
A partir dessas novas tecnologias, a quarta revolução industrial tornou possível a existência de novos produtos e serviços que aumentam a eficiência de nossas vidas como consumidores e praticamente sem custos adicionais. A exemplo de solicitar um táxi, comprar um produto, organizar uma viagem, ouvir música ou assistir a filmes – todas essas atividades podem ser realizas pelos usuários remotamente, de forma ágil e simples, bastando um simples dispositivo móvel (SCHWAB, 2016, p. 20).
Klauss Schwab (2016) também destaca uma importante compreensão inicial dos efeitos das novas tecnologias sobre o mercado de trabalho:
Primeiro, há um efeito destrutivo que ocorre quando as rupturas alimentadas pela tecnologia e a automação substituem o trabalho por capital, forçando os trabalhadores a ficarem desempregados ou realocar suas habilidades em outros lugares. Em segundo lugar, o efeito destrutivo vem acompanhado por um efeito capitalizador, em que a demanda por novos bens e serviços aumenta e leva à criação de novas profissões, empresas e até mesmo indústrias (SCHWAB, 2016, p. 42).
Além disso, ocorre uma simplificação do trabalho por meio do uso dos algoritmos, os quais, em tese, são mais capazes de substituir os seres humanos, pressupondo-se que “tarefas distintas e bem definidas levam a um melhor acompanhamento e alta qualidade de dados relacionados à tarefa, criando, assim, uma base melhor para a inserção de algoritmos que farão o trabalho” (SCHWAB, 2016, p. 46).
Assim, não obstante os benefícios, mormente diante de uma multiplicidade de ofertas de produtos e serviços, Klaus Schwab (2016) alerta que os grandes beneficiários da quarta revolução industrial são os provedores de capital intelectual ou físico, o que explica o fosso entre a riqueza daqueles que detém o capital e aqueles que dependem do seu trabalho. Nesta toada, os impactos aos trabalhadores são bastante negativos, pelo menos, a curto prazo (SCHWAB, 2016, p. 20-41).
Inclusive, os efeitos mencionados nos parágrafos precedentes naturalmente explicam o fato de pessoas com formação superior, a exemplo de advogados, administradores, engenheiros, contadores, dentre outros, estejam se socorrendo do trabalho uberizado para garantir seu sustento, uma vez que já não são absorvidos pelo mercado de trabalho e acabam descartados, não só em razão da progressiva automatização do trabalho mecânico, mas também pelo uso de algoritmos execução de tarefas humanas e da competição mercadológica. E não só: atrelada à uberização, nota-se a redução de direitos trabalhistas e conquistas históricas e a, consequente, precarização do trabalho.
Em relação aos impactos das tecnologias emergentes no mercado de trabalho, Schwab (2016) afirma que há dois campos opostos: os que acreditam em um final feliz, com novos empregos para os trabalhadores deslocados pela tecnologia, desencadeando uma nova era de prosperidade; e aqueles que acreditam que o fato levará a um colapso social e político, com uma escala maciça de desemprego tecnológico (SCHWAB, 2016, p. 42).
O autor defende, contudo, que se deve resistir à polarização, pois não se trata de um dilema homem versus máquina. Ele argumenta que a história revela um lugar médio entre ambos os campos. Neste sentido, isso significa a necessidade de se preparar a força de trabalho, especialmente com a inclusão de modelos de formação para desenvolver o trabalho em colaboração com máquinas cada vez mais capazes, conectadas e inteligentes (SCHWAB, 2016, p. 42). Cabe destacar, porém, que, no caso do Brasil, cujos investimentos em educação e formação vem sendo drasticamente reduzidos (MORALES, 2022), essa pode não se revelar uma realidade tão acessível.
3) Economia do compartilhamento, uberização e precarização das relações de trabalho.
Como dito, no contexto da quarta revolução industrial e dos impactos por ela causados, inclui-se o oferecimento de novos produtos e serviços que usam “a internet para conectar consumidores com provedores de serviço para trocas no mundo físico” (SLEE, 2017, p.33), sendo estes descritos como parte da economia do compartilhamento (sharing economy). Os defensores da economia do compartilhamento a descreveram romanticamente como um novo tipo de negócio ou um novo movimento social, unindo uma mistura afetiva de comércio e causa no mundo digital (SLEE, 2017, p. 33).
De forma mais realista, Carlo Benito Cosentino Filho (2020) define:
A economia do compartilhamento compreende um modelo de negócios baseado na difusão de informações advindas do universo virtual. Nela, plataformas informacionais promovem o encontro entre duas conhecidas variáveis dos mercados, oferta e procura, e abrem novas oportunidades para que ativos, habilidades, tempo e dinheiro sejam usados em níveis mais próximos de sua capacidade total (COSENTINO FILHO, 2020).
E, sobre as promessas feitas dos defensores da economia do compartilhamento, Tom Slee (2017) também diz:
Comece com trocas informais […] e use a força conectora da internet para dar escala a isso, de modo que nós como indivíduos possamos contar cada vez mais uns com os outros e menos com corporações distantes, sem rosto. Cada torca ajuda alguém a fazer uma graninha e ajuda alguém a economizar um tempinho: como não gostar? Participando desse movimento, nós ajudamos a construir nossa comunidade, em vez de sermos consumidores passivos e materialistas […]. A Economia do Compartilhamento promete ajudar prioritariamente indivíduos vulneráveis a tomar controle de suas vidas, tornando-os microempresários. Podemos nos autogerenciar, entrando e saindo deste novo modelo flexível de trabalho […]. […] também promete ser uma alternativa sustentável para o comércio de grande circulação, ajudando-nos a fazer um uso melhor de recursos subutilizados. Por que todo mundo precisa de uma furadeira tomando pó numa prateleira se podemos compartilhar a mesma ferramenta? […] Por que não usar a Uber em vez de comprar um carro? (SLEE, 2017, p. 34-35).
A partir de tais promessas e da lógica da economia do compartilhamento, sobretudo com o avanço das novas tecnologias de informação e comunicação - as chamadas “TICs”, surgiu a crença de que a nova era de felicidade se iniciava. As novidades tecnológicas implementadas trazia o trabalho on-line e digital, o que superaria a dimensão de sofrimento atrelado ao mundo do labor. Muitos pensaram que “a sociedade digitalizada e tecnologizada nos levaria ao paraíso, sem ‘tripalium’ e, quiçá, até mesmo sem trabalho” (ANTUNES, 2018, p. 22).
Não obstante as promessas feitas por seus idealizadores, a economia do compartilhamento mostrou uma outra face, “propagando um mercado inóspito e desregulado em áreas de nossas vidas que antes estavam protegidas” (SLEE, 2017, p. 36). Neste sentido, das normas formas de consumo criadas pelos mercados da economia do compartilhamento, surgiram formas de subemprego mais arriscadas e precárias, a partir da remoção de proteções e garantias conquistadas após décadas de luta social (SLEE, 2017, p. 36).
Assim, conforme afirma Carlo Benito Cosentino Filho (2020), as diretrizes da economia do compartilhamento, em verdade, revelaram-se estritamente capitalistas e direcionadas à maximização dos lucros. Consequentemente, as atualizações dos modelos de divisão do trabalho revelam-se ainda mais perversas, e as consequências das suas implantações são notórias: aumento da concentração de riqueza; precarização das condições de trabalho; e exclusão de direitos sociais (COSENTINO FILHO, 2020).
Nesta toada, Ricardo Antunes constata, a partir dos impactos da quarta revolução industrial, o surgimento de uma nova morfologia do trabalho, que tem como traços constitutivos a instabilidade e a insegurança (ANTUNES, 2018, p. 25). O autor nos mostra a concepção de um novo proletariado,
ao contrário da eliminação completa do trabalho pelo maquinário informacional-digital, estamos presenciando o advento e a expansão monumental do novo proletariado da era digital, cujos trabalhos, mais ou menos intermitentes, mais ou menos constantes, ganharam novo impulso com as TICs, que conectam, pelos celulares, as mais distintas modalidades de trabalho. Portanto, em vez do fim do trabalho na era digital, estamos vivenciando o crescimento exponencial do novo proletariado de serviços, uma variante global do que se pode denominar escravidão digital. Em pleno século XXI (ANTUNES, 2018, p. 32).
Esse é, pois, o caso da Uber, uma das companhias líderes da economia do compartilhamento. Sua tecnologia se apoia em plataformas de software, páginas de internet e aplicativos de celular para conectar consumidores com fornecedores e ficar com uma fatia dos ganhos. Fundada em 2009, na região de São Francisco, no oeste dos Estados Unidos, cresceu em ritmo e limites nunca antes vistos, exportando seu modelo de negócios para cidades ao redor do mundo (SLEE, 2017, p. 38 e 111).
E tal foi o destaque da empresa que se tornou um paradigma desse novo modelo de negócios, sendo, a partir de seu nome, cunhado o termo uberização. Segundo Ricardo Antunes, a uberização “é um processo no qual as relações de trabalho são crescentemente individualizadas e invisibilizadas, assumindo, assim, a aparência de ‘prestação de serviços’ e obliterando as relações de assalariamento e de exploração do trabalho” (ANTUNES, 2020, p. 14).
Ricardo Antunes (2020) também argumenta que,
a terceirização, a informalidade e a flexibilidade se tornaram, então, partes inseparáveis do léxico e da pragmática da empresa corporativa global. E, com elas, a intermitência vem se tornando um dos elementos mais corrosivos da proteção do trabalho, que foi resultado de lutas históricas e seculares da classe trabalhadora em tantas partes do mundo (ANTUNES, 2020, p. 11).
E, em especial, no caso da Uber,
[…] trabalhadores e trabalhadoras com seus automóveis arcam com as despesas de seguros, gastos de manutenção de seus carros, alimentação, limpeza etc., enquanto o ‘aplicativo’ se apropria do mais-valor gerado pelo sobretrabalho dos motoristas, sem nenhuma regulação social do trabalho. […] ao recusarem solicitações, correm o risco de serem demitidos. A relação de trabalho é, então, ainda mais evidente. Dos carros para as motos, destas para as bicicletas, patinetes etc. A engenhosidade dos capitais é, de fato, espantosa (ANTUNES, 2020, p. 11).
Esse, aliás, é um modus operandi que urge ser confrontado, sob pena de se consolidar como um elemento cada vez mais central do sistema de metabolismo antissocial do capital, em escala global, particularmente no setor de serviços, mas com potencial de expansão para parcelas ampliadas do mundo industrial e do agrobusiness, bem como na interconexão entre eles (ANTUNES, 2020, p. 13).
4) A flexibilidade aparente e a subordinação algorítmica
Conforme se extrai das lições de Henrique Correia (2021),
a característica mais importante da relação empregatícia é a subordinação ou, ainda, de acordo com o texto da CLT: “empregado trabalha sob a dependência do empregador”. Se o empregador assume todos os riscos do empreendimento, ele terá o poder de organizar e dirigir a prestação de serviços. Dessa forma, o empregado fica subordinado às ordens do empregador (CORREIA, 2021, p. 176).
O autor também nos ensina que a tese aceita atualmente para explicar a referida característica da relação de emprego descreve que a subordinação decorre de lei, tratando-se, pois, de uma subordinação jurídica. A tese atual superou a antiga teoria de subordinação técnica, que pressupunha que o empregador detinha todo o conhecimento técnico dos meios de produção. E superou também a teoria de subordinação econômica, que defendia a subordinação em razão da dependência do salário. Ocorre que tanto o empregado pode deter conhecimentos técnicos dos quais não dispõe o empregador como pode não depender unicamente daquela relação de emprego para o seu sustento. Por isso, ambas as teorias (técnica e econômica) não prevaleceram (CORREIA, 2021, p. 176).
Com efeito, as plataformas propagam um discurso de empreendedorismo e, assim, consideram seus motoristas como empresários de si mesmos. Essa ideia, já incorporada até mesmo por muitos trabalhadores, pressupõe que se trata de uma relação livre e autônoma, eminentemente civil, ou seja, sem a presença do elemento subordinação em sua concepção clássica.
Ocorre que a ideia de liberdade e flexibilidade constitui na verdade a transferência deliberada de riscos para aumentar o controle sobre os trabalhadores, pois essa liberdade significa que não há salário garantido e os custos são fixos (ANTUNES; FILGUEIRAS, 2020, p. 66). É dizer: não recaem sobre as plataformas nem os custos nem os riscos do negócio.
Além disso, as plataformas executam ações que claramente revelam a verdade real por trás do discurso de empreendedorismo, indicando exarcebado controle sobre os trabalhadores. Conforme enumeram Vitor Filgueiras (2020) e Ricardo Antunes (2020), as plataformas:
1) Determinam quem pode trabalhar. […] Os/as trabalhadores/as estão sempre sujeitos à aceitação do cadastro na plataforma para poder trabalhar.
2) Delimitam o que será feito: uma entrega, um deslocamento, uma tradução, uma
limpeza, etc. Os/as trabalhadores/as não podem prestar serviços não contemplados por plataformas e aplicativos.
3) Definem que trabalhador/a realizará cada serviço e não permitem a captação de clientes […].
4) Delimitam como as atividades serão efetuadas. Isso ocorre nos mínimos detalhes, seja quanto ao trajeto e às condições dos veículos, seja quanto, até mesmo, ao comportamento dos/as trabalhadores/as diante dos clientes.
5) Delimitam o prazo para a execução do serviço, tanto para entregas quanto para realização de traduções, projetos e demais atividades.
6) Estabelecem de modo unilateral os valores a serem recebidos. […]
7) Determinam como os/as trabalhadores/as devem se comunicar com suas gerências. […]
8) Pressionam os/as trabalhadores/as para serem assíduos e não negarem serviços demandados. No site Uber, por exemplo, explica-se que o/a trabalhador/a poderá ser desativado se tiver uma taxa de aceitação de corridas menor do que a taxa de referência da cidade. […]
9) Pressionam os/as trabalhadores/as a ficar mais tempo à disposição, mediante o uso de incentivos. […]
10) Usam o bloqueio para ameaçar os/as trabalhadores/as, o que implica deixá-los/as sem poder exercer suas atividades por tempo determinado, por inúmeras razões arbitrárias, sempre determinadas pelas plataformas.
11) Utilizam a possibilidade de dispensa a qualquer momento e sem necessidade de justificativa, sem qualquer espécie de aviso prévio, como um importante mecanismo de coerção e disciplinamento da força de trabalho (ANTUNES; FILGUEIRAS, 2020, p. 67-68).
E esse controle, a partir dos pontos enumerados acima, é feito diretamente pelo aplicativo por meio de algoritmos, caracterizando o surgimento de uma nova forma de expressão da subordinação, a subordinação algorítmica, elemento-chave para a caracterização da relação empregatícia. Diferente da subordinação clássica, cuja execução do serviço do trabalhador era permeada por ordens e fiscalização direta do trabalho por meio da presença física do empregador, a subordinação algorítmica se dá por meio da presença digital. É o algoritmo (um conjunto automatizado de instruções, uma unidade básica da computação) que determina o roteiro de tarefas, programado por instrumentos digitais ou aplicativos, possibilitando comandos laborais ou ordens ao empregado.
Como dito, embora gozem de uma flexibilidade apenas aparente, os trabalhadores e mesmo as instituições são fortemente influenciados pelo discurso das plataformas, interiorizando-o em suas práticas e suas subjetividades, de modo que as TIC’s conseguem aperfeiçoar o controle completo desses trabalhadores.
Desse modo, forma-se
[…] uma situação aparentemente contraditória: poucas vezes o trabalho foi tão estritamente controlado (agora pela via informacional-digital), enquanto o discurso apologético não para de propagar as benesses do trabalho autônomo, livre, empreendedor etc. Não é difícil constatar que, na contrapartida de tais formulações apologéticas, estamos presenciando o advento de um novo proletariado de serviços em expansão na era digital (ANTUNES; FILGUEIRAS, 2020, p. 69).
Cabe destacar, por fim, que a ampliação do trabalho precário atinge, ainda de forma diferenciada, trabalhadores e trabalhadoras da indústria de software até os de call-center e telemarketing - intitulados infoproletariados ou cibertariados -, alcançando, ainda, de modo progressivo os setores industriais, da agroindústria, dos bancos, do comércio, do fast-food, do turismo e hotelaria etc., e incorporando inclusive trabalhadores imigrantes, cujos números se expandem em todas as partes do mundo. E esse alcance ocorre porque é pouquíssimo provável, hoje, encontrar atividade que não tenha alguma forma de dependência do aparelho celular (ANTUNES, 2020, p. 13).
5) A necessidade de proteção do trabalho
Klaus Schwab (2016) defende que a tecnologia não é uma força externa, sobre a qual a não temos nenhum controle. Significa dizer: não se trata de uma escolha binária entre aceitar ou rejeitar a tecnologia, mas, sim, uma análise do modo como ela pode ser incorporada pelos modelos sociais em busca da construção de um mundo melhor. Assim, a quarta revolução deve ser empoderadora e centrada no ser humano – em vez de divisionista e desumana – possibilitando que todos os grupos participem e se beneficiem das transformações em curso (SCHWAB, 2016, p. 13-14). É, pois, urgente que a tendência precarizante do trabalho seja substituída pela proteção social do trabalhador.
Isso porque, se a tendência destrutiva em relação ao trabalho não for fortemente confrontada, recusada e obstada, sob todas as formas possíveis, teremos, além da ampliação exponencial da informalidade no mundo digital, a expansão dos trabalhos “autônomos” e dos “empreendedorismos”, configurando-se cada vez mais como uma forma oculta de assalariamento do trabalho, a qual introduz o véu ideológico para obliterar um mundo incapaz de oferecer vida digna para a humanidade. Isso ocorre porque, ao tentar sobreviver, o “empreendedor” se imagina como proprietário de si mesmo, um quase-burguês, mas frequentemente se converte em um proletário de si próprio, que autoexplora seu trabalho (ANTUNES, 2020, p. 15-16).
Neste sentido, urge que os setores efetivamente comprometidos com os interesses das forças sociais do trabalho, em especial os sindicatos e os movimentos sociais, compreendam a nova morfologia do trabalho, que envolve uma fragmentação bastante complexa: a classe trabalhadora reduzida em vários segmentos e, simultaneamente, ampliada, dada a heterogeneidade das atividades, dos gêneros, da raça e da etnia, o que impacta diretamente na forma de representação sindical (ANTUNES, 2018, p. 17). E mais: deve ser observado atentamente que, da simbiose entre o trabalho informal e o mundo digital, resultam trabalhos cada vez mais individualizados e invisibilizados, ou seja, cada trabalhador passa a se auto-explorar, de forma isolada, o que diminui sua capacidade de resistência por falta de organização coletiva. (ANTUNES, 2020, p. 21).
E, ainda sobre as entidades sindicais, para formação da força impeditiva à precarização, é imprescindível que mobilizem o novo proletariado, organizando as amplas parcelas jovens da classe trabalhadora, que ingressa no mundo digital às vésperas da Indústria 4.0, com relações de trabalho em processo de corrosão e enorme retrocesso. É dizer: os sindicatos têm a difícil tarefa de ressoldar os laços de pertencimento de classe. E se contrapor, como classe, à uberização, à individualização, ao falso “empresariamento”, às falácias do empreendedorismo e à impulsão do trabalho intermitente (ANTUNES, 2018, p. 18).
Com efeito, Ricardo Antunes (2020) enumera alguns dos desafios à atuação dos sindicatos:
1) O primeiro deles, para a sua própria sobrevivência, será romper a enorme barreira social que separa a classe trabalhadora “estável”, em franco processo de redução, dos trabalhadores e trabalhadoras intermitentes, em tempo parcial, precarizados, subempregados e desempregados, todos em significativa expansão no cenário mundial de hoje. [...]
2) Os sindicatos devem compreender, dada a nova morfologia do trabalho, outras dimensões decisivas do ser social que estão presentes no cotidiano do trabalho e que têm forte perfil inter-relacional. Referimo-nos aqui às dimensões de gênero, geração, raça e etnia. [...]
3) Os sindicatos devem incorporar também aqueles expressivos contingentes do novo proletariado de serviços que vende sua força de trabalho nas empresas de callcenter, telemarketing, supermercados, comércio, indústria hoteleira e tantas outras áreas por onde se amplia o universo dos assalariados, muitos deles sem nenhuma experiência de atuação na organização sindical. Portanto, as novas categorias de trabalhadores e trabalhadoras que não têm tradição anterior de organização em sindicatos devem, necessariamente, ser representadas por um verdadeiro sindicato de classe, contemporâneo aos problemas divisados no horizonte do século XXI. [...]
4) Os sindicatos precisam romper radicalmente com todas as formas de corporativismo ou neocorporativismo, que privilegiam suas respectivas categorias profissionais, diminuindo ou abandonando os seus conteúdos mais marcadamente classistas. [...]
5) O sindicalismo de classe tem de estar bastante atento para a decisiva questão da preservação da natureza e da humanidade. […] Ou não está na hora de se discutir que tipo de indústria queremos: a do carro privado que polui irreversivelmente a natureza ou a do transporte coletivo que recusa a energia fóssil? Não são questões fáceis, mas são vitais, e os sindicatos estão impelidos a enfrentá-las.
6) É decisivo também para o sindicalismo de classe romper com a tendência crescente de institucionalização e burocratização, que tão fortemente tem marcado o movimento sindical latino-americano (vejam-se de novo os casos de México, Argentina e Brasil, entre tantos outros exemplos) e que o distancia das suas bases sociais, aumentando ainda mais o fosso entre os organismos sindicais e os movimentos sociais autônomos. [...]
7) Também é fundamental reverter a tendência, desenvolvida a partir do toyotismo e da acumulação flexível, que consiste em reduzir o sindicato ao âmbito exclusivamente empresarial, ao chamado “sindicalismo de empresa”, de perfil patronal, mais vulnerável e vinculado ao capital e às suas corporações. […] ele deve se estruturar de modo mais horizontal possível, o que significa ser ainda mais organizado pela base, contemporaneamente classista, incorporando o grande conjunto que compreende a classe trabalhadora hoje em todos os seus segmentos, desde os que ainda têm contratos mais estáveis até aqueles que estão no universo mais precarizado, sejam terceirizados, intermitentes, na informalidade, sem jamais excluir os desempregados.
8) Se a classe trabalhadora é mais complexa e heterogênea do que aquela que vigorou durante o período de expansão do fordismo, o resgate do sentido de pertencimento de classe, contra as inúmeras fraturas, objetivas e subjetivas, impostas pelo capital é um dos seus desafios mais prementes, em particular em uma fase na qual o proletariado que conseguiu preservar alguns direitos parece se diferenciar (e até mesmo se antagonizar) em relação ao chamado precariado, que cresce nos países capitalistas centrais, e também em relação aos trabalhadores imigrantes que não param de se expandir, constituindo-se num polo cada vez mais importante da classe trabalhadora. [...]
9) Com a expansão do capital em escala planetária e a nova forma assumida pela divisão internacional do trabalho, as respostas do movimento dos trabalhadores assumem cada vez mais um sentido totalizante. A transnacionalização do capital e do seu sistema produtivo, com a difusão das novas cadeias geradoras de valor, obriga ainda mais os sindicatos a desenvolverem formas internacionais de ação, solidariedade e confrontação.
10) Mesmo tendo claro que esse elenco pode ser muito ampliado, há ainda outro desafio fundamental para os sindicatos, sem o qual a classe trabalhadora fica organicamente desarmada em seus combates. Eles devem romper a barreira, imposta pelo capital, entre ação reivindicativa e ação parlamentar, entre luta econômica e luta política, articulando e fundindo essas lutas sociais, dando-lhes uma feição mais autônoma e ao mesmo tempo mais abrangente. Como o capital exerce um domínio cuja materialidade é de origem extraparlamentar, é grave equívoco querer derrotá-lo com ações que se restrinjam ao âmbito da institucionalidade ou que o privilegiem (ANTUNES, 2020, p. 306-309).
Não obstante não serem poucos os desafios que se apresentam aos sindicatos e ainda que seja notável a fragilidade dos laços de pertencimento de classe, já é possível observar o florescimento de algumas formas de representação. Neste sentido, Ricardo Antunes nos diz que o “Breque dos Apps”, como foram denominadas as duas primeiras greves dos trabalhadores e trabalhadoras de aplicativos no Brasil, em julho de 2020, sinaliza o início de uma nova fase de lutas sociais desencadeada por esse novo proletariado de serviços na era digital (ANTUNES, 2020, p. 22).
6) Conclusão
As inovações tecnológicas concebidas pelo que foi denominado “quarta revolução industrial” e a ideologia de uma economia compartilhada, impactaram diretamente a seara trabalhista, de modo que as relações de trabalho foram sensivelmente alteradas, a partir de uma ampla flexibilização, expondo a fragilização a que tem se submetido os trabalhadores.
E, atrelada ao desenvolvimento das novas relações de trabalho, nota-se a propagação de um falso empreendedorismo, ao argumento de que os trabalhadores uberizados não estariam diretamente subordinados juridicamente às plataformas, afastando um dos elementos principais da relação de emprego. Ou seja, é disseminada a ideia de os trabalhadores uberizados são meros prestadores de serviços, com suposta autonomia para execução de suas atividades, como um tipo de microempreendedor.
No entanto, o surgimento de novas formas de trabalho revela que não é apropriado conceber a relação de emprego tão somente a partir da subordinação clássica. Isso porque tais relações revelam uma nova forma de subordinação, denominada subordinação algorítmica. Trata-se de uma evolução do conceito de trabalho subordinado: o algoritmo dita comandos que guiam o comportamento do trabalhador durante aprestação de serviços a partir do controle de preços das tarifas, do sistema de avaliação, do cancelamento de corridas, e, principalmente, diante da real possibilidade de desligamento dos motoristas mal avaliados. Logo, é forçoso concluir que não é verdadeira a premissa de que os trabalhadores têm ampla liberdade na prestação da sua atividade.
As mazelas evidenciadas pela flexibilização do trabalho prestado por meio de plataformas digitais precisam ser confrontadas, sob pena de se consolidar um retrocesso a anos de lutas históricas para garantias sociais e de proteção do trabalho. Neste sentido, é imperioso que os setores efetivamente comprometidos com os interesses das forças sociais do trabalho, em especial, os sindicatos e os movimentos sociais compreendam a nova morfologia do trabalho e reúnam e mobilizem a classe trabalhadora, no que se inclui o contingente formado durante a flexibilização e surgimento das novas formas de trabalho, organizando esse novo proletariado, para fins de formação da força impeditiva à precarização.
Somente assim, a quarta revolução poderá ser verdadeiramente empoderadora e centrada no ser humano, a fim de que efetivamente todos os grupos participem e se beneficiem das transformações em curso (e não só os detentores do capital e dos meios de produção), com plena observância da proteção social do trabalho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
ANTUNES, Ricardo. Trabalho intermitente e uberização do trabalho no limiar da indústria 4.0. In: Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0. 1ª ed. Organização Ricardo Antunes. São Paulo: Boitempo, 2020.
CORREIA, Henrique. Direito do Trabalho. 6ª ed. Salvador: Juspodivm, 2021.
COSENTINO FILHO, Carlo Benito. Neotaylorismo digital e a economia do (des)compartilhamento. In: CARELLI, Rodrigo de Lacerda; CAVALCANTI, Tiago Muniz; FONSECA, Vanessa Patriota da (org.). Futuro do trabalho: os efeitos da revolução digital na sociedade. Brasília: ESMPU, 2020. p. 22-61. Disponível em: http://escola.mpu.mp.br/a-escola/comunicacao/noticias/esmpu-lanca-publicacao-sobre-o-futuro-do-trabalho-e-os-efeitos-da-revolucao-digital-na-sociedade/livro_futuro-do-trabalho.pdf. Acesso em: 27 março 2022.
MORALES, Juliana. Ministério da Educação teve o segundo maior corte no Orçamento 2022. Guia do Estudante, 2022. https://guiadoestudante.abril.com.br/atualidades/ministerio-da-educacao-teve-o-segundo-maior-corte-no-orcamento-2022/. Acesso em: 27 março 2022.
SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Tradução: Daniel Moreira Miranda. 1ª ed. São Paulo: Edipro, 2016.
SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Editora Elefante, 2017.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2015). Especialização em Direito e Processo do Trabalho (2022). Ex-Técnica Judiciária do TJ-RJ (2008-2012). Ex-Analista Judiciário do TJ-RJ (2012-2014). Analista Judiciário do TRT da 1ª Região (a partir de 2014).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Sheina Maia. Revolução 4.0 e uberização: diálogo sobre a precarização e a necessidade de confrontação do novo modelo de trabalho Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 ago 2022, 04:16. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59050/revoluo-4-0-e-uberizao-dilogo-sobre-a-precarizao-e-a-necessidade-de-confrontao-do-novo-modelo-de-trabalho. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: PATRICIA GONZAGA DE SIQUEIRA
Por: Beatriz Ferreira Martins
Por: MARCIO ALEXANDRE MULLER GREGORINI
Por: Heitor José Fidelis Almeida de Souza
Por: JUCELANDIA NICOLAU FAUSTINO SILVA
Precisa estar logado para fazer comentários.