RESUMO: O presente artigo visa trazer à baila a discussão sobre a liberdade de expressão no desporto através da ótica do direito penal brasileiro, principalmente os crimes de opinião, em uma compreensão contemporânea sobre o tema. Primeiramente, foi constatada os casos no esporte de maneira global e em seguida no território nacional, a seriedade da interferência política e a ameaça que elas representam contra tal liberdade fundamental, conclusão que inspirou seu estudo no caso “Carol Solsberg”. Ainda, através da análise de doutrinas e de diversos autores, descobriu-se que a verdade e o direito à crítica são elementos protegidos pela liberdade de expressão e resguardados pelo intercâmbio de ideias, em uma democracia. Por fim, verificou-se que a verdade e a justificação compõem o núcleo essencial desse direito fundamental no Brasil com fundamentos semelhantes aos do direito americano, para assegurar o debate em sociedade, resguardando-o de eventuais ações criminais ajuizadas por entidades organizadoras do desporto, ou mesmo membros do poder público e particulares envolvidos em assuntos de interesse esportivo que tenham por objeto coibir a crítica e censurar a verdade.
Palavras-chave: Desporto – liberdade de expressão – censura- direito penal.
ABSTRACT: This article aims to bring up the discussion about freedom of expression in sport through the perspective of Brazilian criminal law, especially crimes of opinion, against honor, in a contemporary understanding of the subject. First, it was verified the cases in sport globally and then in the national territory, the seriousness of political interference and the threat they represent against such fundamental freedom, a conclusion that inspired his study in the “Carol Solsberg” case. Still, through the analysis of doctrines and of several authors, it was discovered that the truth and the right to criticism are elements protected by freedom of expression and protected by the exchange of ideas, in a democracy. Finally, it was found that truth and justification make up the essential core of this fundamental right in Brazil with foundations similar to those of American law, to ensure the debate in society, protecting it from possible criminal actions filed by sports organizing entities, or even members of the public and private authorities involved in matters of sporting interest whose purpose is to curb criticism and censor the truth.
Keywords: Sport – freedom of expression – censorship- criminal law
1.INTRODUÇÃO
O ser humano desde a sua gênese, vive, age e anseia a busca por sensações que o proporcione prazer, paixão, levando em determinadas vezes, a extremos beirando a idolatria e o fanatismo. Quando se trata dessas sensações, o esporte, a política e a religião, são a tríade perfeita que aguçam o imaginário social, acaloram ambientes e promovem o debate inflamado em certas ocasiões.
Entretanto, quando a paixão e a razão se distanciam, há uma ruptura do cerne – falando em relação ao esporte e a política – que é o de gerar alegria e organização social. Contudo, esse cenário de emitir uma opinião em roda de amigos e como interação social, não pertence somente aos torcedores apaixonados pelo seu clube de coração, ou pelos amantes de determinada modalidade esportiva. Nas últimas décadas inúmeros são os exemplos de atletas que ao manifestarem sua opinião (pública), sofreram alguma retaliação por isso, seja pela imprensa, pela sociedade e até mesmo sanções de ordem administrativa e\ou judicial.
E, é diante disso que surge o dilema a ser abordado: até que ponto a liberdade de expressão no esporte interfere na ordem pública ferindo os preceitos do Direito. Até que ponto, sob o pretexto da manutenção da neutralidade política do esporte, é válida ou não a interferência do Estado, por intermédio do direito penal gerando coibição e punição de determinadas ações pelos praticantes e participantes do esporte.
2.ESPORTE, QUESTÕES SOCIAIS E A LIBERDADE FUNDAMENTAL
Recentemente, no Brasil, passamos por algumas ocasiões que afetaram - e até hoje continuam a afetar - o cotidiano nacional como: pandemia, disfunção política, governos estaduais sofrendo impeachment, inúmeros requerimentos contra o Presidente da República, eleições e etc. Não obstante, em outros países a situação foi similar. Nos Estados Unidos, a pandemia, a polarização política, a violência policial racista, dentre tantos outros motivos, também reverberaram no cotidiano yankee, chegando a seara do esporte, onde atletas profissionais e de diversas modalidades, expressaram suas opiniões e tiveram um desfecho descabido e inusitado.
Quais os limites para as manifestações dentro do esporte? Essa pergunta emerge em virtude dos “desfechos descabidos e inusitados” citados acima. No hemisfério norte, a liga de basquete mais famosa do mundo, NBA, enfrentou 2020 sérios problemas durante a fase dos playoffs, quando o time do Milwaukee Bucks decidiu não entrar em quadra para enfrentar o Orlando Magic, em virtude da morte de cidadão negro (Jacob Blake), após ação em que um policial branco disparou sete vezes, pelas costas.
A atuação de associações desportivas e de atletas tiveram pretensa influência na criação de movimentos, como o Black Lives Matter, que tem como objetivo o combate ao racismo e a violência policial.
Nisso, os atletas, como figuras principais das partidas, conseguiram angariar forças para unificar discursos e apresentar suas condições de modo a extrair da entidade organizadora da competição, posicionamento consonante ao da Associação dos Atletas (NBPA). Concomitantemente, não se verificou por parte da liga americana de basquete, qualquer possibilidade ou cogitação de punição ao Milwaukee Bucks e seus jogadores, pelo boicote à partida diante do Orlando Magic.
Esse foi um exemplo de um desfecho “inusitado” dentro do esporte, em que atletas se manifestaram publicamente, uniram forças e conseguiram gerar um impacto positivo politicamente e desportivamente.
Contudo, nem sempre o deslinde é positivo, e aqui, iniciamos a discussão sobre os limites da liberdade de expressão. Se de um lado apresenta-se exemplo em que se reconhece a impossibilidade de se dissociar o esporte dos acontecimentos na esfera social, do outro, nota-se que ainda há inúmeros vieses na presente questão.
Nesse sentido, a atleta do Vôlei de Praia, Carol Solberg, experimentou esse viés, quando foi denunciada pela Procuradoria do Superior Tribunal de Justiça Desportiva da Confederação Brasileira de Vôlei, por uma entrevista dada após obter o terceiro lugar em etapa do Circuito Brasileiro de Vôlei de Praia, em que proferiu a seguinte frase: “fora, Bolsonaro”.
A jogadora, foi denunciada por descumprir o regulamento da competição, tendo ainda sua conduta enquadrada como contrária à disciplina ou à ética desportiva.
O pedido da Procuradoria pela aplicação da penalidade máxima à atleta, qual seja, a aplicação de multa de R$ 100.000,00 (cem mil reais) e suspensão por seis partidas, ainda que não seja atendido pela Comissão Disciplinar ou pelo Tribunal Pleno do STJD do Voleibol, por si só expõe o quão conflituoso pode ser o entrelaçamento entre esporte e política.
Segundo a Confederação Brasileira de Vôlei de Praia, a declaração da atleta foi: por suposição “divulgar opinião pessoal que reflita críticas ou que possa prejudicar ou denegrir a imagem da CBV e/ou patrocinadores e parceiros comerciais”.
A política está no esporte, seja no campo, nas quadras ou nas pistas. Seus principais atores protestam pela possibilidade de se manifestarem livremente no compasso da pretensa neutralidade política das entidades de administração e da atividade esportiva em si. Estaria a Lex Sportiva colidindo com os direitos fundamentais?
Sob a inteligência da Regra 50 da Carta Olímpica e em meio à crescente influência das redes sociais e do protagonismo das estrelas do esporte na discussão de temas de interesse de toda a sociedade, busca-se os limites da liberdade de expressão em ambiente que se afirma ser o mais democrático possível – ainda que, para isso, venha a proibir manifestações contra regimes antidemocráticos. Todavia, o que o Direito Penal brasileiro entende e assevera acerca da liberdade de expressão?
2.1 LIBERDADE DE EXPRESSÃO À LUZ DO DIREITO PENAL
O Direito Penal brasileiro parece nunca ter encontrado maiores problemas na limitação legal da liberdade de expressão (inciso IV do artigo 5º da CR). Delitos cometidos por palavras sempre constituíram ações possíveis de punição sem maiores discussões. Ameaças, coações, extorsões, ofensas, falsidades, desacatos, apologias, incitações e tantos outros delitos integram uma parte substancial de formas típicas puníveis, realizadas por palavras e discursos, que não são permitidas pelo exercício do direito constitucional de liberdade de expressão. Mesmo a condição de partícipe de um delito, como no caso da instigação, realizada em locais privados, não integra qualquer direito de liberdade de expressão.
A liberdade de expressão pode atingir, de maneira indireta, outros direitos fundamentais, como vida, liberdade e propriedade: o agente manifesta-se a favor de determinada conduta delituosa (ex.: dizendo que determinada pessoa deve ser morta) e, dessa forma, coloca em risco o bem jurídico protegido. Nosso Código Penal, tradicionalmente, tipifica esse comportamento basicamente de três maneiras:
I- participação (art. 29), que pode ser por induzimento, no qual o agente coloca na mente de outrem a idéia de cometer o crime; ou por instigação, na qual o agente estimula uma idéia criminosa já existente;
II- incitação ao crime (art. 286): estimular pessoas indeterminadas a cometerem crimes;
III- apologia ao crime (art. 287): referir-se a fato criminoso ou a autor de crime de maneira que os enalteça.
Portanto, essa colisão de direitos constitucionais foi resolvida pelo Código Penal. Ressalte-se, porém, que os crimes dos artigos 286 e 287 são classificados como de perigo abstrato, ou seja, a lei presume que os bens protegidos foram colocados em risco. Essa categoria de crimes é considerada inconstitucional por boa parte da doutrina, que acredita ser indispensável à função garantista do Direito Penal a existência ou a ameaça concreta de lesão ao bem jurídico protegido.
A lógica, portanto, é que a liberdade de expressão deve ceder sempre que colocar em risco concreto bens jurídicos mais valiosos, como vida, liberdade e propriedade.
Em muitas ocasiões, o exercício da liberdade de expressão, mesmo que aparentemente abusivo, não afeta de modo algum o exercício de outros direitos. Assim, se algum atleta se manifesta de maneira contrária a determinado político ou chefe de Estado, a liberdade política desse chefe não será atingida. Seus princípios políticos e forma de atuação continuarão sendo realizados da mesma forma. Totalmente diversa é a atitude de quem dissemina o ódio ou a violência contra a pessoa, governo ou forma de governo.
Recentemente, aqui no Brasil, o uso do entulho autoritário da Lei de Segurança Nacional, felizmente revogada pela Lei 14.197/21, reavivou o problema diante das tentativas de criminalização de ofensas à honra do atual presidente da República e das ameaças e coações feitas por apoiadores desse político contra ministros do Supremo Tribunal Federal e contra as instituições do Estado democrático de Direito. Ressurgiu o debate, então, também sobre os chamados "crimes contra o Estado de Direito", notadamente quando realizados de forma discursiva.
De um lado, aparentemente mais liberal, alguns sustentam uma progressiva extensão e prevalência da liberdade de expressão sobre outros direitos constitucionais, o que permitiria tolerar os delitos de expressão até mesmo quando direcionados ao regime democrático; de outro lado, mediante fórmulas de equilíbrio entre princípios constitucionais colidentes, outros aceitam algumas limitações excepcionais ao exercício da liberdade de expressão, em especial as manifestações de ódio contra algumas minorias ou mesmo contra as instituições democráticas vigentes.
De maneira bastante didática, Alaor Leite e Adriano Teixeira distinguiram três níveis distintos de proteção, individual, grupal e institucional: “primeiro, o nível individual, que diz com a honra de pessoas naturais; segundo, o nível grupal, que se relaciona aos agrupamentos humanos mais vulneráveis; terceiro, o nível institucional cuida do funcionamento de instituições fundamentais da democracia”. (LEITE, TEIXEIRA, 2021, p.385-460)
Em casos como esses, frequentes em tempos ásperos, é fundamental determinar, com exatidão, os limites e a extensão das normas permissivas da ação, que configuram o exercício do direito à liberdade de expressão. A democracia exige a crítica pública, a crítica política, a crítica ideológica e, portanto, o discurso livre. Afinal, como afirmava Rosa Luxemburgo, "Freiheit ist immer Freiheit der Andersdenkenden": a liberdade é sempre a liberdade de pensar diferente. (LUXEMBURGO, 2006).
Por isso, o espaço legítimo de atuação do Direito Penal está concentrado nos discursos proferidos em situações que cumpram os seguintes requisitos: 1) abuso de direito oriundo da posição de poder hegemônico do falante; 2) espaço amplo de difusão de ideias aptas ao enfraquecimento ou destruição de grupos historicamente vitimizados ou da própria democracia; 3) existência de um "sobredireito" não igualado pela somatória de outros direitos fundamentais; e 4) aproveitamento da fragilidade da audiência para disseminação das ideias de ódio contra grupos minoritários ou contra as instituições democráticas e seus agentes. (ZILIO, 2017, p.181)
3 CONCLUSÃO
Assim, fora destas circunstâncias concretas que são aptas para colocar em perigo ou lesionar lesão de bens jurídicos fundamentais, os demais discursos são, sim, legítimos, mesmo quando equivocados ou historicamente discutíveis.
Com essas restrições legais, então, estão excluídas do âmbito do punível as ações discursivas contidas em abstrações, sentimentos e excessos comunicativos, porquanto não configuram qualquer ataque a "possibilidade de viver em sociedade confiando no respeito à esfera de liberdade particular pelos demais". (MIR PUIG, 2008)
Agora, se o Direito Penal tem idoneidade para frear esses crimes expressivos de ódio, cada vez mais frequentes em tempos de fragilidade democrática, só o tempo dirá. A aptidão do Direito Penal depende, nesses casos, do cumprimento da função de prevenção geral, que é limitado pelo princípio da intervenção mínima e pela necessidade de conhecimento empírico dos efeitos produzidos, a fim de evitar um Direito Penal de forte sentimento ético-pedagógico, moralizante e ideológico.
REFERÊNCIAS
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Bacharel em Direito pela USF – Universidade São Francisco de Bragança Paulista. Especializado em Direito Penal e Processo Penal pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus. Mestrando em Direito Penal pela PUC\SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GANDOLFI, Renan Luís de Azevedo. Desporto e a liberdade de expressão sob à ótica do direito penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 out 2022, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59512/desporto-e-a-liberdade-de-expresso-sob-tica-do-direito-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
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