RESUMO: Este trabalho tem como proposta o estudo da evolução interpretava da lei de violência doméstica e familiar contra a mulher, e suas influências no âmbito do país. Procurou-se analisar os principais fatores que resultaram na atual forma de aplicação da referida lei, que merece analise peculiar a partir de princípios próprios. Será demonstrado que os principais avanços na proteção aos direitos das mulheres, notadamente quando vítimas de violência em seus diversos aspectos. Restará evidenciada a importância do aperfeiçoamento da referida legislação que, mesmo após tanto tempo, carece, por inúmeras vezes, de efetividade jurídica. Diante dessa análise, será constatada a indispensável a atuação do poder judiciário, bem como a necessidade de formulação de novas políticas públicas pelo executivo, conjugada à ação fiscalizatória do legislativo, sempre com vistas à promoção dos direitos das mulheres.
Palavras-chave: Lei nº 11.340/06. Violência Doméstica e Familiar. Mulher. Interpretação. Brasil.
Os diversos livros que analisam a Lei nº 11.340/06 questionam – e respondem – o porquê de a referida lei ter recebido o apelido de “Lei Maria da Penha”. A pergunta pode ser respondida de forma simples: sem o sofrimento de Maria da Penha Maia Fernandes o estado brasileiro não teria estabelecido (ou ao menos demoraria muito tempo para criar) mecanismos legais de proteção à violência praticada contra a mulher.
Maria da Penha ficou paraplégica após sofrer um tiro de espingarda por parte de seu marido no dia 29 de maio de 1983 e, após constatada a realidade concreta do caso o Ministério Público, em 1984 formulou denúncia. Este pontapé inicial ao processo, entretanto, somente resultou na prisão do agressor 20 anos de pois – em 2002, e o relato desta história foi suficiente para que em 20 de agosto de 1998 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH recebesse petição apresentada pela própria ofendida em desfavor do estado Brasileiro.
O Brasil, entretanto, não demonstrou afeição pela gravidade situação, tanto é que após ter recebido, por 4 vezes, solicitações de informação da CIDH, não apresentou qualquer resposta à Comissão. Esta inércia resultou no Relatório nº 54/01 da Organização dos Estaduso Americanos – OEA, que concluiu ser o Brasil um país ineficiente em relação ao combate da violência contra a mulher, notadamente pela falta de efetividade das ações policial e judicial. Ao final do relatório, além da indenização no valor de 20 mil dólares a favor da vítima, a CIDH recomendou país o cumprimento efetivo da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
Somente após este vexame internacional o país, por intermédio do Projeto de Lei n° 4.559/04, promulgou em 2006 a referida Lei, que passou a viger em 26 de setembro de 2006. De fato, “o combate penal à violência contra a mulher foi reforçado pelo importante precedente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no caso brasileiro “Maria da Penha Fernandes”” (RAMOS, 2019, p. 628). Destaque-se que o projeto de lei não foi sequer do Poder Legislativo, mas elaborado por pelo menos 5 ONGs, sob supervisão da Secretaria Especial de Políticas as Mulheres (órgão vinculado ao Poder Executivo).
É claro que a senhora Maria da Penha foi apenas uma das milhares de brasileiras que já sofreram, algum dia, abusos de gênero, seja por parte de homens ou mesmo de mulheres. A diferença, entretanto, está aí – na incansável luta da ofendida em busca da promoção da igualdade de gênero e na proteção dos direitos das mulheres, configurando uma das forças necessárias à criação da legislação aqui debatida no âmbito no país.
2.DESENVOLVIMENTO
Com a entrada em vigor da Lei de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher pôde se verificar que o poder judiciário se transformou em um verdadeiro direcionador da aplicação da norma nos casos concretos, atribuindo-lhe eficácia necessária ao alcance dos seus objetivos e determinando os casos em que caberia a sua incidência.
Esse é o entendimento compactuado por Dias (2019), ao afirmar que o Supremo Tribunal Federal – STF tem atuado como verdadeiro artífice na busca da finalidade essencial da lei buscando, se não eliminar, reduzir, drasticamente, os números de violência doméstica e familiar contra a mulher. Ratifica o entendimento apresentado pela renomada autora o fato de a Corte Suprema ter declarado a constitucionalidade da referida Lei no julgamento da ADI 4424/DF, sob relatoria do Ministro Marco Aurélio, na qual foram extraídas as conclusões de que: a) inexiste violação à igualdade em razão de a Lei n 11.340/06 ser de aplicabilidade restrita às mulheres; b) a acumulação das competências cível e criminal para as causas oriundas de violência contra a mulher não causa ofensa à competência estadual para estabelecer normas de organização judiciária; c) a inaplicabilidade da Lei 9.099/95 para os casos nela tratados é ato legislativo legítimo. Ademais, na decisão foi reforçado o constitucionalismo fraterno, buscando a remoção de preconceitos sociais por intermédio da referida lei.
A partir desta nova interpretação oriunda da maior corte do país passou-se a obter, paulatinamente, a ampliação da tutela jurisdicional na realidade das famílias. Isso porque foi ampliada a competência do juizado da violência doméstica, para tutelar de forma eficaz a ofendida, atribuindo ao supracitado juízo a possibilidade de fixação de alimentos, de julgamento de divórcio, a fixação de valor mínimo de indenização e a decisão acerca da guarda do filho menor. Para mais, passou a se admitir a prisão cautelar em caso de descumprimento de medidas impostas ao agressor, além da possibilidade de aplicação de medidas protetivas no âmbito cível, independentemente da existência de processo penal ou inquérito policial em curso.
Por isso mesmo a atual compreensão social da norma teve forte influência jurídica dos tribunais e juízes, que concretizaram, por meio de decisões, certos entendimentos, dos quais podemos destacar: a impossibilidade de aplicação da norma quando o ofendido for pessoa do gênero masculino; a presunção de hipossuficiência e vulnerabilidade da vítima de violência; a possibilidade de proteção, ainda que a violência não ocorra no âmbito residencial da ofendida; a probabilidade de a mulher figurar no pólo ativo enquanto agressora, quando fundada a agressão em razões do sexo feminino; e a desnecessidade de representação da vítima do ato violento no caso de lesões corporais, ainda que leves e culposas, para que o Ministério Público possa ajuizar a ação (Súmula 542 do STJ).
Vale ressaltar o entendimento de diversos tribunais superiores acerca da possibilidade de aplicação da norma à transgêneros, transexuais e travestis que identifiquem-se com o sexo feminino. Este entendimento, segundo Sanches (2019), foi o mesmo aplicado pelo STF ao apreciar a ADI n. 4.275, na qual reconheceu aos transgêneros o direito de alteração do nome ou do gênero no registro civil, independente da realização de cirurgia de transgenitalização ou de eventual autorização judicial. A natureza feminina passou a ser protegida pela lei independentemente da condição financeira da vítima, ou mesmo do seu status social, como é o caso de atriz famosa agredida por namorado. Além disto, eventual reconciliação entre a vítima e o agressor não torna dispensável a fixação de valor mínimo para a reparação dos danos causados penalmente.
No que diz respeito à aplicação de institutos despenalizadores, o entendimento foi aos poucos sendo moldado. Atualmente, é possível afirmar que não é possível a aplicação ao agressor das medidas previstas na Lei 9.099/95 – tais como a suspensão condicional do processo e a transação penal (Súmula 536 do STJ). Da mesma forma, restou afastada a aplicação de penas restritivas de direito, seja pela prática de crime ou contravenção, desde que praticados no âmbito doméstico contra a mulher, com grave ameaça ou violência (Súmula 588 STJ). Esta interpretação brasileira é diferente daquela estabelecida comparativamente a outros países. Nesse sentido, Ávila destaca que
Nos modelos de responsabilização penal previstos em Portugal e na França é possível a realização de acordos prévios nos casos mais simples, buscando acelerar a intervenção e reservar a atuação do sistema judiciário para os casos verificados mais graves. (ÁVILA, 2014, p. 389)
Entretanto, é compreensível a peculiaridade brasileira acerca da impossibilidade preliminar de acordos. A realidade já demonstrou a sensação de impunidade gerada no corpo social quando da aplicação dos referidos institutos. Constata-se que os algozes sentem-se livres para reiterar a prática de ilicitudes. Esse descumprimento tem se dado mesmo com imposição de medidas protetivas, quem dirá com a mera suspensão condicional do processo. Nos últimos anos, o descumprimento das medidas protetivas evidenciou um estado gravíssimo de desrespeito dos agressores para com as determinações do judiciário. Os noticiários diuturnamente divulgam notícias nas quais agressores são presos em razão do descumprimento de medidas protetivas já estabelecidas pelo judiciário.
Diante dessa nova realidade, o legislador entendeu por necessária a inclusão de um tipo legal específico para o caso de descumprimento de decisão judicial que defere medidas protetivas de urgências, medida tomada por intermédio da Lei 13.641/2018. Como forma de agravar a reprimenda, dispôs a lei que no caso de flagrante delito, somente a autoridade judicial poderá conceder fiança. Esta medida merece elogios, pois anteriormente não configurava crime eventual descumprimento da medida protetiva pelo agressor, o que poderia influenciar no seu animus.
Especificamente à Lei n° 11.340/06, nos últimos anos houve diversas alterações que visaram buscar aperfeiçoar a norma à realidade dos órgãos de segurança. Foram cerca de 43 alterações (dentre inclusões e revogações) somente no período de 2017 a 2019, com a edição de 10 atos normativos.
Boa parte das alterações citadas está relacionada à ampliação dos direitos das mulheres, como: o afastamento da revitimização; o atendimento preferencial por servidora do sexo feminino; o suporte de profissionais especializados no atendimento à mulher; a requisição direta de serviços públicos pela autoridade policial; o encaminhamento à assistência judiciária; a prioridade na matrícula de dependentes em instituição de educação próxima, mesmo diante da inexistência de vaga; e a possibilidade do manejo de ação de divórcio ou dissolução de união estável no Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (ressalvada a partilha de bens). A criação do tipo penal relativo ao descumprimento de decisão judicial relativa a Medidas Protetivas de Urgência, já comentada anteriormente, também é novidade normativa no âmbito interno da Lei. Há também previsões preventivas à eventual ação do agressor, como a obrigatoriedade de constatação, pela autoridade policial, da existência de registro de porte ou posse de arma de fogo em seu nome, e a possibilidade de o juiz apreender o referido instrumento.
Ganhou relevo a possibilidade (subsidiária) de afastamento do agressor do lar por ato direto do delegado de polícia – na inexistência de sede de comarca, ou pelo próprio policial – quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia. Esta alteração foi objeto de projeto de lei semelhante (mas não idêntico) ainda no ano de 2017 (Lei nº 13.505, de 2017), quando foi vetado pelo presidente, sob a alegação de competência indevida nas atribuições das policias civis (Mensagem de Veto n° 436/2017).
As razões do veto, no cenário atual, não subsistem. A novidade atende ao item 4 “b” da Recomendação n° 54/2001 da CIDH e do Artigo 4º, “g” da Convenção de Belém do Pará, ambas exigindo a simplificação dos procedimentos judiciais e a rápida proteção contra atos que violem os direitos das mulheres. O princípio da reserva de jurisdição é assegurado, pois a autoridade judicial deve ser comunicada em até 24 horas após a imposição do afastamento pela polícia. Ademais, o parâmetro estabelecido atende a proporcionalidade em seus três elementos, pois: a) a adequação é atendida, visto que o atendimento rápido é medida apta para afastar risco atual ou iminente à integridade física da mulher ou dos seus dependentes por conduta do agressor; b) a necessidade é verificada, ao passo que o afastamento do agressor do lar não suprime seu direito à liberdade, ao mesmo tempo em que permite a proteção à integridade da ofendida e dos seus dependentes; c) a medida é proporcional em sentido estrito, pois pondera os princípios do direito à vida e à liberdade, aplicando-se apenas em caso de iminente perigo, resguardada a reserva de jurisdição em ato de posterior apreciação pelo juiz. Portanto, trata-se de inovação legislativa que deve ser mantida no ordenamento jurídico.
Fora da Lei n° 11.340/06 também há previsões relevantes para atuação sistemática no combate à violência doméstica e familiar, das quais se destacam: a obrigatoriedade de notificação compulsória à autoridade policial, no prazo de 24 horas, dos casos de suspeita de violência contra a mulher (Lei 13.931/19), a necessidade de intervenção do Ministério Público nas ações de família em que figure como parte vítima de violência doméstica e familiar; e a prioridade de tramitação nos procedimentos judiciais (Lei nº 13.894/19).
Por fim, merece prestígio a Lei nº 10.714/03, que dispõe acerca da disponibilização, em âmbito nacional, de número de telefone destinado a atender denúncia de violência contra a mulher (atualmente n° 180). A importância do contato restou demonstrada pela quantidade de ligações recebidas. Só em 2018 foram registradas 92.663 denúncias e, nos 6 primeiros meses de 2019, 46.510 denúncias, aumentando em 10,93% o número de chamadas relativas ao mesmo período no ano anterior, segundo dados da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos.
Portanto, é fácil verificar que, mesmo diante dos diversos avanços, há muito a ser feito no Brasil, notadamente no que diz respeito à educação e conscientização da sociedade a respeito do tema aqui debatido.
3.CONCLUSÃO
A ampliação do acesso à justiça, a busca pela celeridade processual e a imposição de medidas mais graves contra o agressor são aspectos que foram implantados com a Lei nº 11.340/06 que visa, mesmo em uma sociedade tão evoluída geneticamente, a proteção à mulher contra diversos tipos de violência. A jurisprudência interna tem sofrido forte influência dos princípios defensivos da mulher estabelecidos no âmbito da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher e na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra Mulher.
Entretanto, o aperfeiçoamento legislativo juntamente com a imposição de medidas mais gravosas aos agressores não são instrumentos isoladamente suficientes para reduzir as diversas violações de direitos das mulheres. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública do ano de 2019, o número absoluto de homicídios nos quais a vítima é do sexo feminino vem diminuindo nos últimos anos, mas o percentual relativo às vítimas de feminicídio tem sofrido aumento nos registros policiais. Não obstante o argumento o referido aumento pode estar relacionado à inclusão da qualificadora de feminicídio (Lei n° 13.104/15), o fato é que o Brasil tem números alarmantes em crimes de gênero contra a mulher, dos quais se destacam, além do feminicídio, a lesão corporal, a ameaça e o estupro.
Para a superação dessa mazela, a mudança necessária e urgente deve ocorrer de forma estrutural, com investimento em políticas públicas por todos os níveis governamentais, objetivando a valorização da dignidade feminina. O respeito e a compreensão desses valores tão escassos em uma sociedade eminentemente machista só poderão sofrer alterações quando ensinada a sua importância nos primeiros anos escolares, e também com a representatividade social feminina na vida profissional e política, com igualdade em aspectos salariais, de promoção e de ocupação de cargos nos âmbitos público e privado. Essa mudança, como se percebe, não ocorre da noite para o dia, mas é um dos primeiros passos para a formação de sociedade materialmente fraterna entre homens e mulheres.
REFERÊNCIAS
ÁVILA, Thiago André Pierobom et al. Modelos europeus de enfrentamento à violência de gênero: experiências e representações sociais. Brasília: ESMPU, 2014.
BRASIL. Anuário Brasileiro de Segurança Pública – 2019. Disponível em: <http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Anuario-2019-FINAL-v3.pdf>. Acesso em: 11 mar. 2020.
BRASIL. Balanço anual: Ligue 180 recebe mais de 92 mil denúncias de violações contra mulheres. Disponível em: <https://www.mdh.gov.br/todas-as-noticias/2019/agosto/balanco-anual-ligue-180-recebe-mais-de-92-mil-denuncias-de-violacoes-contra-mulheres>. Acesso em: 11 mar. 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 4275/DF. Rel: Min. Marco Aurélio. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6393143>. Acesso em: 11 mar. 2020.
_______________________________. ADI n. 4424/DF. Rel: Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão: Min. Edson Fachin. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339649246&ext=.pdf>. Acesso em: 11 mar. 2020.
Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, Caso 12.051, Relatório 54/01, Maria da Penha Maia Fernandes v. Brasil, 2001.
CUNHA, R. S.; PINTO, R. B. Violência Doméstica: Lei Maria da Penha - 11.340/2006. Comentada artigo por artigo. Salvador: JusPodivm, 2019.
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 6 ed. rev., e atual. – Salvador: JusPodivm, 2019.
RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 6 ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
Graduação em Direito pela Faculdade Católica Dom Orione - FACDO (2018), Pós Graduação em Direito Constitucional (2020) e Penal e Processual Penal (2020) pela Faculdade Única de Ipatinga - GM.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARNEIRO, Matheus Eurico Borges. A interpretação da lei de violência doméstica e familiar contra a mulher Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 set 2022, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59209/a-interpretao-da-lei-de-violncia-domstica-e-familiar-contra-a-mulher. Acesso em: 24 nov 2024.
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