JAKELINE NOGUEIRA PINTO DE ARAÚJO[1]
(orientadora)
Resumo: Em 2020 surgiu no Brasil de forma inesperada um caos em forma de pandemia, um vírus tão pequeno que causou um estrago enorme, seja na saúde, educação, economia etc. Tal evento levou o Estado à adotar medida estranhas ao Estado Democrático de Direito, como restrição do direito de ir e vir, direito de reunião, criação de lockdown, isolamento social, entre outras medidas de emergência. O tema revestisse de importância para a sociedade ao trazer respostas a respeito das medidas adotadas pelo Estado, traz a oportunidade de buscar mais a fundo as teorias e entendimentos que giram em torno desta temática, o que a Carta Magna diz a respeito, esclarecer a constitucionalidade de tais eventos, em tempos de crise, instabilidade e calamidade. O presente trabalho tem como objetivo geral analisar os fundamentos jurídicos que permitem a limitação de direitos fundamentais no Ordenamento Jurídico Brasileiro, para compreender se as medidas adotadas pelo Estado estão de acordo com o ordenamento jurídico pátrio. Adotou-se o método dedutivo, com destaque na pesquisa bibliográfica e documental e com abordagem qualitativa. O estudo demonstrou que diante de situações como a vivenciada na pandemia, é necessário ser exercido um juízo de ponderação, de modo que possa eleger aqueles que, se valendo de critérios minimamente objetivos, haverão de prevalecer, pautando suas ações com base em princípios como os da razoabilidade e da proporcionalidade.
Palavras-chave: Pandemia da COVID-19. Restrições. Direitos Fundamentais. Proporcionalidade. Ponderação. Medidas excepcionais.
Abstract: In 2020, chaos in the form of a pandemic, a virus so small, caused enormous damage, whether in health, education, economics, etc. This event led the state to adopt measures foreign to the Democratic Rule of Law, such as restriction of the right to come and go, the right of assembly, creation of lockdown, social isolation, among other emergency measures. The theme covered importance for society by bringing answers about the measures adopted by the State, brings the opportunity to seek more depth the theories and understandings that revolve around this theme, what the Magna Carta says about, clarify the constitutionality of such events, in times of crisis, instability and calamity. The present work has as general objective to analyze the legal foundations that allow the limitation of fundamental rights in the Brazilian Legal System, to understand whether the measures adopted by the State are in accordance with the national legal system. The deductive method was adopted, with emphasis on bibliographic and documentary research and with a qualitative approach. The study demonstrated that in the face of situations such as that experienced in the pandemic, it is necessary to exercise a weighting judgment, so that it can elect those who, using minimally objective criteria, will prevail, guiding their actions based on principles such as reasonableness and proportionality.
Keywords: PANDEMIC OF COVID-19. Restrictions. Fundamental Rights. Proportionality. Weighting. Exceptional measures.
1 INTRODUÇÃO
Com o advento da pandemia da Covid-19 no Brasil, alguns direitos fundamentais tiveram que sofrer restrições, para que se preservasse um bem maior, a vida. O presente trabalho traz consigo a relevância de se estudar a respeito, pois as medidas produziram impactos em muitas áreas, em especial na seara econômica, social e educacional, que trouxeram preocupação quanto aos riscos que os direitos fundamentais correram, trazendo inseguranças e questionamentos a respeito do tema.
Nesta seara, visto que essas são medidas estranhas ao Estado Democrático de Direito, e que a própria Constituição brasileira não possui nenhuma disposição que autorize o uso de um estado de emergência para conter as necessidades de pandemias como a Covid-19, tais medidas adotadas pelo Estado são realmente constitucionais?
Partindo dessa premissa, o presente trabalho tem como objetivo geral analisar os fundamentos jurídicos que permitem a limitação de direitos fundamentais no Ordenamento Jurídico Brasileiro, para compreender se as medidas restritivas adotadas pelo Estado, como a restrição da liberdade de reunião em locais públicos, o lockdown, a liberdade de ir e vir, dentre outros, estão de acordo com o ordenamento jurídico pátrio. Ademais, analisar os conceitos pertinentes ao tema, a saber: Direitos Fundamentais, estado de exceção, estado de defesa, estado de sítio, calamidade pública; o contexto histórico e a evolução do estado de exceção e as medidas de segurança adotadas pelo Estado para enfrentamento da pandemia, o método utilizado e a sua necessidade.
No segundo capítulo será exposto as noções iniciais sobre os direitos fundamentais, que são o conceito, as características e a evolução histórica dos chamados direitos inerentes ao homem.
No terceiro capítulo será tratado sobre o sistema constitucional brasileiro de crises, as excepcionalidades previstas constitucionalmente, adotadas em momentos próprios previstos na Constituição de 1988.
No quarto capítulo será examinada a atuação do Estado durante a pandemia, alguns atos normativos criados para tentar combater os efeitos da Covid-19, bem como a atuação da OMS (Organização Mundial da Saúde) em caráter mundial.
No quinto capítulo será abordado sobre o estado de exceção, com embasamento em autores que tratam com propriedade sobre o tema, conceituando-o e analisando sua aplicabilidade no contexto da Pandemia da Covid-19.
Por fim, no sexto capítulo mencionará acerca da restrição de direitos fundamentais, os métodos utilizados em caso de colisão de direitos fundamentais, que exige do Poder Público um juízo de ponderação, de modo que possa eleger aqueles que, mediante critérios minimamente objetivos, haverão de prevalecer.
O presente trabalho tem por escopo o método dedutivo, com destaque na pesquisa bibliográfica e documental. Assim o trabalho busca analisar as restrições impostas pelo Estado como meio de combate a pandemia, trazendo opiniões de doutrinadores e autores que estudam sobre o tema. Nesse sentido, a pesquisa possui natureza explicativa e uma abordagem qualitativa, com pesquisas bibliográficas de doutrinadores que relatam sobre a restrição de direitos fundamentais.
2. DIREITOS FUNDAMENTAIS
2.1 Conceito
De início é necessário o estudo do conceito e as características dos direitos fundamentais embasado em entendimento de doutrinadores, pois constituem a base do presente trabalho.
Os direitos e garantias do ser humano tem por finalidade básica “...o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal, e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana pode ser definido como direitos humanos fundamentais” (MORAES, 2021).
Conceituar direitos fundamentais de forma sintética e precisa não é uma tarefa fácil, o doutrinador José Afonso da Silva diz que essa dificuldade é devida a ampliação e transformação dos direitos fundamentais do homem no decorrer da história, além de serem utilizadas várias expressões para designá-los. Segundo ele, a melhor expressão que se deve utilizar é direitos fundamentais do homem, baseado em estudo de Pérez Luño (SILVA, 2005, p. 178, apud LUÑO, pp. 23 e 24):
Direitos fundamentais do homem constitui a expressão mais adequada a este estudo, porque, além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas.
José Afonso da Silva preceitua (2005, p.178):
No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. [...] Direitos fundamentais do homem significa direitos fundamentais da pessoa humana ou direitos fundamentais.
Os direitos humanos fundamentais “colocam-se como uma das previsões absolutamente necessárias a todas as Constituições, no sentido de consagrar o respeito à dignidade humana, garantir a limitação de poder e visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana” (MORAES, 2021).
Os direitos fundamentais possuem algumas características próprias, José Afonso da Silva, firmado na teoria jusnaturalista, destaca: historicidade, inalienabilidade, imprescritibilidade e irrenunciabilidade (SILVA, 2005, p. 181):
(1) Historicidade. São históricos como qualquer direito. Nascem, modificam-se e desaparecem. Eles apareceram com a revolução burguesa e evoluem, ampliam-se, com o correr dos tempos. Sua historicidade rechaça toda fundamentação baseada no direito natural, na essência do homem ou na natureza das coisas;
(2) Inalienabilidade. São direitos intransferíveis, inegociáveis, porque não são de conteúdo econômico-patrimonial. Se a ordem constitucional os confere a todos, deles não se pode desfazer, porque são indisponíveis;
(3) Imprescritibilidade. [...] O exercício de boa parte dos direitos fundamentais ocorre só no fato de existirem reconhecidos na ordem jurídica. Em relação a eles não se verificam requisitos que importem em sua prescrição. Vale dizer, nunca deixam de ser exigíveis.
(4) Irrenunciabilidade. Não se renunciam direitos fundamentais. Alguns deles podem até não ser exercidos, pode-se deixar de exercê-los, mas não se admite sejam renunciados.
Deve-se entender que não existe uma lista taxativa de direitos fundamentais, constituindo eles um conjunto aberto, dinâmico, mutável no tempo (PAULO, p.88, 2021).
2.2. Histórico
“A sedimentação dos direitos fundamentais como normas obrigatórias é resultado de maturação histórica, o que também permite compreender que os direitos fundamentais não sejam sempre os mesmos em todas as épocas, não correspondendo, além disso, invariavelmente, na sua formulação, a imperativos de coerência lógica” (MENDES e BRANCO, 2022, p.62).
Os direitos fundamentais possuem traços da antiguidade, sua evolução é marcada por processos que foram desenvolvidos há séculos. “Sua evolução histórica aponta que sua origem pode ser observada no antigo Egito e Mesopotâmia, onde já eram previstos alguns mecanismos para a proteção individual em relação ao Estado” (MORAES, 2022, p.29).
Cartas e declarações surgiram na Inglaterra a partir do século XIII, bem abordado por SILVA (2005, p. 151):
Na Inglaterra, elaboraram-se cartas e estatutos assecuratórios de direitos fundamentais, como a Magna Carta (1215-1225), a Petition of Rights (1628), o Habeas Corpus Amendment Act (1679) e o Bill of Rights (1688). Não são, porém, declarações de direitos no sentido moderno, que só apareceram no século XVIII com as Revoluções americana e francesa. Tais textos, limitados e às vezes estamentais, no entanto, condicionaram a formação de regras consuetudinárias de mais proteção dos direitos humanos fundamentais.
FILHO nota que a Magna Carta aponta a judicialidade um dos princípios do Estado de Direito. Certo que ela exige o crivo do juiz relativamente à prisão de homem livre. Está no seu item 39: “sem julgamento leal dos seus pares, de conformidade com a lei da terra (law of the land)”, nenhum homem livre será detido ou preso, ou despojado de seus bens, exilado ou prejudicado de qualquer maneira que seja.
Segundo FILHO (2016, p.28):
Várias vezes, mais tarde, foi ela confirmada e reconfirmada por monarcas. Igualmente, em diversos documentos outros, foram esses direitos fundamentais dos ingleses objeto de reivindicação pelo Parlamento e de reconfirmação pelos reis. É o caso, por exemplo, da Petition of Rights, de 7 de junho de 1628, que reclama o respeito ao princípio do consentimento na tributação, no do julgamento pelos pares para a privação da liberdade, ou da propriedade, na proibição de detenções arbitrárias etc. Do mesmo modo, o Bill of Rights, de 13 de fevereiro de 1689, o qual, por outro lado, particularmente se preocupa com a independência do Parlamento, dando o passo decisivo para o estabelecimento da separação dos poderes.
Portanto, fica evidente que os direitos fundamentais do homem os acompanham ao longo da história, marcos que são de extrema relevância para se chegar ao que hoje se conhece, um processo demorado, mas que com o tem tomou forma e se concretizou até a modernidade.
2.2.1 Gerações ou Dimensões de Direitos Fundamentais
Os direitos fundamentais de certo não nasceram prontos, houve um lento processo até chegar ao que se conhece hoje. Ao longo da história muitos direitos foram surgindo, em decorrência de movimentos em prol de uma regulamentação dos direitos inerentes ao homem.
Segundo PAULO, Vicente e ALEXANDRINO, Marcelo (2021, p.89 e p.90):
Os direitos fundamentais são tradicionalmente classificados em gerações (ou dimensões), levando-se em conta o momento de seu surgimento e reconhecimento pelos ordenamentos constitucionais.
Os direitos de primeira geração realçam o princípio da liberdade. São os direitos civis e políticos reconhecidos nas revoluções Francesa e Americana. Caracterizam-se por impor ao Estado um dever de abstenção, de não intromissão no espaço de autodeterminação de cada indivíduo. São as chamadas liberdades individuais, que têm como foco a liberdade do homem individualmente considerado, sem nenhuma preocupação com as desigualdades sociais.
Os direitos de primeira geração seriam aqueles que pretendem uma ação “negativa” do Estado, ou seja, a não interferência na vida privada do homem, como o direito à liberdade, à propriedade, à liberdade de expressão, dentre outros, não permitindo a ingerência abusiva do Estado na esfera privada.
Os direitos de segunda geração “identificam-se com as liberdades positivas, reais ou concretas, e acentuam o princípio da igualdade entre os homens (igualdade material). São os direitos econômicos, sociais e culturais” (PAULO e ALEXANDRINO, 2021, p.89). Esses direitos requerem uma prestação positiva do Estado, exigindo prestações sociais, como saúde, educação, previdência social, dentre outros, que correspondem aos direitos sociais, onde segundo o citado autor, são direitos que resultam da necessidade de promoção da igualdade substantiva, ou seja, o Estado intervindo em defesa do mais fraco.
Os direitos de terceira geração “consagram os princípios da solidariedade e da fraternidade. São atribuídos genericamente a todas as formações sociais, protegendo interesses de titularidade coletiva ou difusa” (PAULO e ALEXANDRINO, 2021, p.90). O citado autor exemplifica direitos de terceira geração como o direito à um meio ambiente equilibrado, à paz, à defesa do consumidor, ao progresso, dentre outros.
Nesse sentido MENDES e BRANCO (2022, p.63) declaram:
Essa distinção entre gerações dos direitos fundamentais é estabelecida apenas com o propósito de situar os diferentes momentos em que esses grupos de direitos surgem como reivindicações acolhidas pela ordem jurídica. Deve-se ter presente, entretanto, que falar em sucessão de gerações não significa dizer que os direitos previstos num momento tenham sido suplantados por aqueles surgidos em instante seguinte. Os direitos de cada geração persistem válidos juntamente com os direitos da nova geração, ainda que o significado de cada um sofra o influxo das concepções jurídicas e sociais prevalentes nos novos momentos.
A doutrina atual não possui um consenso quanto aos bens protegidos exatamente pelos direitos de quarta geração ou até mesmo os quinta geração de direitos fundamentais.
3. O SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO DE CRISES
De acordo com Moraes (2022, p. 913, apud LAVIÉ, Op. cit. p. 573-578):
A Constituição Federal prevê a aplicação de duas medidas excepcionais para restauração da ordem em momentos de anormalidade – Estado de defesa e Estado de sítio, possibilitando inclusive a suspensão de determinadas garantias constitucionais, em lugar específico e por certo tempo, possibilitando ampliação do poder repressivo do Estado, justificado pela gravidade da perturbação da ordem pública.
Já LENZA classifica as medidas excepcionais em (2022, p.1077):
Destacam-se no tema da “defesa do Estado e das instituições democráticas” dois grupos: a) instrumentos (medidas excepcionais) para manter ou restabelecer a ordem nos momentos de anormalidades constitucionais, instituindo o sistema constitucional de crises, composto pelo estado de defesa e pelo estado de sítio (legalidade extraordinária); b) defesa do País ou sociedade, através das Forças Armadas e da segurança pública.
SANTOS (apud LENZA, 2022, p.1077) define sistema constitucional das crises como “... o conjunto ordenado de normas constitucionais que, informadas pelos princípios da necessidade e da temporariedade, têm por objeto as situações de crises e por finalidade a mantença ou o restabelecimento da normalidade constitucional”.
“Estado de defesa é uma situação em que se organizam medidas destinadas a debelar ameaças à ordem pública ou à paz social” (SILVA, 2005). Conforme preceitua o art. 136 da Constituição brasileira, por certo tempo, em locais restritos e determinados, mediante decreto presidencial, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, para preservar a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.
O estado de sítio é previsto no art. 137 da Constituição Federal, e será executado em dois casos: 1) comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medidas tomadas durante o estado de defesa; 2) declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira. Constitui “...medida mais grave que o estado de defesa. Uma vez decretado, estabelece-se uma legalidade constitucional extraordinária, na qual é permitida a suspensão temporária de direitos e garantias fundamentais do indivíduo, como forma de reverter a anormalidade em curso” (PAULO e ALEXANDRINO, 2021, p.902).
Portanto, segundo (PAULO e ALEXANDRINO, 2021, p.897):
Constatada uma situação de crise constitucional, a Constituição Federal de 1988 autoriza a adoção de certas medidas de exceção – estado de defesa estado de sítio -, com o fim de fazer frente à anormalidade manifestada e restabelecer a ordem. Durante a execução dessas medidas, o poder de repressão do Estado é ampliado, mediante a autorização para que sejam impostas aos indivíduos restrições e suspensões de certas garantias fundamentais, em locais específicos e por prazo certo, sempre no intuito de restabelecer a normalidade constitucional.
Segundo RAMOS (2022), mesmo quanto aos direitos suscetíveis de restrição, o respeito à proporcionalidade da medida e a obrigatoriedade da preservação do núcleo essencial dos direitos são exigidos. O controle do Estado de Defesa e do Estado de Sítio é feito pelo Congresso Nacional que os aprova, a partir da decretação – Estado de Defesa – ou solicitação – Estado de Sítio pelo Poder Executivo. Porém, o controle final é feito pelo Poder Judiciário, garantindo respeito aos direitos fundamentais no Estado de Direito.
4. A ATUAÇÃO DO ESTADO FRENTE À PANDEMIA DA COVID-19
A Organização Mundial da Saúde (OMS), organização internacional criada em 1948 com o intuito de promover ações coordenadas entre Estados em face de doenças que podem se propagar para além das fronteiras estatais, adotou a seguinte medida exposta por RAMOS (2022, p. 9):
Em 30 de janeiro de 2020, a OMS declarou a sexta emergência internacional após a identificação de mais de 7 mil casos de pessoas infectadas com o novo coronavírus (nCoV ou Covid-196) em 19 países, a partir, inicialmente, de contaminação de seres humanos pelo vírus na China. Em 11 de março, a OMS declarou a existência de uma pandemia global, dado o impacto generalizado na população com alcance global.
Segundo a OMS, uma pandemia é a disseminação de uma nova doença. Essa classificação requer que tal doença se espalhe por praticamente todos os continentes, e foi exatamente o que aconteceu com o novo coronavírus, transmitido em escala global. De acordo com RAMOS (2022, p. 9):
No plano normativo, a reação no Brasil deu-se quase em seguida à declaração da OMS sobre o estado de emergência sanitária (em 30/01/2020). Em 03 de fevereiro de 2020, com remissão clara à deliberação internacional, o Ministério da Saúde adotou a Portaria n. 188/2020, declarando “emergência em saúde pública de importância nacional” (ESPIN) em decorrência do novo Coronavírus (2019-nCoV), criando ainda o Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE-nCoV) como mecanismo nacional da gestão coordenada da resposta à emergência no âmbito nacional. Imediatamente, foi editada a Lei n. 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, chamada de “Lei da Pandemia” ou “Lei da Quarentena”, pela qual foram adotadas medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus.
De acordo com RAMOS (2022), esse ambiente normativo de excepcionalidade atravessado pelo Brasil em 2020 e 2021, com medidas sendo adotadas em várias áreas, muitas com claro impacto restritivo aos direitos fundamentais, mas que, em tese, possuem como objetivo combater uma pandemia e preservar outros direitos, como o direito à vida e à saúde. Pessoas foram impedidas de se reunirem, foi determinado o isolamento social, uso obrigatório de máscaras para evitar que a doença se espalhasse, suspensão de direitos trabalhistas para assegurar a sobrevida de empresas, entre outras medidas de emergência, em prol da ponderação que deve ser feita no caso de colisão de direitos.
“A crise sanitária causada por uma doença altamente contagiosa representa um grande desafio humanitário ao Estado, que deve enfrentar a pandemia e proteger a vida e a saúde das pessoas sem, ao mesmo tempo, destruir os direitos dos indivíduos”. (RAMOS, 2022, p.10).
No Brasil foi sancionada uma Lei Federal para o enfrentamento da pandemia, a lei nº 13.979/2020, em que foram traçadas medidas de emergência para proteção da saúde pública em razão do coronavírus. Diante dessa situação de calamidade pública não se restou alternativa, a não ser a busca pela segurança da saúde pública, direito esse que deve ser assegurado universalmente. Além de outras medidas adotadas em âmbito estadual, como decretos, que viabilizaram também a restrição de direitos fundamentais.
5. O ESTADO DE EXCESSÃO
De acordo com Gabriel L. Negretto, consiste o estado de exceção no Direito Constitucional: na resposta do ordenamento constitucional a uma situação que, de um modo extraordinário, o coloca em perigo (Gouveia, J., 2020, p. 14).
O estado de exceção somente ganha real sentido nos sistemas em que seja possível discernir uma situação de normalidade – caracterizada por um equilíbrio entre poder e liberdade – de uma situação de exceção – marcada por um conjunto de transformações que permitem a hipertrofia daquele em desfavorecimento desta, (Gouveia, J., 2020, p. 13). Para o autor, não há que se falar em estado de exceção em sistemas de governos tipo anárquico, porque lhes falta um poder suficientemente operativo ao ponto de suscitar o reforço dos mecanismos de intervenção com vista à reposição da ordem constitucional ameaçada (Gouveia, J., 2020, p.14):
Para além de sua localização sistemática num setor jurídico que espelha a existência de problemas singulares, o estado de exceção constitucional requer, concomitantemente, certos pressupostos de operatividade, os quais se organizam em torno de uma noção de sistema político-institucional democrático que possibilita a distanciação entre as situações de normalidade e as situações de crise institucional.
As medidas excepcionais encontram-se na situação paradoxal de medidas jurídicas que não podem ser compreendidas no plano do direito, e o estado de exceção apresentasse como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal (Giorgio Agamben, 2004).
Quanto aos pressupostos para adotar medidas excepcionais pelo Estado faz-se necessária a fala de José Afonso da Silva (2005, p. 762):
Os princípios informadores do sistema constitucional das crises e, pois, dos estados de exceção foram bem lembrados por Aricê Moacyr Amaral Santos, e são o princípio fundante da necessidade e o princípio da temporariedade, cuja incidência nos sistemas de legalidade especial determina: a) a declaração é condicionada à ocorrência de pressuposto fático; b) os meios de resposta têm sua executoriedade restrita e vinculada a cada anormalidade em particular e, ainda, ao lugar e tempo; c) o poder de fiscalização política dos atos de exceção é de competência do Legislativo; d) o controle judicial a tempore e a posteriori é do Judiciário.
Nesse sentido, caso não se verifique a necessidade, o estado de exceção configurará puro golpe de estado, simples arbítrio; sem atenção ao princípio da temporariedade, sem que se fixe tempo limitado para a vigência da legalidade extraordinária, o estado de exceção não passará de ditadura (José Afonso da Silva, 2005, p. 763).
AGAMBEN (2004) preceitua que o fundamento do estado de exceção é o conceito de necessidade, e necessidade não tem lei, o que se deve entender em dois sentidos opostos: "a necessidade não reconhece nenhuma lei” e “a necessidade cria sua própria lei”. Segundo o autor, parece que a necessidade possui o poder de tornar o ilícito em lícito.
De acordo com AGAMBEN (2004, p.38):
O fundamento último da exceção não é aqui a necessidade, mas o princípio segundo o qual toda lei é ordenada à salvação comum dos homens, e só por isso tem força e razão de lei [vim et rationem lehis]; à medida que, ao contrário, faltar a isso, perderá sua força de obrigação [virtutem obligandi non habet].
O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão. Neste sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora (ex-capere) e não simplesmente excluída (AGAMBEM, 2007).
A pandemia do novo coronavírus e as políticas dos Estados para enfrenta-la vieram renovar o debate sobre o Estado de exceção. O contexto em que o debate tem ocorrido deve ser entendido como abrangendo os últimos quarenta anos de experiência democrática do mundo (SANTOS, 2021, p.151).
6. RESTRIÇÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Como já abordado no tópico do sistema constitucional das crises, a Constituição permite a restrição temporária de direitos fundamentais nas situações excepcionais e gravíssimas de estado de defesa e estado de sítio. “É importantíssimo ressaltar que durante a execução dessas medidas excepcionais não impera o arbítrio do Estado, haja vista que este só poderá agir nos estritos termos e limites estabelecidos pela Constituição da República” (PAULO e ALEXANDRINO, 2021, p.898).
Por esse motivo exige-se a presença de pelo menos três requisitos, abordados por PAULO e ALEXANDRINO, 2021, p.898):
(a) necessidade (as medidas só deverão ser decretadas diante de situações fáticas cuja gravidade torne imprescindível a sua adoção); (b) temporalidade (as medidas deverão vigorar somente pelo prazo necessário ao restabelecimento da normalidade, sob pena de se converterem em arbítrio ou ditadura); (c) obediência irrestrita aos comandos constitucionais (a atuação do Estado deverá obedecer fielmente às regras e limites constitucionais, sob pena de ulterior responsabilização – política, criminal e cível – dos executores).
Diante da necessidade de conter a calamidade pública presente no Estado brasileiro, alguns direitos individuais tiveram que ser mitigados a fim de garantir o bem da coletividade, a fim de se evitar o contágio. Ocorre que estes direitos não podem ser restringidos com desproporcionalidade, devendo o Estado atuar sempre de forma clara e transparente.
Conforme preceitua RAMOS (2022, p.10):
Não se trata de abolir o Estado de Direito nem desrespeitar os compromissos internacionais de direitos humanos assumidos: ao contrário, a própria Constituição e os tratados são respeitados na medida em que 1) preveem expressa ou implicitamente tais restrições em face do objetivo de combater tais situações graves e 2) há limites e mecanismos nacionais e internacionais de supervisão e controle das medidas adotadas. Trata-se, então, de reação legítima e que não pode servir de pretexto para o arbítrio e aniquilamento dos direitos, os quais representariam um estado de exceção constitucional e convencionalmente proibido.
É necessário destacar que ainda que devam ser aplicadas essas restrições, elas precisam respeitar os limites impostos, de acordo com os princípios constitucionais e em conformidade com as leis regulamentadoras. Esta teoria, expõe a ideia de que a aptidão de limitar direitos é limitada, e tais medidas não podem ser exercidas em desacordo das regras expressas constitucionalmente.
6.1 Eventuais colisões e o princípio da proporcionalidade
Um dos grandes desafios no combate à COVID-19 foi o de ponderar as ações de modo a proteger o direito à vida e à saúde, sem imobilismos e omissões, mas evitando comprimir os demais direitos de modo desproporcional ou mesmo desnecessário (RAMOS, 2022).
A colisão de direitos fundamentais não é algo novo no ordenamento jurídico brasileiro, (MORAES, 2022, p.43, apud DWORKIN, 2002, p.36-37):
Ocorrendo a colisão entre direitos fundamentais, portanto, para que se atinja o verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua, deverão ser analisados os critérios da proporcionalidade, razoabilidade e adequação, no sentido de realizar-se a técnica da ponderação para atingir-se o resultado hermenêutico justo e necessário perante o caso concreto.
O critério da proporcionalidade, em sentido amplo, abarca três necessários elementos, quais sejam: 1) a conformidade ou adequação dos meios empregados; 2) a necessidade ou exigibilidade da medida adotada e 3) a proporcionalidade em sentido estrito (TAVARES, 2022).
O autor acima citado entende que os dois primeiros elementos citados correspondem aos pressupostos fáticos do princípio, enquanto a proporcionalidade em sentido estrito equivale à ponderação jurídica destes. Além disso não basta apenas que os requisitos fáticos sejam atendidos, faz-se necessária a concordância entre eles e os valores encampados pelo ordenamento jurídico.
Com base nesses requisitos os direitos fundamentais que colidem entre si, são embasados, há a necessidade de “pôr em uma balança” e chegar ao veredito de qual direito fundamental deve prevalecer frente ao outro. “(...) a exigência de conformidade pressupõe que se investigue e prove que o acto do poder público é apto para e conforme os fins que justificaram a sua adopção (...). Trata-se, pois, de controlar a relação de adequação medida-fim” (CANOTILHO, 1991).
No caso da COVID-19, muito se fala da intervenção estatal para garantir a universalidade e a efetividade da saúde e das condições econômicas. Todavia, também deve o Estado se abster de cometer abusos. De modo particular, deve fazê-lo no que se refere a direitos que não deveriam ser mitigados, como a é o caso da autonomia de decisão sobre qual forma de tratamento se sujeitar, com uso de medicamentos à disposição.
Havendo portanto, colisão entre dois ou mais direitos fundamentais, (PAULO e ALEXANDRINO, 2021, p.95 e 96) preceitua:
[...] o intérprete deverá lançar mão do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual, sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com suas finalidades precípuas.
Há que ser nivelado também com base em princípios administrativos como é o caso do princípio da supremacia do interesse público, onde “havendo conflito entre o interesse público e os interesses de particulares, aquele deve prevalecer”(PAULO e ALEXANDRINO, 2021).
7 CONCLUSÃO
A Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus Sars-Cov-2, trata-se do maior desafio natural até então enfrentado pela humanidade, a qual se sujeita a um inimigo invisível, que causou grandes estragos não só no Brasil, mas mundialmente. Diante desse quadro assustador, foi necessária a adoção de medidas de contenção severas com o objetivo de evitar o contágio e o número de mortes. No entanto, ocorreu a chamada colisão de direitos fundamentais, de um lado os direitos individuais sendo suprimidos, do outro lado o direito à vida, à integridade física e à saúde prevalecendo sobre os demais. Restrições antes impensáveis, na pandemia foram adotadas pelos países em prol da preservação da saúde pública e da própria sociedade.
O presente artigo teve o objetivo de analisar os fundamentos jurídicos que permitem as restrições aos direitos fundamentais, bem como as excepcionalidades que traz cada instrumento constitucional e se as medidas adotadas pelo Poder Público são adequadas para conter a pandemia do Coronavírus. Com essa percepção, conclui-se que diante de situações como a vivenciada na pandemia, é necessário ser exercido um juízo de ponderação, de modo que possa eleger aqueles que, se valendo de critérios minimamente objetivos, heverão de prevalecer. Para tanto, impõe-se a utilização dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
Diante disso, cabe ao poder público pautar suas ações com base em princípios como os da harmonização, da eficácia integradora, da unidade e da máxima efetividade da Constituição. Somente assim, mediante uma ação pautada em critérios técnicos e científicos, poderá o Poder Público atingir o seu objetivo sem invadir a esfera privada e inerente do ser humano.
REFERÊNCIAS
RAMOS, André de C. Direitos humanos na pandemia: desafios e proteção efetiva. São Paulo, SP: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786553622890. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553622890/. Acesso em: 19 set. 2022.
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[1] Orientadora, Mestre em Desenvolvimento Regional pela UNIALFA, Professora e Coordenadora do curso de Direito da Faculdade de Imperatriz – FACIMP.
Acadêmica do curso de Direito da Faculdade de Imperatriz – FACIMP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUSA, MARIA LIVIA BANDEIRA DE. Pandemia da covid-19: uma análise sobre a ponderação dos direitos fundamentais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 nov 2022, 04:08. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60012/pandemia-da-covid-19-uma-anlise-sobre-a-ponderao-dos-direitos-fundamentais. Acesso em: 23 dez 2024.
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