YURI ANDERSON PEREIRA JURUBEBA[1]
BUENÃ PORTO SALGADO[2]
(coautores)
Resumo: Este artigo objetiva ponderar sobre as discussões trazidas pela decisão liminar concedida parcialmente na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 779 pelo ministro Dias Toffoli do Supremo Tribunal Federal (STF). A metodologia adotada foi a pesquisa bibliográfica com análise de conteúdo da decisão e jurisprudência correlata ao tema no intuito de refletir acerca das conclusões trazidas na medida cautelar sobre a inconstitucionalidade da tese legítima defesa da honra e a possibilidade de relativização do princípio da plenitude de defesa no Tribunal do Júri.
Palavras-chave: ADPF 779; Tribunal do Júri, Legítima defesa da honra; Plenitude de defesa; Direitos Fundamentais.
Abstract: This article aims to ponder on the discussions brought by the preliminary decision partially granted in the Fundamental Precept Noncompliance Claim 779 by Minister Dias Toffoli of the Federal Supreme Court (FSC). The methodology adopted was the bibliographic research with content analysis of the decision and jurisprudence related to the theme in order to reflect on the conclusions brought in the injunction on the unconstitutionality of the thesis legitimate defense of honor and the possibility of relativizing the principle of fullness of defense in the Jury court.
Key-words: ADPF 779; Jury Court; Legitimate defense of honor; Fullness of defense; Fundamental rights.
1. Introdução
Este trabalho discorre sobre as ponderações discutidas no voto do Ministro Dias Toffoli do Supremo Tribunal Federal que concedeu parcialmente a medida cautelar na ADPF 779 proposta pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT).
A escolha do tema tem origem no fato de que a tese de legítima defesa da honra, comumente utilizada para defesa de acusados de feminicídio no contexto do tribunal do júri, foi declarada inconstitucional pela liminar do ministro Dias Toffoli, além de obstar a sustentação de tal argumento durante o julgamento, decisão que relativiza o princípio da plenitude de defesa assegurado constitucionalmente.
O impedimento pela decisão monocrática de utilização da legítima defesa da honra como recurso argumentativo no julgamento do tribunal do júri, sob a fundamentação de que tal tese é ofensiva à dignidade da pessoa humana, à vedação de discriminação e aos direitos à igualdade e à vida, levanta questionamentos a respeito das formas de harmonização de direitos fundamentais que possam ser conflitantes.
Assim, após a dissertação sobre algumas características do tribunal do júri, em especial sobre a plenitude de defesa, além da dinâmica da utilização da tese legítima defesa da honra nos julgamentos, serão analisados os argumentos e conclusões da decisão liminar concedida na ADPF 779.
2. A plenitude de defesa e soberania dos veredictos no tribunal do júri
O júri popular é um instituto processual penal presente na legislação brasileira desde 1822, momento em que a legislação apenas limitava sua competência aos crimes de imprensa. Atualmente, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece alguns princípios basilares da estrutura do tribunal do júri, entre eles a plenitude de defesa assegurada ao acusado e soberania dos veredictos assegurada ao Conselho de Sentença.
O art. 5º, inciso XXXVIII da CF/88 dispõe que:
XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida; (BRASIL, 1988)
Não obstante, o júri ainda pode decidir com base em sua íntima convicção, ou seja, ao contrário do dever de fundamentação do magistrado[3], a decisão do júri popular pode ser embasada simplesmente em sua consciência particular.
A garantia constitucional de uma defesa plena possibilita a utilização de recursos argumentativos jurídicos, bem como não jurídicos na dinâmica do tribunal do júri, a defesa pode se beneficiar com teses e conjecturas que alcancem não só a parte racional, mas também a sentimental dos jurados leigos.
Fernando Capez explica que:
A plenitude da defesa implica o exercício da defesa em um grau ainda maior do que a ampla defesa. Defesa plena, sem dúvida, é uma expressão mais intensa e mais abrangente do que defesa ampla. Compreende dois aspectos: primeiro, o pleno exercício da defesa técnica, por parte do profissional habilitado, o qual não precisará restringir-se a uma atuação exclusivamente técnica, podendo também servir-se de argumentação extrajurídica, invocando razões de ordem social, emocional, de política criminal etc. Esta defesa deve ser fiscalizada pelo juiz-presidente, o qual poderá até dissolver o conselho de sentença e declarar o réu indefeso (art. 497, V), quando entender ineficiente a atuação do defensor. Segundo, o exercício da autodefesa, por parte do próprio réu, consistente no direito de apresentação de sua tese pessoal no momento do interrogatório, relatando ao juiz a versão que entender ser a mais conveniente e benéfica para sua defesa (2020, p. 1.014 e 1.015).
A figura do tribunal do júri tem grande importância procedimental no direito penal. A competência de julgar crimes tão relevantes - homicídio doloso, infanticídio, participação em suicídio, aborto e seus crimes conexos – torna seu papel muito importante na sociedade. Somado a isso, o fato de crimes tão hediondos serem julgados por pessoas “comuns” o torna um antro proliferador da opinião pública.
Streck relembra que
Desde sua criação, o júri causou polêmica no que tange à sua representatividade e principalmente quanto a capacidade dos jurados para decidir questões consideradas pelos juristas como de "alta relevância técnica", que os juízes de fato ou leigos não tinham capacidade de alcançar. A discussão sobre a justeza dos veredictos emanados dos julgamentos do Tribunal do Júri surgem à tona principalmente quando é julgado um crime que tenha repercussão social. [...] Até hoje se discute a justiça ou a injustiça da condenação de Sócrates. (2001, p. 90)
Ser julgado pelo seu vizinho ou pela bibliotecária de sua cidade possibilita que o acusado sinta que o veredito foi dado por alguém como ele, com valores, dores e crenças semelhantes. Afasta a figura de um juiz arbitrário e imparcial que não quer saber suas motivações ou histórico.
A utilização de certos argumentos no julgamento popular faz aflorar o lado emocional dos jurados e pode ser a última alternativa para a defesa tentar uma absolvição. É a personificação do ditado popular “cada um luta com as armas que tem”.
Ressalta-se que a composição do júri, apesar de escolhido dentro da sociedade, não representa sua real configuração diversa em gênero, raça, classe social ou etnia (MACHADO et al., 2022).
Há que seja contrário a este procedimento, contudo conforme explica Streck citando Mariza Correia,
os argumentos favoráveis ou contrários à manutenção do júri ou à sua representatividade popular são sempre argumentos políticos ou ideológicos, ou seja, levantados a partir dos interesses dos envolvidos na discussão - seja em termos de sua função e atuação no júri ou fofa dele - e argumentos fundados na visão de mundo dos debatedores. A própria definição do Direito Penal brasileiro como contraditório implica que sempre seja possível encontrar um contra-argumento para qualquer argumentação. É importante frisar que não há qualquer levantamento que comprove, por exemplo, que o Tribunal do Júri, no Brasil, absolve mais do que o fazem os juízes singulares em seus julgamentos. No entanto, esta é uma afirmação reqüente, às vezes dos que defendem a manutenção do júri, às vezes dos que são contrários a ele; às vezes pelos que o condenam por ser pouco técnico, às vezes pelos que o elogiam por sua qualidade democrática, dependendo da situação em que se encontrem. (STRECK, 2001, p. 96 e 97).
Outrossim, Paulo Rangel, em 1961, se mostrou contrário ao sistema da íntima convicção tanto para o juiz togado quanto para o júri popular, revelando que recursos argumentos emocionais usados pelas partes manipulam os fatos e o direito como melhor lhes aproveite.
No sistema da íntima convicção, “o juiz não precisa fundamentar sua decisão e, muito menos, obedecer a critério de avaliação das provas. A intuição da verdade adquire grande prestígio”. O júri é composto pelo juiz presidente e pelo Conselho de sentença, sendo que o fato e o direito são decididos pelos jurados, mas a sanção, se houver, ou a sentença absolutória, é proferida pelo juiz. Logo, se decisão de mérito há, deve esta ser motivada, pois a motivação tem a finalidade de estabelecer limites ao exercício do poder jurisdicional, sendo, portanto, uma garantia do cidadão contra o arbítrio do poder estatal. Não faz sentido que o poder emane do povo e seja exercido em seu nome, por intermédio dos seus representantes legais, mas quando diretamente o exerça não o justifique para que possa lhe dar transparência. Todos os atos do Poder Judiciário devem ser motivados e o júri não pode fugir dessa responsabilidade ética. Flávio Böechat Albernaz ensina: ‘Esse sistema, ao desobrigar o julgador de demonstrar a consonância da sua decisão com a verdade obtida pela atividade contraditória, dialética, das partes, extingue qualquer fronteira porventura existente entre a discricionariedade e a arbitrariedade na atividade jurisdicional, possibilitando aos integrantes do Conselho manipular os fatos e o direito como melhor lhes aproveite, julgando o fato da vida a eles apresentado, consoante critérios puramente subjetivos, pessoais e, quando não, formar o seu convencimento a partir de elementos não só estranhos aos autos, mas estranhos, inclusive, ao ilícito que ao acusado se imputa’. (RANGEL, 1961, p. 199).
Quanto à soberania dos veredictos, o STF firmou através do HC 178.777, em setembro de 2020, o entendimento de que não cabe apelação ministerial contra veredito do tribunal do júri manifestamente contrário às provas dos autos (art. 593, inciso III, alínea d e parágrafo 3º do CPP) embasado na resposta afirmativa ao quesito genérico de absolvição estampado no art. 483, inciso III e parágrafo 2º do CPP.
O fundamento principal de tal decisão já havia sido explanado pelo ministro Celso de Mello ao julgar o RHC 117.076 em 1/8/2019. Vejamos um trecho da decisão:
[...] a apelação do Ministério Público, fundada em alegado conflito da deliberação absolutória com a prova dos autos (CPP, art. 593, III, “d”), caso admitida fosse, implicaria frontal transgressão aos princípios constitucionais da soberania dos veredictos do Conselho de Sentença, da plenitude de defesa do acusado e do modelo de íntima convicção dos jurados, que não estão obrigados – ao contrário do que se impõe aos magistrados togados (CF, art. 93, IX) – a decidir de forma necessariamente motivada, mesmo porque lhes é assegurado, como expressiva garantia de ordem constitucional, “o sigilo das votações” (CF, art. 5º, XXXVIII, “b”) [...] (BRASIL, 2019).
Recentemente, o STF reafirmou tal parecer pela decisão do ministro Ricardo Lewandowski nos Recursos Ordinários em Habeas Corpus (RHCs) 192431 e 192432, para os quais já havia negado provimento por decisão monocrática em outubro de 2020 com base na jurisprudência até então consolidada de que a determinação de novo julgamento pelo Tribunal do Júri não viola a soberania dos veredictos, contudo, em fevereiro de 2021 reconsiderou a decisão através de Agravo Regimental e concedeu a ordem de habeas corpus a partir de precedente da Segunda Turma no HC 185068.
Como demonstrado, a Corte maior vem reiterando a soberania dos vereditos, em especial quando com base no quesito genérico de absolvição, conferindo-lhe uma força quase que absoluta na instituição do júri.
Opiniões contrárias à parte, o Tribunal popular faz parte do processo penal brasileiro e dentro dele é assegurado constitucionalmente ao acusado uma defesa plena e ao júri a soberania de seus veredictos, o que nos leva a discutir a respeito do próximo tópico: a manifestação da tese legítima defesa da honra durante os julgamentos.
3. A tese legítima defesa da honra
Conforme visto, o direito a uma defesa plena possibilita o uso de teses defensivas variadas nas sessões perante o júri popular.
A legítima defesa é um direito assegurado à pessoa para se resguardar de agressões injustas desferidas contra si ou a outrem e deve obedecer aos requisitos legais. Disciplina o Código Penal Brasileiro:
Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato:
Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem (BRASIL, 1940).
É uma tese defensiva comumente utilizada em variados momentos e procedimentos do processo penal. Apesar de não estar diretamente disposta na Constituição da República Federativa do Brasil, está intrinsecamente relacionada com direitos fundamentais como à vida, dignidade da pessoa, saúde, entre outros.
A legítima defesa da honra é um recurso argumentativo manejado por advogados, que se fazendo valer da possibilidade de defesa plena e não tendo outra justificativa para a atitude dos acusados, como uma “interpretação extensiva” da excludente de ilicitude legítima defesa assegurada legalmente. Como os jurados leigos não precisam entender a adequação jurídica da tese, muitas vezes acabam acatando-a levando à absolvição.
Mendes et al. (2007) dispõe que:
Para absolver os clientes que matavam impelidos por esses sentimentos os advogados de defesa se utilizavam da excludente perturbação dos sentidos e da inteligência, mas com sua revogação, surgiu, no Tribunal do Júri, a tese de legítima defesa da honra, criada por astutos advogados de defesa que pretendiam alcançar a absolvição de clientes acusados de crimes passionais. (p. 8)
Em uma sociedade machista e patriarcal como é a brasileira, a construção e proteção da honra, prioritariamente a masculina, é de extrema importância. A tese legítima defesa da honra era e é - antigamente com mais força - utilizada para justificar atos de violência de homens contra as mulheres, seja em casos de homicídio ou lesão corporal.
A honra acompanha o ser humano desde a antiguidade. Para homens, uma imagem ilibada perante a sociedade correspondia à sua honra. Para mulheres, sua devoção ao lar e ao marido, além da fidelidade (MENDES, et al., 2007)
Nos casos de homicídio, o júri popular convocado por vezes absolvia o réu por concordar que a honra havia sido “manchada” com a atitude da vítima. Como visto, o júri popular também tem suas crenças e preconceitos e, ao contrário do juiz togado, não precisa obedecer obrigatoriamente à imparcialidade.
Margarita Danielle Ramos explana que:
a honra masculina é um enunciado que parece não mais fazer parte dos discursos proferidos em nossa cultura. Seu significado e uso parecem fazer parte de um passado longínquo, como se fosse algo que não estivesse de acordo com os arranjos feitos pelas relações de gênero atuais. Porém, o que se tem visto, hoje em dia, é o uso indiscriminado desse enunciado para justificar e ainda banalizar atitudes violentas dos homens contra as mulheres (2012, p. 54).
A autora, ao traçar um histórico da construção da honra masculina, disciplina que esta já era um tesouro digno de proteção social e que com a elaboração do Código Filipino passa a ser legitimada – sendo vista como um bem jurídico tutelado pelo Estado – pelos mecanismos doutrinais como um bem mais valioso que a vida da mulher adúltera. (2012, p. 62) Contudo, conclui que com as reivindicações dos direitos das mulheres principalmente a partir do século XXI, a Jurisprudência brasileira começou a ser menos tolerante com a alegação de legítima defesa da honra usada de forma arbitrária nos Tribunais do Júri (2012, p. 69).
Assim, observa-se que apesar de a legítima defesa da honra não se configurar como a legítima defesa estabelecida pelo Código Penal[4] por não observar os seus requisitos como a razoabilidade, foi uma tese utilizada para absolver ou atenuar a pena de homens (em sua maioria) que matavam ou agrediram mulheres.
A doutrina e jurisprudência com o passar dos anos e com a ampliação da equidade entre homens e mulheres vem rechaçando a utilização de tal tese. Nos Tribunais Estaduais, os relatores expressavam divergências quanto à alteração do julgamento feito com base no reconhecimento da tese defensiva, vejamos:
APELAÇÃO. CRIME DOLOSO CONTRA À VIDA. JÚRI. ABSOLVIÇÃO. RECONHECIMENTO DE EXCLUDENTE DE ILICITUDE. LEGÍTIMA DEFESA A HONRA. LIVRE CONVICÇÃO DOS JURADOS. RECURSO MANEJADO PELO ÓRGÃO MINISTERIAL. CONDENAÇÃO. ALEGAÇÃO DE DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. INOCORRÊNCIA. IMPROVIMENTO DO APELO. I - Se a decisão do Conselho de Sentença está respaldada por uma das vertentes da prova produzida nos autos, optando os jurados, por íntima convicção, pela tese defensiva, consistente na legítima defesa própria ou da honra, não há que se falar em contrariedade à prova dos autos. II - Apelo improvido. (TJ-AC 00190600620108010001, Relator: Francisco Djalma, Data de Julgamento: 02/10/2014, Câmara Criminal, Data de Publicação: 10/10/2014)
EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - CRIME CONTRA A VIDA - HOMICÍDIO QUALIFICADO - RECURSO MINISTERIAL - ABSOLVIÇÃO POR LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA - EXCESSO DOLOSO - DECISÃO DO CONSELHO DE SENTENÇA MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS - CASSAÇÃO - RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. I - Ainda que os veredictos proferidos pelo Tribunal do Júri sejam soberanos, suas decisões devem encontrar na prova carreada aos autos apoio mínimo que as ampare. Não o fazendo, comportam anulação com fulcro no art. 593, § 3º do Código de Processo Penal. II - O adultério não coloca o cônjuge ofendido em estado de legítima defesa, por evidente incompatibilidade com os requisitos do art. 25 do Código Penal, sendo a conduta, com evidenciado excesso doloso, injustificável. (TJ-MG - APR: 10084120014901002 MG, Relator: Adilson Lamounier, Data de Julgamento: 26/01/2016, Data de Publicação: 01/02/2016).
4. ADPF 779: discussões e extensão da decisão
Ao deferir em parte por liminar, referendada pelo pleno, a medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 779, o ministro Dias Toffoli do Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que a tese legítima defesa da honra, por vezes utilizada como recurso argumentativo de defesa no tribunal do júri, é inconstitucional e obstou que os agentes do processo a utilizem, sob pena de nulidade do ato ou do julgamento.
Ao afirmar que os direitos assegurados pela Constituição de 1988 como à vida e à igualdade não sustentam a prática da tese legítima defesa da honra, o relator pondera a respeito de um conflito de princípios. A plenitude de defesa parece ficar em segundo plano nesta análise.
A conclusão da liminar foi:
(i) firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF);
(ii) conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa e, por consequência,
(iii) obstar à defesa que sustente, direta ou indiretamente, a legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como no julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento (BRASIL, 2021).
Muitos podem ser os posicionamentos e efeitos desta decisão. Por um lado, há autores que entendem a decisão como uma forma de proteger a dignidade humana de mulheres vítimas de violência, em detrimento, de certa forma, da liberdade argumentativa (MACHADO et al., 2022). Por outro lado, há autores que defendem que a decisão pode criar zonas impeditivas de defesa que parecem criminalizar o próprio defensor e o ato de defender (ANDRADE, 2021).
Esta autora, apesar de compactuar com o entendimento de que a tese legítima defesa da honra foi criada por homens para lhes proteger de pagar por seus atos violentos e não se encaixa nos requisitos da excludente de ilicitude disciplinada na legislação brasileira, entende que é importante debater a eficácia dos objetivos esperados pela decisão e os impasses que poderão ser observados na prática, além de quais serão os rumos que a dinâmica do tribunal do júri poderá tomar frente à possibilidade de relativização de princípios.
A esse respeito, Anna Luisa Borges Klotz ao escrever sobre a insuficiência da vedação da tese de legítima defesa da honra trazida pela ADPF 779 e os impactos no feminicídio, sabiamente, ressalta que de pouco adianta proibir o uso da tese se o jurado, inserido em uma sociedade machista, vota sem fundamentar e, assim, pode se utilizar da mesma visão preconceituosa para absolver (2021, pág. 42).
Machado et al. (2022) também demonstram preocupações quanto aos desafios da implementação das medidas da ADPF na corte popular, entendendo que mesmo que o argumento seja vedado para utilização pelo sujeitos técnicos do processo, o réu ainda pode fazer alusão direta ou indiretamente a tal tese durante seu depoimento perpetuando, ainda que de forma longínqua, o caráter machista que a decisão pretende coibir.
Outrossim, a restrição de uma tese argumentativa na dinâmica do tribunal parece ferir um dos princípios basilares desta corte. Edilson Bonfim (2012) salienta que não é possível dizer que um argumento seja mais valioso ou reprovável que outro, ou seja, inexiste a possibilidade de traçar uma hierarquia argumentativa:
Comuns, no Júri, nesse diapasão, o argumentum ad personae, o argumentum pietatis causae ou ad misericordiam, o argumentum ad baculum, o argumentum ad terrorum, o argumentum ad populum, dentre muitos outros, todos se configuram em falácias, argumentos extralógicos, combatíveis na argumentação plenária, sem que, com isso, se possa proscrever toda a variada gama argumentativa, ou dizer, mesmo, que um seja mais danoso que outro à verdade real que se busca. (2012, p. 1.069).
O autor explica que figuras de linguagem, ironia, ênfase, jogos malabares linguísticos, ou seja, argumentos lógicos e extralógicos pertencem à essência dos discursos no júri, quiçá a todos os discursos jurídicos, não sendo possível suprimi-los sem que o próprio direto e o pressuposto da democracia e o tribunal popular o fossem.
O perigo de se proibir o uso de um argumento defensivo em um tribunal que, teoricamente, assegura a plenitude de defesa é que, no caso, relativiza o principal “benefício” do júri popular: o julgamento por seu igual.
De acordo com o disposto no segundo tópico deste texto, o STF vem reafirmando a soberania dos veredictos do Conselho de Sentença impossibilitando o recurso em casos de absolvição pelo quesito genérico mesmo quando manifestamente contrária à prova dos autos. A recente decisão tomada na ADPF 779, conforme explana Andrade (2021), demonstra uma tentativa de compatibilizar os dois entendimentos de modo que ao proibir que o defensor utilize a tese considerada inconstitucional para que não sirva de fundamento ao jurado para absolver, uma vez que não poderá ser reformada a resposta ao quesito.
Resta-nos a questão: até que ponto é razoável relativizar um princípio tão importante e presente no Tribunal do Júri, alterando a dinâmica defensiva da corte popular? Além disso, em quais situações essas ponderações podem afetar as instituições jurídicas?
5. Conclusão
Conforme o exposto no presente trabalho, a ponderação de princípios constitucionais é um assunto complexo que requer razoabilidade e uma análise detalhada. No contexto do Tribunal do Júri, instituição secular mundial, a complexidade desta análise é ainda maior. Direitos fundamentais como à vida, liberdade e dignidade humana em discussão tornam o ambiente sensível às mudanças que uma interpretação pode causar.
Após uma análise do direito à plenitude de defesa na corte popular, destacando a diferença entre defesa ampla e plena, foi mostrada a força conferida pelo STF a este princípio constitucional juntamente com a soberania dos vereditos.
Além disso, foi abordado como a tese legítima defesa da honra é utilizada nos julgamentos populares, mostrando como escritores, de ramos acadêmicos diferentes, encaram a perpetuação desta tese.
Por fim, tratou-se de como a decisão liminar no julgamento da ADPF 779 pode impactar nesse instituto jurídico e merece ser discutida com cautela pelos operadores do direto, em especial os ministros do STF que efetivamente decidirão os rumos dessa ação. Para embasar a complexidade da discussão foram citadas opiniões diversas a respeito da decisão da medida cautelar.
Dito isto, é preciso que profissionais e estudiosos enriqueçam a discussão, mostrando pontos de vista a partir das perspectivas de suas respectivas áreas de atuação, a ponto de subsidiar debates futuros sobre ponderação de princípios e, inclusive, a decisão final na ADPF 779.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Rio de Janeiro, RJ: Presidência da República [1940]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em 18 abr. 2022.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Referendo na Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 779. Referendo de medida cautelar. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Interpretação conforme à Constituição. Artigos 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e art. 65 do Código de Processo Penal. “Legítima defesa da honra”. Não incidência de causa excludente de ilicitude. Recurso argumentativo dissonante da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF). Medida cautelar parcialmente deferida referendada. [...] Relator: Min. DIAS TOFFOLI. Data de julgamento: 15/03/2021. Data de publicação 20/05/2021. Disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur446516/false>. Acesso em 7 dez. 2021.
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 27 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
KLOTZ, Anna Luiza Borges. A insuficiência da vedação da tese de legítima defesa da honra, trazida pela APF 779, e os impactos no feminicídio. Monografia (Graduação em Direito) – Centro Universitário Curitiba, Faculdade de Direito de Curitiba; Curitiba, 2021.
MENDES, B. C.; FERREIRA, K. R. O.; DIAS, P. S.; AQUOTTI, M. V. F. Legítima Defesa da Honra. ETIC-ENCONTRO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA-ISSN 21-76-8498, v. 3, n. 3, 2007.
RAMOS, Margarita Danielle. Reflexões sobre o processo histórico-discursivo do uso da legítima defesa da honra no Brasil e a construção das mulheres. Revista Estudos Feministas, v. 20, n. 1, p. 53-73, 2012.
STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do júri: símbolos e rituais / Lenio Luiz Streck: 4 ed. rev. e mod. — Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
[1] Doutorando em Direito pela PUC-Rio. Mestre em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Professor da Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS). Assessor Jurídico de Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins. E-mail: [email protected].
[2] Doutor em Direito pela UNESA-Rio. Mestre em Direito pela EPD-SP, Professor da Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS). Auditor do TCE-TO. E-mail: [email protected].
[3] Art. 93, inciso IX da CF.
[4] Art. 25 do CP.
Bacharelanda do Curso de Direito da Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS)/ Palmas – TO, Brasil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AGUIAR, Maria Luiza Felipe Camelo. ADPF 779: tribunal do Júri e a ponderação de princípios constitucionais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 ago 2022, 04:19. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59058/adpf-779-tribunal-do-jri-e-a-ponderao-de-princpios-constitucionais. Acesso em: 23 dez 2024.
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