Resumo: O presente trabalho, feito com a utilização de revisão bibliográfica, analisou o fenômeno do processo de declínio da democracia liberal nos últimos anos, especialmente no Brasil. O referido evento tem sido abordado em perspectivas diferentes por autoras e autores diversificados, refletindo e aprofundando o tema de gênero desde o olhar constitucional.
Palavras-chave: Constitucionalismo feminista. Democracia liberal. Autoritarismos. Gênero. Retrocesso. Diversidade.
1 INTRODUÇÃO
Nos últimos anos presenciamos o processo de declínio da democracia liberal. O fenômeno tem sido abordado sob perspectivas diversas e autores distintos como por exemplo, recessão democrática (Larry Diamond), decadência democrática (Tom Gerald Daly), crise constitucional (Jack Balkin), populismo constitucional (Paul Blokker).
Considerando cenários distintos, optamos por usar processo de declínio democrático ou ressurgimento de autoritarismos. Tal variedade ressalta as diferenças na forma como tem ocorrido nos países de acordo com situações políticas e jurídicas específicas. Boa parte da literatura que trata da queda da democracia liberal sob o viés de gênero o faz tendo por análise países populistas, autoritários e a queda democrática decorrentes de sistema neoliberal, situações notadamente diversificadas. Possuem em comum a apropriação da retórica sobre o gênero diante da queda democrática.
Vislumbra-se que os regimes têm se apropriado da visão de gênero amarrada ao papel tradicional materno dentro da estrutura familiar, além de manifestações escancaradamente misóginas das principais lideranças partidárias usando o antifeminismo em suas diversas vertentes como a cola articuladora entre vários partidos com os de extrema direita. Este processo tem levado a retrocessos tanto em direitos sexuais e reprodutivos quanto em proteção de gênero em seu sentido amplo.
É de suma importância estabelecer que o antifeminismo não é um movimento novo, mas que ganhou impulso nos governos populistas e de extrema direita, retroalimentando tais discursos.
2 DEMOCRACIA LIBERAL E SEU DECLÍNIO
Após os processos políticos ocorridos na década de 1970 no sul da Europa e América Latina iniciou-se na Ciência Política linhas de estudo que pretendiam compreender o processo de transição para a consolidação da democracia tendo por objeto central a compreensão acerca dos elementos favorecedores ou dificultadores da criação e manutenção de um regime democrático. A universalização da democracia após a queda do muro de Berlim foi considerado por Fukuyama como o “fim da história”, ou seja, o triunfo do modelo democrático liberal.
Apesar das tentativas de estabelecimento de critérios confiáveis de mensuração e avaliação, a democracia é variável, sujeita a mudanças de critérios e funcionamento. Nos últimos cinquenta anos houve a ascensão global do constitucionalismo com constituições escritas, controle de constitucionalidade e separação dos poderes, tornando o constitucionalismo liberal como modelo disseminado pelos países.
Após o aparente consenso democrático, quando países com democracia consolidada que nunca passaram por autoritarismos como os Estados Unidos e recentemente consolidadas como a Polônia, enfrentaram ameaças aos critérios democráticos, gerando intensa preocupação nos analistas políticos.
O processo de declínio tem ocorrido tanto em países de democracia consolidada, como tem piorado a qualidade da democracia em países não completamente democráticos. Portanto, o viés de que os países estariam necessariamente em processo de democratização é falso ou pelo menos parcial.
As ameaças atuais não são iguais às ocorridas no passado. Ao invés de golpes de estado dados por militares, as ameaças atuais ocorrem a partir de líderes eleitos que usam a ordem jurídica de forma a distorcê-la, fragilizando as instituições e o próprio direito. É o chamado constitucionalismo abusivo.
Este processo tem ocorrido nos Estados Unidos, Polônia, Turquia e mais recentemente no Brasil. A eleição de presidentes populistas com pouco comprometimento com a democracia liberal tem sido o estopim para o uso do direito de forma não liberal. Os líderes aproveitam-se do apoio obtido e modificam as leis e a constituição, diminuindo as barreiras relacionadas à separação das funções estatais, possibilitando a perpetuação no poder.
A fragilização da democracia liberal também provoca ameaças na proteção dos direitos humanos. Resta inquestionável que a proteção efetiva a esses direitos demanda a existência de estado de direito e democracia. A retórica dos movimentos autoritários é contrária aos direitos humanos, que de acordo com o pais pode ser visto como universalizante e contrário ao nacionalismo ou direitos que amparam o “inimigo”.
Democracia e igualdade de gênero são interdependentes, de forma que quanto maior a igualdade de gênero, mais consolidada uma democracia. Tal relação ocorre porque políticas democráticas possibilitam a maior liberdade da sociedade, o que aumenta a influência de organizações de mulheres no estado e as lutas feministas contribuem para democratizar o espaço político.
3 AUTORITARISMOS E GÊNERO
Populismo e gênero são temas apreendidos e usados por regimes diversos e denotam precedentes históricos importantes. O regime nazista utilizou em sua concepção de povo a definição estrita de papéis sociais em que cabia às mulheres serem as mães da nação, restando para os homens a função de provedores heroicos. A própria nação dependia da família, que por sua vez teria o esteio no cuidado executado por mulheres. A modificação dos papéis levaria à destruição da nação.
De igual forma, a noção idealizada e normatizada das masculinidades implica em desconsideração e perseguição de grupos LGBT inclusive com envio aos campos de concentração. A própria figura de liderança autoritária populista é comumente identificado com a figura masculina, reforçando o papel de gênero identificado com a masculinidade.
Outra temática pertinente no estudo da relação entre autoritarismo e gênero é o uso da linguagem baseada em estereótipos como forma de criação de coesão política. Ou seja, o gênero como fator de união de grupos, notadamente alinhados em torno de pautas de extrema direita. Urge, ainda, a questão da implementação de políticas relacionadas ao gênero pelos regimes autoritários, impactadas no processo de queda democrática.
De forma geral os regimes populistas autoritários têm promovido retrocessos que afetam direitos sexuais e reprodutivos. Além de reforçarem estereótipos e destruírem políticas públicas de isonomia. Este processo não ocorre da mesma maneira em todos os países porque depende do grau de igualdade de gênero previamente existente na sociedade, bem como a estrutura do discurso de exclusão.
Na América Latina a retórica é amplamente machista, enquanto no Norte da Europa utilizou-se o discurso de proteção às mulheres para criar uma oposição entre valores europeus e islâmicos, com a finalidade de limitar a migração e identificar o migrante a comportamentos machistas, criando e reforçando o medo de agressão das mulheres chamado de “ansiedade sexual”.
O meio de cultura dos novos regimes autoritários é a guerra cultural, a moralização do debate público e a centralidade de temas morais na vida política (aborto, identidade de gênero, políticas LGBTQIA+). O campo neoconservador utiliza-se da retórica do medo para retomar os valores da família tradicional: ordem, hierarquia e autoridade moral frente à suposta libertinagem do campo progressista.
Uma das chaves de leitura do combate aos temas relacionados à igualdade de gênero é chamado efeito backlash (reações sociais e institucionais a determinadas medidas, especialmente judiciais) de conquistas de direitos, afetando concretamente ou simbolicamente a autopercepção de determinados grupos sociais que sentiram-se perdendo o poder e o seu papel. Somam-se as crises políticas e econômicas o restabelecimento de relações vistas como naturais, ou seja, patriarcal, ganha adesão.
4 RETROCESSOS DAS PAUTAS FEMINISTAS E DA DIVERSIDADE NO BRASIL
É cediço que o Brasil ostenta intensa desigualdade entre homens e mulheres.
Diferenças de salário, violência sistêmica, trabalho não remunerado de cuidados, sub-representação política, dentre outros indicadores negativos e vergonhosos que o fazem ser o 95º no ranking de igualdade de gênero dentre os 149 países analisados.
Apesar da história desigualdade, desde o início da década de 2000 vemos ações estatais para o reconhecimento dos direitos das mulheres e população LGBTI. Tais medidas de promoção da isonomia foram ao mesmo tempo resultado e impulsão de lutas dos movimentos sociais.
Em um cenário tradicionalmente hostil às pautas feministas, a vitória e possível reeleição de Jair Bolsonaro, político de extrema direita com grande influência do chamado “trumpismo”, tem sustentado verdadeira cruzada da família patriarcal e contra o que classifica como “ideologia de gênero”.
A eleição que lhe deu a vitória foi marcada por temas moralizantes e divulgações de notícias falsas disseminadas via aplicativos, especialmente o WhatsApp, tratando de gênero. Em plena campanha para reeleição, o discurso e as táticas não mudaram, uma vez que seu governo manteve o padrão de ataques a todos os assuntos identificados ao gênero. As ofensivas ocorreram com a mobilização das instituições e principalmente com as declarações do presidente, itens que se retroalimentam.
Do ponto de vista institucional destaca-se a mudança do Ministério de Direitos Humanos para Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Tal modificação incluiu a extinção dos comitês de Gênero e de Diversidade e Inclusão. O resultado foi o enfraquecimento na proteção de direitos humanos em geral. No campo da saúde o Ministério respectivo vetou o uso do termo “violência obstétrica” em seus documentos oficiais e comunicações, contrariando o estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Discursivamente há reiteração de sua posição de religioso e pró-família, ao mesmo tempo se utiliza de escândalos construídos como forma de mobilização de seus apoiadores. A dimensão do escândalo e da afronta moral é um precioso componente como forma de mobilização, pois agrega rejeição à práticas discursivamente identificadas ao outro que é feminista, gay e progressista. Há uma verdadeira guerra moral contínua, mesmo que em termos contraditórios ao modelo familiar defendido.
Mesmo em temas que aparentemente não são relacionados ao gênero, o uso da estratégia se repete. A educação mostra-se como uma das áreas mais afetadas, uma vez que tem passado por sucessivas investidas motivadas pelo discurso de que as instituições propiciam “doutrinação” dos alunos. Por intermédio da formação do pânico moral os ambientes de ensino são apresentados como criadores e perpetuadores da desordem, destruindo os valores tradicionais da família e religião.
A incompreensão dos movimentos e pautas feministas fomentam a exploração populista de maneira a desacreditá-los e minar os avanços recentes em termos de igualdade. Com o cenário dominante da extrema direita é fundamental pautar nas instituições os temas de igualdade como forma de resistência aos retrocessos anunciados.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os discursos antifeministas estão no centro dos movimentos populistas e de extrema direita que tem levado ao declínio democrático. Considerações contrárias à igualdade de gênero em prol de discursos ditos pró-família têm sido o movimento catalisador dos sentimentos e discursos de ódio e servem de amálgama de movimentos políticos diversos, ainda que os de extrema direita tenham prevalecido. Ainda que os discursos antifeministas e anti-diversidade não sejam novidade, têm sido remodelados nos tempos hodiernos para caber no restante das ideias defendidas pelos movimentos populistas: nacionalismo, família “ideal”, negacionistas, anti-ciência e xenofobia.
Este processo tem ocorrido em diversos países do mundo e tem desencadeado movimentos importantes de resistência como o “Ele Não” no Brasil e a Women´s March nos Estados unidos. A mobilização contínua sobre direitos e políticas públicas é central em momentos de retrocessos, mas não é suficiente.
Uma das frentes de luta que deve ser enfrentada é a da comunicação, que tem sido dificultada e alvo constante de ataques e propagação de notícias falsas, vídeos, fotos escandalosas e verdadeira campanha de descredibilização das urnas e do processo eleitoral brasileiro como formas de produzir sentimentos de asco e propiciar a narrativa de afronta à moralidade e segurança do voto.
Do ponto de vista acadêmico, o estudo dos movimentos e discursos antifeministas deve fazer parte da agenda de pesquisa e ser difundido para esclarecer e informar didaticamente todos os setores da população, para que tenham acesso a informações verdadeiras e neutras, livres de preconceitos odiosos, sob pena de não compreensão de um dos motores que ameaçam o legado do movimento constitucionalista e democrático conquistado a duras penas, com muito suor, sangue e lágrimas.
6 REFERÊNCIAS
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LEVITSKY, Steven, ZIBLAT, Daniel. Como as Democracias Morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
Graduada em Direito pela Universidade Estadual do Piauí/UESPI, Pós-Graduada em Ciências Criminais e Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOURA, Aldeny Carvalho. Constitucionalismo Feminista: Declínio Democrático e Gênero Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 set 2022, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59188/constitucionalismo-feminista-declnio-democrtico-e-gnero. Acesso em: 23 dez 2024.
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