RODRIGO ANTONIO CORREA
(orientador)
RESUMO: O presente trabalho apresenta como objetivo principal analisar e demonstrar, de forma técnica, a invalidade do inquérito n° 4.781, instaurado pelo Supremo Tribunal Federal para investigar a possível existência de notícias falsas, ameaças e infrações revestidas de calúnia, difamação e injúria contra os ministros da Suprema Corte e de seus familiares. No inquérito, é possível identificar a existência de diversos vícios, como a instauração de oficio pelo presidente do STF e a designação do Ministro Alexandre de Moraes para a condução, sem que houvesse sorteio ou prévia distribuição, ferindo, dessa forma, o princípio do juiz natural. Ademais, foram realizadas variadas medidas constritivas de direitos fundamentais dos investigados sem a participação do Ministério Público, que é o titular exclusivo da ação penal pública, refutando, assim, o sistema acusatório, adotado no ordenamento jurídico brasileiro. Nota-se, a discrepância do inquérito com a legislação vigente, bem como, com os princípios basilares do processo penal, maculando o contraditório, a ampla defesa e a imparcialidade do juiz. A metodologia de desenvolvimento do trabalho é a dedutiva, uma vez que foi feito estudo bibliográfico, em acervos públicos e privados, levantamento de legislações pertinentes e pesquisa de doutrinas e jurisprudências sobre os pontos apresentados.
Palavras-chave: Inquérito n° 4.781. Vícios. Princípios basilares.
ABSTRACT: The main objective of this scientific article is to analyze and demonstrate, in a technical way, the invalidity of inquiry n° 4,781, instituted by the Supreme Court to investigate the possible existence of false news, threats and infractions coated with calumny, defamation and injury against the Supreme Court justices and their families. In the inquiry, it is possible to identify several vices, such as the opening of an official letter by the president of the STF and the appointment of Minister Alexandre de Moraes to conduct it, without a draw or prior distribution, thus violating the principle of the natural judge. Furthermore, various measures restricting the fundamental rights of the investigated were carried out without the participation of the Public Ministry, which is the exclusive holder of the public criminal action, thus refuting the accusatory system adopted in the Brazilian legal system. Note the discrepancy of the inquiry with the current legislation, as well as with the basic principles of the criminal procedure, tarnishing the adversary, the broad defense and the impartiality of the judge. The methodology for developing the work is deductive, since a bibliographical study was carried out in public and private collections, a survey of pertinent legislation and research on doctrines and jurisprudence on the points presented.
Keywords: Inquiry. Addictions. Basic principles.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Sistemas processuais penais. 2.1 Sistema inquisitivo. 2.2 Sistema acusatório. 2.3 Sistema misto ou inquisitivo garantista. 3. Inquérito 4.781/2019. 3.1 Violação do sistema acusatório. 3.2 Violação do princípio do juiz natural. 3.3 Violação da titularidade do Ministério Público na condução da investigação. 3.4 (Im) competência do STF para a condução do Inquérito 4.781. 4 Processo judicialiforme (ação penal ex officio). 5 Conclusão. 6 Referências.
1 INTRODUÇÃO
No presente trabalho será analisado o inquérito n° 4.781, nomeado como Inquérito das Fake News, cujo objetivo é a investigação de possível existência de notícias falsas, bem como ameaças e infrações revestidas de calúnia, difamação e injúria contra os ministros do Supremo Tribunal Federal e de seus familiares.
A relevância de tratar o assunto se efetiva pela existência de inúmeros vícios na abertura e condução do inquérito, implicando em ofensas às normas e garantias fundamentais, demonstrando uma atitude anormal e autoritária dos membros da Suprema Corte, que deveria ser a guardiã da Constituição Federal.
Importante esclarecer que não se tenciona nesse artigo defender a impunidade de eventuais crimes cometidos contra os ministros da Corte, mas sim que seja aplicado o procedimento constitucionalmente adequado. O estudo aqui apresentado não são dirigidas em face da instituição ou de pessoas, mas tão somente ao método absolutamente inadequado adotado no inquérito.
Isto posto, a problemática reside o seguinte aspecto: tendo em vista as normas constitucionais e aos princípios processuais, pode um inquérito ser instaurado de ofício pelo presidente do Supremo Tribunal Federal? Pode ocorrer a designação de ministro para presidi-lo sem a prévia distribuição? E, por fim, o pedido de arquivamento formulado pela Procuradora-Geral da República pode ser rejeitado?
Na procura das respostas para os problemas, o trabalho tem como objetivo geral analisar e demonstrar, de forma técnica, a invalidade do Inquérito n° 4.781.
E, como objetivos específicos esclarecer como funcionam os mecanismos de investigação, demonstrar violações aos princípios constitucionais, analisar a competência para presidir o inquérito policial e estudar sobre a possibilidade de rejeição de promoção de arquivamento.
Quanto à abordagem da temática estudada, será utilizado o método de pesquisa dedutivo, sendo realizados estudos bibliográficos, em acervos públicos e privados, levantamento de legislações pertinentes e pesquisa de doutrinas e jurisprudências sobre os pontos apresentados.
Para melhor explanação do tema será desenvolvido um capitulo para estudar os sistemas processuais penais e os demais tópicos para abordar sobre as polemicas acerca do inquérito das Fake News.
2 SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS
Os sistemas processuais penais são concernentes à interação existente entre o julgador, promotor e defesa.
O conceito de um sistema processual é o complexo de leis vigentes no ordenamento jurídico, que funcionam de uma maneira organizada e coordenadas entre si. Dessa forma, o sistema é caracterizado pela existência de uma ideia fundadora e de um conjunto de regras que decorrem dessa premissa.
No direito comparado, existem três espécies de sistemas processuais, sendo elas: sistema inquisitivo, sistema acusatório e o sistema misto, também conhecido como inquisitivo garantista.
2.1 Sistema inquisitivo
O sistema inquisitivo tem origem nos regimes monárquicos, na qual contempla um processo judicial em que pode estar concentrado a um único órgão, isto é, à uma única pessoa a função de defender, acusar e julgar.
O juiz é um gestor de provas, em que pode agir de oficio e valorar provas como bem entender. Ocorrendo aqui um alto grau de subjetivismo judicial e, por consequência, tendo interferência direta na imparcialidade do juiz.
Sobre esse sistema, Noberto Avena (2016, p.09) descreve que:
Não existe a obrigatoriedade de que haja uma acusação realizada por órgão público ou pelo ofendido, sendo licito ao juiz desencadear o processo criminal ex officio. Nesta mesma linha, faculta-se ao magistrado substituir-se às partes e, no lugar destas, determinar, também por sua conta, a produção das provas que reputar necessárias para elucidar o fato.
Nota-se que no sistema inquisitorial o investigado quase não detém garantias, tal como o devido processo legal, ampla defesa ou contraditório, o que dá margem para que ocorra excessos. Por esse motivo, em regra, o processo é de caráter sigiloso, sendo atribuído pelo próprio juiz por meio de ato discricionário.
Não há se falar aqui em paridade de armas, pois nítida é a posição de desigualdade entre as partes. No referido sistema há restrições até mesmo na defesa do acusado, não sendo possível, inclusive, manifestar-se após a acusação.
2.2 Sistema acusatório
O sistema acusatório é caracterizado pela separação completa do órgão acusador, defensor e julgador, que fica a cargo de pessoas distintas, não podendo, em hipótese alguma, se fundirem.
É assegurado ao acusado todas as garantias constitucionais, como o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a presunção de inocência e o direito de manifestar-se após a acusação. Além disso, em regra, serão públicos os atos processuais, salvo as hipóteses expressamente previstas em lei.
Nesse sistema, o magistrado se encontra em uma posição de terceiro imparcial, não podendo fazer interferências nas investigações, bem como na coleta de provas, sendo somente um receptor destas.
Convém mencionar que, as partes possuem isonomia processual, isto é, o órgão acusador e a defesa ficam em posição de igualdade no processo, sendo-lhes garantidas as mesmas oportunidades de intervenção.
Sobre o assunto, Lopes Júnior (2008, p.59) discorre:
O sistema acusatório é um imperativo do moderno processo penal, frente à atual estrutura social e política do Estado. Assegura a imparcialidade e tranquilidade psicológica do juiz que irá sentenciar, garantindo o trato digno e respeitoso com o acusado, que deixa de ser mero objeto para assumir sua posição de autêntica parte passiva do processo penal.
Ressalta-se que, apesar de não haver uma posição uniforme sobre o sistema processual adotado no Brasil, a doutrina majoritária, bem como o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, em diversas decisões, apontam o sistema acusatório como o que predomina no país.
Para Noberto Avena (2016, p.12), a consagração do sistema acusatório está explicita em diversas disposições da Constituição Federal, em especial aquelas que referem-se a obrigatoriedade de fundamentação das decisões (art. 93, IX), as garantias de isonomia processual (art. 5°, I), do juiz natural (art. 5°, XXXVII e LIII), do devido processo legal (art. 5°, LIV), do contraditório e da ampla defesa (art. 5°, LV), como também o da presunção de inocência (art. 5°, LVII).
2.3 Sistema misto ou inquisitivo garantista
O sistema misto é considerado como a fusão entre os sistemas supramencionados, ou seja, um modelo intermediário do sistema acusatório e inquisitivo.
Porquanto, no mesmo momento em que há o respeito às garantias constitucionais, como presunção de inocência, contraditório e ampla defesa, encontra-se alguns fragmentos do sistema inquisitivo.
Nesta perspectiva:
As funções de acusar, defender e julgar são entregues a pessoas distintas. Na fase do julgamento, o processo é oral, público e contraditório (oralement, publequemente et contradictoirement), contudo, as duas primeiras fases são secretas e não-contraditórias. No processo tipo misto ou acusatório formal, na fase da investigação preliminar e da instrução preparatória, observa-se o processo do tipo inquisitivo e na fase de julgamento o processo do tipo acusatório” (MUCCIO, 2000, p. 65).
Percebe-se que no sistema misto a sua principal característica é ser bifásico, com uma fase inicial inquisitiva, em que há investigação preliminar com instrução secreta e escrita, sem contraditório e ampla defesa. Por outro lado, a fase processual tem a predominância do sistema acusatório, o qual observa todas as garantias constitucionais, especialmente a paridade de armas asseguradas ante a separação das funções de acusar, defender e julgar.
3 INQUÉRITO 4.781/2019
Primordialmente, importante salientar que o inquérito policial é um procedimento persecutório de caráter administrativo, é inquisitivo, preparatório, sigiloso e presidido pelo delegado de polícia.
Compreende-se em um procedimento anterior à existência do processo judicial (ação penal), nele consiste no conjunto de diligencias realizada pela polícia judiciária para obtenção de elementos informativos que apontem a autoria e comprovem a materialidade da infração penal investigada.
Possui como destinatário imediato o Ministério Público, que, conforme previsto no artigo 129, I, da Constituição Federal, é o titular da ação penal pública, e o ofendido, que é o titular da ação penal privada, conforme estabelece o artigo 30, do Código de Processo Penal. Já como destinatário mediato tem o juiz, que se utiliza dos elementos de informações constantes no inquérito policial, para o recebimento da peça inicial e para a formação do seu convencimento.
O inquérito n° 4.781, nomeado como “Inquérito das Fake News”, foi aberto em março de 2019, pelo ex-presidente do Supremo, Dias Toffoli, para investigar a existência de notícias falsas, denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de calúnia, difamação e injúria contra os ministros da Corte e de seus familiares.
Contudo, a abertura e a condução do Inquérito 4.781 mostra-se a existência de vícios passiveis de questionamentos e debates entre especialistas jurídicos.
3.1 Violação do sistema acusatório
Embora não haja no Brasil um consenso à despeito do sistema processual adotado, para maioria dos doutrinadores, o artigo 129, I, da Constituição Federal, na qual aduz que o Ministério Público é o titular exclusivo da ação penal pública, é um indicio de que predomina no país o sistema acusatório.
Todavia, refutando o sistema referido, na Portaria GP n. 69, de 14/03/2019, que deu início ao Inquérito das Fake News, é possível observar que foi instaurado de oficio pelo até então presidente da Suprema Corte, Dias Toffoli, bem como, foi designado o Ministro Alexandre de Moraes para que presidisse o feito, utilizando como justificativa o art. 43 do RISTF (Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal), em que consta a seguinte redação: "Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro" (STF, 1980, p. 03).
Verifica-se ainda, que nos demais casos, ou seja, não ocorrendo infração à lei penal nas dependências do Tribunal, o §1° do referido artigo estabelece que o presidente poderá agir conforme dispõe o caput.
À vista disso, percebe-se então que o regimento atribuiu poderes para que o presidente, de ofício, procedesse abertura de inquérito em casos de crimes que envolvem os ministros do STF.
Contudo, importante trazer a lume, que o RISTF foi criado no ano de 1980, ou seja, sob a égide da Constituição de 1967, inicialmente inquisitória, o que pode-se concluir que o artigo 43 do regimento não foi recepcionado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Isso porque, a Carta Magna consagra expressamente o sistema acusatório quando outorga ao Ministério Público a titularidade exclusiva da ação penal pública. Visando, dessa forma, impedir a concentração de poder, assemelhando-se, assim, ao próprio princípio da separação dos poderes, em que a função de acusar, defender e julgar devem ser exercidas por órgão diversos, preservando, sobretudo, a garantia da imparcialidade do magistrado.
Ressalta-se que no texto da portaria, ao relatar que os crimes praticados atingem a honorabilidade e a segurança do STF, dos ministros e seus familiares, é adotado uma opinião em que permite confundir o julgador com a vítima. Nessa perspectiva, Piovezan (2020, p. 49) assevera que, no caso, tem-se uma aberrante instauração de inquérito pela própria vítima, tendo ela o poder de tomar decisões contra seus supostos algozes.
Assim, tendo em vista que não é o papel de um juiz determinar a instauração de um inquérito de ofício, caso o magistrado tome conhecimento de que crimes estão sendo praticados, deve ele encaminhar essas informações ao Ministério Público e à polícia judiciária, para que então seja instaurado o inquérito policial.
3.2 Violação do princípio do juiz natural
Conforme já explanado anteriormente, o ministro Alexandre de Moraes foi designado pelo até então presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, por meio da portaria n. 69, para presidir o inquérito das Fake News, sem que houvesse o devido sorteio ou a prévia distribuição do feito.
À vista disso, é possível notar a existência de outro vício no inquérito, consistente na falta de fundamentação na designação do Ministro Alexandre de Morais para a condução do feito, isso porque não há na portaria supra citada qualquer justificativa do ato, sendo o conteúdo limitado apenas à indicação, ficando, assim, em aberto as razões e critérios adotados para ter escolhido o referido ministro. O que demonstra, nitidamente, o ato discricionário por parte do presidente da Corte, conduta esta vedada pelo ordenamento jurídico.
No mais, importante frisar que essa designação sem prévia distribuição afronta, não apenas o sistema acusatório, como também o princípio do juiz natural, previsto no artigo 5°, inciso LIII, da Constituição Federal, segundo o qual dispõe que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.
Embora, à primeira vista, o dispositivo parece sugerir que se refere apenas à necessidade de observância das regras de competências ratione materiae, ratione personae e ratione loci, é certo que possui alcance bem maior.
Destarte, é possível observar que no inciso LIII a pretensão é tanto assegurar ao acusado o direito de ser submetido a processo e julgamento no juízo competente, como por órgão investido de garantias que lhe assegurem absoluta independência e imparcialidade.
Ademais, forçoso pontuar, que o princípio em estudo também visa garantir ao cidadão o direito de saber prévia e antecipadamente qual o juízo que irá julga-lo quando vier a cometer algum crime.
É o que dispõe o artigo 5°, XXXVII, da Carga Magna, que veda expressamente a nomeação de um juiz ou a constituição de um tribunal, após a prática de um delito, especialmente para julgar aquele autor. Visando, sobretudo, garantir a imparcialidade do julgador.
Nesse mesmo raciocínio Nucci (2020, p. 158) discorre:
Estabelece o direito do réu de ser julgado por um juiz previamente determinado por lei e pelas normas constitucionais, acarretando, por consequência, um julgamento imparcial. Encontra previsão no art. 5.º, LIII, da Constituição. Seu contraponto é a vedação ao juízo ou tribunal de exceção (art. 5.º, XXXVII, CF), ou seja, a nomeação de um juiz ou a constituição de um tribunal, após a prática do delito, especialmente para julgar o seu autor.
Deste modo, tendo em vista o princípio referido, resta evidenciado a ilegalidade na designação do eminente Ministro Alexandre de Moraes para a condução do inquérito, visto que que não há qualquer justificativa e fundamento jurídico para tal ato, sem que houvesse o sorteio ou prévia distribuição.
3.3 Violação da titularidade do Ministério Público na condução da investigação
Importante frisar que no inquérito das Fake News a própria Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, foi privada de seu direito constitucional de participar do processo, na qual, conforme estipula a Carta Magna, é titular.
Neste prisma, a Procuradora-Geral da República manifestou-se no dia 31/07/2019, por meio do Mandado de Segurança n°. 36422, aduzindo que os autos do inquérito referido, não haviam sido remetidos à Procuradoria e, que, pelo fato da investigação correr sob sigilo não teve qualquer acesso ao seu conteúdo, mesmo sendo a titular exclusiva da ação penal pública. Ademais, definiu tal ato como uma situação inusitada, jamais experimentada pelo órgão (MPF, 2019).
Após cerca de 30 dias, a procuradora finalmente teve vista do Inquérito n° 4.781 e, ante as inúmeras irregularidade presentes em sua instauração e condução, promoveu seu arquivamento alegando:
Notícias publicadas em diferentes meios de comunicação, inclusive hoje, anunciam o cumprimento de medidas cautelares penais sujeitas a reserva de jurisdição, sem prévio requerimento nem manifestação determinada por lei desta titular constitucional da ação penal, seja em relação aos parâmetros legais e objetivos que condicionam o deferimento da medida cautelar, seja em relação ao controle externo da atividade policial, que são atribuições constitucionais do Ministério Público (MPF, 2019, p. 02).
De mais a mais, Raquel Dodge (2019, p.04) assevera que: “O sistema penal acusatório estabelece a intransponível separação de funções na persecução criminal: um órgão acusa, outro defende e outro julga. Não admite que o órgão que julgue seja o mesmo que investigue e acuse". Além disso, a procuradora afirma que, em sua função no Supremo defendeu, "de forma intransigente" o sistema penal acusatório no ordenamento jurídico brasileiro, pois, segundo aduz, isso é o que motiva o fortalecimento da justiça.
Ocorre que, o ministro da Corte, Alexandre de Moraes (2019), rejeitou integralmente o pedido de arquivamento do inquérito alegando que: “Não se configura constitucional e legalmente licito o pedido genérico de arquivamento da PGR, sob o argumento da titularidade da ação penal pública impedir qualquer investigação que não seja requisitada pelo Ministério Público”.
No entanto, teoricamente, não poderia o ministro rejeitar o pedido de arquivamento formulado pela Procuradora-Geral da Republica. Isto porque, no caso, não há falar na aplicação do art. 28, do Código de Processo Penal[1].
Verifica-se que na primeira instancia, quando o promotor de justiça apresenta a promoção de arquivamento e o juiz com ela não concorda, será aplicado no caso o artigo 28, do CPP, em que os autos serão remetidos ao Procurador-Geral, para que este proceda com o oferecimento da denúncia.
Todavia, no Inquérito das Fake News não há a possibilidade da aplicação desse artigo, tendo em vista que o pedido do arquivamento foi formulada pela Procuradora-Geral da República, que é a própria chefe da instituição, não havendo, então, nenhum outro órgão superior a esse.
E, por conseguinte, não há qualquer outra previsão legal que possibilita rever a decisão de arquivamento de inquérito policial determinada pela Procuradora-Geral da República. Nesse sentido, assim já decidiu a Suprema Corte:
STF: “(...) 4. Na hipótese de existência de pronunciamento do Chefe do Ministério Público Federal pelo arquivamento do inquérito, tem-se, em princípio, um juízo negativo acerca da necessidade de apuração da prática delitiva exercida pelo órgão que, de modo legítimo e exclusivo, detém a opinio delicti a partir da qual é possível, ou não, instrumentalizar a persecução criminal. 5. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal assevera que o pronunciamento de arquivamento, em REGRA, deve ser acolhido sem que se questione ou se entre no mérito da avaliação deduzida pelo titular da ação penal (STF, Pleno, Inq. 2.341 QO/MT. Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 28/06/2007, DJe 82 16/08/2007).
Nesse mesmo julgado são inúmeros os precedentes citados, assim sendo, é indubitável que quando a promoção de arquivamento é feita pela Procuradoria-Geral da República ela é de atendimento compulsório, salvo quando esse arquivamento tiver o condão de formar coisa julgada formal e material.
3.4 (Im) competência do STF para a condução do Inquérito 4.781
Outro questionamento é com relação à competência do Supremo Tribunal Federal para a condução do inquérito. Isso porque, o inquérito n° 4.781 trata-se de crimes cometidos contra os ministros da Corte.
E, analisando o artigo 102, I, da Constituição Federal, percebe-se que a competência por prerrogativa de função abrange exclusivamente os crimes cometidos por certas autoridades e, desde que, relacionado ao exercício funcional, não deixando margem para dúvidas que somente ocorre nos casos de autoria e não quando essas autoridades ocupam a posição de vítimas, como ocorreu no inquérito em estudo.
Corroborando com esse entendimento, Cabette (2020, p.07) discorre:
De acordo com a Portaria da lavra do Ministro Dias Toffoli, tratar-se-iam de casos em que os Ministros e até seus familiares seriam “vítimas” de eventuais infrações penais. Isso não confere ao STF qualquer competência para atuar. A competência, considerando interesse da União e envolvimento de funcionários públicos federais, seria da Justiça Federal comum de primeiro grau, nos exatos termos do artigo 109, IV, CF.
À vista disso, havendo um crime cometido em última análise contra o poder judiciário da União a competência seria de um Juiz Federal de 1° instancia, isso porque o artigo 109 da Carta Magna, estabelece que caberá aos juízes federais processar e julgar os crimes contra interesses da União.
É dizer portanto que não possui o STF competência para conduzir o referido inquérito policial, que apura eventuais crimes cometidos contra os próprios ministros da Corte, pois teria no caso a inusitada situação em que as próprias vítimas julgaria seus agressores, afrontando, sobretudo, a imparcialidade do juiz.
4 PROCESSO JUDICIALIFORME (AÇÃO PENAL EX OFFICIO)
O processo judicialiforme consiste na possibilidade de uma ação penal se iniciar sem a participação do Ministério Público, ou seja, de ter início pelo delegado de polícia através de portaria de sua lavra ou até mesmo pelo próprio juiz. Caracteriza-se, portanto, uma exceção à regra de que é vedado ao juiz dar início à uma ação penal.
Nessa perspectiva, poderia ocorrer a ação penal ex officio nos crime de homicídio e lesão corporal de natureza culposa (art. 1°, da Lei n° 4.611/1965), bem como, para apurar contravenções penais (art. 26, do Código de Processo Penal). Assim, é possível verificar que no processo judicialiforme o juiz tem a função tanto de acusar como também de julgar, fazendo, assim, com que o direito de defesa não seja garantido em sua plenitude.
Todavia, os artigos que possibilitavam a ação penal ex officio para os crimes referidos não foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988, visto que conferiu ao Ministério Público, em seu artigo 129, I, a titularidade exclusiva da ação penal pública.
Apesar de não ter sido ainda encerrado o Inquérito das Fake News, seu andamento foi capaz de causar grande preocupação entre os doutrinadores, tendo em vista a possibilidade de existir um processo judicialiforme, ou seja, uma ação penal instaurada de ofício pelo próprio magistrado.
Dessa forma, ante a não recepção dos artigos, não poderá o Supremo Tribunal Federal proceder com a instauração de um processo criminal de oficio, ao qual violaria a previsão do artigo 129, da Constituição Federal, o princípio do juiz natural e a garantia da imparcialidade do juiz.
5 CONCLUSÃO
O presente trabalho acadêmico teve como objetivo analisar o inquérito nº 4.781, nomeado como Inquérito das Fake News. Tema de suma importância diante do fato que a instauração, condução e decretação de medidas cautelares implica em ofensas aos direitos e garantias fundamentais, bem como no desrespeito das normas jurídicas vigentes.
Sob a ótima do sistema acusatório, que é marcado pela separação entre o acusador, defensor e julgador, a instauração ex officio do inquérito n° 4.781 viola não só a Constituição Federal, mas também todo o ordenamento jurídico, que estabeleceu tal sistema na República Federativa do Brasil.
Conforme estudado, o presidente da Suprema Corte designou o ministro Alexandre de Moraes para a condução do referido inquérito, como também, no andamento das investigações, houve a exclusão da participação do Ministério Público, na qual, conforme estipula a Carta Magna, é o titular da ação penal pública, violando, assim, o artigo 129, da Carta Magna e a garantia da imparcialidade do juiz.
Ademais, foi observado a incompetência do Suprema Tribunal Federal para a condução do inquérito, visto que teria no caso, a bizarra situação em que as próprias vítimas julgaria seus agressores.
Situações essas que causam grande preocupação entre os especialistas jurídicos, que temem a possibilidade da existência de uma futura ação penal ex officio, o que é completamente vedado no ordenamento jurídico brasileiro.
Logo, percebe-se que tais atos ferem os direitos e garantias constitucionais pelo não cumprimento dos princípios basilares do processo penal, maculando o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa e a imparcialidade do juiz.
Isto posto, restou evidenciado as atitudes inusitadas e autoritárias dos membros de uma instituição que deveria ser a guardiã da Constituição Federal. Portanto, o inquérito das Fake News está revestida de vícios, revelando-se, dessa forma, sua ilegalidade.
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SILVA, R.J. Uma análise do chamado “Inquéito das Fake News” pelo prisma da liberdade de expressão. Disponível em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/55043/uma-anlise-do-chamado-inqurito-das-fake-news-pelo-prisma-da-liberdade-de-expresso. Acesso em: 20 de jul. de 2021.
Bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário de Santa Fé do Sul (UNIFUNEC)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARBOSA, Heloiza Cristina. Inquérito das fake news: uma análise frente ao sistema acusatório Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 set 2022, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59109/inqurito-das-fake-news-uma-anlise-frente-ao-sistema-acusatrio. Acesso em: 24 nov 2024.
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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