RESUMO: Os princípios contratuais da boa-fé, função social, relatividade contratual e obrigatoriedade são necessários para a consagração do direito civil-constitucional. Nas relações privadas, muitas vezes, incidem vários princípios ao mesmo tempo, que possuem igual relevância. Portanto, é necessário verificar como esses princípios incidem em casos concretos e como ocorre a sua colisão. Será analisada, portanto, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, com o objetivo de avaliar como a boa-fé, a função social, a relatividade e a obrigatoriedade incidem nas relações privadas e, em casos de colisão, como é realizada a ponderação pelo mencionado Tribunal.
Palavras-chave: jurisprudência; Superior Tribunal de Justiça; autonomia privada; boa-fé; relatividade; obrigatoriedade dos contratos; função social; princípios contratuais.
ABSTRACT: The contractual principles of good faith, contractual relativity and the obligation of the contracts are necessary to the civil-constitucional’s right consagration. In the private relationships, many times, several principles appears at the same time with the same relevance. Therefore, it is necessary to verify how the principles are applied in concret cases and how they eventually collide with each other. It will be analyzed, thus, the brazilian’s Superior Court of Justice jurisprudence, with the aim to verify how the principles of good faith, social function, relativity and obligation of contracts are applied in the private relationships and, in cases of collision, how the mentioned Court does the weighting of those principles.
Keywords: jurisprudence; Superior Court of Justice; private autonomy; good faith; relativity; obligation of contracts; social function; contractual principles.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 - Recurso Especial n. 1.158.815 - RJ. 2 - Recurso Especial n. 1.186.789 - RJ. 3 - Recurso Especial n. 1.255.315 - SP. 4 - Recurso Especial n. 1.383.437 - SP. 5 - Recurso Especial n. 758.518 - PR. 6 - Recurso Especial n. 803.481 - GO. 7 Recurso Especial n. 811.670 - MG. 8 - Recurso Especial n. 866.343 - MT. 9 - Recurso Especial n. 884.346 - SC. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
Com o advento da Constituição de 1988, diversos princípios passaram a ganhar ainda mais força no ordenamento jurídico, sendo considerados não mais meras cláusulas gerais, mas verdadeiros institutos com força normativa e aplicabilidade direta e imediata nas relações privadas.
A função social da propriedade, por exemplo, passou não só a receber amplo tratamento, constando em diversos dispositivos no bojo da Carta Magna, como também passou a ser considerada como direito fundamental, e, portanto, cláusula pétrea.
Assim, verifica-se a existência de um direito civil-constitucional, de modo que as relações Inter privadas, notadamente no âmbito contratual, passaram a ser lidas à luz da axiologia constitucional.
Para analisar como os princípios da função social, boa-fé, relatividade contratual e obrigatoriedade dos contratos incidem nos casos concretos e se compatibilizam, necessário analisar a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a fim de verificar como a Corte tem aplicado os referidos princípios e como realiza a ponderação nos casos de colisão valores eventualmente colidentes.
Os capítulos, portanto, serão divididos por recursos decididos no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, com a análise individual de cada caso concreto e controvertido, bem como das decisões e de suas razões pela mencionada Corte Superior.
1. Recurso Especial n. 1.158.815 - RJ
Trata-se de recurso especial interposto pela CEI Empreendimentos Ltda. Esta foi contratada pela Fundação dos Economiários Federais e pela IRB Brasil Resseguros S/A, a fim de que prestasse serviços relativos à expansão do Amazonas Shopping Center. Neste contrato, seria a ela devido, além da remuneração fixada, um prêmio de produtividade de acordo com o seu desempenho na realização das atividades de gerenciar e comercializar o empreendimento. Tendo em vista que a expansão do Shopping Center não alcançou o êxito esperado pelos requeridos, os valores variáveis não foram reconhecidos pela empresa recorrente, que, por isso, postulou seu pagamento em juízo. O juiz de primeiro grau julgou o pedido de cobrança improcedente, e parcialmente procedente a reconvenção para revisar as cláusulas contratuais. Interpostas apelações pela CEI, foi julgado procedente o pedido da petição inicial e improcedente o reconvencional.
A controvérsia está no fato de que a recorrente exige o cumprimento do contrato da forma como foi celebrado, independentemente das circunstâncias que posteriormente surgiram e levaram o Shopping a não atingir o êxito esperado, e as recorridas exigem a adequação do contrato ao resultado negativo obtido em sua inauguração, entendendo que o cálculo de tais prêmios deveria levar em consideração a realidade após a inauguração do Shopping. Na primeira posição, percebe-se a incidência do princípio da autonomia privada e, consequentemente, da obrigatoriedade e relatividade. Doutrinariamente, a ideia do pacta sunt servanda indica que a liberdade de contratar leva à vinculação das partes que obrigatoriamente devem cumprir o que foi acordado na formulação do contrato, sendo tal força obrigatória restrita aos contratantes.
Na última posição, entretanto, a recorrente deveria levar em consideração que os alugueis estavam além dos valores de mercado e que houve grande inadimplência por parte dos lojistas, não podendo receber, por isso, os prêmios de produtividade. Nela, percebe-se a irradiação do equilíbrio contratual. Este pressupõe a mitigação da autonomia privada e da obrigatoriedade dos contratos, vez que as cláusulas de um contrato devem ser revistas e reformuladas sempre que houver uma mudança na realidade das relações das partes e um eminente desequilíbrio entre elas, preservando-se os princípios da boa-fé e função social do contrato. Neste sentido está o voto do Ministro Massami Uyeda, que alega que os parâmetros fixados para ser realizado o pagamento da variável ocasionaram flagrante desequilíbrio entre as partes.
Seu voto, no entanto, foi vencido. Os demais ministros ressaltaram que, neste caso, deve-se prevalecer a força obrigatória dos contratos, pois não há motivo imprevisível que enseje a revisão contratual, já que as recorridas sabiam dos valores envolvidos em seus negócios. Além disso, não houve flagrante desequilíbrio entre as partes, pressuposto de revisão contratual, vez que são empresas de grande porte econômico. Desta forma, reestabeleceu-se o acórdão proferido em sede de apelação, decidindo que o cálculo da variável deveria ser feito com base no momento de seu vencimento, sendo as recorridas condenadas ao pagamento.
2. Recurso Especial n. 1.186.789 - RJ
Cuida-se de recurso interposto pela TV Globo Ltda., Celso de Freitas e Multimídia Produções Comunicações S.C. As partes firmaram um contrato em que Celso e Multimídia Produções S.C. prestariam serviços à TV Globo Ltda. de forma exclusiva. A rescisão do contrato pelos últimos fez com a que a TV Globo ajuizasse ação de indenização e cumprimento de obrigação de fazer e não fazer em face dos mesmos. Esta pugnou pelo cumprimento do contrato ou pela condenação dos réus ao pagamento total da multa nele prevista por sua rescisão imotivada. A exigência de pagamento do valor expresso na cláusula foi justificada pelo fato de ter sido acordado, entre as partes, a irredutibilidade do valor fixado, além do grande prejuízo obtido pela emissora, que construiu a imagem do jornalista Celso de Freitas e teve o contrato rescindido de forma abrupta. O Juízo de primeiro grau julgou parcialmente procedente o pedido e condenou a parte ré ao pagamento de R$ 600.250,00. Interposto recurso pela TV Globo, o Tribunal deu parcial provimento. A controvérsia, no caso, está relacionada à aplicação do artigo 413 do Código Civil, já que a Multimídia Produções e Comunicações Ltda. requer uma redução da prevista cláusula penal proporcional ao tempo de contrato cumprido, e o interposto pela TV Globo Ltda., a manutenção da cláusula como avençada.
Foram considerados os princípios da obrigatoriedade, da boa-fé e do equilíbrio contratual. A incidência do princípio da obrigatoriedade, defendida pela TV Globo Ltda., remete-se ao cumprimento das obrigações previstas no contrato da forma como foi avençado pelas partes, já que elas livremente entraram na relação e concordaram quanto às cláusulas ali expressas. Pagar o valor da cláusula em sua totalidade é forma de garantir a segurança jurídica da relação obrigacional, que é fundamento da obrigatoriedade, sendo afastada a incidência do art. 413 do Código Civil. Entretanto, a boa-fé e o equilíbrio contratual ressaltam a necessidade de se cumprir o que dispõe tal artigo. A ideia de redução da cláusula penal está relacionada à boa-fé, que considera não só o cumprimento da exato da prestação principal, mas todas as condutas dirigidas a satisfazer as legítimas expectativas. Como houve cumprimento substancial do contrato, deve ele ser considerado, não podendo um dos contratantes simplesmente ignorar o que foi cumprido e gerar um manifesto desequilíbrio na relação. O referido artigo também está diretamente relacionado ao equilíbrio contratual, pois ele enseja a igualdade material entre as partes através da revisão dos termos avençados. Assim, diante da obrigação cumprida de forma substancial, pode ser revisada a cláusula penal para ela seja adequada à realidade da relação jurídica, mitigando-se o princípio da obrigatoriedade.
Os Ministros decidiram, por unanimidade, negar provimento aos recursos, reduzindo-se a cláusula penal em 50%. Não houve proporcionalidade ao tempo de contrato cumprido, já que Celso de Freitas rescindiu o contrato depois de ter consolidado um compromisso com outra emissora, cancelando suas obrigações de forma abrupta. Em suma, percebe-se que na decisão visou-se manter a equidade, já que foi reconhecido o pagamento parcial da cláusula penal, porém a redução de sua proporção levou em conta os prejuízos obtidos pela TV Globo Ltda.
3. Recurso Especial n. 1.255.315 - SP
Trata-se de recurso interposto pela empresa Bayer S/A contra acórdão proferido no TJ/SP. A Bayer S/A e a SOCIPAR S/A mantiveram um sólido contrato verbal durante quatorze anos, em que a última investiu intensamente na comercialização de produto produzido pela empresa recorrente, desenvolvendo até mesmo um know how próprio e tornando-se a principal distribuidora da BAYER no Brasil. Ocorre que, depois de quatorze anos de contrato, a Bayer simplesmente rescindiu o contrato imotivadamente e sem explicações, tomando o mercado que a SOCIPAR desenvolveu ao longo desses anos. A Bayer S/A alega que a rescisão do contrato não constitui ato ilícito, vez que havia um inadimplemento habitual por parte da empresa SOCIPAR. Não haveria, de acordo com a recorrente, abuso de direito e violação da boa-fé objetiva na rescisão, como alegado pela recorrida. A controvérsia está, portanto, em determinar a existência ou não do dever de indenizar da recorrente. Ajuizada ação de indenização pela SOCIPAR S/A, a sentença julgou improcedente o pedido. O Tribunal Estadual, por sua vez, deu parcial provimento à apelação da SOCIPAR.
Incidem, na situação, os princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva. No que tange a boa-fé objetiva, esta modela arquétipos de conduta pautados por valores como a cooperação, a lealdade e a consideração das legítimas expectativas das partes. Houve, por parte da empresa BAYER, uma conduta desleal e abusiva que contraria o princípio em questão. Tal conduta tem seu embasamento na relação de confiança mantida entre ambas as empresas e no intenso investimento da SOCIPAR na distribuição dos produtos da BAYER. A inobservância do princípio da boa-fé também está no fato de que a recorrente, nesta resilição, teve como intuito apoderar-se do comércio desenvolvido pela recorrida e da clientela por ela conquistada.
Percebe-se, também, a inobservância à função social dos contratos. Esta, exige que os contratantes, além de seus interesses individuais e patrimonialistas, busquem satisfazer os interesses socialmente relevantes. Essa persecução foi ignorada, vez que a rescisão do contrato de forme abrupta desconsiderou os efeitos negativos não somente a terceiros específicos relacionados ao contrato como também a toda a coletividade, já que a SOCIPAR era a única distribuidora da Bayer no Brasil, sendo sua atuação de grande impacto social e econômico. O rompimento dos laços mantidos visou apenas a busca pelo lucro e interesses essencialmente patrimoniais. Neste sentido, a decisão que negou provimento ao recurso especial foi unânime, mantendo-se a indenização pela Bayer por danos morais e materiais com fulcro na violação do princípio da boa-fé e da função social dos contratos. Considerou-se que mesmo eventual inadimplemento pela SOCIPAR não justificaria a abrupta rescisão contratual e a quebra das legítimas expectativas da recorrida.
4. Recurso Especial n. 1.383.437 - SP
Cuida-se de recurso especial interposto pela TVSBT – Canal 4 de São Paulo S/A. O recorrido, Julio Augusto de Souza, participou do programa de televisão da emissora SBT denominado “Vinte e Um”, cujo objetivo era acertar perguntas sobre o time de futebol Corinthians baseado no livro “Corinthians é Preto no Branco”, a fim de ganhar o prêmio final em dinheiro de R$ 120.000,00. Tal livro, por sua vez, possui uma parte fictícia sobre a história do time, essa de cor branca, e outra parte que seria verdadeira, de cor preta. Quando perguntado por Sílvio Santos sobre o placar de inauguração do Estádio do Pacaembu, o recorrido forneceu a resposta verdadeira, que seria 4 x 2 em favor do Corinthians. O programa, entretanto, baseando-se na informação oferecida na parte branca do livro - vale dizer, fictícia -, que alegava que o placar havia sido 4 x 0, deu a resposta como errada. Ajuizada ação indenizatória pelo recorrido por danos morais e materiais cumulada com obrigação de fazer, julgou a sentença improcedente os pedidos. O acórdão da apelação deu provimento ao apelo para condenar a recorrente a pagar a indenização de R$ 59.000,00. Interpostos embargos infringentes, foram eles rejeitados. A recorrente, assim, interpôs recurso alegando a inexistência de perda da chance do recorrido. A controvérsia gerada na situação, assim, é se o prêmio era devido ao recorrido, que respondeu a pergunta corretamente, ou se não era, de fato, devido, já que o contrato celebrado possuía a cláusula expressa de que as respostas dadas deveriam ser baseadas no mencionado livro.
O princípio que incide na interpretação da situação é o da boa-fé objetiva. Através dela, são verificadas as legítimas expectativas das partes, considerando-se não só puramente as cláusulas expressas no contrato como também todo o desenvolvimento da relação obrigacional. É considerado, assim, o comportamento do recorrido que foi efetuado nos termos do que o contrato objetivava e da verdadeira pretensão do programa de fornecer respostas verídicas sobre o time de futebol em questão. Desta forma, além de não fazer sentido, quebra as expectativas das partes e a razão de ser do programa o fornecimento de uma resposta de acordo com a parte inverídica do livro. Deve, por isso, ser considerada a boa-fé do recorrido ao responder corretamente a pergunta. A recorrente, por sua vez, traz em seus argumentos o princípio da obrigatoriedade, que defende que o contrato deve ser cumprido estritamente do modo como foi avençado entre as partes. Alega, assim, que deveria o recorrido responder as perguntas baseando-se apenas na bibliografia expressamente posta como fonte.
Por unanimidade, foi negado provimento ao Recurso Especial. Foram considerados os dados objetivos da partida de futebol, bem como o dever de veracidade das informações transmitidas pelo programa, alegando-se que a bibliografia base deveria estar contida na parte dos dados reais sobre o Corinthians. Permaneceu a condenação da recorrente a pagar indenização de R$ 59.000,00 por danos emergentes, já que este foi o valor da chance perdida, abatido de R$ 1.000,00 do prêmio já recebido.
5. Recurso Especial n. 758.518 - PR
Trata-se de recurso interposto por MURETAMA EDIFICAÇÕES E EMPREENDIMENTOS LTDA., contra acórdão do TJ do Paraná. A recorrente realizou a venda de um imóvel com Sérgio de Meca de Lima, ora recorrido. Ocorre que, durante sete anos, o recorrido não pagou as prestações relativas ao contrato, não havendo, por parte da promitente-vendedora, qualquer tentativa de evitar o agravamento do dano ou recuperar a posse da unidade, ajuizando contra o recorrido tardiamente. A recorrente, por sua vez, interpôs recurso alegando que o promissário-comprador não cumpriu com suas obrigações, e por isso deve ela ser indenizada pela totalidade das parcelas de fruição, já que a responsabilidade pela devolução do imóvel é daquele. Há, entretanto, a controvérsia em aferir se houve culpa da própria promitente por ter ficado inerte durante sete anos quanto à cobrança das prestações devidas e se deve ela ser penalizada pela demora no ajuizamento da ação de reintegração de posse.
O princípio da boa-fé foi considerado na decisão deste caso. A boa-fé objetiva pressupõe que tanto o credor quanto o devedor se atentem aos deveres anexos relativos ao contrato, ou seja, deveres que não correspondem apenas à entrega da prestação principal, mas que moldam deveres de diligência que devem ser observados e cumpridos pelas partes durante todo o contrato. Aqui houve, por parte do credor, a falta de atenção ao dever de mitigar o próprio prejuízo, tendo em vista que ele, durante sete anos, não tomou as medidas necessárias para o não agravamento do dano, demonstrando-se falta de zelo em relação a seu patrimônio e descaso ao prejuízo sofrido. A conduta do contratante pautada na boa-fé deve ser dirigida à consecução dos fins por ele avençados, o que não foi observado no caso. A conduta respaldada pela boa-fé também deve levar em consideração os deveres de probidade e cooperação, o que também não ocorreu, já que houve inércia e negligência do credor diante do dano ocorrido.
A decisão do STJ negou, por unanimidade, provimento ao recurso e manteve o conteúdo do que fora decidido pelo Tribunal de Justiça do Paraná, considerando o direito à indenização do promitente-vendedor, porém mitigando sua extensão na razão de um ano de ressarcimento. Observou-se, assim, a falta de um comportamento ativo da recorrente na defesa de seus interesses, fato que concorreu para que a não-fruição do imóvel perpetuasse por mais tempo. A alegação da recorrente de que a demanda foi proposta dentro do prazo prescricional, por isso, não foi acatada pelo Superior Tribunal.
6. Recurso Especial n. 803.481 - GO
Cuida-se de recurso especial interposto por CARGRILL AGRÍCOLA S.A., contra acórdão proferido pelo TJ/GO. A recorrente celebrou um contrato de compra e venda de safra futura de soja a preço certo com Luiz Ferreira Lima, ora recorrido. Ocorre que este último alegou ter sobrevindo acontecimentos imprevisíveis que elevaram extraordinariamente o Dólar norte-americano e tornaram sua obrigação excessivamente onerosa. O recorrido, portanto pleiteou a revisão do valor dos contratos para que o recorrente pagasse a mais pelas sacas de soja ou que a obrigação fosse satisfeita pela entrega de uma menor quantidade de sacas. O juiz de primeiro grau julgou os pedidos improcedentes, alegando que a aleatoriedade é essência da modalidade de venda a termo; opostos os embargos de declaração pelo recorrido, foram eles rejeitados. O Tribunal a quo deu provimento parcial ao apelo do recorrido. A controvérsia está na possibilidade ou não de revisão do valor a ser pago pelas sacas de soja, já que se trata de contrato de compra e venda de safra futura a preço certo.
Incide, por um lado, o princípio da obrigatoriedade dos contratos alegada pela recorrente, e, por outro, do equilíbrio contratual, pleiteado pela recorrida. O princípio do equilíbrio contratual preza pela revisão das cláusulas previstas nos contratos sempre que ocorrer fatos supervenientes imprevisíveis e/ou extraordinários, propensos a gerar uma onerosidade excessiva. Na situação em questão, o equilíbrio seria aplicado através do reajuste das sacas ou de seu preço, já que houve, segundo a recorrida, a ocorrência de situações imprevisíveis que geraram uma desvalorização do Real. A obrigatoriedade demonstra que o contrato faz lei entre as partes e que por isso elas devem cumprir o contrato da forma como ele foi avençado. Como não há a ocorrência de nenhuma situação imprevisível, já que o contrato de compra e venda de safras futuras em sua essência pressupõe riscos, o contrato deve ser cumprido como fora acordado.
Por isso, não há afronta aos princípios de boa-fé e função social do contrato, como argumentado pelo TJ/GO. A função social indica que o contrato deve perseguir, além dos fins econômicos, aqueles extracontratuais socialmente relevantes. Entretanto, o papel primário do contrato é econômico, não podendo ser ignorado a pretexto da assistência social do recorrido que sabia dos riscos intrínsecos ao contrato. A boa-fé impõe standards de conduta e pressupõe deveres de lealdade e probidade entre as partes. Não há nenhum indício de que o recorrente tenha agido de má-fé, já que o fato da majoração do preço de mercado não indica sua existência.
Na decisão, foi considerado que a variação do preço nas sacas de soja é previsível e é um risco considerado no momento em que o contrato é celebrado tanto pelo produtor quanto pelo comprador Não há que se falar, portanto, em excessiva onerosidade, pois que acontecimentos extraordinários são intrínsecos à atividade agrícola. Ou seja, como a entrega das sacas se daria somente em um ano do momento em que o contrato foi avençado, as variações de câmbio são inevitáveis e por isso não podem ser desconsideradas. Desta forma, deu-se provimento ao recurso, mantendo-se o conteúdo do que fora inicialmente acordado.
7. Recurso Especial n. 811.670 - MG
Cuida-se de recurso especial interposto por Wânia de Souza Pessoa e Outros, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. A recorrente Wânia e seu marido celebraram contrato de permuta, com Paulo José de Oliveira e outra, ora recorridos, tendo por objeto dois imóveis financiados. Cada parte, portanto, assumiria o pagamento das prestações da outra parte. Ressalta-se que foi atribuído maior valor ao imóvel dos recorrentes, dando os recorridos, por isso, certo valor em dinheiro àqueles. Ocorre que o marido da primeira recorrente faleceu, fato que quitou o financiamento do imóvel recebido em permuta pelos recorridos, sendo estes beneficiados pela quitação enquanto os recorrentes continuaram obrigados a pagar o financiamento do imóvel dado a eles em permuta. Assim, os recorrentes pleitearam a revisão da cláusula contratual em ação de conhecimento para que os recorridos pagassem o financiamento do imóvel que foi dado aos próprios recorrentes, bem como a quitação do imóvel em que morava a primeira recorrente. Neste caso, a controvérsia está em determinar quem deve ser beneficiado por indenização paga em decorrência do falecimento de mutuário, bem como utilizado para a quitação do próprio imóvel financiado. Os recorrentes pleiteiam o direito de se beneficiar do seguro de vida do falecido justamente por serem esposa e filho deste, enquanto os recorridos afirmam ter o direito sobre tal indenização por terem assumido o financiamento em seu nome.
Nota-se, nessa situação, a presença do princípio da autonomia privada, que se baseia na liberdade que as partes possuem de celebrar um contrato e dirigir livremente suas vontades a um mesmo fim pré-determinado. Assim, ao firmarem o mencionado contrato, os contratantes procuraram manter o equilíbrio e dirigiram seus anseios no sentido de manter a igualdade de condições entre ambas, remetendo-se à observância ao princípio da boa-fé, que pressupõe uma colaboração mútua e atendimento às legítimas expectativas, já que ambos visavam à aquisição do imóvel.
O princípio do equilíbrio contratual tem direta incidência na situação. Este princípio se aplica sempre que houver superveniente desequilíbrio entre as partes, decorrente de fato extraordinário ou não previsto pelas partes. No caso, tal fato seria a morte do marido da primeira recorrente. Deste modo, para manter a conduta pautada na boa-fé manifestada desde o início pelas partes, bem como para evitar o desequilíbrio contratual e enriquecimento sem causa, faz-se imprescindível que o pagamento do seguro seja dirigido aos dependentes do falecido, já que o objetivo do seguro é amparar financeiramente os dependentes do proponente, e não terceiros.
Nesse sentido e unanimemente, a decisão da terceira Turma conheceu do recurso especial e deu-lhe provimento, ficando os recorridos condenados a pagar aos recorrentes a quantia equivalente ao débito quitado pela seguradora devido ao falecimento de Eustáquio, descontando-se as prestações pagas pelos recorridos e levantadas por Wânia.
8. Recurso Especial n. 866.343 - MT
Trata-se de recurso especial interposto por Primus Incorporação e Construção Ltda. e Outros em face do Banco Bradesco S/A. A recorrente alegou a ocorrência de várias irregularidades cometidas pelo recorrido com relação a contratos de financiamento celebrados, sendo absorvidos mediante novação. De acordo com a recorrente, tais contratos possuíam a finalidade de construir o edifício Manchester, entretanto, no decorrer das relações obrigacionais, o recorrido cometeu várias ilicitudes operacionais. O conflito está em determinar a possibilidade de análise das supostas ilegalidades nos contratos celebrados em momento anterior à alegada novação, em que o recorrente afirma ter havido cerceamento de seu direito de defesa, haja vista que o Tribunal a quo não analisou os pactos firmados anteriormente em razão da novação, não se manifestando de forma satisfatória sobre os vícios apontados pelo recorrente. Alega-se no recurso especial por ele interposto, por isso, ofensa ao artigo 535 do CPC, já que os embargos de declaração opostos foram rejeitados sem se pronunciar sobre a mencionada questão.
O Juízo monocrático alegou que a novação das obrigações anteriores consubstancia óbice à análise dos pactos anteriores, se atentando a analisar a revisão das cláusulas apenas deste contrato. Reiteradas as mesmas questões ao Tribunal, este também negou provimento ao recorrente.
Percebe-se, na decisão, a consideração do princípio da obrigatoriedade, mais especificamente de sua mitigação, incidindo-se, consequentemente, o princípio do equilíbrio contratual. O princípio da obrigatoriedade remete-se ao cumprimento do contrato e de suas cláusulas estritamente do modo como eles foram avençados, independentemente de eventuais circunstâncias que venham a surgir ao longo da relação jurídica. O equilíbrio contratual, por sua vez, mitiga a ideia de que o contrato faz lei entre as partes e permite a revisão do contrato a fim de afastar dele situações de desigualdade e desequilíbrio entre as partes contratantes. Tal princípio, neste caso, permitirá a interpretação de que a novação não pode impedir a revisão dos negócios jurídicos antecedentes a ela, dando espaço à interação da autonomia privada, boa-fé e função social. Evita-se, assim, que a recorrente seja onerada na relação contratual avençada, afastando do contrato, através de sua revisão, eventual relação de desequilíbrio.
A decisão da quarta Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso especial para determinar a remessa dos autos ao Tribunal de origem. Alegou-se, ainda, estar superada a questão relativa à impossibilidade de análise dos contratos anteriores, que devem ser revisados em prol do equilíbrio contratual. Por isso, afirma-se a configuração de violação, nos autos, ao art. 535 do CPC pelo não exame das ilegalidades existentes nos contratos anteriores à novação.
9. Recurso Especial n. 884.346 - SC
Trata-se de recurso interposto por Posto Nova Brasília Ltda. em face de Fabiano Duarte. O recorrente efetuou compras no mercado São Jorge, pagando com cheque o valor de R$ 458,00 em dezembro de 2013, indicando que a data para compensação seria em 14 de janeiro de 2014. O proprietário do mercado, por sua vez, abasteceu no posto recorrente, pagando com o mesmo cheque em data anterior à pactuada com o beneficiário original deste. O cheque, assim, foi devolvido por insuficiência de fundos no dia 6 de janeiro de 2004. O recorrido ajuizou ação de indenização por danos morais em face do recorrente, já que tal fato resultou em, nas palavras do Ministro Luis Felipe Salomão, “bloqueio de sua conta corrente, perda do “crédito bancário”, impossibilidade de retirar talão de cheque e registro de seu nome no cadastro desabonador do SERASA”. O Juízo de Primeiro Grau julgou procedentes os pedidos, condenando o posto ao pagamento de R$ 4.000,00 por danos morais. Interposta a apelação pelo réu ao Tribunal de Justiça, este negou provimento ao recurso.
A controvérsia está em saber se terceiro estranho à pactuação original – no caso, o Posto Nova Brasília Ltda. – tem legitimidade passiva em ação de indenização de danos morais, uma vez que a cártula foi apresentada antecipadamente. Alega o recorrente não ter qualquer relação com o recorrido, o que culminaria em sua ilegitimidade passiva. Além disso, alega também que o cheque pré-datado é um acordo firmado entre o emitente e o recebedor, devendo ele ser eximido de qualquer responsabilidade.
O princípio presente na decisão é o da relatividade dos contratos. Tal princípio tem como base a ideia de que os efeitos de um contrato são relativos às partes que o celebram. Ou seja, aqueles que não se configuram como parte em uma relação contratual não podem ser atingidos por um contrato. Desta forma, na situação em questão, a aplicação do princípio da relatividade se dá através do fato de que a pós-datação extracartular do cheque se deu apenas entre o recorrido e o mercado São Jorge, devendo os efeitos do que foi acordado se restringir somente a ambos, já que sequer constou no cheque a data de emissão. Assim, configura-se o recorrente como terceiro de boa-fé. O contrato em questão, por isso, só trará consequências jurídicas àqueles participantes da relação jurídica original, não vinculando terceiros a ela estranhos.
Além disso, a decisão foi também embasada nos princípios pertinentes ao título de crédito, sendo estes o da literalidade, autonomia, abstração e inoponibilidade das exceções a terceiro de boa-fé, já que ele exercita um direito próprio, e não derivado da relação anterior, ficando assegurado que nenhum risco proveniente desta relação irá afetar o seu direito de crédito.
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça decidiu, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial para extinguir o processo sem julgamento do mérito, reconhecendo-se a ilegitimidade passiva do recorrente e alegando-se que os danos devem ser compensados não por ele, mas pelo contraente que não observou a data avençada para a apresentação da cártula.
CONCLUSÃO
Da análise das decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça, verifica-se que a normativa constitucional foi imprescindível para a reconstrução dos institutos de direito privado à luz da axiologia própria dos direitos fundamentais. A existência de um ordenamento pautado na valorização da pessoa humana e na consagração de sua dignidade como fundamento da República rompe de forma abrupta com a ideia de propriedade vinculada a valores estritamente patrimoniais.
A Constituição Federal, assim, desloca a pessoa humana para o centro do ordenamento jurídico, dando prioridade às situações existenciais. Torna-se imperativo, como consequência, a releitura do direito de propriedade, que deve ser exercido em harmonia com valores extrapatrimoniais. Portanto, verifica-se que, nos julgados analisados, busca-se a harmonização entre os interesses individuais e coletivos, sendo realizada a ponderação, com base no princípio da proporcionalidade, entre princípios contratuais que incidem e eventualmente colidem nos casos concretos.
Os princípios de caráter classicamente privados, como da autonomia privada e da relativização dos contratos, são, muitas vezes, relidos à luz de valores extrapatrimoniais e outros princípios como a função social e boa-fé.
A partir desta perspectiva, os institutos jurídicos passam a ser estudados não apenas em seus aspectos estruturais, ou seja, sua constituição e elementos essenciais, sendo também analisados a partir de sua finalidade e objetivos.
Verifica-se, portanto, a realização de uma interpretação sistemática dos institutos de direito privado, colocando-se em evidência os valores existenciais e solidários que cada vez mais norteiam e direcionam todas as situações jurídicas subjetivas.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.158.815 - RJ.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.186.789 - RJ.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.255.315 - SP.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.383.437 - SP.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 758.518 - PR.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 803.481 - GO
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 811.670 - MG.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 866.343 - MT.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 884.346 - SC
Advogada. Graduação na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Pós Graduação em Direito Penal pelo Instituto Damásio de Jesus.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Luisa Lemos. A ponderação de princípios contratuais na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 set 2022, 04:16. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59207/a-ponderao-de-princpios-contratuais-na-jurisprudncia-do-superior-tribunal-de-justia. Acesso em: 23 dez 2024.
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